Se a economia fosse como a física, a vida dos economistas seria muito mais fácil. No mundo econômico os “átomos” pensam, reagem aos estímulos da política econômica, e se agrupam para influenciar o desenho das instituições econômicas e alterar as instituições políticas, que por sua vez voltam a influenciar as instituições econômicas. O debate sobre a distribuição de rendas serve para ilustrar a interação dessas forças.
Olhemos para uma influente explicação sobre o aumento na concentração da distribuição de rendas nas décadas que precederam o ingresso da economia brasileira na armadilha do lento crescimento. Sua primeira base de sustentação era o modelo dual de crescimento de Arthur Lewis, para o qual existiria na agricultura um “exército de reserva” que, devido à produtividade marginal nula poderia suprir a indústria com todos os trabalhadores necessários, sem reduzir a oferta de alimentos. Em contrapartida, isso garantiria salários baixos na indústria, contribuindo para elevar as taxas de retorno nos investimentos.
Mas havia um problema: se os salários dos operários eram baixos, de onde viria a demanda dos bens duráveis de consumo, cuja produção deveria aumentar naquela particular fase do processo de substituição de importações? Como a demanda não poderia vir dos trabalhadores, teria de ser proveniente dos “capitalistas” e dos “rentistas”. Assim, o aumento das rendas dos mais ricos sem alterar a renda dos mais pobres teria sido o instrumento utilizado pelo governo para acelerar o crescimento econômico.
Apesar de carente de fundamentação empírica esta foi uma versão ganhadora, porque contribuiu – felizmente – para mudar as instituições políticas, anos depois. Porém, como ficou demonstrado no magnífico trabalho de Langoni (Distribuição de renda e desenvolvimento econômico no Brasil), ela nada tinha a ver com a causa da piora na distribuição de rendas. Esta não decorreu do aumento da distância entre as rendas dos “operários” e dos “capitalistas”, e sim da oferta inelástica de trabalhadores qualificados enfrentando uma demanda em forte expansão, que era consequência daquele particular ciclo de industrialização.
Quanto ao crescimento acelerado, o trabalho de Veloso, Vilela e Giambiagi (Determinantes do ‘milagre’ econômico brasileiro: uma análise empírica) produziu evidências de que ele foi, em grande parte, uma consequência das reformas do PAEG. Muito antes de Douglass North ter chamado a nossa atenção para o papel das instituições no crescimento econômico, os ministros Campos e Bulhões executaram reformas que melhoraram as instituições e reduziram os riscos, criando as condições para o crescimento.
Atualmente esta é uma controvérsia superada, mas não tenho dúvidas de que em breve o debate sobre a distribuição de rendas será muito intenso, no Brasil e no mundo. Na última semana o Financial Times publicou dados sobre o aumento da riqueza dos “super ricos”. Entre 2020 e 2021 a riqueza dos super ricos (em proporção ao PIB) aumentou mais de 10% na Rússia, Suécia e Índia, acima de 5% nos EUA, China, França e Brasil, com aumentos significativos em outros países. Não é uma boa notícia.
Biden foi o vice-presidente de Obama, sobre cujo governo recaíram os custos da crise de 2008/09 que, na interpretação de Raguran Rajan (Fault Lines) foi provocada pelos erros de Clinton. Para fugir do custo político de taxar os mais ricos, ele conquistou os mais pobres permitindo-lhes realizar o “sonho da casa própria” amortecendo, com isso, sua insatisfação sobre a distribuição de rendas. Ao revogar o Glass-Steagal Act e usar as agências governamentais para garantir posições alavancadas de mortgage backed securities pelos bancos de investimento, conquistou Wall Street, e sua equipe econômica, abduzida pela crença na hipótese de mercados eficientes, ignorou os riscos.
Tendo suportado com Obama o custo político deste erro, Biden escolheu outro caminho. No seu discurso de posse afirmou que os EUA não foram construídos por Wall Street. Quer criar uma rede de proteção social e estimular investimentos produtivos financiados por aumento de impostos pagos pelos mais ricos. É um programa ousado, que merece respeito pela forma como pretende enfrentar o problema, mas gerará oposições.
No Brasil, as diferenças de crescimento das rendas entre ricos e pobres ainda não pautaram uma discussão que é inevitável, e na qual os “átomos” se organizarão para defender seus interesses, econômicos e políticos.
*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.
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