quinta-feira, 14 de abril de 2022

A FALTA DE DECORO COMO VIRTUDE

Editorial O Estado de S.Paulo

O crescimento no número de denúncias por quebra de decoro parlamentar pode dar a falsa impressão de que está em curso um resgate da moralidade no Congresso Nacional e em várias instâncias do Legislativo. Reportagem publicada pelo Estadão mostra que as representações contra parlamentares no Conselho de Ética da Câmara aumentaram 200% entre 2012 e 2021 e no Senado, 1.200%. Até abril deste ano, foram 12 queixas formais contra deputados federais, mesma marca de todo o ano passado. Longe de representar um apelo por decência, dignidade e honradez, esse avanço é um sintoma da inversão de valores que ameaça tomar conta da política brasileira.

Se o número de denúncias aumentou nos últimos dez anos, a lentidão na análise e na tramitação desses pedidos continua exatamente a mesma. A Câmara não realiza reuniões do Conselho de Ética desde novembro, e no Senado a última audiência se deu em setembro de 2019. A atual legislatura é prova disso. O deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), que divulgou vídeo com ofensas aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro do ano passado, teve o parecer pela cassação aprovado em julho, mas não há qualquer previsão sobre quando o caso será apreciado em plenário. A condenação de parlamentares por seus colegas é exceção, não regra.

É nesse contexto realista que o tema do decoro parlamentar deve ser analisado. A aprovação do parecer pela cassação do notório deputado Arthur do Val (União Brasil-SP) no Conselho de Ética da Assembleia Legislativa de São Paulo pode levar a uma interpretação otimista – seria, nessa versão benevolente, uma resposta ao intolerável. Como se recorda, Arthur do Val enviou a amigos áudios machistas em que deprecia mulheres ucranianas. O Conselho de Ética da Assembleia votou pela cassação e a decisão final será do plenário. Se Arthur do Val for cassado, contudo, não será por suas declarações desumanas, mas sim pela quantidade de inimigos que colecionou na Assembleia, em razão de seu comportamento costumeiramente desaforado.

Não fosse por isso, Arthur do Val teria grande chance de se safar. Basta lembrar que a mesma Assembleia Legislativa não cassou o deputado Fernando Cury (União Brasil-SP), ainda que imagens não tenham deixado dúvidas de que ele apalpou Isa Penna (PCdoB-SP) no plenário em dezembro de 2020. Evidentemente, Arthur do Val tentou usar o caso para se dizer vítima de perseguição. Que fique claro: tanto Cury quanto Arthur do Val merecem perder o mandato. A questão é que as instituições precisam encontrar formas mais efetivas de punição contra os indecorosos. As denúncias, hoje, não assustam nem contêm o ímpeto de nenhum parlamentar. Pelo contrário: servem de trampolim político para arregimentar votos na parcela mais extremista do eleitorado, aquela que, por rejeitar a democracia, interpreta o desrespeito irreverente às instituições democráticas como uma virtude.

Há quem faça do deboche e da cafajestagem uma marca pessoal. Está provado que isso, infelizmente, rende votos. Jair Bolsonaro, por exemplo, chegou à Presidência da República como coroamento de uma carreira política marcada por profundo desrespeito ao Congresso e à democracia. Orgulhosamente, Bolsonaro, quando deputado, disse a uma deputada que não a estupraria porque ela não “merecia”; elogiou o torturador de Dilma Rousseff na hora de votar pelo impeachment da presidente; e defendeu o fuzilamento de opositores. Há muitos outros insultos intoleráveis no histórico de Bolsonaro, mas esses bastam para mostrar que a baixeza bolsonarista não é acidental, e sim deliberada, com o objetivo de ganhar votos. 

Como Bolsonaro não foi punido no momento adequado por seu comportamento absolutamente incompatível com a democracia, sentiu-se à vontade para investir ainda mais na infâmia como ativo eleitoral – e, pior, está fazendo escola. Se pretendem sobreviver a essa degradação moral, as instituições democráticas devem começar a castigar exemplarmente quem tanto as despreza.l

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