sábado, 23 de abril de 2022

BOLSONARO ESCARNECE DA REPÚBLICA

Editorial O Estado de S.Paulo

Não resta dúvida de que o presidente da República tem competência de conceder indulto a condenados. É um poder de longuíssima tradição humanitária, que a Constituição de 1988 acolheu entre as atribuições presidenciais. Mas o que fez Jair Bolsonaro na tarde de quinta-feira nada tem de constitucional ou mesmo humanitário: é pura pirraça de quem, incapaz de acolher uma ordem judicial que lhe desagradou, deseja afrontar as instituições democráticas.

Ao atuar assim, Jair Bolsonaro confirma o acerto da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de condenar o deputado Daniel Silveira. O que o bolsonarismo faz não é simples exercício da liberdade de opinião. É aberta agressão contra o regime democrático. Com atos aparentemente legais – seja o vídeo de um obscuro parlamentar, seja o decreto concedendo a graça a uma pessoa –, o que se tem é a subversão dos princípios republicanos, com debochada insubmissão à lei e às instituições e com despudorado exercício do poder para fins pessoais. Não é assim que funciona o regime constitucional de 1988.

A decisão do STF ainda não transitou em julgado, podendo, em tese, ser modificada. Não está apta, portanto, a gerar efeitos jurídicos. Aos olhos da Justiça, ainda recai sobre o deputado bolsonarista o véu da presunção de inocência. Mas nada disso importa a Bolsonaro. Para afrontar o Judiciário, o presidente da República não teve nenhum inconveniente em fazer de Daniel Silveira um precoce condenado, em tentativa farsesca de transformar o agressor em vítima.

Não que isso diminua a gravidade de seus atos, mas o bolsonarismo é descuidado em suas manobras. Ele mesmo expõe seus equívocos. Com o decreto afirmando que Daniel Silveira estava “resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição”, Jair Bolsonaro explicitou que, com o ato presidencial, não estava concedendo perdão a um condenado (que nem sequer estava juridicamente condenado). A rigor, no ato de quinta-feira, Jair Bolsonaro não exerceu nenhuma competência prevista no art. 84 da Constituição. De forma inteiramente inconstitucional, ele assumiu o papel de órgão revisor do Supremo, com a desfaçatez de interpretar e aplicar a Constituição em sentido diverso ao que havia sido definido no dia anterior pelo Supremo.

Ao atuar assim, Jair Bolsonaro expõe uma vez mais ao ridículo todos aqueles que vêm tentando, ao longo desses três anos e quatro meses, contemporizar os atos presidenciais, como se seu descompasso fosse mera questão de estilo, um inocente despojamento de protocolo, mas que, na essência, não afrontaria a Constituição. Jair Bolsonaro sabe exatamente o que vem fazendo, como já sabia, nos tempos do Exército, que seu comportamento na época não se coadunava com a disciplina, a hierarquia e o espírito militares.

Por exemplo, Jair Bolsonaro tinha plena consciência de seus atos no 7 de Setembro do ano passado. Nada do que se viu naquelas manifestações foi mera destemperança verbal. Ele sabia exatamente o que desejava instigar no País. Como também tinha plena consciência do que fez, dois dias depois, com seu simulacro de recuo. Assim como o autoritarismo, a covardia também tem método.

É preciso retirar, de uma vez por todas, o manto da irresponsabilidade sobre os atos de Jair Bolsonaro. Quando, menos de 24 horas depois de uma decisão do plenário do Supremo, o presidente usa o poder de conceder indulto para afrontar, de maneira explícita, o Poder Judiciário, tem-se uma violação da Constituição. Há um estrito abuso de poder. E mais: há a mensagem de que nada o deterá em suas pretensões e devaneios autoritários. Se assim Jair Bolsonaro trata uma decisão do órgão máximo do Judiciário, simplesmente já não existe mais nenhum limite.

Nesta situação de teste forte das instituições, cabe, de forma especial, ao Congresso e à Procuradoria-Geral da República (PGR) exercerem suas atribuições constitucionais de controle dos atos do Executivo, com a responsabilização de quem vem abusando não apenas da lei, mas da paciência dos brasileiros. Na República, há limites.

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