O Estado de S. Paulo
Imunidade parlamentar não inclui agredir a democracia e o livre funcionamento das instituições republicanas, reafirmam PGR e STF. A condenação do bolsonarista é pedagógica
Ao condenar o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) a oito anos e nove meses de reclusão, pelos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi pedagógico. Não existe liberdade de expressão para atacar a democracia. Não existe imunidade parlamentar para impedir o livre funcionamento das instituições republicanas.
Por 10 votos contra 1, o plenário do STF entendeu que a conduta de Daniel Silveira foi criminosa, isto é, que se enquadra naquelas hipóteses em que, ao atingir bens essenciais de uma sociedade, a lei prevê a imposição de uma pena. Os oito anos e nove meses de prisão não são desproporcionais, mas estrita aplicação da legislação a que todos os cidadãos estão sujeitos.
No processo, nada houve de perseguição política. Foi apenas o Estado, por meio de suas instituições, cumprindo seu papel de impedir que condutas consideradas criminosas pela lei fiquem impunes. Ao contrário do que os bolsonaristas dizem, não foi o Supremo que, num rompante autoritário, investigou, denunciou e puniu Daniel Silveira. A acusação contra o deputado bolsonarista não foi apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes, e sim pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Foi ela quem primeiro entendeu que a atuação de Daniel Silveira havia sido criminosa.
É sintomático que o bolsonarismo, tão afeito ao punitivismo – sua retórica é sempre de aumento da pena –, tenha se mobilizado, de forma tão intensa, pela impunidade de Daniel Silveira. Não era apenas que “um dos nossos” estava sendo julgado por sua conduta tresloucada. Foi a própria tática política do bolsonarismo, de agressão contra as instituições, que estava no banco dos réus. Daí a importância do julgamento de quarta-feira passada: o Estado Democrático de Direito, por meio de suas instituições, reconheceu que a política também está sujeita a regras e a limites. Não é um vale-tudo, não é um mundo sem lei.
A atividade parlamentar dispõe de prerrogativas constitucionais. Como é próprio de um regime democrático, “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (art. 53 da Constituição). No entanto, ameaçar e agredir não é uma opinião: é crime. E não cabe usar a imunidade parlamentar como “escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”, lembrou Alexandre de Moraes.
Eis a confusão que o bolsonarismo deseja instaurar. Para seus atos, almeja irrestrita impunidade. Tudo estaria dentro de um amplíssimo conceito de liberdade, para fazer e dizer o que bem entender, num cenário de completa irresponsabilidade. Para os outros, a liberdade seria inteiramente diferente, muito mais limitada. A mera crítica ao presidente da República já foi motivo para que o governo Bolsonaro solicitasse a instauração de inquérito policial contra opositores. É tudo uma grande incoerência. O mesmo deputado bolsonarista que gostaria que seus crimes estivessem protegidos pela imunidade parlamentar defende a edição de um novo AI-5, justamente o ato da ditadura que suspendeu importantes garantias constitucionais.
Há liberdade no País e, precisamente para que possa continuar havendo liberdade, é preciso ter lei. “A liberdade de expressão existe para a manifestação de opiniões contrárias, para opiniões jocosas, para sátiras, para opiniões inclusive errôneas, mas não para imputações criminosas, para discurso de ódio, para atentados contra o Estado de Direito e a democracia”, afirmou Moraes.
Além de pedagógico sobre os limites da liberdade, esse processo judicial põe por terra uma falácia bastante difundida entre bolsonaristas. O que se tem no País hoje não é uma disputa entre STF e Jair Bolsonaro, como se o Supremo perseguisse politicamente o bolsonarismo. O Congresso autorizou a prisão preventiva de Daniel Silveira. A PGR denunciou o deputado. Até o ministro André Mendonça votou por sua condenação. Não é perseguição política, é aplicação da lei. E quem está isolado é o bolsonarismo, não o STF.
N. da R. – Com este texto já na página, Bolsonaro anunciou o indulto do deputado, mostrando uma vez mais a falta de pudor do bolsonarismo em usar o poder para acobertar os crimes dos amigos.
Bom para os partidos, ruim para o País
O Estado de S. Paulo
Inapetência de grandes legendas pela Presidência decorre de um arranjo que dá ao Legislativo acesso inaudito ao Orçamento sem a devida responsabilização
Diante dos olhos de todos, grandes partidos políticos, como PSDB, MDB e União Brasil, têm demonstrado, diariamente, enorme dificuldade para indicar pré-candidatos à Presidência da República que mostrem ser alternativas viáveis aos dois primeiros colocados nas pesquisas de intenção de voto: o ex-presidente Lula da Silva (PT) e o incumbente, Jair Bolsonaro (PL). A seis meses da eleição, o cenário de disputas fratricidas, traições e sabotagens internas no seio do chamado centro democrático sobressalta todos aqueles que receiam ver o País entregue a um dos dois projetos populistas iliberais ora em destaque. E está-se falando de muita gente. A depender do instituto de pesquisa, algo entre 25% e 30% do eleitorado afirma não querer votar nem em Lula nem em Bolsonaro.
Em um regime presidencialista, é natural supor que a chegada ao topo do Poder Executivo federal seja o objetivo maior dos partidos políticos, o gran finale de uma trajetória marcada pela construção de uma identidade ideológica e programática, pela ampliação da presença nacional das legendas e, enfim, pela elaboração de um projeto de governo que represente as ideias e os valores de segmentos significativos da sociedade. Evidentemente, nenhum partido político, seja grande ou pequeno, está obrigado a lançar candidatura própria à Presidência da República a cada quatro anos. Mas há muito tempo não se via no Brasil tamanha inapetência das grandes legendas – que são grandes justamente por serem as que bem trilharam aquela trajetória – para lançar uma candidatura competitiva ao Palácio do Planalto. Há uma razão muito evidente para isso: o Congresso jamais teve tanto acesso a recursos do Orçamento da União como tem agora. E sem prestar contas do que faz com tanto dinheiro.
Desde a aprovação das chamadas emendas impositivas, tanto as individuais como as de bancada, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), o Congresso vem ampliando a fatia do Orçamento da União sob seu controle. Nas democracias representativas, é esperado que deputados e senadores tenham algum grau de participação na destinação final dos recursos públicos, mas o que se vê aqui não tem paralelo no mundo. O Estadão teve acesso a um estudo elaborado pelo economista Marcos Mendes (Insper) para o Instituto Millenium que revela que a captura de recursos públicos por meio de emendas parlamentares no País é até 20 vezes maior do que nas nações que integram a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), instituição da qual o Brasil deseja fazer parte.
De acordo com o estudo, as emendas parlamentares representam 24% das despesas dos Ministérios e dos investimentos previstos para este ano. A título de comparação, nos Estados Unidos apenas 2,4% da despesa total vem das emendas parlamentares. “O que o Brasil faz é uma aberração que acaba comprometendo muito a própria democracia”, disse ao Estadão a diretora executiva do Instituto Millenium, Marina Helena Santos.
A “aberração” se materializa na quantidade absurda de emendas individuais e de bancada que são apresentadas ao Orçamento da União. Aberrantes são as emendas de relator, base do “orçamento secreto”. Indecentes são os valores bilionários dos fundos públicos que despejam dinheiro fácil nas contas dos partidos, como o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral. Como o quinhão desses fundos que cabe a cada legenda está relacionado ao tamanho de suas bancadas, os caciques partidários têm cada vez menos estímulos para investir em campanhas para a Presidência. Optam pelas eleições proporcionais, sobretudo para a Câmara dos Deputados. Ademais, o atual arranjo representa o melhor dos mundos para as legendas: muito dinheiro e nenhuma responsabilização por seu uso ou pela falta de projetos majoritários para o País.
Enquanto isso, parcela expressiva dos eleitores segue sem representação política, à mercê de dois projetos de poder rigorosamente personalistas. É este, por enquanto o resultado da bagunça interna e do descaso com o País de partidos políticos outrora dignos de sua inscrição na história nacional.
A inflação agora preocupa todos
O Estado de S. Paulo
Alta intensa e persistente dos preços agora é percebida por praticamente toda a população
A inflação está se acelerando desde o início do ano passado, e a cada mês afeta mais o orçamento das famílias, mas a percepção das pessoas de que os preços de bens rotineiramente comprados por elas estavam subindo não era muito nítida. Agora é. O impacto da inflação foi sentido por 95% da população, de acordo com pesquisa patrocinada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e realizada pelo Instituto FSB Pesquisa. Em novembro do ano passado, 73% dos brasileiros diziam ter sentido o aumento médio dos preços.
O indicador subiu 22 pontos de porcentagem em seis meses. Nesse período, o ritmo da inflação não se alterou muito. Em novembro, a alta acumulada de 12 meses foi de 10,7%. Em março de 2022, com alta de 1,62%, a maior para o mês desde o lançamento do Plano Real, em 1994, o acumulado de 12 meses alcançou 11,30%, apenas 0,6 ponto maior do que o resultado de novembro.
Por isso, talvez mais do que a aceleração, é a persistência da inflação em nível alto que tem feito mais pessoas perceberem seu impacto. Essa percepção afeta decisões importantes, inclusive no plano político, pois a inflação pode ter peso expressivo, se não decisivo, na escolha do candidato à Presidência da República.
A expectativa das pessoas consultadas é de que não haverá melhora no curto prazo. Em novembro, 54% dos entrevistados consideravam que os preços aumentariam nos seis meses seguintes. Na pesquisa mais recente, o porcentual passou para 66%.
Esse sentimento combinado de que os preços sobem muito e continuarão subindo nos próximos meses, mais intenso na pesquisa recente do que na anterior, deveria afetar também de maneira mais intensa sua programação financeira, mas, curiosamente, não foi isso que se constatou. Em novembro, 74% dos entrevistados disseram que tinham feito algum corte nos gastos familiares nos seis meses anteriores; em abril, 64% disseram ter reduzido alguma despesa.
A avaliação do impacto do aumento dos preços sobre a situação financeira, de sua parte, não mostrou variação expressiva entre uma pesquisa e outra. Em novembro, 75% dos entrevistados diziam que suas finanças tinham sido afetadas pela inflação; o índice passou para 76% em abril. Mas aumentou (de 45% para 54%) a parcela dos que afirmaram ter tido suas finanças muito afetadas pelo aumento dos preços.
Itens de despesas que mais pesam nos orçamentos das famílias de baixa renda estão entre os mais citados entre os que ficaram mais caros nos últimos meses. Dos entrevistados, 59% mencionaram o aumento da conta de luz; seguem-se, pelo número de citações, gás de cozinha, arroz e feijão, conta de água, combustível, frutas e verduras, carne vermelha e remédios.
Por isso, a percepção de que os preços aumentaram muito é mais intensa nas famílias com renda de até um salário mínimo (90%) do que nas com renda maior do que cinco salários mínimos (83%). Da mesma forma, é maior no Nordeste (93%) do que no Sul (76%). Mas, qualquer que seja a faixa de renda ou a região, a inflação é um mal cuja percepção é generalizada.
Tortura, mancha que não se apaga da história nacional
Valor Econômico
A lei da anistia conteve os democratas, mas o revanchismo parece vir hoje dos radicais de direita, estimulados pelo Planalto
O golpe militar de 1964 abriu um período nefasto da história republicana, com a destruição da democracia, a perseguição política, torturas e assassinatos. Ainda sob a ditadura, em 1979, uma lei de anistia assegurou impunidade a torturadores e aos responsáveis pelos órgãos de repressão que os comandavam. Prevaleceu até hoje a solução contemporizadora, fruto do jogo tenso das forças políticas da época, até que chegou à Presidência o capitão reformado Jair Bolsonaro (“mau capitão”, segundo o ditador Ernesto Geisel), que vê no regime militar a época de ouro que gostaria de reviver. Não está sozinho nesse desejo.
O episódio da revelação de fitas gravadas no Supremo Tribunal Militar entre 1975 e 1985 pela jornalista Miriam Leitão, de “O Globo” – torturada quando grávida -, comprovou mais uma vez que houve uso da violência contra presos indefesos e que o tribunal militar tinha conhecimento delas. Torturas estão descritas em áudios do almirante Júlio de Sá Bierrenbach, o general Rodrigo Octávio, os ministros Amarilio Salgado e Waldemar Torres da Costa, brigadeiro Faber Cintra e outros.
Parte de compilação realizada pelo historiador e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Fico, as fitas vieram à tona para desmentir insinuações hediondas de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, sobre o que ocorreu nos porões da ditadura com Miriam. Mais do que documentar fatos bárbaros e adicionar detalhes cruéis, os áudios reavivaram ou revelaram os piores instintos de militares com posições de poder na República. O vice-presidente Hamilton Mourão, questionado sobre a necessidade de apurar os fatos descritos, sorriu e disse: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô”. Para ele, isso faz parte de um passado no qual “houve excesso de parte a parte”.
Pior fez o presidente do Supremo Tribunal Militar, general Luís Carlos Gomes Mattos, que qualificou documentos históricos da Corte que preside de “notícia tendenciosa” e entrou no túnel do tempo para afirmar que sua divulgação era uma conspiração para atingir as Forças Armadas. “Não estragou a Páscoa de ninguém”, completou. Para o general, “só varrem de um lado, não varrem o outro”.
Como deputado, e depois presidente da República, Jair Bolsonaro não se cansa de louvar os trabalhos do torturador Carlos Brilhante Ustra, a quem dedicou, inclusive, seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff. Eleito, Bolsonaro buscou para a chefia do Gabinete de Segurança Institucional o general Augusto Heleno, ajudante de ordem do general Silvio Frota, expoente da linha dura do regime militar, botinado por Geisel por tentar torpedear o processo de abertura política controlada.
O ministro da Defesa, Walter Braga Netto, cotado para vice na chapa de Bolsonaro para a reeleição, qualificou o golpe de 31 de março como “um marco histórico da evolução política brasileira” em ordem do dia alusiva à data. Seu legado, segundo Braga, foi de “paz, de liberdade e de democracia”.
O imaginário bolsonarista é habitado por fardas e demonstrações de força e poder contra inimigos, entre eles, frequentemente, a democracia. Eduardo Bolsonaro disse, por exemplo, em vídeo gravado em julho de 2018: “Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não”.
Bolsonaro atraiu ao seu redor a ala radical das Forças Armadas, que justifica o rompimento da ordem legal sob alegações ideológicas diversas, que usualmente não guardam relação com a realidade. Há outra ala, legalista, que respeita a Constituição, que também se abriga na cúpula militar. Ela vê o despreparo e a incompetência de Bolsonaro como um desserviço aos fins últimos do corpo armado do Estado.
Ao colocar milhares de militares na administração pública, Bolsonaro deu visibilidade a casos gritantes de inadequação para o cargo em um momento trágico da vida nacional, como foi a passagem do general Eduardo Pazuello pelo Ministério da Saúde. Ex-militares ou militares da reserva estiveram envolvidos em escândalos de corrupção no caso das vacinas, desmoralizando a imagem que o Exército tem perante a população.
Mais importante, com sua gritaria sobre a possibilidade de fraude nas eleições, Bolsonaro busca arregimentar adeptos para seus sonhos radicais. A lei da anistia conteve os democratas, mas o revanchismo parece vir hoje dos radicais de direita, estimulados pelo Planalto.
Brasil não consegue sair da série B da economia mundial
O Globo
Para os brasileiros, o último Panorama Econômico Global com as projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a economia mundial traz dois recados. Primeiro, o PIB do Brasil deverá crescer neste ano raquítico 0,8%, e em 2023 apenas 1,4%. Segundo, esse é um crescimento ainda mais medíocre quando comparado ao dos demais países emergentes.
É verdade que a guerra na Ucrânia freou a recuperação mundial depois dos piores momentos da pandemia. A previsão é de inflação alta e de desaceleração no crescimento global (de 6,1% em 2021 para 3,6% em 2022 e 2023). Mas o que está ruim ainda pode piorar. No rol das incertezas estão a ampliação do conflito armado na Europa e a desaceleração maior na China em razão do fracasso na estratégia de Covid-19 zero.
Nesse ambiente conturbado, o melhor que o governo federal poderia fazer é exatamente o contrário do que tem feito. Seria o tempo de preparar o país para o vendaval que se avizinha. Não na visão do presidente Jair Bolsonaro. Ele dá repetidas provas de não se importar com o estado da economia depois das eleições de outubro. Faria bem se moderasse o ímpeto gastador e parasse de corroer o arcabouço fiscal que garante a gestão sensata da dívida pública.
Não é um acaso que as estimativas de crescimento do PIB brasileiro em 2022 e 2023 sejam desproporcionalmente menores que as da Índia (8,2% e 6,9%) ou da China (4,4% e 5,1%). Os números para a América Latina (2,5% e 2,5%) e para o México (2% e 2,5%) não chegam às alturas, mas são bem mais respeitáveis que os brasileiros.
Desgraçadamente, isso não é novidade. Com ou sem guerra, com muita ou pouca incerteza, o desempenho do Brasil tem sido sofrível com regularidade espantosa. Não há consolo ao olhar para outros lugares. Desde 2014, o Brasil registra desempenho pior que as médias global e dos países emergentes e em desenvolvimento. Só crescemos mais que o México em dois anos.
O debate aqui é prejudicado por uma miopia crônica. Segundo uma visão deturpada, nossas vantagens comparativas em bens primários são um limitador ao desenvolvimento industrial. Na verdade, como diz o economista Samuel Pessôa, faltam evidências convincentes de que a valorização do câmbio provocada pela venda de commodities seja grande empecilho à competitividade da indústria. Os maiores problemas são outros, a começar pelo ambiente protegido. Em vez de maldição, o setor primário, aberto para o mundo, tem sido a salvação.
Reformar as leis que condenam o Brasil ao atraso deveria ser a prioridade do próximo governo. Mas nenhum dos líderes nas pesquisas de opinião parece ter muita noção do momento histórico. Bolsonaro se tornou refém de demandas corporativas e de interesses os mais variados. E o ambiente internacional atual em nada se parece com o que o ex-presidente Lula encontrou durante seus dois mandatos. O discurso prisioneiro dos interesses locais, da agenda do funcionalismo e da ideia de um Estado indutor do crescimento já foi testado antes e não deu certo. Insistir nesses erros equivalerá a continuar vendo a corrida global dos últimos lugares, com desemprego alto e renda baixa.
PF precisa levar até o fim as investigações contra Jair Renan
O Globo
Já ficou claro que o bolsonarismo se manifesta em pelo menos duas variantes, para usar o termo em voga. A primeira poderia ser chamada de “ideológica” ou “intelectual”. São os bolsonaristas que se acreditam em guerra contra a esquerda, o “marxismo cultural”, o “politicamente correto” ou qualquer outra fabulação da extrema direita. A segunda variante tem um caráter mais material. É um bolsonarismo, por assim dizer, de resultados, mais voltado para negócios. É o bolsonarismo das rachadinhas do Queiroz, dos pastores pedindo propina no MEC, das negociatas no Ministério da Saúde, das estrepolias com o Centrão.
Os filhos Zero Dois (Carlos) e Zero Três (Eduardo) do presidente Jair Bolsonaro são expoentes da primeira variante. O primeiro está vinculado à campanha vitoriosa de 2018 e à desinformação nas redes sociais. O segundo, discípulo do finado guru Olavo de Carvalho, articula alianças estratégicas com a extrema direita global. O filho Zero Um (Flávio), protagonista do escândalo das rachadinhas, pode ser considerado um espécime da segunda variante. A ela também parece pertencer o Zero Quatro (o caçula Jair Renan), envolvido agora numa história rocambolesca de tráfico de influência, em que é acusado de abrir a porta do governo a empresários, em troca de mimos para seu escritório no estádio Mané Garrincha, em Brasília.
Num depoimento de quatro horas à Polícia Federal, Jair Renan negou irregularidades. Os indícios, porém, são comprometedores. Em 2020, ele se reuniu no Espírito Santo com empresários interessados em negócios com o governo. Dois meses depois, as portas do Ministério do Desenvolvimento se abriram a um deles, numa reunião com a presença do Zero Quatro, de sua arquiteta e do personal trainer com quem se associou em vários negócios.
Mensagens obtidas pela PF revelam que esses dois últimos buscavam patrocínio para pagar obras no escritório do Zero Quatro, identificadas como “bolsa móveis e bolsa reforma”. “Já já sai na mídia. Filho de presidente pede Bolsa Móveis”, dizia uma delas. Uma das patrocinadoras do projeto recebeu R$ 25,4 milhões em contratos para fornecer poltronas, cadeiras e mesas ao governo. De acordo com Jair Renan, as doações que recebeu das empresas seriam pagas na forma da veiculação de publicidade nas redes sociais.
É até possível que não haja ligação entre os contratos com o governo e a proximidade do filho do presidente. Mas casos do tipo sempre deixam uma mancha. Todo presidente da República precisa zelar pela imagem de seus parentes, que muitas vezes usam essa relação familiar para catapultar negócios. Bolsonaro não é o único a enfrentar o problema. Várias denúncias atingiram filhos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O mexicano Andrés Manuel López Obrador está às voltas com acusações cabeludas envolvendo seu filho mais velho. Em todos os casos, cabe às autoridades apurar tudo. A PF deve levar as investigações até o fim. E Bolsonaro, como todo bom pai, não deveria passar a mão na cabeça de seus filhos — de qualquer variante.
Desastres no MEC
Folha de S. Paulo
Com 5ª nomeação para a pasta, Bolsonaro patrocina gestão ruinosa da educação
O presidente Jair Bolsonaro (PL) nomeou Victor Godoy Veiga como seu novo ministro da Educação. É o quinto indicado ao MEC em 40 meses. A rotatividade, contudo, constitui o menor dos problemas da pasta cuja importância estratégica esteve sistematicamente rebaixada nesta administração.
Godoy Veiga não é mais que um burocrata. Formou-se em engenharia de redes de comunicação de dados pela Universidade de Brasília (UnB) em 2003 e só tem cursos de especialização na Escola Superior de Guerra e na Escola Superior do Ministério Público —nenhum deles relacionado com educação.
Ocupava a secretaria-executiva do MEC, após 16 anos como auditor na Controladoria-Geral da União (CGU). Fora indicado pelo antecessor Milton Ribeiro, que deixou o ministério no escândalo da intermediação de verbas por pastores.
Parece haver mais automatismo que ironia na escolha do especialista em propinas de órgão de fiscalização do governo para suceder um investigado. Bolsonaro repete indicações recentes de subalternos inexpressivos para o primeiro escalão, e até Ribeiro os desvios notórios no MEC eram ideológicos, não de dinheiro público.
A sucessão de desastres começou com Ricardo Vélez Rodríguez, filósofo e teólogo indicado ao MEC por Olavo de Carvalho, falecido guru da direita tresloucada. Vélez ficou 99 dias no cargo, tempo suficiente só para reconhecer-se sua nulidade.
Quando não parecia possível relegar o MEC a nível mais inferior, Bolsonaro nomeou Abraham Weintraub, economista da Unifesp. Seguiram-se 14 meses de destempero por um ideólogo tosco, cujo feito mais famoso foi vociferar em reunião ministerial que “colocaria todos esses vagabundos na cadeia, começando no STF”.
O passo seguinte na degradação, em 2020, se deu com o professor de finanças Carlos Alberto Decotelli —que nem chegou a tomar posse, renunciando pouco depois de nomeado, após descobrirem-se um doutorado fictício e sinais de plágio na sua tese de mestrado.
Em comum entre Vélez, Weintraub e Ribeiro encontra-se a inoperância na missão de recuperar o ensino público no país. O que já era problemático, em termos de aprendizado e proficiência, caminha para revelar-se uma tragédia sob o golpe triplo da conturbação pandêmica, da incompetência e do aparelhamento sob Bolsonaro.
Isso sem falar, claro, nos indícios de corrupção e mau uso do dinheiro público por operadores do centrão que proliferam na pasta.
Chegou-se no Brasil ao ponto em que o melhor que se pode dizer do novo ministro da Educação está em não ser, aparentemente, um militante ideológico ou religioso. É muito pouco, pouco demais.
Covid acima de zero
Folha de S. Paulo
China se debate para manter controle rígido do vírus, afetando a economia global
Berço da pandemia do Sars-CoV-2, a China passou os dois primeiros anos da pandemia sendo admirada pela eficácia de seu programa de combate à disseminação do vírus que já matou mais de 6,2 milhões de pessoas no mundo inteiro.
Aplicando uma política rígida de lockdowns em grandes áreas urbanas, Pequim logrou registrar apenas cerca de 4.700 mortes oficiais na porção continental do país, com meras 3 vítimas para cada milhão de habitante —um milésimo do observado no Brasil ou nos EUA.
Tal brilho sempre foi alvo de contestação devido à opacidade típica de estatísticas em uma ditadura comunista, mas especialistas concordam que os chineses conseguiram um sucesso sanitário único.
Ato contínuo, o feito virou peça de propaganda do regime ante a suposta ineficiência das democracias liberais em lidar com o vírus.
Foi assim até agora. A abordagem conhecida como Covid zero começou a ser colocada à prova com a emergência da variante ômicron, que varreu o globo neste ano.
Em Hong Kong, região semiautônoma que não integra os números chineses da peste, houve uma explosão de casos que evidenciou dois problemas graves: o relaxamento da cobertura vacinal entre os mais idosos e o fato de que os imunizantes do país, de tecnologia mais tradicional, são menos eficazes contra a nova cepa.
De forma inédita, duas megacidades, Xangai (26 milhões de habitantes) e Shenzhen (17 milhões) foram fechadas. Tão inaudito quanto isso, moradores passaram a furar o bloqueio da internet para protestar contra as regras draconianas e a vida numa distopia onde cães-robôs vigiam as ruas.
Como ensinou Sun Tzu no clássico chinês “A Arte da Guerra” (séc. 5º a.C.), se o inimigo deixa uma porta aberta, urge precipitar-se sobre ela. Foi o que o vírus fez.
Com isso, a produção industrial chinesa, engatinhando para fora da crise, entrou em alerta. A imagem de centenas de navios à espera de atracagem no porto de Xangai insinua o dano a cadeias logísticas mundiais, já bastante castigadas.
Em um mundo que lida com uma guerra europeia com potencial caótico para a área de energia, é mais do que uma má notícia.
Na fútil competição geopolítica, o Ocidente não apresenta números melhores, e a volta dos surtos assombra a Europa e os Estados Unidos. Mas são Xi Jinping e sua inflexível política sanitária que estão agora no holofote.
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