sábado, 23 de abril de 2022

NEGACIONISMO LEGISLATIVO

Editorial O Estado de S.Paulo

A duras penas, o País teve de arcar com os efeitos do negacionismo na saúde, com mais de 660 mil mortes, atraso na compra de vacinas, uso de medicamentos ineficazes para o combate à covid-19 e sabotagem às medidas de prevenção. Na economia, o ministro Paulo Guedes pode repetir quantas vezes quiser que respeitou o teto de gastos, mas o mercado sabe muito bem o que foi feito da âncora fiscal e cobrou seu preço. No Legislativo, porém, o negacionismo, representado na figura do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), segue imbatível, apesar das revelações do Estadão envolvendo o “orçamento secreto” e das exigências de transparência por parte do Supremo Tribunal Federal (STF).

Desafiando a realidade, Lira, em entrevista ao jornal O Globo, defendeu as emendas de relator, mecanismo utilizado pelo governo federal para compra de apoio de parlamentares. Classificar como “orçamento secreto” uma rubrica cercada de sigilo, a não ser sobre seu volume bilionário, é “insensatez”, nas palavras do presidente da Câmara, ainda que até hoje o Congresso ignore a ordem do STF para divulgar ofícios que comprovem a autoria dessas emendas. No mundo paralelo descrito por Lira, haveria um site em que todos esses documentos estariam cadastrados, e os deputados e senadores estariam divulgando informações de forma voluntária, por meio de, pasmem, postagens em suas próprias redes sociais – promovidas a ferramentas oficiais de prestação de contas sobre a aplicação do dinheiro público.

Mas o que chama a atenção mesmo na fala de Lira é a tendência que se descortina para o futuro. Destinar mais de R$ 16 bilhões às emendas de relator ainda é insuficiente para atender a toda a demanda do País, afirma o presidente da Câmara. “Falamos de R$ 16 bilhões achando que é muito. O Brasil tem pouco investimento. Estamos aqui com R$ 3 trilhões (do Orçamento) brigando por R$ 16 bilhões. Não que seja pouco, porque R$ 16 bilhões é muito mesmo, mas ainda é insuficiente para as demandas do Brasil”, disse. Na versão apresentada por Lira, portanto, as emendas de relator foram fundamentais para encorpar os parcos R$ 42,3 bilhões autorizados para investimentos no Orçamento deste ano – e não um instrumento que salvou Jair Bolsonaro do impeachment ao beneficiar parlamentares fiéis ao governo, agora em busca de sua reeleição.

Aqui cabem esclarecimentos. A definição de investimento no Orçamento compreende planejamento e execução de obras, aquisição de imóveis, instalações, equipamentos e material permanente ou ainda aumento de capital de empresas que não sejam de caráter comercial ou financeiro. Ainda que seja bastante amplo, o conceito certamente não alcança obras precárias de pavimentação ou licitações superfaturadas para compra de tratores, como se viu no “orçamento secreto”. 

Não há dúvidas de que a participação dos investimentos na proporção do PIB é pequena e deve ser elevada, não apenas para melhorar a infraestrutura existente, mas também para impulsionar o intermitente crescimento econômico registrado nas últimas décadas. Todos os indícios revelados pela imprensa a respeito das emendas de relator, no entanto, não apontam nessa direção, mas sim para desperdício de dinheiro público e favorecimento de empresas vinculadas a caciques políticos. Decerto não é desse tipo de investimento que o País precisa. Direcionar verbas para obras realmente necessárias, no entanto, pressuporia a existência de projetos consistentes e demandaria do presidente Jair Bolsonaro o ato de governar, habilidade que ele foi incapaz de demonstrar em mais de três anos no cargo.

Fica claro, pelas declarações de Lira, que não há a menor intenção de reduzir a fatia das emendas de relator dentro do Orçamento. Trata-se de algo permanente, independentemente do presidente que for eleito, e, se depender do presidente da Câmara, com tendência de crescimento nos próximos anos. O fato de que não há qualquer valor reservado para essa rubrica no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2023 não quer dizer absolutamente nada. No governo do Centrão, a LDO é apenas mais uma peça de ficção a serviço do negacionismo.

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