sábado, 21 de maio de 2022

ALI BABÁ E OS 400 LADRÕES DO ORÇAMENTO

Carlos José Marques, ISTOÉ

Tome-se por base a esbórnia orçamentária, tida como “secreta”, com o dinheiro público. Na conta geral, ela pode ultrapassar a impressionante soma de mais de R$ 50 bilhões. Em uma dimensão jamais vista, a patuleia de parlamentares com emendas gordas para agradar seus redutos eleitorais engoliu o equivalente a quase 25% das despesas discricionárias do Estado (aquelas ditas obrigatórias). O valor em emendas do relator concedidas supera o total gasto pelos seis principais ministérios do País. Cinco partidos controlaram mais de 75% dessa bufunfa toda. De óbvio, ligados à base do governo. É para deixar de queixo caído qualquer contribuinte zeloso do dispêndio que tem para bancar a máquina. Meteram a mão no seu bolso sem cerimônia. A tropa do Jair Messias Bolsonaro coordenou e deliberou a festança, regateando, em troca, o apoio a um projeto de reeleição.

É pedalagem das grandes, numa dimensão que nunca ocorreu na história da República. Ilegal, imoral, monumental, sem controle. Apenas o presidente da Câmara, Arthur Lira, braço-direito, corda e caçamba com o capitão, ficou com a incumbência de comandar o repasse de cerca de R$ 357 milhões. Quantas mega-sena dão na conta? E não foi só ele: até pastor da batizada “bancada da Bíblia”, como Silas Câmara, que já operava no butim do MEC, angariou outros R$ 68,7 milhões para distribuir como quiser. Calçaria como uma luva o bordão clássico do apresentador das multidões Silvio Santos gritando o “quem quer dinheiro?”. De uma forma geral, aqueles que interessavam e prestavam vassalagem ao “mito” do Planalto foram sendo brindados. Generosamente. Os filhos, então, nem se fala. Eduardo Bolsonaro, o “Dudu bananinha”, dia desses admitiu ter destinado um caraminguá de R$ 9,5 milhões, via orçamento secreto, para suas bases eleitorais. Ninguém mais cora de vergonha ou esconde o envolvimento com a farra de recursos públicos em vigor. Ao contrário. Vangloria-se dela. O caso do deputado Mário Heringer, que disse que não seria o único inocente da Casa do Povo a deixar de usar o presente dado, mostra bem o grau de degradação moral a que se chegou na política brasileira. Questionado sobre a destinação das verbas, respondeu candidamente: “não sou inocente para ficar de fora da partilha”. A regra que passou a prevalecer coloca de ponta-cabeça os princípios de moralidade administrativa: otário é perder a boquinha patrocinada por mando e interesse do inquilino do Planalto. A reedição da velha prática daqueles que, à época, foram batizados como os “Anões do Orçamento” deveria legar aos praticantes dessa temporada uma nova alcunha, certamente mais adequada, de verdadeiros “Gigantes do Orçamento”, tamanho o apetite com o qual foram para cima do dinheiro.

O escândalo em andamento da compra de parlamentares faz o famigerado “Mensalão” de outrora parecer fichinha. Sem investigação, sem Lava Jato para atrapalhar, com os sistemas de controle manietados pelo presidente da República – que transformou o arcabouço legal de apurações em um saco de fantoches, com autênticas marionetes que ele consegue manipular –, os novos saqueadores fazem a festa. Um bando de delinquentes comandados pelo Ali Babá do Planalto. É realmente preocupante o estágio de erosão de valores atingido atualmente no pináculo do poder com essa compra explícita de apoio legislativo. Eticamente, falar de corrupção sistêmica nos movimentos pilhados durante gestões petistas deveria, por automático, transportar a acusação para a mesma situação hoje patrocinada pelas falanges bolsonaristas. Não podem existir bandidos de estimação no País, norma segundo a qual alguns colocam (como vêm fazendo) um véu de ignorância sobre a face para fingir, por interesses ideológicos, que esse é um governo ético. Como assim? As tramoias estão aí a olho nu.

E é possível saber os nomes dos articuladores: o próprio ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, colocou a mãe (agora senadora, que era a sua suplente), Eliane Nogueira, no rol dos campeões de recursos públicos. O relator responsável pelo Orçamento, senador Márcio Bittar, também integra (imagina se não?) o clubinho. Está tudo dominado! Os documentos entregues ao STF – por exigência da própria Corte – mostram o mapa do escambo desavergonhado. Desvios a granel vêm sendo assinalados ali e em quase todas as juntas da engrenagem. A Controladoria Geral da União (CGU) acaba de apontar que ocorreu uma tungada de mais de R$ 2,6 bilhões do programa Farmácia Popular. Teve senador que pegou a dinheirama do SUS, perto de R$ 7,4 bilhões, e carreou para as suas bases, sem critérios técnicos, apenas como instrumento de “negociação” rumo à campanha eleitoral. Eram recursos que deveriam ser destinados à compra de ambulâncias, atendimentos médicos e construção de hospitais. Mas a ordem para receber mais, ou menos, ou nada do montante seguia a prerrogativa de pertencer ao universo de logradouros de interesse do parlamentar, agradando a seus simpatizantes. Outro personagem gaiato da história, ex-líder do PL (partido que abrigou o “mito”), deputado Wellington Roberto, torrou R$ 1,2 milhão em dinheiro vivo escoado para duas gráficas de fachada.

Esqueça a ideia de que a mamata acabou, foi varrida do mapa nacional. Ledo engano. Ela se sofisticou. Ganhou outros ares e maior estatura, com um mandatário que faz de tudo para não ser apeado do poder. A guerra pelo dinheiro público alimentou não apenas as quadrilhas sedentas que compõem o dito “núcleo duro” do bolsonarismo tacanho e espoliador. Apadrinhou, inclusive, partidos não tão próximos – criando uma espécie de hierarquia do mal, da esperteza, com senhores e vassalos compondo a elite política brasiliense. Os “vips” da operação contam, invariavelmente, com a bênção pessoal do capitão e gozam de sua estreita intimidade. São os cupinchas de sempre.

É – resta evidente – da esquadra do Centrão a titularidade absoluta na divisão do bolo. Com mais de 50% do montante em suas mãos, no fundo passou a dominar o caixa da União. Governo e aliados, irmanados, jogaram pelos ares a credibilidade fiscal e fizeram picadinho da lei que rege o teto de gastos. Em bom português: meteram a mão gorda no seu, no meu, no nosso suado dinheiro. Estamos vivendo a fábula das mil e uma noites. Em tons, certamente, mais sombrios. O “Centrãoduto” e o “Bolsolão” despontam nesse script como pantomimas implacáveis da degradação ética do mandatário, que franqueou os cofres da União a uma cambada de saqueadores. A gambiarra normativa criada para permitir empenhos extraordinários é outra nuance do espetáculo. Que aprofunda o fisiologismo de um governo de cooptação, loteado e refém. Os desvios de finalidade são evidentes, claros, em muitos casos configurando prática de caixa dois. E a punição dessa falange de malfeitores quando virá? Talvez nas urnas. Pelo bem do Brasil.

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