sexta-feira, 15 de julho de 2022

ESCALADA CONTRA A DEMOCRACIA

Marcos Strecker, Ana Viriato e Gabriela Rölke, ISTOÉ

A menos de 90 dias da abertura das urnas, o pleito de 2022 caminha para ser o mais violento da história, e a radicalização já provocou o primeiro homicídio. Enquanto comemorava seus 50 anos com familiares em Foz de Iguaçu no sábado, dia 9, o guarda municipal Marcelo Arruda foi assassinado a tiros por Jorge José da Rocha Guaranho, agente penitenciário federal. A polícia investiga o crime, mas as circunstâncias são claras. Petista e ex-candidato a vice-prefeito, Arruda desfrutava uma festa temática com imagem de Lula e alusões ao partido. Guaranho, que também foi atingido e está em coma, é um defensor entusiasta do presidente e havia passado em frente ao espaço momentos antes do crime gritando “Aqui é Bolsonaro”. Pouco depois, invadiu o local atirando.

Foi o ápice entre vários atentados que vêm adquirindo um caráter cada vez mais grave. Dois dias antes do assassinato, uma bomba caseira foi lançada antes da chegada de Lula à Cinelândia, no Rio, no seu primeiro ato da pré-campanha em espaço público. O suspeito foi preso em flagrante. No mesmo dia, o carro do juiz federal Renato Borelli foi atingido por fezes de animais, ovos e terra, após ele sair de casa, em Brasília. O magistrado já tinha recebido centenas de mensagens de ameaças depois de decretar a prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro. E no dia 15 de junho, em Uberlândia (MG), em outro evento com Lula militantes foram atingidos por um líquido com fezes lançado por um drone. O autor também foi preso.

Não se trata apenas de episódios isolados em meio ao clima exaltado das eleições. Eles são o resultado prático de uma cultura estimulada pelo presidente, que baseou sua carreira na retórica belicista. Bolsonaro autoriza a violência por meio de atos e palavras. Tenta desacreditar a Justiça e as instituições, questionando abertamente o processo eleitoral. Sob o falso pretexto de “defender a liberdade”, levou ao armamento da população após zerar o imposto de importação e dificultar a fiscalização e o rastreio de armas e munições. Como resultado, há hoje no País 1.781.590 armas com registro ativo, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Desse total, 957.351 mil estão em posse de colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (CACs), um volume espantoso que já começa a alimentar o crime organizado.

É uma agenda que demonstra desprezo pela democracia. Para Bolsonaro, a política nunca teve o caráter de espaço de negociação de conflitos e busca de consensos. Ela é o instrumento de aniquilação das opiniões divergentes, de negação do outro. O resultado são militantes bradando armas e ameaçando opositores do presidente, como foi o caso do agente penitenciário em Foz de Iguaçu, que se gabava da proximidade com Eduardo Bolsonaro, divulgando fotos com o deputado. E esses personagens são plenamente correspondidos. Um dia depois do assassinato, ignorando a tragédia que chocou o País, o filho do presidente comemorou seus 38 anos divulgado imagens de um bolo decorado com um revólver e projéteis, numa espécie de cerimônia macabra para um dia que deveria ser de luto nacional.

O próprio presidente aproveitou a crise para atacar a esquerda e insinuar que a vítima tinha iniciado o incidente. Minimizou o ataque dizendo que foi uma “briga de duas pessoas” e ainda reclamou que chamaram o autor do crime de “bolsonarista”. “É o lado de lá que dá facada, que cospe, que destrói patrimônio, que solta rojão em cinegrafista, que protege terroristas internacionais, que desumaniza pessoas com rótulos e pede fogo nelas, que invade fazendas e mata animais, que empurra um senhor num caminhão em movimento”, declarou a apoiadores. Apenas diante da péssima repercussão do crime ele divulgou uma mensagem dizendo que “dispensa qualquer  tipo de apoio de quem pratica violência contra opositores”.

“Vamos fuzilar a petralhada”  Jair Bolsonaro, em 2018

O ressentimento e a raiva sempre foram combustíveis para Bolsonaro, mas há dúvidas se a fórmula vai funcionar novamente nas urnas. Para seus aliados, pior do que a manifestação sobre o assassinato do militante petista foi a ligação do mandatário para irmãos da vítima, intermediada por um deputado bolsonarista, ignorando a própria viúva, que denunciou a exploração política do caso. O QG de campanha considerou o tom adotado “inapropriado” e “insensível” e avalia que o capitão escancarou o descontentamento sobre seus atos, em vez de se solidarizar. O telefonema, ressaltam, será usado pela oposição.

A escalada ameaça as próprias eleições. Os casos de violência política dispararam neste ano em relação a 2020, mostram dados do Grupo de Investigação Eleitoral da Unirio. No primeiro semestre daquele ano, foram registrados 174 episódios. Nos primeiros seis meses deste ano, foram 214 – um aumento de 23%. Coordenador do estudo, o cientista político Felipe Borba ficou surpreso com essa alta, já que o ciclo eleitoral anterior foi de eleições municipais, quando o número de pessoas que pleiteavam mandatos era muito maior. O esperado seria que houvesse menos registros de violência atualmente, e não o contrário. “E a fase crítica ainda nem começou”, destaca. “Somente a partir de agosto é que os eleitores vão estar nas ruas pedindo voto. Então, a tendência é de que a violência política nos próximos três meses aumente bem.”

Borba atribui a explosão dos números exatamente ao ingrediente introduzido recentemente na política brasileira pelo bolsonarismo: o discurso do ódio. “Vamos fuzilar a petralhada”, conclamou Bolsonaro aos seguidores em 2018, pouco antes de ser conduzido à Presidência. Para o especialista, a polarização, em si, não é um problema, já que sempre esteve presente na política recente. “Mas é a primeira vez em que a polarização é alimentada por um discurso de intolerância política, em que o outro lado é visto não como um adversário a ser vencido, mas como um inimigo a ser destruído”, sintetiza. A consequência desse novo ingrediente é um ambiente extremamente tenso e violento.

Na terça-feira, 12, representantes dos partidos da coligação de Lula estiveram com o procurador-geral da República, Augusto Aras, para pedir que Bolsonaro seja investigado por violência política e por abolição violenta do Estado democrático de Direito. Também pediram a federalização de duas investigações conduzidas no Paraná: o crime contra Arruda e o atentado a tiros contra a caravana de Lula em 2018, cujo inquérito segue inconcluso quatro anos depois. Aras não se comprometeu com nenhuma das demandas. Sobre os pedidos de federalização, disse que vai aguardar a conclusão dos inquéritos em curso. Já sobre o pedido para que Bolsonaro seja investigado por seu discurso, disse que não existe “homicídio eleitoral” e mais uma vez utilizou a expressão “opinião” para se referir às falas do presidente. “Temos questões difusas, ou seja, opiniões de pessoas distintas, que podem gerar distintas reações”, disse. No mês passado, o procurador-geral já havia descartado a possibilidade de investigar Bolsonaro pelos ataques às urnas eletrônicas e disse que o mandatário apenas exerce sua “liberdade de expressão”.

Parlamentares acreditam que a legislação precisa ser endurecida. Luciano Bivar (UB) apresentará um projeto de lei para equiparar o homicídio por intolerância política ao terrorismo. O presidente do PDT, Carlos Lupi, diz que as instituições precisam ser mais firmes na penalização de quem fomenta o ódio, como Bolsonaro, e dos que partem para a agressão. “A política não pode ser assustada e acovardada pela presença de ignorantes.”

A principal campanha afetada é, naturalmente, a de Lula, líder das pesquisas. Após uma reunião com Alexandre de Moraes, presidente em exercício do TSE, aliados do ex-presidente protocolaram uma representação para  que seja imposta ao presidente a proibição à realização de discursos de ódio e violência, sob pena de R$ 100 mil em multa por descumprimento.  Em nome da liderança da minoria na Câmara, o grupo também consultou a Corte sobre a possibilidade de se proibir o porte de armas no dia da eleição.

A pacificação do ambiente político e a condenação irrestrita de toda forma de violência deveriam vir de todos os líderes políticos. No primeiro comício após o assassinato, em Brasília, na última terça-feira, Lula disse que desde 1989 nunca havia enfrentado sinais ou ameaças de atentados. “Estão tentando fazer das campanhas eleitorais uma guerra, colocando medo na sociedade. Querem dizer que tem uma polarização criminosa. E é interessante porque o PT polariza nas eleições para presidente desde 1994 e você não teve sinal de violência”, declarou. A manifestação pregando a paz, no entanto, contradiz o próprio discurso do ex-presidente. No mesmo dia em que um militante petista era assassinado em Foz do Iguaçu, Lula agradeceu em Diadema ao ex-vereador Manoel Eduardo Marinho, o Maninho do PT, preso durante sete meses por tentativa de homicídio após empurrar contra um caminhão em 2018 um empresário que protestava contra o petista. A vítima bateu a cabeça no para-choque do veículo e teve traumatismo craniano.

Diante dos riscos, o PT não pretende pedir formalmente à PF o aumento do efetivo responsável pela segurança de Lula, porque, antes mesmo do assassinato de Marcelo, a cúpula da corporação já havia decidido antecipar o emprego de 27 policiais na proteção do petista devido à escalada de episódios hostis. Em maio, por exemplo, manifestantes cercaram o carro do petista quando ele ia para um almoço em Campinas (SP). Procurado, o partido disse não comentar questões de segurança. Nomes próximos a Lula, no entanto, afirmam que, hoje, já há pelo menos 40 pessoas envolvidas na sua proteção. O número aumenta em eventos conforme necessidades específicas — em Diadema e na Cinelândia, havia quase o dobro. No Rio, Lula já usou um colete à prova de balas. O petista é categórico ao dizer que não abandonará os comícios.

Em orientações disparadas na última terça-feira, o PT recomendou que os militantes andassem em grupo e, caso precisassem se deslocar sozinhos, usassem uma camisa alternativa à vermelha. A palavra de ordem era fugir de brigas ou confusões.”Ações heróicas podem causar riscos desnecessários a você e ao coletivo de militantes.” Na porta do evento, seguranças revistavam mochilas, submetiam os presentes a detectores de metais e descartavam garrafas. Durante o ato, organizadores repreenderam a utilização de sinalizadores e não deixaram chegar a Lula objetos lançados ao palco, como camisetas. O plano para eventos públicos é ampliar o número de seguranças infiltrados na multidão, limitar o avanço do ex-presidente sobre palcos estendidos e mantê-lo ladeado por homens de confiança.

Não é apenas o petista que preocupa. Este ano, a PF preparou um esquema inédito de segurança dos candidatos, que prevê um investimento de até R$ 57 milhões e 400 agentes destacados. O plano envolve a criação de um grupo de inteligência de segurança aos presidenciáveis, e cada nome é considerado nível próprio de risco. A escala vai de 1 a 5, e Lula está na categoria com mais alto grau de perigo. Pela primeira vez, cada campanha poderá escolher os policiais federais que vão coordenar o esquema de segurança.

A pré-campanha de Simone Tebet sugeriu um pacto de não agressão entre todas as campanhas que disputam cargos nas eleições de outubro, com “princípios de boa convivência, civilidade, respeito e tolerância mútuos, ainda que mantenhamos nossas diferenças políticas e ideológicas, como deve ser numa democracia.” É pouco provável que esse ideal se concretize, a menos que a Justiça e os órgãos de segurança reprimam de forma decisiva os ataques – como o STF e o TSE já fazem contra as fake news e as milícias digitais.

A violência política prejudica o País e abala a imagem de normalidade democrática. O crime em Juiz de Fora ganhou manchete em jornais pelo mundo. A imprensa, atacada diariamente pelo presidente, também está sob cerco, como mostra o projétil disparado contra o  jornal “Folha de S.Paulo” no dia 6, ainda em investigação pela polícia. O fenômeno não é apenas brasileiro, como prova o assassinato do ex-premiê Shinzo Abe, no dia 8, no Japão, um país com baxíssimo índice de homicídios, mas a possibilidade de uma generalização de conflitos no Brasil é real.

No cenário nacional, o principal perigo é que o discurso da intolerância política e o que coloca em xeque a integridade do sistema eleitoral se unam, aponta Felipe Borba, da Unirio. A consequência seria um tipo de violência que nunca se viu por aqui: confrontos inclusive depois das eleições. Seria algo semelhante à invasão do Capitólio, nos EUA, ou como o que ocorreu na Bolívia, em 2019, após a renúncia de Evo Morales em meio a denúncias de fraudes nas eleições. As secretarias de segurança dos tribunais superiores estão alertas. Os dias que provocam preocupação são 31 de julho (esquenta bolsonarista para o Sete de Setembro), Sete de Setembro, 25 de agosto (Dia do Soldado) e a data da diplomação do candidato vencedor. Estão sob avaliação a ampliação do isolamento das sedes e o aumento do efetivo nas ruas. Mas, antes que essa etapa aconteça, será necessário impedir que aqueles que combatem a democracia prejudiquem o próprio processo eleitoral.

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