O presidente Lula da Silva precisa tomar cuidado para não
embarcar numa espécie de "guerra do filé mignon", por causa das
declarações do presidente mundial do grupo Carrefour
Foi em 1955 que tudo começou. O empresário americano Davis
Morgan se estabeleceu em Fortaleza e incentivou a captura de lagosta nas praias
do Ceará com fins comerciais, atividade que se espalhou pelo litoral do Brasil,
particularmente do Nordeste. Foi uma revolução na indústria de pesca e na vida
dos pescadores de Caponga (Cascavel-CE), Morro Branco (Beberibe-CE) e Aracati
(CE). A pesca era artesanal, porém, havia um grande mercado a explorar: a
lagosta era uma iguaria da alta gastronomia, principalmente a francesa.
Morgan seria o pivô de uma crise entre o Brasil e a França,
oito anos depois, porque os franceses resolveram dispensar os intermediários e
vir pescar as lagostas na costa brasileira. Era um momento delicado da vida
mundial, pautada pela Guerra Fria entre o Ocidente e a antiga União Soviética.
Desde a campanha "O petróleo nosso", havia um forte movimento
nacionalista no Brasil.
Diante da presença de franceses na costa
brasileira, o governo resolveu mobilizar a Marinha para impedi-los de pescar. A
chamada "guerra da lagosta", entre fevereiro e março de 1963,
irrompeu um mês depois do plebiscito que acabou com o parlamentarismo
(1961-1963) e restabeleceu o presidencialismo no Brasil. O presidente João
Goulart precisava demonstrar força e coesão militar.
Era a fome com a vontade de comer, porque a França também
vivia um momento delicado. Havia perdido suas colônias na África. As lagostas
ao largo do Senegal, da Guiné e da Mauritânia estavam à beira da extinção. A
saída foi buscar os crustáceos no Atlântico Sul. Os franceses ainda
sobretaxaram a comercialização de lagostas importadas do Brasil, com um aumento
de 35% nos impostos. Ao mesmo tempo, requereram permissão para três barcos
(Gotte, Lopnk Ael e La Tramontaine) pesquisarem as reservas lagosteiras do Brasil.
O governo autorizou a prospecção, mas não a pesca, o que não
impediu que os lagosteiros franceses "invadissem" o litoral
brasileiro. Alguns barcos eram verdadeiras indústrias flutuantes: além de
frigoríficos, tinham viveiros onde a lagosta era mantida viva. A reação do
presidente Goulart foi mobilizar a Marinha e a Aeronáutica para patrulhar a
costa. Em 1962, em 2 de janeiro, a corveta Ipiranga apresou o pesqueiro
Cassiopée, a cerca de 10 milhas da costa.
Pouco tempo depois, a corveta Purus avistou dois pesqueiros
(Françoise Christine e Lonk Ael) próximos à costa do Rio Grande do Norte, mas
não os interceptou. Entretanto, o contratorpedeiro Babitonga apresou os
pesqueiros Plomarch, em 14 de junho, e Lonk Ael, em 10 de julho; e a corveta
Ipiranga, os pesqueiros Folgor e Françoise Christine, em agosto, no litoral
cearense.
Atendendo pedido do Quai d´Orsay (chancelaria francesa), os
barcos foram liberados dois dias depois, porém, a França decidiu manter a pesca
sem autorização e mandou o contratorpedeiro "Tartu" escoltar seus
lagosteiros. Aviões da FAB e o contratorpedeiro Paraná fizeram contato com o
navio francês. A crise quase resultou num confronto entre as duas armadas; a
brasileira, muito sucateada. O presidente francês, Charles de Gaulle, ameaçou
deslocar o grupo-tarefa do navio-aeródromo Clemenceau, que estava na Costa
Oeste da África, para o litoral do Nordeste brasileiro: um cruzador, cinco
fragatas, dois contratorpedeiros, um aviso e um navio-tanque.
Filé mignon
Em 5 de fevereiro de 1963, os barcos franceses e suas
respectivas cargas foram liberados e uma autorização para captura da lagosta
foi emitida para os pesqueiros no dia 8. Porém, por força da opinião pública e
de pressões políticas (principalmente vindas do Nordeste), o presidente Goulart
voltou atrás, o que despertou a ira de Gaulle. Foi contido pelos Estados
Unidos.
Um comentário em francês do embaixador em Paris, Carlos
Alves de Souza Filho, durante entrevista a um repórter brasileiro, atribuído a
De Gaulle, provocou mais acirramento de ânimos na opinião pública brasileira:
"Edgar, Le Brésil n'oté pas un pays serieux" (O Brasil não é um país
sério). A França argumentava que a lagosta se deslocava dando saltos e deveria
ser considerada como peixe. O almirante Paulo de Castro Moreira da Silva,
oceanógrafo da Marinha do Brasil, ironizou: "Por analogia, se lagosta é
peixe, porque se desloca dando saltos, então, o canguru é uma ave". A
declaração agitou nosso patriotismo. Em 1970, por causa do petróleo, o governo
militar ampliaria o mar territorial brasileiro para 200 milhas.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisa tomar cuidado
para não embarcar numa espécie de "guerra do filé mignon", por causa
das declarações do presidente mundial do grupo Carrefour, Alexandre Bombard. O
executivo anunciou que não compraria carne do Mercosul, por não atender ao seu
padrão de qualidade. Tudo para endossar a onda de protestos dos agricultores
franceses contra o acordo entre a União Europeia e o Mercosul.
Em resposta, os frigoríficos brasileiros anunciaram que não
venderão carne para o Carrefour, aqui no Brasil. O ministro da Agricultura,
Carlos Fávaro, anunciou que o governo apoia a retaliação. Bombard tentou recuar
e disse que a decisão somente se aplicaria ao território francês. Comprou uma
briga comercial de cachorro grande. Para Lula, essa é uma oportunidade de se
aproximar do agronegócio. Entretanto, tudo que os agricultores franceses querem
é provocar uma crise política que obrigue a União Europeia a ser solidária com
a França contra o Mercosul. Essa não é a nossa.
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