A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas
e recursos como a reunião do G-20 produzem resultados que justificam o esforço,
ou se são exemplo de turismo diplomático
José Murilo de Carvalho, em Os Bestializados, lembra como o
povo, sem saber do que se tratava, assistiu à mobilização dos militares que
implantaram a República em 1889. Foi assim que me senti ao acompanhar de perto,
na zona sul do Rio de Janeiro, as grandes movimentações da reunião do G-20, só
comparáveis às da Olimpíada e da Copa do Mundo em 2014 e 2016. Mais uma vez o
Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro, se colocava no centro do mundo, e eu,
tão pertinho, não havia sido convidado...
Não é que o povo, desta vez, tivesse ficado totalmente de
fora. A Cúpula Social do G20, alguns dias antes, contou com a presença de
milhares de participantes de 271 entidades da sociedade civil, que em três dias
aprovaram um documento que foi encaminhado ao presidente Lula da Silva para ser
incluído na pauta da reunião. Além disso, inúmeros grupos de trabalho e de
engajamento foram mobilizados, e a declaração final foi um documento com 85
recomendações e compromissos assinados pelos chefes de Estado das maiores
economias do mundo, sob a coordenação do governo brasileiro. A proposta de
taxação das grandes fortunas não foi aprovada, mas em compensação ficou
registrada a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Fala-se em
mais de US$ 40 bilhões a serem mobilizados até 2030, com recursos já existentes
em agências como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros a serem
levantados. Para gerenciar a aliança, o Brasil desde já vai financiar a
instalação de um escritório em Brasília e outro em Roma. Um grande sucesso, e
mais uma vez não só a Europa, como também o mundo, se curvam diante do Brasil.
Será? A ideia central do G20 é fortalecer a
cooperação internacional para lidar com os grandes problemas da atualidade – as
guerras, a mudança climática, a economia internacional, a fome e a pobreza. Sem
Vladimir Putin e com Joe Biden em final de mandato, no entanto, nada de novo
surgiu em relação às guerras da Ucrânia e de Gaza, e as propostas de reformular
as Nações Unidas, reforçando o peso da Assembleia Geral e a composição do
Conselho de Segurança, simplesmente reiteram o que representantes do Brasil e
de outros países vêm dizendo há anos, e não há nenhuma indicação de que elas
serão implementadas desta vez. Tanto nesse como nos temas de mudança climática
e nas questões emergentes das novas tecnologias de informação e da inteligência
artificial, a maioria das decisões e compromissos do documento final são
recomendações gerais, inexequíveis ou já em andamento de alguma outra forma.
A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas e
recursos como essa, que culminou com dois dias de caos na zona sul do Rio de
Janeiro – com tropas e caminhões do Exército nas esquinas, aeroporto fechado,
motocicletas e sirenes abrindo caminho para as autoridades, sem falar no
dinheiro gasto –, produzem resultados que justificam o esforço, ou se são
simplesmente um grande exemplo de turismo diplomático. A resposta está em algum
lugar entre os extremos do entusiasmo e do ceticismo total, e eu tendo a ficar
mais próximo do segundo. Não há dúvida de que juntar pessoas para discutir e
elaborar propostas sobre temas importantes é sempre útil, e contatos entre
representantes de governos e outras entidades públicas e privadas podem gerar
novas modalidades de cooperação. As reuniões servem também para colocar em
evidência alguns temas relevantes que algum dia podem gerar políticas e
mecanismos específicos de cooperação.
Mas a justificativa central dessas reuniões é que elas
contribuiriam para a instalação de uma nova ordem internacional, baseada no
consenso e na participação ampla de países do “Sul Global” e da sociedade
civil, que substituiria a ordem criada depois da 2.ª Guerra, com as Nações
Unidas, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial. Nessa nova ordem países de porte médio, ou
“emergentes”, como o Brasil, Índia, México, África do Sul e Indonésia,
assumiriam posições de liderança em um sistema multipolar no qual os Estados
Unidos e a Rússia teriam menos importância do que até agora. Com a Rússia
isolada pela guerra da Ucrânia e a eleição de Donald Trump apontando para um
novo isolacionismo americano, essa nova ordem seria claramente liderada pela
China. Não é à toa que a figura em destaque da reunião foi Xi Jinping, que vem
liderando os esforços de criação de um novo sistema internacional multipolar e
globalizado liderado por Pequim.
O velho sistema bipolar do pós-guerra já não existe, mas a
construção dessa nova ordem é uma tarefa difícil, que passa entre outras coisas
pela capacidade de a comunidade internacional administrar conflitos locais como
as guerras da Ucrânia e Gaza e cooperar efetivamente em grandes temas de
comércio, meio ambiente, pobreza e valores democráticos. É uma construção
complexa e incerta, que depende mais de negociações técnicas bi e multilaterais
do que de conferências de grande visibilidade como as do G-20.
Tomara que as recomendações da reunião do Rio de Janeiro se
cumpram. Enquanto isso, se houver lugar, me candidato para trabalhar no novo
escritório em Roma que o governo brasileiro vai abrir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário