sexta-feira, 29 de novembro de 2024

COMO REDUZIR OS RISCOS À DEMOCRACIA

Fernando Abrucio, Valor Econômico

Ficamos por um fio de um novo autoritarismo porque a democracia ainda é fraca, ou o golpismo foi evitado porque o atual regime democrático é forte?

A imensa investigação feita pela Polícia Federal revelou que um projeto de golpe de Estado e de ditadura foi gestado pelo presidente Bolsonaro e por diversos membros do seu governo. Este fato tem evidências demais para ser considerado inverídico. A dúvida que tem gerado muito debate é outra: ficamos por um fio de um novo autoritarismo porque a democracia ainda é fraca, ou, contrariamente, o golpismo foi evitado porque o atual regime democrático é forte?

Esse raciocínio dicotômico não capta a complexidade da política brasileira contemporânea. O Brasil avançou no plano institucional e na presença de organizações sociais democráticas, de modo que é bem mais difícil ser golpista bem-sucedido hoje. Mas, ao mesmo tempo, ainda há riscos democráticos porque um golpe de Estado não aconteceu por milímetros. Bastava que os comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Junior, tivessem aceitado o plano maluco e autoritário de Bolsonaro que a anarquia e a instabilidade poderiam ter quebrado o processo democrático. Se isso seria feito com assassinatos, junta provisória de governo ou prisão de ministros do STF e de políticos, qual seria a intensidade da reação ao golpe e por quanto tempo duraria essa situação antidemocrática, nunca saberemos por completo.

Há aqui um aparente paradoxo, pois parecem ser inconciliáveis os dois argumentos. No entanto, é possível formular o problema de uma forma mais sofisticada e menos maniqueísta. É inegável que 2022 tinha elementos bem diferentes de 1964. As instituições políticas atuais são mais vinculadas à democracia, do mesmo modo que há setores sociais e apoios internacionais que dificultaram o golpismo bolsonarista.

Só que se chegou à beira do abismo. Planos terroristas foram montados por altos dirigentes públicos, com muita gente na rua em acampamentos e, por fim, houve uma apoteose tragicômica com a Intentona de 8 de janeiro, destruidora dos espaços físicos dos três Poderes. Eis um cenário a que nunca tínhamos chegado tão perto desde o fim do regime militar.

Seria possível retrucar que o golpe não ocorreu e, enfim, o país aprender com esse episódio. O problema é que há muitas dúvidas sobre o quanto o Brasil aprendeu com o golpismo bolsonarista. Um mês atrás, antes das recentes revelações sobre a dimensão avassaladora do plano de quebra do regime democrático, havia grandes chances de o Congresso Nacional aprovar uma anistia aos condenados pela Intentona de 8 de janeiro e, por tabela, acreditava-se também na aprovação de algo que derrubasse a inelegibilidade de Bolsonaro. As possibilidades de se passar o pano para os golpistas eram altas, pois os bolsonaristas tinham saído de uma eleição municipal na qual, segundo a visão deles, eles tinham sido perdoados dos seus “pecadilhos” cometidos durante os verões passados. Muita gente do Centrão estava começando a aceitar esse sofisma e até governistas pensavam que seria impossível segurar essa onda.

Mesmo agora, depois de tantas revelações escandalosas, há uma tentativa de recontar a história e criar uma “realidade alternativa” que tem sido espalhada pelas redes sociais e por setores sociais mais afinados com o bolsonarismo. A resposta do presidente Bolsonaro é paradigmática desse negacionismo frente à democracia. Ele tem dito que nunca pensou ou planejou um golpe, e sempre atuou conforme as “quatro linhas” da Constituição. No entanto, sua resposta sobre o que efetivamente ocorreu revela claramente o “monstro” que ali residia: Bolsonaro diz que cogitou a instalação de, apenas, um estado de sítio, o que faria parte das regras do jogo.

Trata-se de uma revelação que demonstra o quanto a segunda maior liderança do país, alicerçada no partido com maior bancada na Câmara Federal, ainda não compreendeu o que é a democracia, ou que então ela tenta apenas justificar seu golpismo de uma forma aceitável para seu eleitorado. Mas por que Bolsonaro teria de instalar um estado de sítio? O que naquela situação justificava tal medida? A resposta estava nos planos dos golpistas: Lula não deveria subir a rampa do Palácio do Planalto. Logo, o que o ex-presidente justifica como o cumprimento da lei era simplesmente uma forma de dar um golpe de Estado com feição de legalidade. O regime militar também fez isso regularmente, inclusive com reformas da Constituição, e nem por isso deixou de ser o que era efetivamente: uma ditadura.

A combinação de uma democracia mais madura do que em qualquer época da história brasileira com uma situação em que ainda há espaços consideráveis para golpismos é o ponto em que estamos. Para avançar democraticamente e reduzir os riscos autoritários, o caminho é o do aperfeiçoamento político e institucional do país. Seguindo esta linha de raciocínio, uma agenda de aprofundamento da democracia e criadora de antídotos mais eficazes contra o golpismo precisa ser construída.

O ponto de partida desse processo passa pelas Forças Armadas, que quase repetiram em 2022 sua terrível sina, iniciada com a Proclamação da República, de praticar golpes de Estado para colocar ou manter seus aliados no poder. Muitos militares graúdos participaram do tétrico teatro da preparação golpista. Eles foram insuflados, é verdade, por Bolsonaro - que não lidera, só libera, como diz a socióloga Angela Alonso -, mas também se sentiram empoderados e entusiasmados com a possibilidade de repetir 1964. Mal sabiam que estavam reproduzindo a famosa frase de Marx: da primeira vez, o golpe foi tragédia; na segunda, apenas uma farsa.

A politização das Forças Armadas ocorrida durante o governo Bolsonaro não é condizente com a democracia. Uma tarefa urgentíssima é alinhar a formação dos militares com os preceitos democráticos, objetivo que as lideranças da redemocratização infelizmente não conseguiram alcançar. É inadmissível ter altos oficiais criticando o sistema eleitoral, defendendo golpes contra governantes eleitos e, o pior de tudo, planejando assassinatos e envenenamentos de autoridades públicas. Inversamente, é necessário prestigiar e colocar como exemplo os oficiais que resistiram ao golpismo de Bolsonaro. O general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista Junior devem ser usados como exemplos de conduta para os futuros comandantes, tratados como heróis de uma instituição tão relevante ao Brasil quando age de forma legalista.

O Congresso Nacional não participou ativamente do golpe, por vezes atuou como instituição defensora da sociedade - como na época da pandemia da covid-19 -, mas, mesmo assim, foi muito leniente com vários autoritarismos de Bolsonaro. Isso ocorreu porque o ex-presidente delegou muitos poderes aos congressistas, particularmente à sua elite parlamentar. As decisões da Câmara se tornaram mais autocráticas na figura de seu presidente e mais opacas frente à opinião pública. O crescimento do emendismo orçamentário criou uma máquina clientelista de multiplicar recursos e votos nas bases locais de modo pouquíssimo transparente.

O resultado líquido desse empoderamento oligárquico e opaco das lideranças congressuais é o enfraquecimento da crença na democracia e, concomitantemente, o reforço do discurso antissistema. Para quem tem medo do autoritarismo de Bolsonaro, uma notícia pior está no quadro das probabilidades futuras: a ascensão de líderes ainda mais virulentos, populistas e autocráticos, ao estilo de Pablo Marçal. Para evitar isso, é fundamental democratizar mais o Congresso Nacional e torná-lo mais permeável e “accountable” à sociedade.

O sistema de Justiça também precisa aprender com o longo processo que gestou o bolsonarismo autoritário. Tudo começou nas ilegalidades e desvios de poder da Operação Lava-Jato, amparada por todo o Judiciário, é bom que se diga. É bem verdade que o STF e o TSE foram centrais na defesa recente da democracia. Com acertos e erros, o ministro Alexandre de Moraes foi a figura-chave para evitar o golpe de Estado e tem sido fundamental para punir os golpistas. Mas esse modo heterodoxo de funcionar num cenário de anormalidade democrática não pode vigorar eternamente. O dia seguinte desse processo precisa, urgentemente, ser construído pelos ministros do Supremo, ao custo de a sanha populista de extrema direita conquistar mais setores sociais para praticarem o linchamento institucional que poderá levar à destruição futura da própria democracia.

Muitas outras tarefas de fortalecimento da democracia brasileira são fundamentais para completar o processo iniciado com a redemocratização. Mas não se pode finalizar um debate sobre o autoritarismo latente no país sem citar o descontrole do crime organizado e das polícias militares. Atua-se aqui como traças que corroem a base dos direitos dos cidadãos, matando cotidianamente os mais pobres e protegendo os grandes senhores do crime. A volta do modelo malufista de segurança pública em São Paulo, sob o comando do capitão Derrite, é a prova de que há algo mais profundamente autoritário no Brasil do que os planos dos golpistas elaborados durante o governo Bolsonaro. Este último foi um fracasso, ao passo que a “derritização” tem sido bem-sucedida no seu projeto.

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