Gente minimamente sensata faria bem em manter distância
dos escolhidos pelo presidente eleito para o primeiro escalão
Estonteado desde a derrota de 5 de novembro, o Partido
Democrata americano nem sequer teve tempo de lamber as feridas pela perda
tríplice da Casa Branca, da maioria no Senado e da maioria na Câmara. A cada
dia Donald Trump oblitera um pouco mais os vestígios restantes da infeliz
candidatura de Kamala
Harris. O tratamento de choque é ardilosamente calibrado. Todo dia o ex e
futuro presidente anuncia novo indicado para compor o primeiro escalão de seu
governo.
A lista inicial é puro-sangue, de lealdade irrestrita e
obrigatória ao chefe. De resto, os indicados são ecléticos, e pessoas
minimamente sensatas fariam bem em deles manter distância. A seguir, algumas
pinceladas, começando pelo mais polêmico e insustentável dentre eles — Matt
Gaetz, designado por Trump para procurador-geral/ministro da Justiça dos
Estados Unidos.
— Equivale a nomear um serial
killer para o cargo de cirurgião-geral [responsável pela saúde pública do
país] — escreveu a jornalista Bess Levin na Vanity Fair.
Gaetz, de 42 anos, queixo e cabeleira kennedyanos, mas olhar
de Jack Nicholson em “O iluminado”, pouco exerceu a advocacia antes de se
tornar deputado federal pela Flórida. Na quarta-feira, renunciou abruptamente
ao mandato, antecipando-se à divulgação de um dossiê “altamente comprometedor”
pelo Comitê de Ética da Câmara, que há três anos o investiga por tráfico sexual
e uso de drogas. Ao renunciar, Gaetz conseguiu abortar a jurisdição da comissão
parlamentar, mas dificilmente evitará que o relatório venha a púbico. Até
porque o escolhido de Trump também já foi acusado de promover um campeonato de
sexo entre legisladores — vencia quem mantinha o maior número de relações com
estagiárias, virgens e universitárias. Gaetz talvez seja o único com chances
mínimas de sobreviver à sabatina no Senado — mesmo um Senado de maioria
republicana.
A republicana Kristi Noem governa o estado de Dakota do Sul
há cinco anos. Foi pinçada por Trump para chefiar o pantagruélico Departamento
de Segurança Interna, composto por 22 agências federais, com a missão de
“executar uma das operações de deportação mais maciças da história americana”.
Sua biografia pouco tem de notável, exceto por um episódio que narra em seu
livro de memórias, “No Going Back...” (Sem volta): como e por que ela levou
Cricket, o filhote de 14 meses da família, até uma pedreira e ali o executou
com um tiro à queima-roupa. O pointer era desobediente, não aprendia a caçar.
Odiava-o, explicou. (Também contou ter matado uma cabra pelo mesmo método.)
Trump, que notoriamente também detesta caninos, gostou do episódio.
A indicação de Mike Huckabee para a embaixada americana
em Jerusalém é
o que se poderia chamar de encontro de almas. Ele governou o estado do Arkansas
por quase uma década, é ministro da Igreja Batista, milita no sionismo cristão,
tentou por duas vezes ser o candidato republicano à Casa Branca. Huckabee não
chegou nem perto, mas fez história ao afirmar que “na verdade, não existe o que
chamam de palestino” e “tampouco existe a Cisjordânia —
o que existe é Judeia e Samaria”. Aos assentamentos ilegais de israelenses na
Cisjordânia Ocupada ele dá o nome de “comunidades”. Cessar-fogo em Gaza? Nem pensar. O
primeiro-ministro de Israel, Benjamin
Netanyahu, deve estar contando os dias para a chegada do novo embaixador.
Entre os que dependem de confirmação pelo Senado também está
Robert Kennedy Jr., um fio desencapado na política que seduziu Trump não apenas
pelo sobrenome da cultuada dinastia. Negacionista feroz da eficácia das
vacinas, promotor de inúmeras teorias da conspiração e adversário combativo dos
alimentos ultraprocessados, Kennedy é um poço de esquisitices. Mais de uma
década atrás, ao perceber uma aguda perda de memória somada a outros efeitos de
cognição, submeteu-se a uma bateria de exames de imagens que apontavam para um
tumor cerebral. Às vésperas de ser submetido à cirurgia, conta o New York
Times, percebeu-se que o cisto em questão era um parasita que havia conseguido
penetrar no seu cérebro, dele se alimentado e morrido. O raro fenômeno atende
pelo nome de neurocisticercose.
Kennedy também já foi diagnosticado com envenenamento por
mercúrio, fibrilação atrial e sofre de disfonia espasmódica nas cordas vocais,
o que torna a sua fala um tanto agoniada e rouca. Sem falar numa doentia, e
autodeclarada, compulsão por sexo. Trump não apenas o quer na chefia do
Departamento de Saúde e Serviços Humanos, como quer que dê vazão a suas ideias
mais extravagantes.
Há os que não dependem de confirmação pelo Senado, como a
dupla de bilionários desiguais — Elon Musk, cuja fortuna beira os US$ 309
bilhões, e Vivek Ramaswamy, com seu mísero US$ 1 bilhão — elencados para
codirigir um fantasioso Departamento de Eficiência do Governo. Como primeiras
ideias da dupla, a eliminação do Departamento de Educação, da Receita Federal e
do FBI. Deles falaremos noutra ocasião.
Por ora, ficamos com uma frase do escritor Ben Tarnoff para
a New York Review of Books:
— Um império em decadência é um animal perigoso.
IMAGEM: Matt Gaetz, indicado por Trump para o Departamento de Justiça, durante a Convenção Nacional Republicana, em julho — Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP
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