O caminho atual de ridicularizar falhou em recuperar a
confiança pública nas instituições
Em 2018, o Porta dos Fundos lançou a série “Polêmica
da semana”, satirizando a prática jornalística de dar voz aos “dois lados”,
mesmo quando uma das posições é desqualificada. No primeiro vídeo da série, um
mediador tenta permanecer equidistante num debate entre a defesa científica das
vacinas por uma professora da UFRJ e a defesa da eficácia do “óleo de coco e da
bala de gengibre” por um gamer. A série segue satirizando outras falsas
polêmicas, como o aquecimento global e o racismo. Como quase tudo do Porta dos
Fundos, os vídeos são muito engraçados. O problema que apresenta, porém, é mais
complicado do que parece: qual a responsabilidade dos especialistas na era do
populismo?
Movimentos populistas, como bolsonarismo ou trumpismo,
caracterizam-se pela profunda desconfiança das elites intelectuais e das
instituições liberais. Populistas não confiam nos cientistas, nos jornalistas,
nos artistas e em suas respectivas instituições. Acreditam que esses “sabidos”
são movidos por interesses escusos ocultos — pela agenda woke ou por
privilégios econômicos, como as “boquinhas” da Lei Rouanet. O populismo foi
capaz de organizar um ressentimento social contra os especialistas e transformá-lo
em plataforma política poderosa. Diante do desafio populista, as instituições
têm agido da maneira recomendada pela sátira do Porta dos Fundos, negando
acesso a vozes desqualificadas. Será que essa estratégia tem funcionado?
Negar espaço institucional a tais vozes não
fará com que desapareçam ou permaneçam marginalizadas. O discurso populista tem
forte penetração social e, quando a universidade ou o jornalismo profissional
não oferecem respostas adequadas, as inquietações encontrarão acolhimento nos
meios militantes. Há vários motivos por que devemos levar o discurso populista
a sério, descer do pedestal das instituições consagradas e nos engajar
didaticamente com as inquietações do povo comum seduzido pelo discurso populista.
Em primeiro lugar, temos de ter respeito e consideração com
as inquietações. Caçoamos demais de gente que quer se certificar de que as
vacinas são seguras. Não apenas caçoamos, também caricaturamos sua posição. Não
ajuda a persuadir e ainda colabora para ampliar a desconfiança dos
especialistas. Muitas posições populistas têm formulações mais sofisticadas que
deveríamos incorporar, entender e debater, no espírito da “caridade
interpretativa”, princípio filosófico de que devemos sempre tomar a versão mais
racional das posições do interlocutor.
No debate sobre o voto impresso, juízes, jornalistas e
acadêmicos retrataram a proposta como retrocesso ao voto manual dos anos 1980 e
1990 ou como se sugerisse que o eleitor poderia levar o voto impresso para
casa. A proposta, porém, previa que a urna eletrônica imprimisse uma cópia do
voto automaticamente numa urna física, para conferência em caso de suspeita de
fraude — uma ideia razoável, adotada noutros países e respaldada por
especialistas. Deveríamos ter enfrentado a proposta real e mostrado que ela não
poderia ser implementada naquele momento por questões financeiras e logísticas.
Além disso, era necessário explicar como essa proposta séria era usada para
promover desconfiança em nosso robusto sistema eleitoral. A estratégia da
caricatura não funcionou, fez a população se sentir desrespeitada, com ainda
menos confiança nos especialistas.
Fizemos o mesmo com o debate sobre o poder moderador
atribuído às Forças
Armadas pela leitura dos golpistas do artigo 142 da Constituição,
apresentando-o como se fosse uma interpretação amalucada, e não como um
incômodo enxerto autoritário imposto pela ditadura na Constituinte de 1988.
Poderíamos ter explicado isso e, em seguida, argumentado que ele não era
acolhido pelo espírito democrático do conjunto da Carta. Mas preferimos tratar
os proponentes como iletrados e ignorantes.
Fizemos isso de novo com o debate sobre os excessos do
Judiciário, apresentando as críticas contra as exclusões de contas nas redes
sociais como se fossem apenas uma defesa do direito de atacar a democracia ou
de publicar fake news. No entanto a ideia de que essas exclusões poderiam
configurar censura prévia era um lugar-comum no debate jurídico especializado
antes dos eventos do 8 de Janeiro. Muitas vezes, temos feito o oposto do
princípio da caridade interpretativa, acreditando, de forma equivocada, que maltratar
o interlocutor e sugerir que siga a luz dos especialistas será suficiente para
convencê-lo.
O caminho atual de ridicularizar, desqualificar e
caricaturar falhou em recuperar a confiança pública nas instituições. Mais que
nunca, especialistas precisam adotar uma postura humilde e didática,
engajando-se com as preocupações populares e mostrando, com respeito, que o
conhecimento científico e as instituições liberais ainda podem ser os pilares
de uma sociedade democrática.
Nenhum comentário:
Postar um comentário