sábado, 23 de novembro de 2024

TROPICÕES DE TRUMP

Luiz Gonzaga Belluzzo, CartaCapital

Em seu furioso antiglobalismo, ele repete, como farsa, a tragédia da Inglaterra

No Prólogo do 18 de Brumário de Luís Bonaparte, famoso texto de Karl Marx, Herbert Marcuse escreve: “A análise que Marx faz do processo de evolução da Revolução de 1848 para o domínio autoritário de ­Luís Bonaparte antecipa a dinâmica da sociedade burguesa avançada: a liquidação do seu período liberal que se consuma em razão da sua própria estrutura”.

Marcuse chama atenção para as alterações que emergiram nas sociedades burguesas promovidas pelas forças que se movem nos subterrâneos. “A liquidação do seu período liberal que se consuma em razão de sua própria estrutura”.

Isso permite ao filósofo da Escola de Frankfurt modificar o conhecido parágrafo de abertura do 18 de Brumário. No século XX, diz Marcuse, o horror do nazifascismo exige “uma correção das sentenças introdutórias de O 18 de Brumário: os ‘fatos e personagens da história mundial’ que ocorrem, ‘por assim dizer, duas vezes’, na segunda vez não ocorrem mais como ‘farsa’. Ou melhor: a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue”.

Nos albores do século XXI, observamos “A liquidação da democracia liberal que se consuma em razão de sua própria estrutura”.

Seria demasiada ousadia afirmar que Donald Trump encarna o espírito de ­Luís Bonaparte. No entanto, como personagens de momentos históricos, Trump e o sobrinho de Napoleão, expressam as rupturas socioeconômicas que não cessam de atormentar e surpreender mulheres e homens “em razão de sua própria estrutura”.

Escrevemos no livro Avenças e Desavenças da Economia que as concepções ossificadas – à direita e à esquerda – deixam de examinar o conjunto de relações que estruturam o capitalismo como uma organização econômica, social e política singular, singular porque histórica. Isso significa que essas relações se reproduzem num movimento incessante de diferenciação e autotransformação no interior de sua estrutura. Não há determinismo nem indeterminação: o capitalismo transforma-se no processo de reprodução de suas próprias estruturas.

Em meados do século XIX, as economias da Alemanha e dos Estados Unidos se desenvolveram sob o “livre-comércio”, patrocinado pela hegemonia industrial e monetário-financeira inglesa. No fim do século, a Belle Époque iria desfilar seu aplomb e suas aparências à beira do abismo cavado nos territórios do protecionismo crescente e disputas imperialistas travadas entre a Inglaterra, os Estados Unidos e a Alemanha.

O equilíbrio entre as potências e o padrão-ouro clássico foram as marcas registradas do apogeu da Ordem Liberal Burguesa, um conjunto de práticas e instituições encarregadas da coordenação de um arranjo internacional que abrigava a hegemonia financeira inglesa.

O liberalismo britânico fomentou o desenvolvimento das “novas” economias industriais dos trusts e cartéis nascidos na Alemanha e nos Estados Unidos e a constituição de uma periferia “funcional”, fonte produtora de matérias-primas e alimentos.

Às vésperas da Primeira Guerra Mundial explicita-se a fragilidade da Inglaterra como centro principal capaz de coordenar as finanças internacionais, dada a presença perturbadora de Wall Street e a ascensão dos centros financeiros concorrentes no continente europeu.

No fim do século XIX, os EUA já eram a economia industrial mais poderosa do planeta, além de ostentar – graças à excepcional dotação de recursos naturais – a posição de grande exportadora de matérias-primas e alimentos, e de contar com Nova York, um centro financeiro e de negócios capaz de promover, simultaneamente, o investimento de alto risco em novos setores e a rápida centralização de capitais.

Em 1913, a capacidade industrial americana havia ultrapassado com folga a de seus principais competidores europeus, Alemanha e Inglaterra. Mas a constituição da hegemonia americana não pode ser compreendida sem a avaliação dos efeitos das duas grandes guerras – a de 1914–1918 e a de 1939–1945.

O período do entreguerras liquidou de vez a hegemonia inglesa consubstanciada no imperialismo do livre-comércio e no padrão libra-ouro. As dívidas de guerra e a nova divisão internacional do trabalho converteram rapidamente a Pérfida Albion em uma potência decadente. Os Estados Unidos assumem a posição dominante em termos econômicos e financeiros e saem do conflito com mais da metade das reservas em ouro mundiais.

Em seu furioso antiglobalismo, Trump repete, como farsa, a tragédia da Inglaterra. Não seria impróprio afirmar que tal como o poder britânico, o poder americano debilitou-se no exercício de suas forças. Mais uma vez, no movimento de suas estruturas, o capitalismo iludiu as conjecturas e os projetos dos homens. O exercício do poder americano desencadeou transformações financeiras, tecnológicas e geopolíticas que culminaram no enfraquecimento de sua hegemonia.

A partir dos anos 1980, a liberalização das contas de capital, a desregulamentação financeira e comercial, revigorou a vocação universalista das empresas americanas, europeias e japonesas. No afã competitivo de reduzir os ­custos salariais e escapar do dólar valorizado, a produção manufatureira americana abandonou seu território para buscar as regiões em que prevaleciam baixos salários, câmbio desvalorizado e perspectivas de crescimento acelerado.

Isso promoveu a “arbitragem” com os custos salariais à escala mundial, estimulou a flexibilização das relações de trabalho nos países desenvolvidos e subordinou a renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas. O desemprego aberto e disfarçado, a precarização e a concentração de renda cresceram no mundo abastado.

No outro lado do mesmo processo, as lideranças chinesas valeram-se da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro ávido em aproveitar a oferta abundante de mão de obra. Apostaram na combinação favorável entre câmbio real competitivo, juros baixos para estimular estratégias nacionais de investimento em infraestrutura, absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais e crescimento das exportações.

As manchetes proclamam o paradoxo contemporâneo: há riscos de guerra comercial entre o protecionismo dos Estados Unidos e a China do livre-comércio. Às ameaças americanas de protecionismo os chineses responderam com a defesa do multilateralismo do livre-comércio. Trump grita: há anos os chineses roubam os nossos empregos! 

Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024.

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