Em seu furioso antiglobalismo, ele repete, como farsa, a
tragédia da Inglaterra
No Prólogo do 18 de Brumário de Luís Bonaparte, famoso texto
de Karl Marx, Herbert Marcuse escreve: “A análise que Marx faz do processo
de evolução da Revolução de 1848 para o domínio autoritário de Luís Bonaparte
antecipa a dinâmica da sociedade burguesa avançada: a liquidação do seu período
liberal que se consuma em razão da sua própria estrutura”.
Marcuse chama atenção para as alterações que emergiram nas
sociedades burguesas promovidas pelas forças que se movem nos subterrâneos. “A
liquidação do seu período liberal que se consuma em razão de sua própria
estrutura”.
Isso permite ao filósofo da Escola de Frankfurt modificar o
conhecido parágrafo de abertura do 18 de Brumário. No século XX, diz Marcuse, o
horror do nazifascismo exige “uma correção das sentenças introdutórias de O 18
de Brumário: os ‘fatos e personagens da história mundial’ que ocorrem, ‘por
assim dizer, duas vezes’, na segunda vez não ocorrem mais como ‘farsa’. Ou
melhor: a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue”.
Nos albores do século XXI, observamos “A liquidação da
democracia liberal que se consuma em razão de sua própria estrutura”.
Seria demasiada ousadia afirmar que Donald Trump encarna o
espírito de Luís Bonaparte. No entanto, como personagens de momentos
históricos, Trump e
o sobrinho de Napoleão, expressam as rupturas socioeconômicas que não cessam de
atormentar e surpreender mulheres e homens “em razão de sua própria
estrutura”.
Escrevemos no livro Avenças e Desavenças da
Economia que as concepções ossificadas – à direita e à esquerda – deixam de
examinar o conjunto de relações que estruturam o capitalismo como uma
organização econômica, social e política singular, singular porque histórica.
Isso significa que essas relações se reproduzem num movimento incessante de
diferenciação e autotransformação no interior de sua estrutura. Não há
determinismo nem indeterminação: o capitalismo transforma-se no processo de
reprodução de suas próprias estruturas.
Em meados do século XIX, as economias da Alemanha e dos
Estados Unidos se desenvolveram sob o “livre-comércio”, patrocinado pela
hegemonia industrial e monetário-financeira inglesa. No fim do século, a Belle
Époque iria desfilar seu aplomb e suas aparências à beira do abismo cavado nos
territórios do protecionismo crescente e disputas imperialistas travadas entre
a Inglaterra, os Estados Unidos e a Alemanha.
O equilíbrio entre as potências e o padrão-ouro clássico
foram as marcas registradas do apogeu da Ordem Liberal Burguesa, um conjunto de
práticas e instituições encarregadas da coordenação de um arranjo internacional
que abrigava a hegemonia financeira inglesa.
O liberalismo britânico fomentou o desenvolvimento das
“novas” economias industriais dos trusts e cartéis nascidos na Alemanha e nos
Estados Unidos e a constituição de uma periferia “funcional”, fonte produtora
de matérias-primas e alimentos.
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial explicita-se a
fragilidade da Inglaterra como centro principal capaz de coordenar as finanças
internacionais, dada a presença perturbadora de Wall Street e a ascensão dos
centros financeiros concorrentes no continente europeu.
No fim do século XIX, os EUA já eram a economia industrial
mais poderosa do planeta, além de ostentar – graças à excepcional dotação de
recursos naturais – a posição de grande exportadora de matérias-primas e
alimentos, e de contar com Nova York, um centro financeiro e de negócios capaz
de promover, simultaneamente, o investimento de alto risco em novos setores e a
rápida centralização de capitais.
Em 1913, a capacidade industrial americana havia
ultrapassado com folga a de seus principais competidores europeus, Alemanha e
Inglaterra. Mas a constituição da hegemonia americana não pode ser compreendida
sem a avaliação dos efeitos das duas grandes guerras – a de 1914–1918 e a de
1939–1945.
O período do entreguerras liquidou de vez a hegemonia
inglesa consubstanciada no imperialismo do livre-comércio e no padrão
libra-ouro. As dívidas de guerra e a nova divisão internacional do trabalho
converteram rapidamente a Pérfida Albion em uma potência decadente. Os Estados
Unidos assumem a posição dominante em termos econômicos e financeiros e saem do
conflito com mais da metade das reservas em ouro mundiais.
Em seu furioso antiglobalismo, Trump repete, como
farsa, a tragédia da Inglaterra. Não seria impróprio afirmar que tal como
o poder britânico, o poder americano debilitou-se no exercício de suas forças.
Mais uma vez, no movimento de suas estruturas, o capitalismo iludiu as
conjecturas e os projetos dos homens. O exercício do poder americano
desencadeou transformações financeiras, tecnológicas e geopolíticas que
culminaram no enfraquecimento de sua hegemonia.
A partir dos anos 1980, a liberalização das contas de
capital, a desregulamentação financeira e comercial, revigorou a vocação
universalista das empresas americanas, europeias e japonesas. No afã
competitivo de reduzir os custos salariais e escapar do dólar valorizado, a
produção manufatureira americana abandonou seu território para buscar as
regiões em que prevaleciam baixos salários, câmbio desvalorizado e perspectivas
de crescimento acelerado.
Isso promoveu a “arbitragem” com os custos salariais à
escala mundial, estimulou a flexibilização das relações de trabalho nos países
desenvolvidos e subordinou a renda das famílias ao aumento das horas
trabalhadas. O desemprego aberto e disfarçado, a precarização e a concentração
de renda cresceram no mundo abastado.
No outro lado do mesmo processo, as lideranças chinesas
valeram-se da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro ávido em
aproveitar a oferta abundante de mão de obra. Apostaram na combinação favorável
entre câmbio real competitivo, juros baixos para estimular estratégias
nacionais de investimento em infraestrutura, absorção de tecnologia com
excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais
e crescimento das exportações.
As manchetes proclamam o paradoxo contemporâneo: há riscos
de guerra comercial entre o protecionismo dos Estados Unidos e a China do
livre-comércio. Às ameaças americanas de protecionismo os chineses responderam
com a defesa do multilateralismo do livre-comércio. Trump grita: há anos os
chineses roubam os nossos empregos!
Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27
de novembro de 2024.
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