Os casos de abordagem indevida, abuso de autoridade e
violência cometidos por policiais multiplicam-se pelo país
É sobre civilização e barbárie, não sobre autonomia
federativa, a queda de braço que, há um par de anos, o campo progressista trava
com setores conservadores, algo reacionários, na agenda da segurança pública e
dos direitos civis. Mês sim, mês também, o polo armamentista e propagador da
força bruta reage a propostas que, a despeito do bom senso, manteriam o Brasil
em linha com a legislação local e compromissos firmados com a comunidade
internacional. No episódio mais recente, governadores reagem ao decreto presidencial
que estabelece diretrizes à atuação policial.
Cláudio
Castro, do Rio de Janeiro, que protagoniza disputa particular com o Supremo
Tribunal Federal (STF) — em virtude da decisão que restringiu operações em
favelas durante a pandemia e determinou a elaboração de um plano de redução da
letalidade policial no estado —, foi a uma rede social protestar contra o
decreto assinado por Lula e
pelo ministro da Justiça, Ricardo
Lewandowski, ex-ministro do STF. Numa postagem tomada de pontos de
exclamação, conclamou parlamentares a derrubar o texto e anunciou representação
à Corte para julgá-lo inconstitucional.
Ronaldo
Caiado, de Goiás,
desde já pré-candidado à Presidência da República em 2026, também acenou com
ação no Supremo. Ele alega que se trata de “chantagem explícita” contra os
estados, porque condiciona recursos de fundos federais ao cumprimento das
premissas contidas no decreto, que disciplina o uso da força e dos instrumentos
de menor potencial ofensivo pelos agentes da segurança pública. Tanto o
governador fluminense quanto o goiano classificaram o decreto como presente de
Natal para criminosos, em referência à publicação em Diário Oficial no dia 24
de dezembro.
Nem a tragédia que alcançou uma família da Região
Metropolitana do Rio na mesma noite foi capaz de conter a ironia agressiva dos
dois governantes. Juliana Leite Rangel, 26 anos, foi ferida com um tiro de
fuzil na cabeça quando se deslocava com os pais e um irmão de Belford Roxo, na
Baixada Fluminense, a Niterói para celebrar o Natal. Foi atingida por agentes
da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na Rodovia Washington Luís, a mesma em que
a jovem Anne Caroline Nascimento Silva, 23 anos, foi morta por equipe da mesma
corporação em junho de 2023.
Os casos de abordagem indevida, abuso de autoridade e
violência cometidos por policiais multiplicam-se pelo país, escancarando uma
brutalidade que não é nova, mas hoje, filmada, comove e revolta. A ADPF das
Favelas nasceu da provocação da sociedade civil ao STF pela violação a
preceitos constitucionais em territórios populares, onde vive basicamente a
gente pobre e preta deste país. A Bahia tem liderado, nos últimos anos, o
nefasto ranking das mortes decorrentes de intervenção policial. Em São Paulo, a gestão
de Tarcísio
de Freitas, com Guilherme
Derrite na Secretaria de Segurança Pública, inverteu a queda de
letalidade obtida com instalação de câmeras corporais, política pioneira no
país.
A escalada da violência policial em São Paulo está sob
holofotes pelos casos recorrentes nos últimos anos, mas a população padece com
os abusos também sob forças de outros estados e da União. O debate começou a
ganhar força em maio de 2020, na esteira dos assassinatos do menino João Pedro,
aos 14 anos, em São Gonçalo (RJ), e de George Floyd, nos Estados Unidos. Ambos
negros e vítimas de agentes formados e pagos para protegê-los, não para
matá-los.
O decreto em que Lula e Lewandowski recomendam o uso da
força pelas polícias sob os princípios da legalidade, da precaução, da
necessidade, da proporcionalidade, da razoabilidade, da responsabilização e da
não criminalização tem o apoio do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É tão
óbvio que, houvesse bom senso, seria até desnecessário. Diz que “o emprego de
arma de fogo será medida de último recurso” ou que o “uso não é legítimo”
contra pessoa em fuga desarmada ou veículo que desrespeite bloqueio policial,
salvo em caso de risco a policiais ou terceiros.
O conjunto de diretrizes impositivas às polícias federais,
PRF entre elas, é sugerido aos governadores de estado. Por condicionar ao
cumprimento das medidas o repasse de recursos do Fundo Nacional de Segurança
Pública e do Fundo Penitenciário Nacional, provocou a reação de governadores do
campo de oposição. Ibaneis Rocha,
do DF, também protestou. Ameaçam judicialização, sem mesmo debater pública e
serenamente um tema que ocupa o imaginário da população como um todo. Mais da
metade dos brasileiros declarou ao Datafolha que
teme mais que confia na polícia. Ainda em choque pelo ataque de agentes da PRF
à família, o pai de Juliana Rangel, Alexandre de Silva Rangel, resumiu em uma
frase por que as forças policiais perdem credibilidade:
— Eu pensei que era bandido atirando em mim, porque um
policial não iria fazer isso.
Do crime, nada se espera. Sem regramento claro e levado a
sério; investimento em tecnologia e condições de trabalho para policiais;
diálogo e atuação conjunta entre as autoridades de todos os níveis, a
desconfiança e o medo só aumentarão. A barbárie, imperará.
Que o ano novo nos seja leve e produtivo, leitoras,
leitores.
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