Se a esquerda não tiver um projeto de país, a direita
terá um projeto de indivíduo para cada cidadão. Nisso estamos desamparados e o
País, bastante perdido
Após realizadas as eleições municipais de 2024, como sempre,
houve muitas tentativas de compreender o seu resultado. Parecem claros os
seguintes pontos: 1) a polarização Lula-Bolsonaro não foi decisiva; 2) a
esquerda enfraqueceu no âmbito executivo; 3) um tipo de centro, que chamaria de
kassabismo, foi o grande vencedor; 4) o orçamento secreto teve força
fundamental; 5) o grau de ideologia dos partidos declinou; 6) partidos
dominantes na Nova República mantêm o seu eclipse – PT e PSDB minguaram ainda
mais; e 7) uma alta taxa de abstenção em várias capitais. O elemento novo
parece ter sido Pablo Marçal, que bagunçou o tabuleiro simplório da disputa
lulismo-bolsonarismo.
Comecemos pela esquerda. Ela saiu da
eleição intrigada. Para grande parte dela, Marçal era o “ilustre desconhecido”
e o que ele afirmou lhe é mesmerizante, dado que só consegue interpretar
qualquer coisa que desconhece como a “manipulação das redes” e o “fascismo que
não imaginávamos”. Suas candidaturas: muitas críticas aos adversários, poucas
propostas. Saiu derrotada sem entender. Surpreende essa dificuldade; a esquerda
brasileira não tem (mais) uma proposta de país. Há algum tempo, se
perguntássemos a um cidadão minimamente informado quais eram as propostas da
esquerda para a segurança ou para o desemprego, teríamos uma resposta imediata.
Hoje, quais são essas propostas? Desconhecemos. E, se existem, são mal
comunicadas para o povo.
As causas dessa dificuldade são variadas, porém o seu efeito
é mais deletério: restou-lhe a atitude comezinha de apontar o dedo aos outros
alarmando cataclismas, torcendo para que as pessoas votem amparadas pelo medo,
e não pela esperança. Seus analistas seguem dizendo que a direita “usurpou” ou
“sequestrou” a mentalidade brasileira, quando na realidade ela somente ocupou
um espaço vazio. As suas teses que se provaram errôneas nunca foram
reformuladas e, assim, a esquerda fica mais antiga, vivendo do passado.
A direita saiu da eleição alvissareira. Marçal demonstra que
ela não precisa ficar refém de Bolsonaro e trouxe um upgrade no marketing
digital (que ele afirmou – e ensinou a muitos – se tratar da “economia da
atenção”). Ele também demonstrou algo simplório: que inclusão não significa
mais assistencialismo, mas empreendedorismo. Pouco importam as ciladas e os
encantos que o discurso empreendedor jogue sobre as pessoas. Elas preferem
almejar a realização pessoal do que dependência do Estado, este discurso que
cheira aos anos 80 e 90. E, se um candidato encarnar, como já houve à esquerda,
esses ideais, as pessoas acreditarão nele – e não será por fascismo. As pessoas
pensam sobre saúde, educação e emprego – a vida real –, e por isso hoje elas
vão à direita buscar sonhar. Não é curioso?
Porém as candidaturas galácticas da direita não nos devem
enganar: a ela também falta um projeto de país. Propostas que lhe eram caras
tornaram-se slogans soltos que ela usa para provocar a esquerda. Refém dos
ressentimentos de toda sorte, ela esvaziou os argumentos da cabeça e fala com
as vísceras, e dos anos 1990, quando fundamentou propostas de gestão pública,
preservou só a atitude do bullier, que provoca por prevalecimento e caos. O
neoliberalismo venceu em sua pior acepção, a moral, ao mercantilizar as
relações e argumentar circularmente que o serviço que precarizamos não
funciona. A direita manipula a nossa raiva e a esquerda, o nosso medo.
E o centro? Ele parece inexistir na sociedade – polarizada
há dez anos –, mas é o grande vencedor da eleição. Este centro não ideológico e
personalista, que venceu baseado na pessoa de cada candidato, aliando-se cada
vez com um lado. Pesou que os eleitores acreditam menos em polarizações na hora
de votar para prefeitos, os zeladores, mas ganhar uma eleição só na eficiência
de cada candidatura e no personalismo de cada candidato, com um comprometimento
ideológico de ocasião, é algo bastante trabalhoso e errático. Não se é
programático, mas profissional – faz-se da política uma carreira e de cada
eleição um produto. Ganham os políticos, possivelmente perde o País, que mal
sabe quem é.
Enquanto a direita busca novos salvadores e a esquerda faz
sua autoanálise nunca publicizada, o centro não ideológico vencerá eleições não
polarizadas. E, nas polarizadas, quem oferecer um sonho real poderá avançar. Se
a esquerda não tiver um projeto de país, a direita terá um projeto de indivíduo
para cada cidadão. Se as pessoas não sonharem juntas, elas têm o direito de
sonhar sozinhas. Nisso estamos desamparados e o País, bastante perdido.
Não seria o momento de olharmos para nossos problemas e
soluções? Os aprendizados e as conquistas, com suas contradições e
dificuldades? Temos o SUS, o assistencialismo e o agronegócio; a inovação, a
universidade e nossa indústria; a reforma tributária, a mudança climática e as
bets; a violência urbana, a mudança climática e a desigualdade. Quando vamos
olhar para tudo isso com seriedade?
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