sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

INCERTEZAS DO RESCALDO DE 2024

José de Souza Martins, Valor Econômico

Um fato de certo modo novo aconteceu. A mentalidade de senzala está escapando da chibata do capitão do mato. Ganhou visibilidade na direita e na esquerda

Dezembro de 2024 foi bem diferente de dezembro de 2023. Provavelmente, foi a primeira vez em nossa história que a passagem de ano foi algo bem diverso da mera festa de mudança na numeração cronológica das eras.

Em dezembro de 2022 o país se defrontara com a possibilidade de que nada mudaria com a passagem de ano, não obstante a eleição de um novo presidente da República, em outubro. Havia sinais de que algo estava errado.

O presidente da República se evadira do país, ausentando-se sem permissão do Congresso Nacional. Fê-lo para não passar a faixa presidencial ao sucessor legítimo. Um conjunto extenso de boatos e de inverdades circulava pelas redes a contestar a legitimidade do voto na urna eletrônica e do resultado eleitoral.

Desde 2018, o eleito fora empossado em consequência de uma eleição que ele e sua rede de apoiadores questionavam. No olavismo pseudofilosófico da ideologia autoritária do bolsonarismo, com facilidade demoliram a ordem política, satanizaram a democracia e sua pluralidade de projetos políticos possíveis. Desmoralizaram o mandato enquanto representação política que se legitima na possibilidade da alternância de poder entre verdadeiros partidos, os que têm ideias e princípios.

Com as técnicas de manipulação da consciência de milhões de brasileiros alienados, ressuscitaram a concepção de Deus, pátria e família para fundamento da ordem política do golpe. Cópia da concepção fascista do golpe de Estado de 1937. Coisa de um país que muda sem sair do lugar. Pressupõe que o Brasil carece da anomalia indecente de uma alternativa política sem alternativa, a do monólogo autoritário e excludente. O povo tratado com bando carneiril tutelado por pastores de bodes.

O presidente empossado em 1 de janeiro de 2019 delegou o governo a terceiros sem mandato nem legitimidade, usurpadores do poder, como revelam as apurações da trama golpista, exposta e julgada nas medidas judiciais recentes.

Cercado de adjuntos indevidos, optou pela omissão golpista. Gente escolhida a dedo para ser meramente cúmplice de um governante equivocado. Tudo indica, mal-intencionado quanto à função de governar. Renunciara tacitamente ao mandato.

O que veio depois mostrou que o país se tornara reles campo de exibição extemporânea de motoqueiros e bajuladores. Enquanto milhares de pessoas padeciam e morriam sufocadas com a pandemia de covid, a política era praticada como evento de um Carnaval sem graça. Mais de 750 mil pessoas morreram, quando provavelmente poderiam ter sido salvas se vacinadas.

O poder se transformou em antro de molecagem política, de desrespeito às instituições e aos direitos dos cidadãos. Militares entraram no jogo do partido único. Tacitamente estimularam a baderna como expressão de falso patriotismo, acampamentos de porta de quartel convertidos em feira livre de um projeto de ditadura e da ruína moral e política do país. Fragilizaram a sociedade para que os desertores da ordem democrática pudessem mandar no Brasil. Nem faltou gente da oficialidade fazendo ponte entre os palácios e os ajuntamentos.

Igrejas e pastores tornaram-se cúmplices da subversão. O Deus da porta de quartéis apresentou-se como o deus de falsos e decaídos anjos. O país foi transformado num inferno de insegurança e de incerteza.

As ocorrências recentes, relativas ao desfecho do julgamento dos baderneiros e conspiradores por tentativa de golpe de Estado e subversão da ordem, não encerram a anomalia. A desordem foi apenas o disfarce do lado oculto da trama plantado no subconsciente da população, ressocializada e mobilizada em concepção subjacente de tempo histórico e temporalidade.

Os envolvidos na conspiração têm como referência ritmos e etapas das mudanças políticas que não são as dos calendários eleitorais. O golpe não é cronológico. Suas personagens não são as do cidadão racional e politizado, mas a de místicos de uma finitude apocalíptica, a que inaugura o tempo de quartel como tempo da nação. O tempo de uma sociedade de obedientes cumpridores de ordens em vez de, finalmente, uma sociedade de cidadãos ativos, corresponsáveis pelos destinos do país e da construção de um país. Diferente do bolsonarismo de meganhas da destruição da pátria.

Nesse cenário, um fato de certo modo novo aconteceu. A mentalidade de senzala está escapando da chibata do capitão do mato. Ganhou visibilidade na direita e na esquerda. É antiga, no Brasil, a concepção milenarista do apocalipse. Aqui a revolução política se dá pela inversão do aparente, os toscos dando ordens a generais que, ingênuos, se julgam no comando da transgressão. Estão sendo mandados pelas forças ocultas dos mistérios da política do Brasil atrasado.

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DIPLOMACIA PARA DIPLOMATAS

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

2025: com a COP 30 e a presidência dos Brics e sem Nicolás Maduro e Daniel Ortega

O governo Lula inverteu sua posição: se entrou em 2024 bem na economia e mal na política externa, começa 2025 titubeando na economia e firme na política externa, depois de uma atuação positiva e elogiada na presidência rotativa do G20, assumindo a presidência também rotativa dos Brics e se preparando para um evento que tem tudo a ver o Brasil, mas deixa um frio na barriga sobre como vai ser: a COP 30.

Cá entre nós, os ditadores Maduro, da Venezuela, e Ortega, da Nicarágua, quebraram o galho para Lula, por serem mal agradecidos, desdenharem do apoio do Brasil, ignorarem o desgaste que Lula teve ao defender dois regimes indefensáveis e, afinal, tomarem a iniciativa de virar a cara para o Brasil. Assim, em seu 3.º mandato, Lula se dispensou de fingir que a Venezuela é uma democracia e que não havia uma escalada da Nicarágua contra os direitos humanos, os cidadãos e até a Igreja. O rompimento branco partiu de Maduro e de Ortega.

Depois de um 2023 arrogante, com a pretensão de acabar com a guerra entre Rússia e Ucrânia e salvar o mundo, Lula baixou o facho, parou de sinalizar uma aproximação arriscada com Rússia e China e de dar estocadas nos EUA e na Europa. Em 2024, viajou e falou menos de política externa e deixou o Itamaraty trabalhar. Funcionou bem. As reuniões técnicas do G20 sob a presidência brasileira foram bem e a cúpula de presidentes, no Rio, com Biden e Xi Jin Ping, foi um sucesso, com um documento final obtido por consenso e sem “incidentes” no conflagrado Rio. Um alívio!

Em 2025, vem aí o fator Trump, que assume o 2.º mandato em janeiro, com o Brasil na presidência dos Brics. O País vai ter de se equilibrar entre a guerra de poder entre EUA, de um lado, e China e Rússia, de outro. Lembrando que o bloco foi criado como contraponto a um mundo unipolar (logo, aos EUA), está sendo ampliado com países como Cuba, Egito, Emirados Árabes, não exatamente democráticos, e está focado na troca do dólar como moeda intrabloco.

A percepção é que os Brics estão se tornando alavanca para as pretensões hegemônicas da China, com o Brasil no fio da navalha. É torcer, e cobrar, que a diplomacia profissional assuma novamente o comando, deixando em segundo plano as crenças ideológicas de Lula e seu assessor internacional, Celso Amorim. De toda forma, a pauta dos Brics é consistente, centrada na sustentabilidade ambiental aliada à igualdade social, antecipando o foco da COP 30.

Nos dois casos, Brics e COP, o Brasil poderá ser anfitrião mais uma vez de grandes líderes internacionais, inclusive Xi Jin Ping. Como os EUA monitoram esses movimentos? Disso dependem as relações, nada promissoras, entre Lula e Trump.

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O QUE COMUNICAR E NÃO SE ESTRUMBICAR

Celso Ming, O Estado de S. Paulo

Grande problema do governo Lula 3 é a comunicação?

Presidente Lula mudou o corneteiro do campo de batalha, mas nada adiantará se a estratégia de combate continuar a mesma

O presidente Lula decidiu substituir o ministro Paulo Pimenta pelo publicitário e marqueteiro Sidônio Palmeira para comandar a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom).

A falha recorrente que o governo quer agora corrigir é a de que a área de Comunicação não está funcionando bem, porque não consegue transmitir para a sociedade os bons resultados obtidos na economia e na política social do governo.

Também estão escancaradas, para o governo e para as principais alas do PT, as falhas de comunicação nas redes sociais, que os políticos da direita conseguem utilizar melhor.

A questão principal está longe de ser de incompetência do ministro Paulo Pimenta, embora ela também possa pesar no desempenho da Secom.

É preciso, sim, colocar um filtro nas bobagens que o presidente Lula tem dito, como a de que a democracia na Venezuela se resume a mudanças de narrativa, e não às práticas ditatoriais do governo Maduro. Ou, então, a de que o governo de Israel esteja submetendo a população de Gaza a um genocídio equivalente ao do Holocausto colocado em prática pelos nazistas comandados por Hitler.

Mas garantir essa filtragem não basta. O mais importante está em saber o que comunicar. Não basta dizer, por exemplo, que a economia está crescendo a maravilha de 3,5% ao ano e que o desemprego despencou para 6,2%. É preciso reconhecer, também, que esse desempenho se deve, em grande parte, à disparada das despesas públicas, fator que vem criando uma demanda artificial de bens e de serviços.

Nada provoca maior impacto negativo nas comunicações do governo do que o dólar acima de R$ 6, que encarece a carne, combustíveis e os alimentos cotados em moeda estrangeira e que esmerilha o salário.

E não adianta continuar a perseguir bodes expiatórios para encobrir esses gols contra, como aconteceu ao longo de 2024, com tantos ataques ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.

O governo está notoriamente dividido, como fica demonstrado pela maneira como o ministro da Fazenda e a ministra do Planejamento vêm sendo desautorizados.

Como poderia ser feita uma boa comunicação do pacote fiscal do governo, se as próprias autoridades da área econômica admitem que o corte das despesas é insuficiente para reverter o rombo das contas públicas e evitar que a dívida salte para a casa dos 100% do PIB?

Também não adianta insistir em que os juros estão em níveis irresponsáveis sem, ao mesmo tempo, admitir que eles só estão nessas alturas porque tentam, de alguma forma, compensar a irresponsabilidade original, que é a de deixar que o rombo escape para onde escapou.

Ou seja, de nada adianta trocar o corneteiro do campo de batalha se a estratégia de combate continua errada e se o comandante mostra insegurança sobre o que pretende.

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DESEJO AMOR AO BRASIL

Cristovam Buarque*, Correio Braziliense

Apesar de tardio, agora é ainda mais necessário o desejo de que os brasileiros coloquem o Brasil acima dos interesses de grupos corporativos

Neste primeiro dia do ano, desejo que meu país seja descoberto por seus cidadãos. Isso deveria ter ocorrido há décadas, ou séculos, para que o Brasil tivesse seu berço: um sistema nacional único de educação com qualidade e equidade para todas as nossas crianças, independentemente de renda e endereço. Mas não aconteceu. Por isso, apesar de tardio, agora é ainda mais necessário o desejo de que os brasileiros coloquem o Brasil acima dos interesses de grupos corporativos. 

Desde o início, somos divididos socialmente entre escravos e senhores, ricos e pobres, doutores e analfabetos, favelas e condomínios e, politicamente, em sindicatos, partidos, igrejas, municípios, estados, cada um se colocando acima do país. No último mês, esse divisionismo se mostrou descaradamente diante da constatação de que esgotamos os recursos fiscais do país. Mas, quando o ministro da Fazenda apresenta proposta para equilibrar as contas, cada setor da sociedade se levanta e diz: "Não no meu pedaço do orçamento".

Os donos de salários astronômicos não aceitam tocar em qualquer um dos penduricalhos que lhes permite romper o teto constitucional para saquear o Tesouro Nacional. A corporação militar, que deveria dar exemplo de patriotismo, não aceitou abrir mão da aposentadoria, nem mesmo para integrantes cuja carreira se passa quase toda em escritórios e sem riscos de vida. Dentro do próprio governo, surgiram sugestões para desidratar a proposta inicial do seu ministro. Em nome de votos e de interesses que defende, o partido do ministro adotou a regra "no meu pedaço não".

Os agentes do mercado — investidores, especuladores, consumidores, vendedores — não fizeram gestos para colocar o Brasil acima do lucro individual, com sacrifícios de todos para manter a confiança necessária nas nossas finanças, sem o que ameaçamos o valor do real e aumentamos a taxa de juros. Os parlamentares chantagearam o governo ao condicionarem só votar na necessária redução dos gastos estatais se houvesse aumento no valor destinado a suas emendas para comprar votos com dinheiro público; e, irresponsável e desastradamente, fizeram pedaladas jurídicas para burlar a lei e enganar a população.

Nós, brasilienses, unimos-nos contra a proposta do ministro. Pela primeira vez em décadas, partidos que, até a véspera, digladiavam-se, agora tiveram uma só voz: "No valor do Fundo Constitucional do DF não se toca". Não levamos em conta nossa responsabilidade com os demais 200 milhões de brasileiros aos quais servimos como a capital federal e, por isso, devem nos financiar. Não pedimos desculpas pelo fato de que a Secretaria de Segurança, financiada pelo Brasil, participou da tentativa de golpe do 8 de janeiro, ao ser comandada por golpistas que estão em julgamento; tampouco  nos desculpamos pelo fato de não sabermos até hoje onde estava nosso governador naquele dia. 

Não explicamos aos brasileiros porque nossa educação, que eles financiam com mais recursos do que usam para suas próprias crianças, não é mais um exemplo de qualidade. Tampouco explicamos como recebemos recursos dos brasileiros para cuidarmos da saúde na capital deles, e, no ano passado, fomos campeões em casos de dengue, ao ponto de ameaçar o bom funcionamento da máquina do governo federal e das embaixadas; não explicamos aos irmãos goianos o porquê de eles financiarem nosso sistema de saúde e doentes nossos buscarem apoio médico em suas cidades. Corretamente, defendemos a absoluta necessidade da manutenção do fundo — que a proposta do ministro nunca ameaçou — mas raros entre nós propuseram uma auditoria para que nossa Câmara Legislativa e nosso Tribunal de Contas indicassem se e onde seria possível haver maior eficiência, menos desperdício, menos corrupção, para reduzir o sacrifício do resto do Brasil e ajudar no necessário ajuste nas contas públicas do país.

Não importou o tamanho da crise, o bolso individual continuou na frente do Tesouro Nacional, todo saque aceito, desde que não se toque no interesse pessoal de cada um. O sentimento "no meu pedaço do orçamento não" foi usado pelos que têm poder para vitimar 50 milhões de crianças, porque o Fundeb será reduzido; aos milhões que recebem salário mínimo, porque seus reajustes serão menores; milhões de pobres perderão porque parte dos seus benefícios serão cortados; aos que recebem até R$ 5 mil por mês, porque a isenção que receberiam foi postergada para algum momento no futuro. Em uma atitude suicida, porque o câncer de um país é sua divisão em pedaços que não abrem mão de interesses específicos e imediatos em favor do conjunto do país e seu futuro.

*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

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PARLAMENTARES EXTRATIVISTAS

José Pastore*, Correio Braziliense

À intenção do governo de dificultar as remunerações inconstitucionais, os parlamentares responderam com a criação de uma aprovação facilitada — de costas para a Carta Magna e para o povo

O leitor deve estar estranhando esse título. Explico. Fiquei espantado com o desfecho final do pacote de corte de gastos recentemente aprovado. O que foi apresentado pelo governo era de baixa potência para reequilibrar as contas públicas. E o que saiu do Congresso Nacional, ficou pior. 

Refiro-me especificamente à proposta de eliminação dos supersalários e demais penduricalhos dos altos funcionários da República, em especial, os do Poder Judiciário, Ministério Público e órgãos fiscalizadores. 

A Constituição Federal é clara ao proibir o pagamento de remuneração, a qualquer título, acima do teto do que ganham os ministros do Supremo Tribunal Federal. Isso é explicitado no artigo 37, inciso XI que, entre outras restrições, diz que "sob qualquer forma de pagamento, a remuneração dos ocupantes de cargos da administração direta, autárquica e fundacional, nos três níveis de governo, não pode exceder o subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal".  

Para completar, o artigo 39, § 4º é ainda mais claro ao "vedar o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória". Isso significa que os repasses de verbas além do referido teto são ilegais, o que inclui, evidentemente, os penduricalhos. 

Pois bem. Apesar de todas essas proibições, o governo incluiu no pacote de gastos uma cláusula, dita restritiva, mas que, na realidade, abria a possibilidade de quebrar as regras acima ao permitir pagamentos acima do teto, desde que aprovados por lei complementar, que exige maioria absoluta de votos do Congresso Nacional. 

Os parlamentares tiveram o atrevimento de afrouxar ainda mais a indevida concessão, ao estabelecer que pagamentos adicionais aos servidores do alto escalão da República podem ser autorizados por lei ordinária, que é de aprovação mais fácil, com maioria simples. 

Ou seja, à intenção do governo de dificultar as remunerações inconstitucionais, os parlamentares responderam com a criação de uma aprovação facilitada — de costas para a Carta Magna e para o povo. Como diz José Paulo Cavalcanti Filho, "a Constituição, que nos países maduros é uma Lei Maior, referência e obrigação para todos, no Brasil virou enfeite" ("Até quando?", O Globo, 17/2/2024). É isso mesmo, pois, os que hoje recebem somas altíssimas, continuarão recebendo como se fossem "privilégios adquiridos".  

A conduta dos nossos parlamentares ilustra bem a razão de o Brasil não avançar e crescer. Temos instituições fracas, ardilosas e deturpadoras. Essa é a tese dos economistas Daron Acemoglu e James A. Johnson que ganharam o Prêmio Nobel em 2024 ao escreverem o best seller Por que as nações fracassam (Editora Elsevier, 2012).

Com base em uma bem fundamentada análise histórica, Acemoglu e Jonhson demonstram que inúmeras nações tiveram o progresso bloqueado pelo predomínio de "instituições extrativistas" —, referindo-se às decisões dos parlamentos que, para favorecer as minorias dos mais fortes, extraem os recursos dos mais fracos.

Essa análise cabe perfeitamente nesse caso. Os beneficiários das benesses, supersalários e penduricalhos — isentos de Imposto de Renda —, por meio de um lobby eficiente, levaram o Congresso Nacional a aprovar uma fórmula que dá legalidade às regras que extraem do povo brasileiro as facilidades que sustentam os seus privilégios. Essa foi a "contribuição" dos parlamentares extrativistas que, com sua "iluminada" decisão, reforçaram a captura do Estado pelos lobbies poderosos do serviço público.  

É assim que as nações fracassam. Nos últimos 20 anos, a média de crescimento anual do PIB do Brasil ficou em meros 2% — uma marca ridícula e insuficiente para atender as necessidades dos mais vulneráveis. 

Não há dúvida. Instituições de boa qualidade são cruciais para o crescimento econômico e o progresso social.  Instituições de má qualidade fazem o contrário. Na decisão tomada pelos nobres parlamentares, deu-se um verdadeiro tapa na cara dos brasileiros que têm de trabalhar, viver e sustentar suas famílias com o "generoso" salário mínimo de R$ 1.518,00 que os mesmos parlamentares aprovaram para 2025. 

*Professor (aposentado) da Universidade  de São Paulo, membro da Academia Paulista de Letras e presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio-SP

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O TEMPO E A DEMOCRACIA

José Sarney, Correio Braziliense

A democracia é um regime que é melhor do que os outros porque sobrevive às crises e sabe absorvê-las. O Brasil vive as excelências de um regime democrático, pluralista e aberto

A liberdade tem grande poder criativo. Até mesmo os excessos o seu exercício corrige. É necessário, para entendê-la, compreender o que é o tempo. Leonardo da Vinci escreveu, numa noite, em seus angustiados cadernos, que "a justiça é filha do tempo". Um dia, em Hong Kong, em companhia do embaixador Miguel Osório, que naqueles anos procurava desvendar o mistério do que ocorria com a Revolução Cultural na China, ouvi a afirmativa de um velho poeta, com o sabor de sabedoria milenar, de que nós, do Ocidente, não sabíamos o que era o tempo.

Quando, em 1989, eu me encontrei com Deng Xiao Ping, em Pequim, ele mencionou o mesmo conceito e me falou entusiasmado de seu país dali a 100 anos como se dissertasse sobre o dia seguinte. Descreveu-me empolgado as metas dos próximos 20 anos como se comentasse a madrugada que viria.

Comecei então a aprender o que é o tempo e a saber que é dele que se faz a vida. Muito tenho falado sobre a paciência, mas, hoje, ocorre-me defini-la como a virtude de saber esperar. Não com o sentido de reparar injustiças ou o desejo de esquecer o passado, mas de ver os fatos com o sabor de experiência vivida, de ser humilde ao olhar erros, de aprender, de poder emitir conceitos e de ter a consciência de que muitas vezes podemos estar errados.

Nada mais falso do que o chavão de repetir que, se tivéssemos de viver de novo, repetiríamos tudo. Muitas coisas não faríamos, outras acrescentaríamos e outras nem uma coisa nem outra, simplesmente seriam ignoradas. Afinal, a gente melhora com o passar dos anos. Perde-se em vigor, mas ganha-se em saber. Os desenganos, as esperanças modestas, as ambições, as vaidades e as paixões têm o realismo do conhecimento do funcionamento do tempo, da vida.

Porque é bíblica e sagrada a certeza de que há tempo de semear e tempo de colher. É possível que o tempo de colher seja mais glorioso. Mas é o tempo de semear que determina o que se vai colher.

Governei o Brasil no período mais difícil de sua história, mais cheio de cobranças políticas. Somavam-se esperanças e dificuldades. As liberdades, represadas por 20 anos, explodiam em reivindicações e gestos de intolerância. A ânsia de mudanças atropelava os fatos.

Coube-me plantar e poucas vezes colher. Há frustração maior do que plantar e não colher? Até Cristo, quando olhou aquela videira sem frutos, que ele não plantara, lançou a maldição: "Teus galhos secarão."

Mas é preciso ter a noção do tempo para esperar o momento da colheita. Como exemplo, recordo que semeei o respeito, até o limite dos exageros, a liberdade de imprensa, rádio e televisão porque sempre entendi que a prática da liberdade corrige os excessos. Não apenas nos veículos de comunicação, mas em todo o processo de circulação de informação da sociedade. As instituições se fortalecem e se consolidam. A democracia é um regime que é melhor do que os outros porque sobrevive às crises e sabe absorvê-las.

O Brasil vive as excelências de um regime democrático, pluralista e aberto. Sua massa crítica e as instituições não entram em colapso em face da tempestade e seguram as estruturas da sociedade e do Estado.

E, dentro deste vendaval, constata-se a verdade de Jefferson de que a liberdade de imprensa é a liberdade fundamental. Nosso Rui Barbosa resumiu o conceito chamando-a de "pulmão da democracia".

A semeadura foi boa. Hoje, todos colhemos os frutos de uma imprensa vigorosa, cumprindo sua missão de informar. Porque, no mais, as decisões são frutos da verdade que, como se diz no Maranhão, "é como o manto de Cristo: não tem costura". Inconsútil, não admite remendo sem deixar marca.

Hoje, no novo ano, a caminho dos meus 95 anos de idade, com a graça de Deus, estou feliz. Estou feliz colhendo o que semeei. Instituições fortes, paciência, diálogo e paz. Hoje todos reconhecem a minha contribuição para que a democracia e sua maior força, a liberdade, "abrisse as asas sobre nós". Fizemos a Transição Democrática e hoje temos o reconhecimento do país.

*Ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras

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A SAGA DO PAPAI NOEL DE BRASÍLIA

Artigo de Fernando Gabeira

Um pouco ofuscado pelas festas de fim de ano, Brasília viveu mais um drama em torno das emendas parlamentares. O ministro Flávio Dino bloqueou um lote de R$ 4,2 bilhões em emendas por não cumprirem os requisitos básicos de transparência e rastreabilidade. Para finalizar, Dino pediu à Polícia Federal (PF) que abrisse um inquérito sobre o tema. O maior suspeito é Arthur Lira, que articulou a aprovação das emendas e destinou grande parte do dinheiro para Alagoas.

O que se sucedeu foi um vaivém de notas e reuniões entre os Poderes, encerrando o ano com uma autêntica reprise do que vivemos ao longo desses últimos meses. O Parlamento se apossou de uma parte substancial do Orçamento e a utiliza de forma que nem as instituições nem a sociedade possa controlá-la.

Na verdade, os eleitores acompanham tudo isso por alguns pequenos escândalos na imprensa, mas parecem cansados e desiludidos a ponto de não mais reagirem. Avião cheio de dinheiro, notas de reais jogadas pela janela, cidades onde todo mundo fez radiografia da mão, enfim, uma série de irregularidades, algumas vezes descobertas pela PF. Mas apenas algumas vezes para nos dar a falsa impressão de que tudo está sob controle.

E não está. Desde o chamado orçamento secreto a roubalheira parece estar sendo combatida. Mas, desde aquela época, é visível como o triângulo Supremo Tribunal Federal (STF), governo e Parlamento se move de forma a nos dar a entender que afinal isto é um país sério e a Constituição será respeitada.

A ministra Rosa Weber proibiu o orçamento secreto. A tese essencial é a de que o dinheiro público tem de ser gasto com transparência. A proibição foi driblada de várias maneiras, inclusive com a criação de novas modalidades como as chamadas emendas Pix.

O próprio Ministro Flávio Dino, quando retoma a tarefa de fazer cumprir o texto da lei, reconhece que existem inúmeras tentativas de driblar o STF.

Nessa história toda, a ponta do triângulo, o Executivo, tem uma posição ambígua. A ele interessa disciplinar as emendas porque sobra mais dinheiro para executar seus projetos, de certa forma, prometidos durante o período eleitoral.

No entanto, o governo não pode bater de frente com o Parlamento. Sua tática é de demonstrar interesse para que as emendas sejam pagas, ora questionando o STF ora encontrando um caminho para driblar a proibição.

Foi o que fez agora no apagar das luzes, tentando liberar, excepcionalmente, R$ 2,5 bilhões, movimento que acabou sendo vazado para a imprensa.

Minha hipótese é a de que o Supremo sozinho não consegue segurar essa onda. Por debaixo do pano, o governo tem de ceder para conseguir aprovar seus projetos no Parlamento. E a sociedade, que poderia dar o apoio a essa óbvia defesa da Constituição, parece viver um momento de cansaço, esses muitos momentos em que se diz: o Brasil é isto mesmo, não vale a pena protestar.

Na verdade, a Justiça também tem uma retaguarda vulnerável quando se trata de garantir o mínimo de austeridade. São muitos os supersalários nos seus quadros, além de pequenos escândalos do tipo que aconteceu no Mato Grosso, onde uma desembargadora que ganha R$ 130 mil mensais determinou uma ajuda natalina de R$ 10 mil para os funcionários do tribunal. Um auxílio-peru que poderia não ter tanta repercussão se fosse mesmo um caso isolado.

Mas a verdade é que todos os setores, governo, STF e Parlamento, têm dificuldades de cortar gastos e chegar a um nível de austeridade compatível com as necessidades do País.

É algo muito forte e talvez culturalmente enraizado. Pode ser que se explique por nossas origens católicas. A cisão que deu origem ao protestantismo criticava prédios suntuosos e a vida luxuosa de parte do clero. Combatia a venda de indulgências, pois o perdão não se compra. Martinho Lutero defendia uma vida religiosa mais próxima das pessoas, marcada pela simplicidade e foco nas escrituras.

É possível até tentar explicações histórico-culturais, mas isso não impede de julgar o que se passa nas esferas do poder: é injusto com um país tão necessitado gastar dinheiro sem controle e eficácia, como fazem com as emendas parlamentares, assim como é constrangedor ver a ostentação na alta burocracia estatal.

Ultimamente, o chamado mercado faz uma pressão por economia. Mas ele se interessa em preservar as aplicações financeiras que administra. Não tem critério de valor sobre os cortes, que acabam sendo eficazes apenas quando atingem os mais pobres. Temas como supersalários, subsídios – tudo isso fica para as calendas.

Na verdade, assistimos à farsa em que se repetem os gestos, a movimentos de correção que apenas ajustam a engrenagem que esmaga não só a esperança dos mais pobres, como também a aspiração de todos por um país mais solidário e justo.

É um enredo tão pouco inspirado e monótono que acabará sendo tocado por ventos de renovação. Os eleitores precisam se convencer de que é possível algo melhor e, o que é mais importante, precisam acertar quando acharem que estão escolhendo algo melhor. O caminho continua aberto para aventureiros.

Artigo publicado no jornal Estadão em 03 / 01/ 2025

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quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

SEGURANÇA EM PRIMEIRO LUGAR

Merval Pereira, O Globo

O Sistema Único de Segurança Pública, o SUS da segurança, precisa ser implementado imediatamente para libertar os estados do jugo de milicianos e narcotraficantes

Apesar de ser uma reafirmação do óbvio, o decreto do presidente Lula que regula o uso da força policial foi rejeitado por governadores conservadores do Centro-Sul e Sudeste do país, inclusive do Rio de Janeiro e São Paulo, estados dos mais atingidos pela violência policial, como se fosse uma intervenção do governo federal na autonomia dos governos estaduais. O que deveria ser uma cooperação nacional contra o inimigo comum transformou-se em instrumento político da polarização que nos envolve e tolhe a capacidade de reação da cidadania.

Essa atitude é mais uma etapa da disputa política que nubla a visão de longo prazo de políticos que têm interesses estreitos de curto prazo. O decreto presidencial, no entanto, tem uma amplitude que complementa a política nacional de segurança pública proposta pelo ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, que não avança por absoluto descaso, quando não por influência da maioria conservadora que apoia o armamento dos cidadãos como solução.

Com o agravamento da crise de segurança pública, o governo federal retoma a tentativa de assumir o controle da situação, pois parte significativa do território nacional já está sob o domínio de milicianos e narcotraficantes, com relações não apenas nacionais, como fora do país. É o que afirmam ex-ministros da Justiça e da Segurança Pública que assinaram um manifesto de apoio ao decreto do presidente Lula.

Os ex-ministros da Justiça Aloysio Nunes Ferreira, Nelson Jobim e Miguel Reale Jr., que ocuparam o cargo nos governos de Fernando Henrique Cardoso; Tarso Genro, ministro no primeiro governo de Lula; Luiz Paulo Barreto e José Eduardo Cardoso, da gestão Dilma Rousseff; e Raul Jungmann, ministro da Segurança de Michel Temer, se uniram para mostrar quão grave é a crise.

O fato de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) só poderem ser acessados caso as exigências de moderação e equilíbrio no combate à criminalidade sejam cumpridas significa apenas que o governo federal quer que a verba seja investida em políticas públicas que se coadunem com as exigências do governo federal, algo perfeitamente normal em um estado democrático.

Os ex-ministros apontam as discórdias como consequência de um embate ideológico que “jamais poderia guiar a análise séria sobre o tema”. A questão ideológica define-se pela posição desses governadores de que o combate à criminalidade tem de ser letal se preciso for, uma maneira de retomar a política de “bandido bom é bandido morto” reforçada nos últimos anos pelo governo Bolsonaro, a quem os governadores aderem.

O decreto representa, para esses ex-ministros, “uma evolução significativa na credibilidade das instituições, sobretudo as policiais, sem a qual a confiança é corroída, em prejuízo à construção de uma sociedade mais segura, justa e pacífica”. Também governadores do Nordeste apoiaram as medidas, na maioria aliados ao governo petista. Naquela região, crescem as famigeradas alianças de criminosos, filhotes de associações mais longevas, como Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital.

A contenção dos danos é necessária para que não se repitam os trágicos acontecimentos registrados diariamente, com cidadãos comuns fuzilados por engano, balas perdidas que matam inocentes, passageiros mortos ao entrar por engano em territórios dominados por bandidos. O Sistema Único de Segurança Pública, o SUS da segurança, precisa ser implementado imediatamente para libertar os estados do jugo de milicianos e narcotraficantes. Mas não é possível achar que apenas a selvageria pode combater a criminalidade desenfreada. A polícia tem de ser uma instituição de proteção ao cidadão, e não seu permanente temor.

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FELIZES COM A VIDA, NÃO COM O GOVERNO

Maria Hermínia Tavares, Folha de S. Paulo

Reduzir o problema do governo à falta de comunicação adequada de seus feitos parece ser grosseiro simplismo

A grande maioria dos brasileiros terminou o ano de bom humor e com muitos sentimentos positivos com relação a 2025. É o que revela a pesquisa Radar Febraban, realizada pelo Ipesp no começo de dezembro. Segundo a sondagem, 70% dos entrevistados se declararam satisfeitos com sua situação pessoal. Diante de outra pergunta, 46% responderam que as coisas melhoraram; 34% disseram que ficaram como estavam; e nada menos de 80% se disseram esperançosos, alegres e confiantes, pois acreditam que podem melhorar ainda mais neste novo ano.

São também otimistas as perspectivas que enxergam para o país. Só 2 em cada 10 pessoas acham que as coisas vão piorar.

O otimismo tem bases reais. A economia cresceu acima do previsto pelos especialistas, a taxa de desemprego é a menor e o salário médio é o maior desde 2017, quando uma coisa e outra começaram a ser medidas pela Pnad-Contínua

A sabedoria convencional diz que tal estado de espírito beneficia os governos de turno, aos quais se costuma atribuir a paternidade dos bons resultados econômicos. Não é o que acontece no Brasil.

Outra pesquisa de opinião, esta realizada pelo Ipec, também em dezembro último, mostra que, ao contrário do que seria de esperar, a avaliação do governo Lula divide o país de maneira relativamente estável em três grupos de igual tamanho: o dos que o consideram "ótimo e bom"; o dos "apenas regular" e, enfim, o dos "ruim e péssimo".

Da mesma forma, quando perguntados sobre o desempenho do presidente Lula, 47% dos entrevistados o aprovam e 46% não o consideram bom. Por fim, a confiança no presidente vem se mantendo estável há 12 meses, depois de haver caído em relação ao primeiro mês do seu governo. Hoje, como em dezembro de 2023, prevalecem os que desconfiam (52%) sobre aqueles que confiam (45%) no inquilino do Palácio do Planalto.

É intensa a discussão sobre o descompasso entre, de um lado, os bons resultados na economia e o sentimento de bem-estar da população, e, de outro, a avaliação do Executivo. O qual, é imperativo destacar, deu início, já não sem tempo, à reforma tributária; conteve o desmatamento; tem recuperado capacidades estatais destruídas pelo governo anterior, além de reerguer a normalidade democrática, que o país esteve a ponto de perder.

Novas pesquisas poderão explicar o que vai pela alma dos brasileiros e que impede o governo de se beneficiar do otimismo da população. De toda forma, reduzir a questão à falta de comunicação adequada dos feitos governamentais parece ser grosseiro simplismo.

Ao governo federal —e a seu chefe— parecem faltar sintonia com o que preocupa a população e respostas que se transformem em marcas de uma administração que se quer progressista. Sem elas, não há comunicação que dê conta.

Afinal, segundo o mesmo Radar Febraban, saúde e —em menor grau— segurança e educação, são, segundo os brasileiros, as áreas às quais o governo federal deveria dar mais atenção. Definir políticas inovadoras que caibam no Orçamento e façam palpável diferença para os cidadãos é um desafio e tanto. O que não se pode ter é apenas mais do mesmo, como o lema "Governo da Reconstrução" parece indicar.

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QUANTO VALE UM MINISTÉRIO ?

Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo

Freio no acesso à verba deve levar o centrão a diversificar suas ferramentas de poder

voracidade do Congresso na apropriação das emendas orçamentárias provocou um desarranjo radical nas relações entre o Executivo e o Legislativo. Ao longo da última década, parlamentares conseguiram a garantia de uma verba gorda para seus redutos políticos sem depender da generosidade do presidente ou de seus ministros.

Nesse processo, o controle de gabinetes na Esplanada dos Ministérios passou a valer menos para os grupos partidários na extração de benefícios do poder. A indicação de integrantes para o primeiro escalão ainda oferece prestígio e acesso a dinheiro público, mas deixou de ser fator absoluto nas negociações para a formação de coalizões políticas.

A lógica teve um ponto de virada com Jair Bolsonaro, que fez propaganda em torno do princípio moral da limitação do acesso de partidos à Esplanada, enquanto entregou os cargos a outros grupos de interesse de sua coalizão, como militares, evangélicos e ruralistas. Para conseguir sustentação política em votações, deu ainda a chave do cofre do Orçamento para o centrão.

Lula enfrenta um quadro um pouco diferente. O presidente fez uma partilha de cargos que não se mostrou tão eficaz quanto em seus mandatos anteriores. Manteve postos apetitosos nas mãos do PT e nomeou alguns ministros de outros partidos que se mostraram pouco determinantes na disciplina das bancadas em votações no Congresso, como é o caso dos políticos do União Brasil.

A razão principal é que o centrão aprendeu a se alimentar de emendas. A crise provocada pela intervenção do STF na distribuição assanhada dessa verba acrescenta um elemento de incerteza ao futuro das relações do governo com o Congresso, com possíveis reflexos na reforma ministerial que Lula pretende fazer nos primeiros meses deste novo ano.

Lula disse a auxiliares que faria trocas pontuais na equipe e sinalizou que o PT pode ser forçado a ceder espaço para outros partidos. O presidente, porém, pode ser obrigado a fazer uma mudança maior caso o centrão enxergue neste momento uma oportunidade para diversificar suas ferramentas de poder e exigir uma reconfiguração da coalizão governista baseada em ministérios.

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ECONOMIA MUNDIAL EM 2025: APERTEM O CINTO

Assis Moreira, Valor Econômico

Impactos de medidas de Trump podem moldar significativamente o cenário econômico global

O ano começa com uma incerteza brutal na economia mundial com o retorno de Donald Trump à Casa Branca a partir do dia 20. A escolha geopolítica mais importante de Trump será mesmo como lidar com a China, concordam analistas. E ele parece não se impor limites para lançar mão de toda a capacidade da maior potência do mundo para enfraquecer seu grande rival. Isso terá evidente impacto no comércio, investimentos, acesso a tecnologias relevantes, entre outros. A pressão sobre parceiros vai crescer em função das relações com a China, incluindo sobre o Brasil.

O Instituto Internacional de Finanças (IFF), reunindo as maiores instituições financeiras do mundo, prevê desaceleração do crescimento global para 2,7%, após 2,9% em 2024 e 3,2% em 2023. Os países emergentes poderiam expandir 3,8% em 2025, abaixo dos 4% em 2024 e 4,3% em 2023. Essas projeções refletem as expectativas em relação às possíveis políticas do novo governo dos EUA, tanto comerciais como fiscais e de imigração mais amplas, e riscos geopolíticos mais elevados. Os impactos previstos podem moldar significativamente o cenário econômico global, se concretizados.

Para Marcello Estevão, economista-chefe do IIF, o crescimento mundial será ainda menor se Trump fizer o choque tarifário exatamente como ameaçado na campanha eleitoral. Aumento de alíquota de importação de 20% sobre todos os países e especificamente de 60% sobre a China “seria uma maluquice” e o instituto aposta em algo menor.

O crescimento projetado para a China é de 4,2% para este ano, ante 4,8% em 2024. Mas diferentes estimativas apontam que a alta tarifária nos EUA poderia tirar até quase um ponto percentual do crescimento chinês neste ano e afetar mais a demanda global.

Em recente viagem à China, Estevão conversou com autoridades e representantes de empresas. Saiu com o sentimento de que a retaliação não é a preferência dos chineses, mas que eles estão preparados para reagir à guinada protecionista de Trump.

O governo chinês sinaliza que vai aumentar o peso de medidas monetárias e fiscais em 2025, para pelo menos manter o crescimento acima de 4% ao ano. Ou seja, vai gastar mais para impulsionar a demanda interna, levando em conta que a demanda internacional por produtos chineses também sofrerá.

Há turbulências à vista, mas é preciso ver como será realmente a economia global depois de 20 de janeiro. Pode ser que os anúncios de Trump não venham a ser tão brutais quanto ele ameaça. Mas a imprevisibilidade incomoda, e ainda mais em Pequim, com o Partido Comunista habituado a trabalhar com um certo grau de estabilidade. O resultado de uma guerra e, depois, de uma negociação entre Washington e Pequim vai afetar todo mundo, no entanto algumas regiões poderão se beneficiar com desvio do comércio.

Para a Associação Americana de Produtores de Soja, uma nova guerra comercial de Trump inicialmente beneficiaria o Brasil e a Argentina com aumento de exportações e ganhos valiosos de participação no mercado global. As tarifas chinesas sobre a soja e o milho dos EUA - mas não do Brasil - incentivariam os agricultores brasileiros a expandir a área de produção ainda mais rapidamente. Prevê uma queda acentuada nos preços da soja e do milho, resultando em impacto em cascata nos EUA.

O cenário nesse caso para o Brasil não é - ainda - para perder o sono, mas também não é para dormir no ponto em relação ao seu principal parceiro comercial. O desempenho das exportações brasileiras para a China precisa, de fato, ser monitorado para três produtos (soja, minério de ferro e petróleo) que representaram 77% das vendas entre janeiro-novembro.

Soja é sobretudo para alimentação animal e não há perspectiva de redução da demanda chinesa. No caso do petróleo, o Brasil foi em 2024 seu sétimo fornecedor e não há ameaça nessas vendas no curtíssimo prazo, mas os chineses estão investindo maciçamente na transição energética. E minério de ferro é uma interrogação; o setor residencial está em crise, e na infraestrutura os chineses já fizeram muito mais do que resta por fazer.

Por outro lado, não se pode ignorar que o Brasil foi em 2024 o país para o qual a China mais aumentou suas exportações, com alta de 23%, com o Vietnã em segundo com 18%. O diferencial quase todo nas vendas para o Brasil é de automóveis chineses eletrificados (+352%) ou híbridos (+263%). Os chineses desovaram estoques no país, antecipando um eventual aumento da tarifa de importação de elétricos por Brasília. E certamente vão buscar vender bem mais, em geral, com os EUA e outros mais fechados.

Bom 2025 a todos.

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O FISCAL, O MONETÁRIO E A ESTABILIDADE DA DÍVIDA PÚBLICA

Benito Salomão, Valor Econômico

Apesar de todas essas pressões, o resultado primário do setor público não vem piorando desde o início do colapso do teto de gastos em 2022

A dívida pública brasileira vem crescendo a taxas preocupantes. Desde o início deste governo, ela avançou cerca de 7 pontos percentuais, saindo de 71,4% do PIB em 1/2023, para 78,6% em 10/2024 (dados da Dívida Bruta do Governo Geral). Se essa trajetória não for interrompida, é possível chegar em agosto de 2026 - durante a eleição - com uma DBGG próxima a 85% do PIB, fechando o último ano desta legislatura, em dezembro, acima dos 86%.

Consequências indesejáveis surgem de um endividamento tão elevado. Em artigo empírico publicado em 2023, demonstro que endividamentos públicos superiores a 84% do PIB são prejudiciais ao crescimento econômico. Isso sem contar seus efeitos sobre as taxas de juros, nas pontas curta e longas da estrutura a termo. Em outras palavras, se essa trajetória da DBGG não for interrompida, grandes são as chances de termos problemas à frente.

No entanto, o que produz uma dinâmica insustentável do endividamento? Antes de prosseguir, é preciso ter em mente que a dívida pública é produto da interação entre os lados fiscal e monetário da economia. Dessa forma, estabilizar a DBGG requer uma combinação de fatores que englobam o resultado primário, o custo de rolagem de seu estoque e o crescimento do PIB. De 2022 para cá, o ciclo econômico tem feito a parte dele contribuindo para acelerar o denominador da relação dívida/PIB.

Quanto ao esforço fiscal visto no resultado primário é preciso qualificar. Desde meados de 2022, as despesas com transferências têm subido. O programa Bolsa Família, por exemplo, custava cerca de R$ 36 bilhões em janeiro de 2022 e hoje custa R$ 171 bilhões. Outras despesas que cresceram fortemente foram os precatórios, que saltaram de R$ 66 bilhões para cerca de R$ 167 bilhões no mesmo período (todos os dados a preços constantes de 10/2024).

Questões de economia política que levaram à expansão dessas rubricas à parte, é importante salientar que elas estiveram no epicentro de um conjunto de emendas constitucionais aprovadas entre 2021 e 2022 que implodiram o antigo teto de gastos. As PECs: i) Emergencial; ii) dos Precatórios; iii) Kamikaze e; iv) de Transição estiveram umbilicalmente relacionadas com a acomodação do novo patamar dessas despesas no orçamento. A partir de 2023, já no novo governo, outros fatores se somaram a estes produzindo pressões orçamentárias. Destaca-se entre tais fatores: a reposição do orçamento de inúmeras políticas públicas; o restabelecimento de reajustes reais no salário mínimo, bem como a recomposição parcial de salários de servidores públicos (há anos congelados), todas elas, despesas meritórias.

Aqui vale uma pausa na discussão fiscal para observar alguns aspectos de economia política. O extinto teto de gastos, que foi eficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, teve como efeito colateral um considerável passivo social que culminou no seu próprio colapso já no final do governo anterior. Em outras palavras, embora eficiente para estabilizar a DBGG no curto prazo, o excesso de rigidez daquela regra reprimiu demandas sociais que a tornaram politicamente inviável. Tal inviabilidade foi constatada já na saída da pandemia, mas apenas com o novo arcabouço fiscal (NAF) houve um fim definitivo no teto.

Voltando à questão fiscal, é importante salientar que, apesar de todas essas pressões, o resultado primário do setor público não vem piorando desde o início do colapso do teto de gastos em 2022. Considerando exclusivamente o resultado do Governo Central (submetido ao teto), em 2021 o déficit foi de 0,39% do PIB; passando em 2022 para um superávit de 0,55%, seguido por um novo déficit 2,43% no ano seguinte. Dado que o resultado de 2022 teria sido um déficit se não fosse a rolagem de precatórios pagos em 2023, a média do biênio foi um déficit de 0,84% do PIB. Em 2024, o dado de outubro sugere um déficit de 0,68% do PIB, e as previsões do último Focus de 0,5% do PIB para o encerramento do ano.

Como já esperado desde a sua concepção em meados de 2023, o resultado de 2024 virá abaixo do limite inferior concebido no NAF (um déficit de 0,25% do PIB). No entanto, é bem inferior ao observado na média do biênio anterior. Ademais, em termos comparativos, entre 2017 e 2019, durante a vigência da regra do teto, o déficit primário médio foi de 1,55% do PIB e, em nenhum daqueles anos, o déficit foi inferior a 1% do PIB. Ou seja, em termos do resultado primário, o teto coexistiu com déficits primários mais elevados do que o NAF convive na atualidade.

No entanto, durante a vigência do teto (pré-pandemia) a DBGG estabilizou-se mesmo diante de taxas de crescimento do PIB ruins, ao passo que agora, durante a vigência do NAF esse indicador se expande. Por que isso acontece?

O sucesso do teto de gastos não pode ser avaliado exclusivamente pelo prisma fiscal. Quando aprovada no Congresso, em dezembro de 2016, o custo implícito de rolagem da DBGG era de 13,1% ao ano. Três anos depois, em dezembro de 2019, havia recuado para 7,8% ao ano e continuou em queda até a saída da pandemia. Com a aproximação das eleições de 2022, as consecutivas PECs “fura teto” e as expectativas de uma nova fase de discricionariedade fiscal, essa taxa implícita foi rapidamente restabelecida chegando na eleição, em 10/2022, novamente ao patamar de 10,5%. Mesmo em 2023, quando a taxa básica de juros Selic caiu de 13,75% ao ano para 10,5%, o custo implícito não cedeu e continuou rondando a casa dos 11%.

Neste ambiente a equipe econômica lançou o pacote do último dia 28. O plano, se aprovado, promete economizar R$ 72 bilhões até o final de 2025. Ainda é prematuro saber se o impacto do pacote realmente tem esse potencial, mas, caso tenha, seria possível zerar o déficit em 2025 (há a possiblidade de anunciar medidas adicionais até lá). Como já abordei em artigos anteriores, simplesmente zerar o déficit não estabiliza a DBGG, o esforço fiscal necessário seria de um superávit próximo a 2% do PIB. O custo social de um superávit dessa magnitude o torna, entretanto, inviável politicamente.

No entanto, o déficit zero, caso ocorra em 2025, será uma grande notícia visto que o país opera em déficits primários desde 2014. Por ora, salienta-se que nem o NAF, nem qualquer outra regra fiscal, independente do que se passa no primário, será capaz de estabilizar um endividamento cujo custo de rolagem é superior a 10% ao ano. Em suma, estabilizar a trajetória da DBGG e evitar maiores consequências macroeconômicas de sua expansão é uma arte que irá demandar a ruptura com o padrão de discricionariedade fiscal que produz desconfianças e exacerba as instabilidades.

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2025 COMEÇA COM JUDICIÁRIO À FRENTE DOS OUTROS PODERES

César Felício, Valor Econômico

O país inicia 2025 com a reafirmação da prevalência do Judiciário sobre os outros dois poderes da República. O Executivo cada vez mais depende de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). E o Legislativo cada vez mais é tolhido por elas. O protagonista do momento é o ministro Flávio Dino, que bloqueou o pagamento das emendas parlamentares de comissão que tenham o DNA do Orçamento Secreto, tanto da Câmara quanto do Senado, inclusive daquelas já empenhadas pelo Executivo.

A Advocacia Geral da União (AGU) e o ministro debateram em público esta segunda sobre a questão, em uma sucessão de petições e despachos, em um confronto com aspectos de jogo jogado. Se o rigor da decisão de Dino pode criar constrangimentos para o governo cumprir a despesa constitucional para a Saúde, como alega o AGU, no atacado as decisões do Supremo têm favorecido o governo desde o momento da eleição de Lula.

Sinais nesse sentido são dados em uma linha do tempo. Em 15 de dezembro de 2021, mesma data em que um grupo de golpistas planejava uma ação violenta contra o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre Moraes, o STF deu início ao julgamento que declarou inconstitucionais as emendas parlamentares de relator (RP-9), mecanismo pelo qual as cúpulas da Câmara e do Senado tiraram a autoria pública das iniciativas orçamentárias de deputados e senadores. Era o fim do chamado orçamento secreto, fonte primordial da debilidade do Executivo perante o Legislativo.

Com a faca no peito, o Congresso pactuou com o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva a aprovação da PEC de Transição, que liberou R$ 145 bilhões do limite do teto de gastos para que o governo federal não iniciasse sua gestão engessada.

O troco veio na reeleição sem sustos de Arthur Lira para a presidência da Câmara e de Rodrigo Pacheco ao comando do Senado, e a dupla manteve o governo federal sobre pressão permanente, com maiorias circunstanciais para propostas pontuais.

A cúpula do Congresso sustentou a opacidade do Orçamento reforçando outro tipo de emenda parlamentar, as de comissão (RP-8). O empenho das RP-8 passou de R$ 308,1 milhões em 2022 para R$ 6,87 bilhões em 2023 e R$ 11,1 bilhões esse ano. Aí Dino entrou na história.

O ex-ministro da Justiça de Lula suspendeu em agosto o pagamento de emendas parlamentares, até mesmo das impositivas. Começou então um tortuoso processo de negociação não encerrado até o momento.

O Legislativo ensaiou um movimento autônomo, que poderia emparedar o Executivo e o Judiciário: avançar com a pauta de anistia aos envolvidos nos atos golpistas de 8 de Janeiro. O projeto, caso aprovado, livraria o ex-presidente Jair Bolsonaro não só das duas condenações na Justiça Eleitoral que o tornam inelegível até 2030 como também brecaria o inquérito que investiga no STF sua participação na tentativa de um golpe militar no fim de 2022.

Foi a hora de o inquérito mudar de fase. Bolsonaro foi indiciado como golpista em um duríssimo relatório da Polícia Federal, que o coloca como possível conhecedor até mesmo de um plano para matar autoridades. A conversa sobre anistia morreu no mesmo instante. A perspectiva para 2025 passou a ser a de um julgamento público de Bolsonaro, com efeitos na opinião pública potencialmente semelhantes aos que feriram o PT em 2013 com a ação penal do mensalão. Julgamento a ser feito pelo STF, o mesmo que corta as asas do Congresso em relação ao Orçamento.

A combinação dos dois movimentos, no melhor cenário possível para o Planalto, fortalece Lula no processo eleitoral de 2026, aumentando sua capacidade de barganha com o Congresso. No pior cenário, torna Lula um presidente sob cerco. Em qualquer dos dois, diminui a chance de o Judiciário ser constrangido pelos dois outros poderes a uma autocontenção.

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O BOM COMBATE DE FLÁVIO DINO

Felipe Salto, O Estado de S. Paulo

O Congresso não pode levar à frente essa sistemática disparatada de aprovação e destinação de dinheiro público sem o devido escrutínio social

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino está promovendo uma moralização necessária na questão das emendas parlamentares. A gestão, a governança e a destinação desses expressivos recursos públicos precisam ser fortemente iluminadas.

Consultado, o povo brasileiro avalizaria a lambança que se tem promovido por meio dessas emendas? A Constituição não avaliza, como mostram os textos das decisões de Dino nesse assunto.

O Orçamento de 2024 prevê R$ 47,9 bilhões em emendas parlamentares. Esse impressionante volume de recursos inclui as emendas individuais, as de bancada estadual, as de comissões e (ainda) as de relator-geral.

O pagamento de tais previsões orçamentárias, isto é, aquilo que já saiu do caixa da União (até o dia 29 de dezembro), incluindo os restos a pagar, corresponde a R$ 39,5 bilhões. Em 2020, eram R$ 21,5 bilhões; em 2019, R$ 10 bilhões, e em 2016, R$ 3,7 bilhões.

Dos pagamentos realizados em 2024, R$ 8,3 bilhões referem-se a emendas de comissões. Essa modalidade nunca foi relevante. Só ganhou importância quando o STF proibiu o chamado orçamento secreto, noticiado pelo Estadão, à época, em primeira mão.

Estão promovendo a destinação nebulosa de recursos por meio de emendas de comissões das duas Casas legislativas, mas que nada têm a ver com tais colegiados ou com suas funções, a não ser o nome.

A quitanda da esquina corre o risco de ter, neste momento, maior seriedade e transparência na sua contabilidade do que um Poder da República. Não é impressionante, caro leitor?

Daí por que o ministro Dino bloqueou as emendas em meados do ano passado. Primeiro, apenas as chamadas emendas Pix. Depois, todas as emendas impositivas foram barradas.

O Congresso não pode levar à frente essa sistemática disparatada de aprovação e destinação de dinheiro público para localidades e entidades sem o devido escrutínio social. Os órgãos de controle têm de atuar seriamente nesses aspectos. O custo de oportunidade desse espetáculo de horror é altíssimo. Tanta pobreza e miséria no País e Brasília parece ignorar, dentro de sua bolha mágica de ilusão e miséria ética e moral, em muitos casos.

Se retirarmos os efeitos da inflação, ao longo do tempo, para descontar o avanço dos preços no período, o valor pago de 2024 corresponde a quase 7,5 vezes o total de 2016. É um assombro o que o Congresso promoveu em termos de apropriação do Orçamento público.

Argumenta-se que esses recursos seriam destinados a obras e políticas públicas essenciais. Parte deles, sim, tem essa função. O problema começa na falta de transparência, sobretudo no que se refere às emendas Pix, derivadas da modalidade “transferência especial” criada por meio de emenda constitucional. O dinheiro simplesmente voa de Brasília para o destinatário sem qualquer controle.

A segunda questão é o montante. Em tempos de desajuste nas contas públicas, inclusive alimentado pelas ações intempestivas do Congresso, que aprova barbaridades a toque de caixa, ao arrepio da Lei de Responsabilidade Fiscal, não há explicação técnica, política ou outra que fundamente torrar tanto dinheiro público dessa maneira. O Estado brasileiro já não investe mais e caminha para a falência nesse aspecto.

Daqui a pouco, vão sobrar apenas 594 orçamentos individuais, dos parlamentares, e as despesas com folha, benefícios e aposentadorias. Que bela construção republicana estamos promovendo para o futuro do País, não?

É chegada a hora de uma reforma orçamentária. O ministro Flávio Dino está correto em enfrentar a questão das emendas, particularmente após o Congresso ter desrespeitado a sua correta decisão. No apagar das luzes, como mostrou o jornalista Breno Pires, na revista piauí, o dinheiro se esquivou das regras. Ou tentou.

Um processo orçamentário nessas bases é uma vergonha para o Estado democrático. O vexame e o escândalo que tudo isso representa deveriam levar a que as lideranças do Congresso e do Poder Executivo elaborassem um novo modelo de gestão.

Perdemos a capacidade de planejamento e transformamos o processo de alocação de recursos públicos escassos em uma feira livre. De que adianta publicar rios de tinta a título de Planos Plurianuais e Leis Orçamentárias e de Diretrizes, se tudo que é relevante é decidido por meia dúzia de figuras sob a liderança de um único parlamentar?

É gravíssimo o que estamos presenciando e o ministro Flávio Dino merece nosso aplauso. Demandada, a Corte Suprema não poderia, de fato, ter-se eximido. A Constituição Cidadã deve ser respeitada e, quando necessário, reformada.

Aproveito esta primeira coluna de 2025 para desejar um excelente ano a todos os leitores e leitoras que me acompanham neste espaço, quinzenalmente. É uma grande honra poder comunicar-me com vocês por meio do jornal O Estado de S. Paulo.

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2025: ECONOMIA DEPENDE DA POLÍTICA

Celso Ming, O Estado de S. Paulo

A cantoria da virada fala em muito dinheiro no bolso e, na ceia do réveillon, recomendam-se boas garfadas em um prato de lentilhas, com o mesmo objetivo de atrair melhoras na vida financeira. Mas 2025 promete menos, começa mais ranheta do que 2024.

Lá fora, é Donald Trump na Casa Branca despejando dardos para os quatro cantos da Terra. É mais “America first”, mais protecionismo, mais subsídios à indústria local e mais negacionismo a recobrir a crise ambiental.

O Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, avisou que vai acionar menos seu fole dos juros e isso significa menos crescimento econômico global, provável queda nos preços das commodities e valorização do dólar em relação às outras moedas.

A China, segunda maior caldeira econômica do mundo, continua a enfrentar problemas na área imobiliária, os quais vêm desacelerando seu dinamismo. E a União Europeia, submetida a fortes solavancos energéticos, enfrenta travas crescentes na sua atividade econômica, a começar pelas suas duas maiores potências: Alemanha e França.

Enfim, é o que sumariamente o Banco Central do Brasil quis resumir no comunicado divulgado dia 11, logo após a última reunião do Copom: “O ambiente externo permanece desafiador”.

Aqui no Brasil, não dá para ignorar os avanços da reforma tributária e o aumento da consciência de que não há política social que permaneça em pé sem que se garanta antes solidez na área fiscal.

Pois a economia em 2025 deverá passar por novas contorções. O PIB já não avançará os 3,5% de 2024. Provavelmente, o crescimento da atividade econômica não passará dos 2%. Os juros básicos já contratados a 14,25% ao ano a partir de março, um dólar caro, inflação acima da meta, investimento chinfrim, a perspectiva de mais desorganização das contas públicas (rombo fiscal) e alastramento da dívida tendem a aumentar os riscos da economia.

Apesar de tudo, o desemprego deverá continuar em queda ou baixo para os padrões brasileiros. E, em que pesará o maior avanço das importações e da provável contenção do investimento estrangeiro, as contas externas (que registram entrada e saída de moeda estrangeira) deverão continuar robustas. Não é por aí que se pode esperar por uma crise.

Economia e política não dançam isoladas. O resultado das eleições de 2026 dependerá em grande parte do que a economia entregará a partir de 2025.

Falta saber qual será a escolha do presidente Lula, ele que não faz muita questão de conter as despesas públicas: se tratará de colocar em prática uma política de austeridade destinada a melhorar o ambiente de negócios e de consumo – como aconteceu nos tempos do seu ministro Antonio Palocci; ou se persistirá nessa sua vibe de despejar bondades e recursos públicos, para conquistar a boa vontade do eleitor.

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LULA QUER REPACTUAR ALIANÇA COM CENTRO-DIREITA

Vera Rosa, O Estado de S. Paulo

Lula inicia segunda metade do mandato no modo reeleição e tenta repactuar aliança com centro-direita

Presidente quer que principais ministérios acelerem o passo e construam programas que sirvam como vitrines para campanha de 2026, mesmo se não for ele o candidato

No horizonte, estão reforma ministerial, tentativa de ampliar bancada no Senado e negociação com MDB, PSD e PP.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciou a segunda metade do seu mandato, neste ano novo, no modo reeleição. Embora nem a cúpula do PT saiba se Lula vai mesmo disputar mais uma vez o Palácio do Planalto, em 2026, toda a organização do governo, a partir de agora, tem como meta esse cenário político.

Há um diagnóstico no Planalto de que os principais ministérios da área social, como Saúde e Educação, precisam acelerar o passo para construir vitrines. O slogan do terceiro mandato do PT é União e Reconstrução, mas o País continua dividido, e o julgamento da trama golpista neste ano promete acirrar ainda mais os ânimos dos aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro.

INCERTEZA. Lula aguarda a escolha dos novos presidentes da Câmara e do Senado, em fevereiro, para fazer a reforma ministerial. Hugo Motta (Republicanos-PB) e Davi Alcolumbre (União-AP), respectivamente, já são considerados eleitos, mas há incertezas sobre como será a relação com o Congresso.

Nos dias que antecederam a virada do ano foram muitas as cabeçadas entre o governo e o Congresso por causa do bloqueio de emendas parlamentares ao Orçamento determinado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino. Mas não foi só: ao sancionar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2025, Lula também restringiu a liberação de emendas, mesmo as impositivas, para cumprir os limites de gastos do arcabouço fiscal. Além disso, barrou um novo cálculo para o aumento do Fundo Partidário.

Nos bastidores, interlocutores do presidente já esperam a retaliação em votações assim que terminarem as férias parlamentares, sem contar uma cobrança maior de fatura, em troca da renovação do apoio. Com um detalhe importante: nem o Orçamento de 2025 foi votado ainda. É sob esse sistema de “toma lá, dá cá” cada vez mais forte que Lula tentará fazer uma repactuação com partidos aliados de centro e de direita que hoje não estão comprometidos com o projeto da reeleição, embora comandem ministérios com orçamentos robustos. Nesta lista figuram o MDB, o PSD e o PP.

Um dos interlocutores de Lula disse, sob reserva, que a amarração feita pelo presidente com os partidos, em 2023, era para a sustentação do governo. Agora, porém, essa solda precisa levar em conta as disputas de 2026. O PT fará tudo para ampliar a bancada no Senado, hoje com nove representantes, e deter o avanço do bolsonarismo.

Secretário de Governo de Tarcísio de Freitas, o presidente do PSD, Gilberto Kassab, classificou como remota a possibilidade de seu partido estar com Lula e muito menos com outro candidato petista, em 2026. O PSD comanda três ministérios – Minas e Energia, Agricultura e Pesca – e pode ganhar mais espaço na reforma da equipe de Lula.

Dividido, o MDB tem uma ala que quer continuar na aliança com o PT em 2026, desde que o candidato a vice na chapa seja emedebista, e não mais Geraldo Alckmin (PSB). Hoje, o nome mais citado pelo MDB, que também controla três ministérios – Transportes, Cidades e Planejamento – é o do governador do Pará, Helder Barbalho. Um outro grupo do partido, no entanto, quer candidatura própria.

OPÇÕES. O PP tem o Ministério do Esporte e a Caixa e pode aumentar sua cota no governo, embora, até agora, nada indique que ficará com Lula ou quem ele escolher como sucessor. Partidos como Republicanos e União Brasil também estão oficialmente no barco de Lula e discutem chapas próprias para 2026. Apesar das negativas, Tarcísio tem chance de ser candidato pelo Republicanos, com aval de Bolsonaro. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), tenta, por sua vez, se consolidar para disputar a cadeira de Lula.

É nessa balbúrdia política que surge o fator decisivo: a economia. A ascensão do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como possível sucessor de Lula está atrelada ao sucesso nessa seara. A alta de juros sinalizada pelo Banco Central, no entanto, já indica o encolhimento econômico. O dólar acima de R$ 6 e os juros serviram como biombo para esconder conquistas do governo, como o indicador da extrema pobreza abaixo de 5%, pela primeira vez na história, e a queda do desemprego. O crescimento de 2024, em torno de 3,5%, não deve se repetir em 2025, já batizado por analistas como “o ano da desaceleração”.

De qualquer forma, Lula está convencido de que precisa atrair a classe média e a faixa de eleitores que recebe acima de dois salários mínimos, os “remediados”, além dos evangélicos. Como fazer isso é outra história que nem o governo sabe.

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SEGURANÇA NÃO PODE SER REFÉM DA MESQUINHARIA

Editorial Correio Braziliense

O decreto do governo federal não tem a arrogância de ser definitivo. Mas abre uma boa e necessária discussão, infelizmente contaminada por interesses eleitorais

A preocupação com a segurança pública não passa de um discurso eleitoral dos governantes, seja para dar ao eleitor a impressão de que o combate à criminalidade é uma prioridade na gestão pública, seja para acenar às corporações do setor, reforçando-lhes quase sempre os vícios e as virtudes cada vez mais escassas. Entende-se isso ao observar a discussão em torno do decreto do governo federal sobre o uso da força em operações policiais. Governadores de oposição acusam o Ministério da Justiça e o Palácio do Planalto de interferirem nas políticas de segurança dos estados.

Mas esse aparato está funcionando tão bem assim a ponto de rechaçarem completamente os termos do decreto? Ou o que está falando mais alto são os interesses políticos — uma vez que essas corporações têm capilaridade eleitoral e interesses a defender nos Poderes Legislativo e Executivo? O noticiário de poucas semanas atrás trouxe uma sequência de ações brutais da Polícia Militar de São Paulo — em uma delas, uma idosa foi agredida dentro da própria casa e, noutra, um homem foi jogado em um córrego, de cima de uma ponte.

Da mesma forma, as operações policiais no Rio de Janeiro estão longe de serem exemplos de eficiência. Primeiramente, porque, não raro, tornam-se chacinas. Em segundo, porque apesar de tamanha violência, não impediram o avanço do tráfico nem o surgimento das milícias. E, em terceiro, porque sucedem-se os registros nos quais suspeitos são detidos apenas por causa da cor da pele — ou seja, exercícios explícitos de racismo.

Ações brutais, porém, não são exclusividade de unidades da Federação governadas pela oposição. Mas, na atual discussão, há uma grande diferença em relação às anteriores: os governadores do Consórcio Nordeste deram apoio à iniciativa federal, da mesma forma que ex-ministros da Justiça se manifestaram favoravelmente a ela. Isso representa que o decreto, se não tem os predicados necessários para conter a violência nem intimidar as facções criminosas, ao menos chama a atenção para o fato de que muita gente tem morrido porque as forças de segurança perderam a capacidade de diferenciar o bandido do cidadão — sobretudo aquele que vive nas comunidades mais pobres — e não são exemplos de profissionalismo — a contaminação politiqueira que as assola confirma isso.

O decreto do governo federal não tem a arrogância de ser definitivo. Mas abre uma boa e necessária discussão, infelizmente contaminada por interesses eleitorais. Segurança pública é um tema que pertence à sociedade e cabe a ela como um todo discutir — cada ator expõe seu ponto de vista, todos em busca de um consenso. A captura por nichos ideológicos amesquinha um assunto de imensa relevância. E afasta as soluções inteligentes. 

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TRAGÉDIA QUE NÃO CHAMA A ATENÇÃO

Editorial O Estado de S. Paulo

O caos no Sudão, negligenciado pelo mundo, pode deflagrar uma guerra regional

Em 2006, milhares de pessoas em Washington protestaram com celebridades e políticos contra o genocídio em Darfur, no Sudão, perpetrado pelo ditador Omar al-Bashir contra etnias não árabes. “Se nos importarmos, o mundo se importará”, disse o então senador Barack Obama. Seu colega Joe Biden instou a intervenção da Otan. O Conselho de Segurança da ONU impôs embargos e sanções, o Tribunal Penal Internacional deu ordem de prisão a Bashir, a ONU e a União Africana despacharam uma força de paz. Hoje, a história está se repetindo, mas o mundo dá as costas ao Sudão.

As crises humanitárias na Ucrânia ou em Gaza são pavorosas, mas, dadas as suas implicações geopolíticas, atraem os holofotes planetários. Já a pior e mais desesperada das crises em 2024, e que deve se agravar em 2025, passa despercebida.

Desde a independência, em 1956, o Sudão sobrevive a ciclos de golpes e guerras civis, incluindo a que o fracionou, criando o Sudão do Sul, em 2011. Após uma revolta popular ter derrubado Bashir em 2019, o país entrou numa rota tênue para a democracia. Mas em 2021, as Forças Armadas do Sudão (SAF) e o grupo paramilitar Forças de Suporte Rápido (RSF) tomaram o poder do governo civil de transição. A deterioração dessa parceria se intensificou até explodir numa guerra civil, em 2023.

Estima-se que até 150 mil tenham morrido, 12 milhões tenham se deslocado e 3,2 milhões, fugido do país. Quase 80% dos hospitais não estão funcionando. Metade da população, 25 milhões, precisa de socorro humanitário; 750 mil estão à beira da inanição. Ambos os lados são acusados de bloquear auxílio humanitário e de saques, estupros e execuções de civis. A RSF, dissidente das milícias de Bashir, já praticou limpeza étnica e dá sinais de que iniciará – se já não iniciou – outro genocídio em Darfur, caso conquiste as últimas fortalezas da SAF na região.

“O pior dos cenários no Sudão é uma versão de 20 a 25 anos da Somália com esteroides”, disse Tom Perriello, o enviado especial dos EUA, à revista Foreign Policy, referindo-se ao país africano que se tornou sinônimo de catástrofe humanitária. “A velocidade com que esse conflito pode ir de uma guerra entre dois lados para sete ou oito lados, sugando países vizinhos” pode torná-la “ainda pior que uma Líbia 2.0″, em referência a outro país africano que está em guerra civil desde 2014.

Egito e Arábia Saudita apoiam a SAF, que tem estreitado laços com Irã e Rússia. A RSF é apoiada pelos Emirados Árabes e pelo vizinho Chade, e emprega mercenários russos. Os piores problemas da África podem infectar o Oriente Médio e vice-versa.

Um cessar-fogo não está no horizonte, mas pode despontar com mobilizações entre esses apoiadores, dos quais depende a ajuda humanitária. Será preciso desenhar sanções especialmente duras para a RSF em Darfur. A guerra civil pode se tornar uma guerra regional. A degradação do controle do narcotráfico, as pressões migratórias e novos refúgios para terroristas islâmicos teriam impacto global.

Na revolução de 2019, protestos em todo o mundo repetiam um canto: “Não são as balas que o povo do Sudão teme, é o silêncio do mundo”. Esse silêncio já é cúmplice de muitas mortes e, caso se perpetue, imporá um custo brutal à África e a todo o mundo.

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A CREDIBILIDADE DO STF EM QUEDA LIVRE

Editorial O Estado S. Paulo

Ignorando críticas de corporativismo, ativismo e partidarismo, a Corte diz que está ‘salvando a democracia’ e ‘civilizando o País’. Mas a percepção popular parece ser a de que faz o oposto

Em sua posse como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2023, Luís Roberto Barroso citou sua fórmula predileta para descrever a magistratura – a “vanguarda iluminista que empurra a história na direção do processo civilizatório” – e a ilustrou com uma lista de prioridades: combate à pobreza, desenvolvimento sustentável, liderança ambiental do Brasil e investimentos em educação, ciência, saneamento e moradia. Com altas autoridades, celebridades e magnatas, a festa que se seguiu consumou a autocelebração da Corte. Pudera: os ministros não se cansam de repetir que o STF “salvou a democracia”. Parecia chegado o momento de reformá-la.

No entanto, em dois anos, a credibilidade da Corte despencou. Segundo pesquisa do PoderData, o contingente de brasileiros que consideram o desempenho do STF “ótimo” ou “bom” diminuiu de 31% para 12%. Os que consideram “ruim” ou “péssimo” passaram de 31% para 43%. A pesquisa não indaga as razões. Mas este jornal tem algumas hipóteses.

A percepção de que as cortes judiciárias são cortes aristocráticas conta muito. Os juízes, que deveriam garantir que a lei seja igual para todos, são especialistas em pervertê-la a seu favor. Com o teto constitucional de remuneração depredado sob a complacência da Corte constitucional, o céu é o limite para a concentração de benefícios inimagináveis para o resto do funcionalismo, e ainda mais para os cidadãos comuns, que bancam o Judiciário mais caro do mundo.

Mas o subdesenvolvimento não se improvisa e esse patrimonialismo não é obra de dois anos, mas de décadas. De resto, outras pesquisas mostram que o descrédito do STF é maior que o do Judiciário. Logo, há de haver outras razões para ele.

Uma delas é o afã pelos holofotes. Sentenças são anunciadas fora dos autos, até antes dos autos. Convescotes com poderosos de Brasília ou empresários são propagandeados como “discussões sobre o Brasil”, mas não poucos brasileiros leem nas entrelinhas lobby e conflito de interesses.

Quem dera os ministros quisessem só “discutir” o Brasil e não reconfigurá-lo. Ora atuando como moderador entre os outros Poderes, ora extrapolando suas competências, o STF age como um poder imperial, determinando ao Executivo políticas públicas (de câmeras em uniformes policiais até o modo de combater incêndios ou abrigar moradores de rua) e dispondo-se a reescrever leis (sobre aborto, drogas, internet e demarcação de terras indígenas, entre outros temas).

Mas quem dera a Corte só se intrometesse nos afazeres dos representantes eleitos, sem favorecer lados. No entanto, garantismo e punitivismo flutuam ao sabor da conveniência partidária. Condenações de réus confessos pela Operação Lava Jato são anuladas a rodo. A Lei das Estatais, criada após esses escândalos, foi temporariamente suspensa para que o governo lulopetista forrasse empresas estatais com correligionários. O vale-tudo “contra a corrupção” do lavajatismo renasceu mais forte no vale-tudo “pela democracia” dos inquéritos intermináveis e sigilosos contra bolsonaristas. Mesmo críticos que nada têm a ver com o bolsonarismo são censurados como “extremistas” e suas críticas são tomadas como “ataques às instituições”.

Patrimonialismo, paternalismo, corporativismo, protagonismo, autoritarismo, partidarismo quadram mal com a sobriedade e a imparcialidade que se esperam da Justiça, e a reprovação popular parece decorrer disso.

Viradas de ano são propícias para rever posições e corrigir rumos. A época do Natal evoca palavras do Evangelho: médico, cura-te a ti mesmo. Os ministros fariam bem em se ocupar menos com os ciscos nos olhos dos outros Poderes e mais com as traves nos seus. A “vanguarda iluminista” do Supremo pode ignorar olimpicamente conselhos como esses e também o sentimento público. Mas, se continuar semeando vento, que não se surpreenda quando colher tempestade.

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