quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O ESTADO EMPRESÁRIO PEDE FALÊNCIA

Felipe Salto, O Estado de S. Paulo

Há uma tarefa primordial: fortalecer, reestruturar e reorientar as agências reguladoras, resgatando sua proposta original

O episódio dos Correios é a parte mais visível de um problema maior. A ideia de um Estado empresário, como regra geral, que comanda atividades de produção de bens e de prestação de serviços, precisa ser revista.

A dívida pública atingirá níveis próximos a 85% do Produto Interno Bruto (PIB), até o final de 2026, muito acima da média dos países comparáveis. Os prejuízos acumulados por diversas empresas estatais alimentam esse quadro de fragilidade e de alto risco fiscal.

O problema dos Correios, por exemplo, não é novo. O setor de logística modernizou-se, novas empresas entraram no jogo e a estatal parou no tempo. Além disso, pratica-se uma política de pessoal questionável; não se sustenta. Os números informados pela própria companhia nos seus balanços contábeis e em relatórios de administração atestam essa conclusão.

O uso de estatais para acomodações políticas é outra prática que já deveria ter sido enterrada com os escândalos da história recente. A verdade é que a atividade empresarial do Estado só deve ser uma alternativa na ausência de interesse ou capacidade do setor privado ou, ainda, em situações específicas, que envolvam exploração de áreas e recursos estratégicos. Tem de ser a exceção, não a regra.

Em relatório comandado pelo economista Josué Pellegrini e publicado aos nossos clientes, na Warren Investimentos, mostramos que há 122 empresas estatais federais. Destas, 44 empresas são controladas diretamente pela União, das quais 17 são consideradas dependentes, isto é, vivem de recursos transferidos pelo Tesouro.

O saldo líquido das empresas estatais não dependentes é negativo. Se excluídas a Petrobras e as instituições financeiras, há 20 empresas estatais não dependentes. A União realizou, nos últimos cinco anos, aportes de R$ 7 bilhões, mas recebeu apenas R$ 5,2 bilhões em dividendos, como mostramos no relatório mencionado.

No caso das empresas estatais dependentes, a União transferiu quase R$ 30 bilhões para o conjunto dessas companhias em 2024. Veja-se, portanto, o peso das estatais para o Orçamento geral. Na verdade, trata-se de gastos públicos realizados por meio de empresas, com estruturas inteiras e, em muitos casos, boa dose de ineficiência. Essa, vale dizer, é a parte visível a olho nu, digamos.

Os Correios são considerados uma estatal não dependente. Contudo, apresentam prejuízo e fragilidade nos indicadores financeiros relevantes, a exemplo do próprio caixa. A busca por um empréstimo de R$ 20 bilhões com aval da União é o sintoma mais patente. Na verdade, mostra efetiva necessidade de capitalização, de modo que a empresa, na prática, já vivencia uma situação de clara dependência do governo.

Ou bem se moderniza sua estrutura e se enxugam seus gastos, para valer, reduzindo-se a ingerência política, ou o problema só crescerá. É preciso avaliar um programa de desestatização ou de privatização. Devese avaliar a parte que ainda tem valor de mercado e acelerar esse processo, a partir de estudos sérios, sob pena de empurrarmos novamente o problema com a barriga.

Argumenta-se que uma parte dos serviços dos Correios seria inviável ao setor privado, a exemplo dos serviços postais em cada canto do País. Pois bem, vamos, então, discutir uma nova estrutura, em que esses serviços sejam preservados, incorporados em políticas públicas bem desenhadas e eficientes. O que não se pode deixar é que essa questão, em especial, continue a levar o País a ter de sustentar um mastodonte deficitário, que pressiona a dívida pública e, portanto, toda a sociedade.

No caso do empréstimo, felizmente, temos uma Secretaria do Tesouro Nacional eminentemente técnica, dotada de servidores públicos e lideranças à altura do desafio de enfrentar pressões políticas para aprovação de empréstimos não lastreados em efetivo compromisso de recuperação da referida empresa. Espera-se que as alas políticas ouçam e sigam essa voz da razão.

Em geral, a atividade empresarial do Estado precisa ser amplamente reavaliada. Já avançamos bastante em transparência. Hoje, há relatórios periódicos que permitem acessar os dados econômico-financeiros e administrativos da maior parte das empresas estatais.

A partir dessas informações, é preciso forjar um diagnóstico qualitativo, sob orientação das diretrizes e princípios constitucionais que norteiam a ação do Estado. A provisão de serviços e bens públicos de qualidade deve ser um objetivo maior, mas a eficiência, a eficácia e a sustentabilidade fiscal não podem ser deixadas de lado, como, muitas vezes, tem acontecido.

Nesse assunto, o risco de se pecar pela adesão a extremos está sempre presente. Não se trata de defender as surradas teses de Estado mínimo e equivalentes. Tampouco, de continuar a apostar no Estado como indutor e solucionador de todos os problemas. O meio do caminho é desejável.

Cabe imaginar uma estrutura para as estatais que contemple critérios objetivos. O Estado não deve produzir, mas regular bem os setores produtivos e o mercado. Para isso, há uma tarefa primordial: fortalecer, reestruturar e reorientar as agências reguladoras, resgatando sua proposta original.

Há muito trabalho pela frente. O Estado empresário pede falência. Vamos ignorar o fato até quando?

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A VISÃO KEYNESIANA DA CONSTRUÇÃO RESIDENCIAL

Roberto Macedo, O Estado de S. Paulo

E este texto inclui também a abordagem de uma política monetária alternativa

John Maynard Keynes (1883-1946) foi um economista britânico considerado o pai da moderna análise macroeconômica. Seu livro mais conhecido foi publicado em 1936 e em português veio com o título de A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (São Paulo, Editora Atlas, 1992).

Anteriormente a Keynes, a teoria macroeconômica predominante, de influência liberal, era a de que uma economia se reequilibraria automaticamente se os salários fossem flexíveis. Mas isso não acontecia e Keynes passou a pregar que uma economia em recessão exigia forte intervenção estatal mediante mais gastos públicos, inclusive via endividamento e emissão monetária, para estimular o crescimento econômico e o desenvolvimento social.

A abordagem expressa no título deste artigo não veio de Keynes nesse livro, mas sim de um artigo que ele publicou na revista mensal Red Book, dos EUA, em dezembro de 1934 – note-se que a economia ainda estava sob o impacto da crise de 1930 –, na qual respondeu à pergunta: “Pode a América gastar seu caminho na direção da recuperação?”. Ele respondeu sim, em contraposição a outro economista, Harold J. Laski, que respondeu não e não teve a fama de Keynes. Num debate sobre o assunto em São Paulo, soube da revista e consegui comprá-la num antiquário de publicações nos EUA, pelo correio.

No seu artigo, Keynes argumenta que o governo deve gastar, mas gastar bem. “Produtivas e socialmente úteis despesas são preferíveis a gastos improdutivos. (...) Não há uma forma melhor pela qual a América pode gastar em prosperidade do que gastando dinheiro construindo casas”. E prossegue: “A necessidade está ali aguardando ser satisfeita; o trabalho e os materiais estão lá aguardando ser utilizados. Isso expandiria o emprego em todas as localidades. Não há maior benefício econômico e social do que boas casas.” Quem conhece os EUA sabe do apego que os americanos têm por casas. E Keynes estava escrevendo em 1934. Hoje, provavelmente, também teria feito referências a apartamentos.

Agora vamos tratar, recorrendo à internet, de uma medida de política monetária conhecida no exterior como Quantitative Easing ou Relaxamento Quantitativo (RQ), pela qual um banco central compra ativos financeiros de longo prazo como títulos do governo repassando-lhe dinheiro vindo inclusive de emissão monetária, com o objetivo de ampliar o dinheiro na economia, inclusive para programas habitacionais.

Ampliando o crédito com juros mais baixos, empresas e consumidores são incentivados a gastar e investir, impulsionando a atividade econômica. Em geral, o Relaxamento Quantitativo pode ser usado em recessões, quando as ferramentas de política monetária convencionais, como a redução da taxa básica de juros deixa de ser eficaz. Na crise de 2008, e depois dela, o RQ foi usado pela primeira vez em grande escala em países como EUA, Inglaterra e Japão, mas este começou antes.

E o Brasil, como fica nesse contexto? Aqui o déficit habitacional é grande e muitos brasileiros se disporiam a comprar um imóvel se o financiamento lhes fosse acessível. A mão de obra também existe, a qualificação dela também ocorre muito no próprio trabalho, o on-the-job training, e materiais para construção também não faltam.

Mas hoje a inflação está alta e vem caindo vagarosamente. Não há perspectiva de recessão, mas a taxa de crescimento do PIB deve cair para um valor próximo de 2% ao ano, uma taxa muito baixa. Acho que já temos uma “recessão de taxa de crescimento do PIB” e não tem sentido aguardar taxas de crescimento negativas para pensar em algo como o Relaxamento Quantitativo.

Um agravante é que nosso Banco Central parece só ter um instrumento de política monetária, a taxa básica de juros, que fica no sobe e desce dependendo das circunstâncias. Precisaria ser bem menos ortodoxo. Não pensa no crescimento econômico, que é o que está por trás do objetivo do Relaxamento Quantitativo, além dos ganhos sociais advindos do grande número de novas residências.

Mas olhando a discussão sobre macroeconomia, ela está concentrada no debate sobre a política fiscal expansionista e a alta taxa básica de juros do Banco Central, hoje, em 15% ao ano. Nem Lula nem o Congresso se interessam em discutir com profundidade a questão do baixo crescimento. Com Lula no poder, essa situação pode até se agravar no próximo ano eleitoral, diante de seu apego a medidas expansionistas do lado fiscal. E hoje o mais provável é que ele vencerá também a eleição do ano que vem.

Aí ele poderá escolher entre manter-se como um fiscalista irresponsável, já buscando votos para um petista de sua escolha em 2030. Ou, se quiser entrar para a história de um modo positivo, adotar uma política econômica para colocar a casa em ordem, em particular do ponto de vista fiscal. O que ele fará? Infelizmente, o mais provável é que ele escolherá o primeiro caminho. E se isso acontecer, um Relaxamento Quantitativo não terá espaço para se desenvolver.

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HOMENAGEM REJEITADA

Taynara Lima, O POVO

Câmara Municipal de Camocim rejeita homenagem a Ciro Gomes

Texto de autoria do vereador Marcos Coelho destacava a trajetória do ex-governador. Requerimento foi desaprovado por 8 votos contrários contra 5 favoráveis

Câmara Municipal de Camocim, município localizado a 317,3 quilômetros de Fortaleza, desaprovou uma homenagem ao ex-ministro e ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PSDB). 

O requerimento para a homenagem foi apresentado em 24 de outubro pelo vereador Marcos Coelho (Republicanos), que pediu uma sessão solene em homenagem a Ciro. No documento, ele justifica que o ato seria “em reconhecimento às relevantes contribuições prestadas ao desenvolvimento de Camocim, especialmente nas áreas da saúde e do saneamento básico”.

Sobre o assunto

Como Ciro Gomes desencadeou briga entre Michelle e os filhos de Bolsonaro

Bolsonaro e Ciro Gomes conversaram? Entenda

O texto destaca a trajetória do ex-ministro e fala sobre o período em que Ciro atuou como governador (1991-1994): “Sob sua liderança, Camocim foi contemplado com importantes obras e programas de grande impacto social e econômico”. A solicitação foi desaprovada por 8 votos a 5.

Em sessão na quarta-feira, 3, Coelho demonstrou indignação com a rejeição da homenagem a Ciro e criticou o vereador Kleber (PSB). 

“Também reclamo aqui e estou surpreso, porque homenagear as pessoas, nós sempre homenageamos aqui, independentemente de quem seja. Mas vereador Kleber, vossa excelência orientar a sua bancada para votar contra o ex-governador Ciro Gomes. Vossa excelência não tem memória. E eu poderia aqui fazer o contrário, não apoiar, mas fui o autor, porque eu reconheço no governador Ciro Gomes não apenas um grande cearense, mas um grande brasileiro”, argumentou.

Em seguida, o vereador chamou o colega de “covarde” e afirmou que Kleber teria orientado a bancada “para se sujeitar ao governador Elmano de Freitas”, citando outros vereadores.

“Vossa Excelência orienta a bancada aqui de forma covarde. Está sendo covarde. É a menor palavra que eu posso dizer com vossa excelência é essa. Vossa excelência é um covarde. E orientar dessa forma para se sujeitar ao governador Elmano de Freitas. De uma forma interesseira, vossa excelência nem votou no governador Elmano, mas para se subordinar, para ficar de joelhos ao governador Elmano de Freitas [...] Qualquer um outro poderia, menos vossa excelência votar contra uma moção de aplausos aqui ao ex-governador Ciro Gomes”, continuou.  

Ciro foi pivô de divergência na oposição nacional

No Ceará, o PSB faz parte da base aliada do governador Elmano de Freitas, com o senador Cid Gomes (PSB) como um dos principais líderes no Estado.

Já o irmão de Cid, Ciro Gomes, se filiou ao PSDB em outubro. Ele é um dos principais críticos da gestão Elmano e se aproximou de nomes da oposição no Estado, como o deputado federal André Fernandes (PL) e o ex-deputado Capitão Wagner (União Brasil). Apesar de não ter confirmado, Ciro é um possível nome da oposição para a disputa pelo Governo do Ceará em 2026.

O tucano, inclusive, está no centro do recente desentendimento protagonizado por nomes do PL. Em passagem pelo Ceará no último domingo, 30, durante o evento de lançamento de candidatura do senador Eduardo Girão (Novo), a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) deu um “puxão de orelha” no PL Ceará por conta da aproximação com Ciro.

Na ocasião, ela citou nominalmente Fernandes e disse que, apesar do “orgulho” que sentia por ele, não seria viável apoiar uma pessoa que já criticou o ex-presidente Jair Bolsonaro. Após o fim do evento, André convocou uma coletiva e ressaltou que a aliança com Ciro vem sendo construída desde o segundo turno das eleições de 2024, inclusive com o aval de Bolsonaro. 

Na última, segunda-feira, três filhos de Bolsonaro criticaram a atitude de Michelle. Para Flávio Bolsonaro, a ex-primeira-dama “atropelou” a articulação do PL no Ceará e agiu de forma “autoritária e constrangedora”. Pelas redes sociais, Carlos e Eduardo Bolsonaro concordaram com o irmão.

Na terça, após visita a Bolsonaro na prisão, Flávio afirmou que contou sobre a situação ao pai e disse que se desculpou com Michelle. Após reunião da cúpula nacional do PL, em Brasília, André Fernandes anunciou que as negociações com Ciro Gomes estão suspensas por tempo indeterminado.

Segundo o parlamentar cearense, a suspensão foi motivada principalmente por um “ruído de comunicação” interno e pelo impacto da restrição de comunicação do ex-presidente Bolsonaro, preso por tentativa de golpe.

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CREPÚSCULO AMERICANO

Maria Hermínia Tavares, Folha de S. Paulo

Se Trump obtiver êxito na Venezuela, será a legitimação da força bruta

Política externa trumpista não promoverá volta a um passado dourado

Donald Trump anunciou recentemente o fechamento do espaço aéreo sobre a Venezuela e ao redor dela.

Rondam o país o mais avançado porta-aviões do mundo; destroieres e mísseis teleguiados; navios anfíbios e lanchas de ataque rápido; um submarino nuclear; caças de última geração que executam bombardeios de treinamento a partir do porta-aviões; bombardeiros estratégicos fazendo demonstrações no espaço aéreo caribenho; helicópteros de operações especiais de vigilância e reconhecimento; e entre 13 mil e 15 mil militares em concentração.

Tudo isso a pretexto de combater o narcotráfico no Caribe e no Pacífico, mas, como é óbvio, para forçar Nicolás Maduro a deixar o poder.

Se o ditador venezuelano renunciar, não deixará saudades. Mas o que a tática de Trump causará para livrar a Venezuela do autoritarismo —se livrar, o que não está assegurado— é um mal muitas vezes maior do que aquele que o sucessor de Chávez vem impondo a seu povo.

Significará a legitimação do uso da força bruta nos conflitos internacionais. Tudo o que o direito, os regimes e as organizações internacionais trataram de evitar, como mais ou menos êxito, nos últimos cem anos, especialmente depois de 1945.

Analistas divergem sobre a existência de uma doutrina a sustentar a destrutiva política exterior do presidente americano. Há quem argumente que uma pessoa incapaz de proferir duas frases coerentes e que parece movido pelos seus mais primários instintos dificilmente conseguiria articular um conjunto de princípios a nortear suas iniciativas internacionais. No máximo, Trump se orientaria pelas fórmulas simplórias que organizou no manual "A Arte da Negociação", anterior à sua chegada à Casa Branca.

Na contramão dos que acreditam que não há que buscar doutrina onde falta lógica, o cientista político americano Ronald Krebs, em recente conferência na London School of Economics, defendeu ser possível discernir um conjunto de ideias reacionárias, nutridas por sentimentos arraigados numa parcela do público americano. Elas inspiram tanto a política externa como as iniciativas domésticas do ocupante do Salão Oval, de muitos de seus auxiliares e do movimento Maga (Make America Great Again).

São reacionárias porque remetem a um passado idealizado, uma Idade de Ouro, quando os EUA eram uma potência ascendente —forte, respeitada e branca—, antes de ser corroída pela globalização, pela imigração, pelo multiculturalismo e pelas instituições multilaterais.

Nessa retrógrada fantasia, o país seria vítima de seus aliados parasitas: as organizações internacionais, armadilhas que drenam recursos internos. Na arena global, os conflitos sempre somariam zero, produzindo ganhadores ou perdedores; e cada relação com outro Estado uma transação, na qual só vale perseguir o ganho imediato. Eis que a política externa seria um instrumento para reverter supostas perdas e estabelecer uma hierarquia global na qual os EUA mandam e os demais obedecem.

Só os reacionários imaginam que a história dá marcha-à-ré. Se o professor Krebs estiver certo, a política externa trumpista não promoverá volta a um passado dourado, mas o crepúsculo da influência americana no mundo.

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QUANDO A BIRRA DO PREFEITO ABÍLIO BRUNINI PESA MENOS QUE UM GRÃO DE POEIRA NA BR - 163

João Guató, Pasquim Cuiabano

A imprensa noticiou com estardalhaço digno de breaking news: o prefeito Abílio Brunini decidiu que "não vai" receber Lula caso o presidente venha a Cuiabá. Aliás, não só ele — ninguém da Prefeitura irá, segundo decretou o patriarca municipal da contrariedade.

A manchete saiu no "Repórter MT", mas a pergunta que ecoa pelas calçadas é:
e daí?

Imaginar que Lula — com agenda nacional, crise internacional, COP, PAC, BRICS, inflação, combustíveis, reforma tributária — perderia um milímetro de sono porque Abílio Brunini não vai à Avenida do CPA é algo que só mesmo a dissonância congênita da família Brunini explica. É como achar que a Lua atrasa o eclipse porque o vereador da esquina está de mau humor.

A reportagem de Rennan Oliveira informa que o Governo Federal vai entregar "400 maquinários agrícolas". Um volume capaz de equipar metade do Araguaia. Uma solenidade dessas move secretários, prefeitos, deputados, senadores, ministérios…

E aí alguém anuncia:
— O Abílio não vem.

Silêncio.
Respira-se fundo.
E a resposta natural, quase instintiva, brota:
— Quem é Abílio na fila do pão?

Porque sejamos francos: a ausência do prefeito não altera o clima, não muda a logística, não adia a cerimônia, não reposiciona a comitiva. No máximo, evita que alguém precise explicar por que ele estaria lá de braços cruzados, fazendo careta para qualquer coisa que lembre governo federal.

O prefeito, tomado por inspiração meteorológica, disse que Lula talvez nem venha: “choveu, o clima estava quente”. No fundo, Abílio parece acreditar que sua antipatia altera o INMET. Um dia ainda o veremos decretando estado de *tempestade ideológica* no CPA.

Mas o momento de ouro foi quando sentenciou:
“Se vem, a gente paga menos.”

É uma frase tão desconexa da realidade que só pode ter saído dessa dissonância político-familiar que acompanha os Brunini como herança genética: aquela incapacidade de entender que o mundo gira independentemente do humor deles.

Se Lula vier, a comitiva pousa.
Se não vier, o país continua.
E se Abílio não for, bem…
a cerimônia segue exatamente igual. Talvez até mais silenciosa.

Cuiabá precisa de diálogo, estrutura, planejamento.
Abílio oferece ausência — como se ausência fosse moeda política.

No fundo, é até poético:
um prefeito que acredita que não estar presente é, por si só, um grande acontecimento.
Mal sabe ele que sua ausência pesa tanto quanto a sombra de uma mariposa em dia nublado. 

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UM PAÍS ASSOLADO POR CORRUPÇÃO INSTITUCIONAL, FACÇÕES, CRIME EMPRESARIAL E FINANCEIRO

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

Prisão do presidente da Assembleia Legislativa do RJ é apenas um episódio da crise

Parlamentares querem leis para fugir da polícia; há negociatas em tribunais

Desde 1995, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) teve seis presidentes. Quatro foram presos, no comando da casa ou no comando de coisas ainda piores, como o ex-governador Sérgio Cabral Filho. Que tenham prendido mais um presidente da Alerj deveria causar surpresa? Ou tédio enojado?

Qualquer leitora de jornais dirá logo que essas perguntas estão erradas, pois não se trata de problema específico da Alerj ou do Rio de Janeiro, embora meus conterrâneos estejam de fato exagerando, por assim dizer. Há mais evidências de que a corrupção está mais disseminada, tolerada, perigosa e, agora, é motivo central de uma das maiores querelas institucionais do Brasil —parlamentares contra Supremo.

A corrupção é cada vez mais sistemática ou organizada em gangues políticas. O exemplo mais recente é o desse Rodrigo Bacellar (União Brasil), que presidia a Alerj. Foi preso nesta quarta pela Polícia Federal porque acusado de prestar serviços a um grupo criminoso, vazando informações a fim de ajudar um comparsa a fugir da polícia, no caso um deputado acusado de ser próximo do Comando Vermelho.

A corrupção é escandalosamente tolerada —basta lembrar o caso das rachadinhas daquela famosa família. Está mais e mais conectada ao dito "crime comum". A corrupção vai além do suspeito de sempre, o Legislativo —vide as investigações de vendas de sentenças e outras negociatas em Tribunais de Justiça e no Superior Tribunal de Justiça.

A corrupção tornou-se problema institucional maior e crônico, por vias indiretas, mas gritantes. Nesta quarta, o ministro Gilmar Mendes, do STF, decidiu que o pedido de impeachment de ministros do Supremo deve partir da Procuradoria-Geral da República —o caso ainda vai para o plenário do tribunal. Se a decisão tem fundamento constitucional é assunto para entendidos. O que importa aqui, agora, é que se trata de mais um capítulo do embate entre STF e Congresso. O Senado reagiu e diz que pode votar emenda constitucional que trate do assunto.

Parlamentares, em particular da direita e da extrema direita, querem cabeças do Supremo. A julgar por outras votações relevantes, a maioria quer aprovar leis que a ajude a fugir da polícia e da Justiça. Vide o caso da PEC da Blindagem. Sim, o Supremo está fora da casinha institucional e politizado de modo indevido faz mais de década. Mas o limite constitucional da atuação do Judiciário é assunto da minoria parlamentar que se ocupa de assuntos públicos sérios.

Faz mais de dois anos, deputados e senadores estão incomodados com as investigações de roubança de emendas parlamentares. A tentativa de "blindagem" piorou com a lambança das emendas e depois de o ministro Flavio Dino elaborar um plano para colocar alguma ordem na casa.

Operações contra o crime organizado e contra o crime empresarial ou financeiro organizado frequentemente passam perto do mundo político: pegam amigos, assessores, parentes, sócios. Já pegaram alguns bagrinhos. Há tubarões nervosos. De qualquer modo, seja qual for o motivo, "político" ou outro, parlamentares querem evitar que a gentalha seja processada ou presa. Deputados da extrema direita fogem do país para escapar da polícia, com a tolerância do Congresso.

É uma nova crise de corrupção institucional, que ocorre quando descobrimos o tamanho das facções e suas relações com empresas e finanças. Pior, pode bem haver laços entre todos esses bandos.

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SIGILO NO CASO MASTER PRECISA DE REGRA DE CONTROLE

Alexa Salomão, Folha de S. Paulo

Sigilo, por definição, não é bom ou ruim, mas demanda critérios para definir em que circunstância e por quanto tempo deve ser aplicado

Banco lesou muita gente e fez conexões políticas, o que redobra a exigência de investigação transparente e efetiva

Como envolveria um deputado, a defesa de Daniel Vorcaro, do Master, pediu que investigações sobre o empresário e o banco, que caíram na Justiça Federal do Distrito Federal, fiquem no STF. O ministro Dias Toffoli puxou tudo para a corte, aplicando alto grau de sigilo, do tipo que faz o processo praticamente desaparecer da cena pública —fica disponível a um número bem restrito de acessos, que vão depender de autorização e serão monitorados.

Sigilo, por definição, não é bom ou ruim. Uma investigação pode ser mais efetiva nessa condição. Quando o caso envolve criança ou estupro, é apropriado para resguardar a vítima. No extremo oposto, porém, ausência de transparência e de publicidade pode omitir e livrar criminosos. Resguardar a impunidade.

Master é um caso de banco privado com amplo interesse público. Primeiro, porque lesou muita gente. Como mostrou a Folha, ao menos 18 instituições de previdência pública aplicaram R$ 1,87 bilhão no banco. O pecúlio de uma vida dos servidores de estados como Rio de Janeiro e Amapá, e municípios como Maceió, capital de Alagoas, ou do interior, como Araras, em São Paulo.

No caso do ressarcimento para quem investiu em seus CDBs, a previsão é que vai representar a maior operação de resgate da história do FGC (Fundo Garantidor de Créditos). É preciso honrar R$ 41 bilhões para cerca de 1,6 milhão de credores. Ainda caberá aos bancos reinjetar recursos para estabilizar o fundo.

O segundo ponto é que o Master estabeleceu muitas conexões com integrantes de Legislativos, Executivos, organismos de controles em muitas esferas. O eleitor tem direito de saber como se deram esses laços —e, aí, o sigilo teria enorme potencial de instrumentalização política.

Mais do que questionar o sigilo em si, é preciso entender como monitorar a razão de seu uso e por quanto tempo é aplicado —detalhes que a resolução mais recente sobre o tema não deixa claro.

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JUSPORN AWARDS 2025: A MAGISTOCRACIA SEM ROUPA

Conrado Hübner Mendes, Folha de S. Paulo

Quer democracia? Aguenta a juspornografia!

Nossos candidatos baixaram o nível até onde a porno-justiça goza

JusPorn Awards fecha esse bonito ano de volúpia magistocrática com festa. Na juspornografia, não há nada que não possa ficar mais libidinoso. Se você acredita que o STF, ao aplicar a lei a criminosos bem-dotados, salvou a democracia, o JusPorn Awards te dá entrada de camarote para a entrega do prêmio. Quer democracia? Aguenta a juspornografia! O JusPorn firma esse pacto com seus premiados e pede respeito.

Nossos candidatos baixaram o nível até onde a porno-justiça goza.

Na cerimônia ecumênica dos 50 anos do enforcamento de Vladimir Herzog por militares, a presidente do STM, ministra Maria Elizabeth Rocha, pediu perdão pelas omissões judiciais na ditadura. O ministro Carlos Amaral Oliveira, bacharel, mandou a ministra, mestre e doutora em direito, "estudar um pouco mais". E completou: "discordo do conteúdo, acho que tenho pleno direito a isso aí".

"Tenho pleno direito a isso aí" é o postulado juspornográfico do ano. Na sua qualidade porno-doutrinária, foi quase tão preciso quanto a confissão de alcova de Raimundo Nonato em campanha ao TJ do Ceará ano passado: "princípio da dignidade da pessoa humana, mas primeiro a dignidade remuneratória".

A aposentadoria de Luís Roberto Barroso atiçou personagens que expandem competências no escurinho da porno-legalidade. Discordam da competência presidencial de nomear ministro. Gilmar Mendes revelou que "STF é jogo para adultos", lugar para "pessoas corajosas e preparadas". E anunciou o corajoso e preparado Rodrigo Pacheco como seu candidato. Davi Alcolumbre, também de mãos dadas a Pacheco, rompeu com o governo. Dizem até que vai deixar a sabatina para depois das eleições.

Na categoria "não é lobby, é hobby", o JusPorn Commitee celebra a expansão global da juspornografia do encontro. Lide, Esfera e IDP repaginaram o circuito Elizabeth Arden dos encontros magistocráticos com muito recurso público e conjunção de interesses. Não é só Lisboa.

Na categoria "não é lobby, é empreendedorismo familiar", saudamos a expansão do business model magistocrático. A juspornografia prospera na magisto-family tradicional brasileira, formada por magisto-babies, magisto-wives e magisto-sisters. Nesse family-office, advogados parentes mostram o caminho da celeridade processual e da ampla defesa carnal.

Foi por isso também que Luiz Fux, patrono da magisto-family, acompanhado de outros ministros, autorizou "nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta ou colateral". Na reta ou na colateral, a juspornografia vai democratizando a jurisdição indecorosa.

Menção honrosa a ministro cuja empresa prospera em contratos rentáveis. Rendeu até "Almoço Empresarial Lide com André Mendonça" para "debater perspectivas e desafios do cenário econômico". Não é lobby, é coragem empresária!

E terminamos essa abertura com a categoria onde tudo cabe: "não é lobby, é sacanagem público-privada". Não porque Toffoli compartilhou camarote da final da Libertadores na boa companhia de Cláudio Castro e queremos saber mais quem. Mas sobretudo porque, para fazer porno-justiça à banqueirofilia, virou relator do caso de Vorcaro, patrocinador de eventos frequentados por ministros fora do país. Na primeira canetada, decretou sigilo no processo. Fiquemos de olhos bem fechados.

No exercício do nosso dever constitucional do voyeurismo, voltamos na semana que vem. Nem falamos ainda dos salários top-less!

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PAÍS VIVE CONFLITE ENTRE ABUSOS DO STF E TIRANIA PARLAMENTAR

Marcos Augusto Gonçalves, Folha de S. Paulo

Supremo acirra disputa política e institucional em provocação monocrática de Gilmar Mendes sobre impeachment de seus ministros

Congresso, empoderado em novo contexto político e institucional, pode reforçar atitudes legislativas delinquenciais em defesa própria

Assistimos a um perigoso aprofundamento das disputas entre Poderes. De um lado, um Legislativo empoderado que, à diferença das regras de regimes parlamentaristas, não se submete a dissoluções e formações de novos gabinetes —tampouco à convocação de eleições pelo chefe de Estado. É um parlamentarismo sem ônus, que ameaça, chantageia e tumultua, como fez Davi Alcolumbre no episódio da indicação de Jorge Messias ao Supremo.

De outro, um STF disposto a acirrar a disputa política e institucional de maneira explosiva, como atesta a decisão monocrática de Gilmar Mendes, em alegada defesa do tribunal contra ofensivas oportunistas do Legislativo relativas ao impeachment de magistrados.

Já sabemos da decadência do presidencialismo de coalizão e que o Congresso subiu de prateleira graças a fatores como fundos eleitorais e partidários, o advento de emendas impositivas e a deplorável terceirização do poder levada adiante pelo governo de Jair Bolsonaro, hoje, felizmente, encarcerado por conspiração golpista.

Já o Supremo, num contexto de inoperância da PGR sob Bolsonaro, com a cumplicidade parlamentar da direita fisiológica e radical, foi crucial na defesa da população na pandemia e do Estado de Direito ameaçado pelo golpismo no poder. Sob fogo cerrado, assumiu riscos de decisões questionáveis.

O fato de o Parlamento ter sido a instituição histórica que contrastou com o absolutismo monárquico na revolução inglesa do século 17 tende a favorecê-lo nas avaliações correntes sobre riscos de tiranias. O pensamento político contempla, porém, a ideia da tirania parlamentar, quando partidos e grupos se apoderam da instituição para impor leis de seu interesse e erguer o que se apresentaria como uma ditadura da maioria.

No Brasil, sob a hegemonia de um núcleo de congressistas que faz da carreira política uma plataforma para o patrimonialismo, a ocupação de cargos, o aparelhamento de órgãos públicos, o atendimento a lobbies espúrios e o enriquecimento pessoal, Senado e Câmara sentem-se à vontade para legislar em defesa própria e desafiar e lançar ameaças aos demais Poderes.

Esse agrupamento parlamentar une-se hoje em torno de uma agenda reacionária delinquencial em reação a Lula, que comanda a Polícia Federal e demonstra renovadas chances de êxito eleitoral. Mas é sobretudo contra o alcance de decisões do STF baseadas em investigações da PF que a maioria parlamentar se defende. Setores expressivos do Congresso, diga-se, passam a impressão de que não são apenas influenciados pelo crime organizado, mas de que são, eles próprios, o crime organizado.

São conhecidas as tentativas de cercear a atuação da PF e blindar parlamentares da Justiça. Hugo Motta, presidente da Câmara, protege deputados condenados em flagrante desafio ao Supremo. Analistas consideram a reação espalhafatosa de Alcolumbre à indicação de Messias como pressão em defesa de aliados expostos pelo caso do banco Master.

Gilmar Mendes tem motivos para temer medidas do Congresso e até argumentos para sua decisão, mas a medida monocrática não poderia ser mais infeliz.

À véspera de período eleitoral, apelos à contenção não encontram eco. Resta esperar que as festas de fim de ano propiciem tempo para alguma reflexão. Será?

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BACELLAR PRESO POR VAZAMENTO DE DADOS SIGILOSOS: QUEM AVISA AMIGO É ...

Jorge Pontes, VEJA

E pensar que o deputado estadual tem pretensões de se tornar governador do Rio de Janeiro

A prisão preventiva – ocorrida nesta última quarta-feira – do presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), deputado estadual Rodrigo Bacellar (União Brasil), nos dá a “profundidade da infiltração da criminalidade organizada no poder público fluminense”, conforme os termos do despacho do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), magistrado que decretou a medida.

Segundo investigações desenvolvidas pela Polícia Federal (PF), há fortes indícios de que Bacellar teria vazado (sic) dados sigilosos da operação policial que prendeu, em setembro, o dublê de deputado estadual Thiego Raimundo dos Santos Silva, que leva a alcunha de TH Joias.

O vazamento teria sido para o próprio TH Joias. De acordo com a PF, a conduta de Bacellar causou prejuízos a uma investigação sensível, que assinalava conexões de TH com o Comando Vermelho (CV).

Nesse ponto, a notícia carece de exatidão: Bacellar, um deputado estadual que preside a Alerj, isto é, um membro do Poder Legislativo estadual, definitivamente não se encontra entre os agentes público que possam receber ou deter informações sigilosas sobre operações policiais em andamento, principalmente aquelas de alta complexidade, que alvejam a delinquência organizada.  Logo, ele não “vazou” nada para TH Joias, quando muito apenas repassou dados anteriormente vazados criminosamente para ele próprio. O vazamento, em tese, ocorreu no momento em que presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro obteve a informação, provavelmente recebida de autoridades do Poder Executivo estadual.

E pensar que Bacellar tem pretensões de se tornar governador do Rio de Janeiro…

Para piorar a situação, ao que tudo indica, o governador Cláudio Castro foi (também) avisado – no dia anterior – por autoridades policiais estaduais, sobre a ação policial que prenderia TH Joias.

Esse aviso ao governador configura-se em um erro crasso. Agentes políticos, nesse estado de coisas que vivenciamos hoje em dia, quando o crime organizado vem avançando sobre a política, não devem ser jamais “avisados de véspera” sobre absolutamente nada que se refira a inquéritos policiais em andamento ou ações repressivas, principalmente aquelas que tem como alvo outros agentes políticos, e suas conexões com facções e delinquência organizada.

Definitivamente, não se conjuga o verbo avisar em atividades policiais…

Informações sobre datas e alvos de operações policiais devem apenas ser conhecidas pelos profissionais da persecução penal, isto é, se restringirão a policiais, membros do ministério público e juízes que funcionarem no caso. E caberá a esses profissionais zelar pela manutenção do sigilo.

Bom lembrar aqui, novamente, de que não há crime organizado sem a corrupção de agentes políticos.

Para que o combate à macrocriminalidade no Rio de Janeiro seja minimamente bem sucedida, ou compartimentamos – com vedação de escotilha de submarino – todas as ações e dados operacionais da polícia, ou trocamos a classe política do estado.

Jorge Pontes foi delegado da Polícia Federal e é formado pela FBI National Academy. Foi membro eleito do Comitê Executivo da Interpol em Lyon, França, e é co-autor do livro Crime.Gov - Quando Corrupção e Governo se Misturam.

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BOLSONARO INESQUECÍVEL

Ruy Castro, Folha de S. Paulo

Não prometi parar de escrever sobre ele; só quando finalmente estivesse preso

Bolsonaro já devia estar no currículo do ensino básico; as crianças precisam saber o que ele fez na Covid

Há uma semana, escrevi de novo aqui sobre Bolsonaro. Leitores estranharam e me cobraram por ter dito que não falaria mais dele. Mas eu nunca disse bem isso. O que prometi foi que, quando Bolsonaro fosse preso, deixaria de poluir este espaço com seu nome. E só naquela quinta-feira, com o jornal já nas ruas, foi-lhe dada a ordem de cumprimento da pena e Bolsonaro começou a contar com quantos dias se fazem 27 anos e três meses de cadeia.

Outros leitores me atribuíram uma fixação em Bolsonaro. De fato, devo ter escrito umas cem vezes ou mais sobre ele nos últimos sete anos. Mas tinha razão para isso. Bolsonaro, político rasteiro quando deputado —pertencia ao baixo clero do baixo clero—, beneficiou-se de uma trágica convergência política para ganhar a Presidência e se tornar o homem mais perigoso da nossa história republicana. Se chegasse ao segundo mandato, já tinha tudo preparado para eternizar-se no poder, do qual "só sairia morto", como não se cansou de dizer. Em quatro anos no Planalto, dedicou cada hora do dia a esse plano.

Outros leitores comentaram que "está na hora de esquecer Bolsonaro" e que "continuar a falar dele é dar-lhe uma importância que ele não merece". Pois penso exatamente o contrário. Não podemos esquecê-lo nunca. Bolsonaro precisa ser lembrado para sempre a fim de que não surjam novos bolsonaros —assim como as Forças Armadas não podem se esquecer de Augusto HelenoBraga Netto, Almir Garnier e outros que rebaixaram suas fardas a serviço de alguém que nunca honrara a dele.

A história é a espinha dorsal de um país, daí os regimes autoritários, de direita ou de esquerda, a reescreverem quando se instalam no poder. Todos aprenderam com George Orwell: quem controla o presente controla o passado; quem controla o passado controla o futuro.

Bolsonaro já devia começar a fazer parte do currículo do ensino básico. Os filhos de muitos mortos pela Covid, por exemplo, têm o direito de saber que seus pais morreram porque ele lhes negou a vacina.

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quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

ALCOLUMBRE AVACALHA UM RITUAL RESPEITADO

Elio Gaspari, O Globo

Uma crise sem um fiapo de interesse público

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, criou uma crise com o Planalto sem que haja nela um só fiapo de interesse público. Tudo por causa da escolha, por Lula, do advogado-geral da União, Jorge Messias, para a cadeira vaga no Supremo Tribunal Federal. Alcolumbre queria o ex-presidente do Senado Rodrigo Pacheco.

Aos fatos:

A prerrogativa constitucional de nomear ministros do STF é do presidente da República, e só dele. A preferência de Alcolumbre, como o pato ao tucupi, é uma escolha dele. A preferência de Lula por Messias é uma prerrogativa.

Faça-se de conta que Alcolumbre se aborreceu por não ter sido avisado. Essa manha é pueril.

(Em 1967, quando o marechal Castelo Branco telefonou a seu chefe da Casa Militar, general Ernesto Geisel, comunicando a escolha do deputado Adauto Lúcio Cardoso para o STF, ele ouviu e foi rápido e ríspido. Noutra versão, bateu o telefone. Meses antes, preferia cassá-lo a fechar o Congresso; Castelo fechou o Congresso e não cassou Adauto. Geisel detestou o deputado por toda a vida. Seja como for, o incidente só foi conhecido décadas depois.)

Assim como cabe ao presidente nomear os ministros da Corte, cabe ao Senado aceitá-los ou rejeitá-los. Messias precisa de 41 votos. Se não os tiver, paciência. Esse é o caminho que a Constituição dá aos descontentes. Se Messias não tiver os votos, restará a Lula a opção palmeirense, chorar baixinho.

Antes de ir a voto, Messias terá de passar por uma sabatina. Admitindo que ele não tem a qualificação necessária, Alcolumbre e os senadores descontentes poderão demonstrar seus pontos, expondo-o. Rosa Weber foi cruelmente sabatinada e passou com louvor pelo tribunal. Seu desempenho no 8 de Janeiro entrou para a História.

É falta de educação dizer que Messias tem mais currículo e conduta do que pelo menos dois ministros da Corte. (Alcolumbre já manteve André Mendonça na chuva por meses. Mendonça é hoje um dos melhores ministros do STF.)

Alcolumbre aborreceu-se com as críticas (e falsidades) que apareceram contra ele na blogosfera. O PT bem que podia recomendar boas maneiras a seus milicianos eletrônicos, mas isso faz parte da vida.

O presidente do Senado resolveu romper com o líder do governo, senador Jaques Wagner, pessoa conhecida por suas boas maneiras e pelo apuro de suas camisas. Num movimento simultâneo, o presidente da Câmara, deputado Hugo Motta, ficou de mal com o líder do PT na Câmara. Instituição bicentenária, o Parlamento brasileiro regrediu para arrufos de adolescentes.

Alcolumbre teve uma pesada divergência com setores do governo em torno da exploração de petróleo na Margem Equatorial e, até agora, prevaleceu cavalheirescamente. Encrencou com Jorge Messias avacalhando um ritual estabelecido e respeitado.

A zanga de Alcolumbre levou-o a desengavetar e aprovar uma pauta-bomba. É muita crise por pouco motivo. Arrufos desse tipo servem apenas para valorizar a ação de intermediários, oferecendo o papel de pacificadores na entrada, para cobrar caro na saída.

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DESAFORO FISCAL

Fábio Alves, O Estado de S. Paulo

Os investidores vão seguir aceitando desaforos nas contas públicas até as eleições de 2026?

Nos juros reais de 7,3% que o governo está pagando pelos títulos públicos com prazo de dez anos, já está precificada pelos investidores muita notícia ruim na área fiscal

O cenário para o risco fiscal do Brasil em 2026, ano da eleição presidencial, é o seguinte: os investidores vão seguir aceitando desaforos nas contas públicas, com o governo jogando “lixo” para debaixo do tapete, ou seja, manobrando para colocar gastos extras para fora dos limites fixados no arcabouço fiscal, enquanto sonham com um robusto ajuste a partir de 2027.

É o que se deduz dos juros reais de 7,3% que o governo está pagando pelos títulos públicos com prazo de dez anos. Nessa taxa, já está precificada pelos investidores muita notícia ruim na área fiscal, com a expectativa de aceleração na trajetória da dívida pública. O problema é que há um risco concreto para surpresas negativas, o que poderá fazer com que os juros reais de dez anos retornem, em 2026, aos patamares exorbitantes do início deste ano, quando a taxa desses papéis chegou perto de 8%.

E o que está precificado para 2026? Uma continuação do que se viu neste ano. O governo deve atingir o limite inferior de tolerância da meta fiscal, fazendo de tudo para aumentar a arrecadação de impostos e, ao mesmo tempo, conseguindo a permissão do Congresso ou do Judiciário para novas exceções de despesas extras aos limites da regra fiscal. Neste ano, foi assim com gastos das Forças Armadas, do ressarcimento das fraudes com o INSS e das medidas de socorro às empresas afetadas pelo tarifaço dos EUA. Sem falar da fatura com os precatórios.

Em 2025, a meta permite um déficit de até 0,25% do

PIB, mas os analistas projetam um rombo de 0,5%. Em 2026, a meta é de superávit primário de 0,25%, com uma banda inferior de resultado zero, mas o mercado prevê déficit de 0,6%. Ao seguir colocando qualquer despesa extra fora dos limites de gastos, o governo não precisaria mudar a meta de 2026, o que seria um trauma no ano de eleição. No pior dos cenários, a meta seria simplesmente descumprida, o que acionaria gatilhos previstos no arcabouço, mas essas restrições serão problemas de quem estiver no governo em 2027.

Esse cenário mudou de figura quando o Senado aprovou o projeto de lei que permite a aposentadoria diferenciada para agentes comunitários de saúde e de combate às endemias, num custo de, pelo menos, R$ 20 bilhões em dez anos. O texto agora vai para a Câmara. Há também a intenção do presidente Lula de aprovar a tarifa zero para o transporte público. Se tudo isso passar, o ajuste exigido a partir de 2027 será muito maior do que o estimado hoje. Não é só mais um gasto extra e temporário. Não vai dar para fazer vista grossa. O juro real precisará subir.

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POUSO SUAVE DO PIB VAI PESAR MENOS, COM INFLAÇÃO CONTIDA E EMPREGO AINDA FORTE

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

IBGE divulga nesta quinta número de crescimento da economia no terceiro trimestre

Afora aberrações, resultado não deve alterar estimativas de alta de uns 2,1% no ano

Até agora, não há indício de que a economia brasileira não vá crescer uns 2,1% neste ano. No ano passado, o PIB cresceu 3,4%, o melhor desempenho desde 2011 (descontada a distorção causada pela variação excessiva da epidemia). Depois da Grande Recessão (2014-2016) e antes da epidemia, de 2017 a 2019, a taxa média de crescimento havia sido a miséria de 1,4% ao ano. Vai ser pouso suave.

Nesta quinta-feira (4), o IBGE divulga o PIB no terceiro trimestre e eventuais revisões. Pelo que se chuta de modo mais ou menos informado, o número trimestral não deve alterar a previsão para o ano.

O resultado pode causar algum zunzum político se aparecer um zero (estatisticamente, um nada diferente de 0,1%). Quem sabe sobrevenha xingação mais estridente do Banco Central. Para o cidadão comum, que não sabe o que é PIB e não quer saber (quase todo mundo), o número em si é indiferente.

No que importa politicamente, a inflação recua, em particular a de alimentos, que andava pela casa de 8,1% ao ano em maio e baixou a 3,6% em novembro. O aumento do número de pessoas empregadas caiu para o ritmo de 0,9% ao ano, o mais fraco desde 2023, mas ainda é positivo. A média dos salários cresce perto de 4% ao ano. Não vai ser a NOTÍCIA de PIB zero que vai amolar a massa das pessoas.

Para constar, a previsão do Ministério da Fazenda é de crescimento de 2,2% para o PIB deste 2025. A mediana de 116 estimativas de "o mercado" é de 2,16% (são as previsões compiladas no Boletim Focus do BC). Parecidíssimas.

Para o terceiro trimestre, as estimativas mais consideráveis vão de crescimento de 0,1% a 0,3% (ante o trimestre anterior). Neste intervalo, os resultados não alterariam aquela previsão média de uns 2,1% para o ano, afora alguma aberração no miolo da numeralha das contas nacionais.

Pelos dados conhecidos, trata-se de uma economia que, com juros de arrocho, continuou a crescer a uma taxa respeitável, embora pequena para nossas necessidades (e não se sabe se sustentável). Respeitável e um tanto incompreensível.

O mundo do trabalho mudou de modo que ainda não entendemos direito (na nova oferta e demanda de emprego, na resposta ao garrote dos juros). A inflação está fora da meta, mas não descabelada e caindo devagar, com taxa de desemprego ainda em baixa histórica, com salários crescendo. As estimativas de crescimento do crédito, bancário ou no mercado de capitais, inclusive as calculadas por economistas de bancos, foram revisadas para cima. Mesmo com juros asfixiantes e com a grande ajuda de dólar em baixa no mundo e da desinflação chinesa, não está muito fácil de entender.

Pode aparecer surpresa mais relevante no setor de serviços ou no consumo privado ("das famílias"), que viria no ritmo mais baixo em mais de dois anos, estima-se.

Pode haver zunzum político, como já se disse, ainda mais se o PIB do quarto trimestre, a ser conhecido no ano que vem, vier no ritmo de zero ou em retração. Quanto a 2026, as previsões, ainda mais chutadas, ficam na casa de 1,7% (para a Fazenda, 2,4%). Teremos o efeito difícil de medir da redução do IR, de possível antecipação de pagamento de precatórios, do tamanho da safra, das andanças do preço do petróleo e do dos juros de mercado (que voltaram a cair de modo mais relevante no final de outubro).

Muito importante: saber que preço de dólar teremos. Um salto do dólar pode conter a velocidade da queda das taxas de juros em 2026.

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O BOLSONARISMO SOBREVIVE SEM BOLSONARO ?

Wilson Gomes, Folha de S. Paulo

A prisão abre disputa, mas não destrói a identidade construída em uma década

Mesmo tendo se organizado em torno de um indivíduo, ele não é só um personalismo

E agora —com Bolsonaro fraco, preso e sem um herdeiro ungido—, o que será do bolsonarismo? A identidade política que moldou a direita na última década se dissolve? Fragmenta-se entre os filhos que tentam manter a marca como patrimônio familiar e os políticos que disputam o espólio eleitoral?

A dúvida só faz sentido porque nem todos estão convencidos de que o bolsonarismo exista como fenômeno substantivo ou que resista com o seu líder nessa condição.

Essas leituras minimalistas ignoram o que sabemos sobre identidades políticas. A psicologia social —especialmente a Teoria da Identidade Social— mostra que adesões duráveis não se reduzem ao carisma de um líder nem se desfazem automaticamente quando ele cai ou morre.

Uma identidade pode se organizar de muitas maneiras.

Ela pode ser baseada no líder, quando uma figura singular concentra e encarna o modo ideal de ser do grupo, funcionando como o rosto e a voz por meio dos quais os membros se reconhecem. Pode ser baseada em valores, quando a coesão depende de um código moral compartilhado —ordem, religião, anticorrupção, patriotismo, defesa da família— cuja força simbólica mantém unidos até aqueles que divergem em outros pontos. Pode ser baseada em laços relacionais, quando o pertencimento nasce da convivência cotidiana: redes, grupos de WhatsApp, igrejas, clubes, pequenos coletivos onde se cria um sentimento de comunidade. Pode ser baseada em uma missão comum, quando os membros acreditam ter um dever histórico —salvar o país, derrotar o inimigo interno, restaurar a ordem— que dá sentido e direção à identidade. E pode ser baseada numa narrativa sobre o mundo, quando o grupo interpreta os acontecimentos com o mesmo mapa cognitivo, lendo cada episódio como parte de uma mesma história de decadência, traição ou redenção.

O bolsonarismo combina todas essas bases, e é exatamente essa acumulação que explica sua resistência. É uma identidade baseada no líder, claro, mas não só. Se uma camada falha, outra segura. Se o líder é derrotado, permanecem os valores. Se os valores são contestados, a comunidade sustenta. Se a comunidade vacila, a missão sobrevive. E, quando nada disso parece suficiente, resta a narrativa que organiza a percepção dos fatos. É essa redundância identitária que faz com que o movimento sobreviva a escândalos, fracassos e interdições jurídicas.

No Brasil, isso tem uma genealogia clara. Antes de Bolsonaro, já existia um fundo emocional —antipetismo visceral, indignação moral, rejeição à política, sentimento de corrupção generalizada. Depois veio a camada interpretativa: a leitura homogênea dos eventos da crise, sempre em chave de condenação da esquerda. Em seguida, valores moralizados, vínculos comunitários, a sensação de missão redentora. Bolsonaro chegou por último, mas com a força simbólica de dar rosto, corpo e gesto a tudo isso. O movimento não nasce dele; ele é a forma que o movimento encontrou de existir.

É por isso que, mesmo que o bolsonarismo tenha se organizado em torno de um indivíduo, ele não é apenas um personalismo. As pessoas não atravessam o país, rompem amizades, brigam com a família e arriscam a própria reputação apenas por causa de ideias. Elas projetam em Bolsonaro sentimentos e esperanças acumulados ao longo de anos. Há ali lealdade, submissão, crença, afinidades eletivas profundas —nada disso simplesmente se transfere. Hoje, nenhum nome da direita se aproxima da capacidade de Bolsonaro de concentrar essa constelação de afetos e percepções. É por isso que a disputa entre filhos e pretendentes não será simples.

Voltemos, então, à pergunta inicial. O bolsonarismo se dissolve com o chefe na cadeia e encarnando um coitadismo embaraçante? Não automaticamente. A prisão não apaga a identidade nem transfere eleitores como se fossem coisas. Pode haver fragmentação, disputas fratricidas, períodos de confusão sucessória.

Pode surgir um guardador de lugar, alguém que jure manter quentinho o posto até a volta do patriarca. A comunidade de identificação pode se transformar, pode mudar de intensidade, pode até atravessar fases de desorientação.

Mas dissolver-se? Apenas se as camadas que a sustentam forem corroídas. E isso não acontece por decreto. Nem por ausência física do líder. Nem pela entrada de substitutos improvisados. A identidade leva anos para se formar e pode levar anos para se desfazer.

O futuro do bolsonarismo está em aberto, mas uma coisa não está: ele é mais espesso, mais entranhado e tem mais base social do que muitos gostariam de admitir.

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PASTORES NO SENADO

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Apoiadores de Messias querem levar clérigos ao Congresso para pressionar por aprovação

Lógica religiosa, que opera com absolutos morais, não combina bem com lógica da política, que privilegia negociações

Deu na Folha que aliados de Jorge Messias pretendem abarrotar o Senado de pastores para pressionar os parlamentares a aprovarem seu nome para o STF.

Messias é evangélico e seus apoiadores imaginam que a assembleia de clérigos poderá amainar a resistência de senadores a seu nome, que é muito mais política do que religiosa, curricular ou pessoal.

Misturar religião com política é uma combinação complicada. O ideal, na democracia, seria separar inteiramente as duas esferas. Mas é impossível fazer isso pela simples razão de que ambas as atividades são exercidas por humanos. E todo humano tem uma identidade religiosa. Mesmo eu, ateu irredutível e desprovido de qualquer traço identificável de espiritualidade, ocupo um lugar no espectro da religiosidade, que vai da descrença absoluta à devoção compulsiva.

A relação entre fé e política no contexto da democracia é bastante assimétrica. Os direitos fundamentais fazem bem às religiões, desde que estas renunciem a eventuais pretensões hegemônicas. É só quando a liberdade de culto está assegurada que crenças minoritárias podem existir e prosperar.

Já a inversa não é verdadeira. A lógica religiosa não faz muito bem à política. A ideia básica por trás da política é pacificar conflitos por meio de negociações e concessões recíprocas.

Religiões, porém, costumam operar com absolutos morais. Se foi Deus que definiu desde o começo dos tempos o que é certo e o que é errado e não cabe a nenhum mortal questionar a autoridade divina, não sobra muito espaço para negociação.

A situação só não é impossível porque são poucos os fiéis que conduzem suas ações com total zelo religioso. Quando o fazem, se convertem nos Torquemadas que tanto sofrimento infligiram à humanidade. Paradoxalmente, para a religião funcionar para o bem, precisa ser abraçada sem convicção absoluta.

Congresso tomado por pastores não é uma imagem que me tranquilize muito.

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MORADA DE TRANSGRESSÕES

Dora Kramer, Folha de S. Paulo

O passivo de infrações à lei e ao regimento se acumula sem que o presidente da Câmara se oponha

Hugo Motta não é permissivo sozinho: tem a colaboração da Mesa Diretora e do colégio de líderes

Como chefe da Câmara, o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) tem se mostrado um compassivo presidente de agremiação corporativa conivente com ilícitos —legais e regimentais— em defesa de seus filiados.

Do mais grave ao mais imperdoável na escala de inadmissível tolerância, temos os casos de descumprimento de ordem judicial até a impunidade de promotores de motim, passando pela convivência pacífica com deputado em exercício no exterior.

Motta não presta esse desserviço sozinho. Tem a colaboração da Mesa Diretora e do colégio de líderes da Casa —note-se— de Leis. Certamente há os deputados e deputadas que discordam, mas só poderiam reclamar de ser postos no mesmo saco caso se organizassem para denunciar o descalabro.

Carla Zambelli (PL-SP) e Alexandre Ramagem (PL-RJ) estão condenados pelo Supremo Tribunal Federal à prisão e consequente perda de mandato a ser confirmada pela direção da Câmara. Uma presa na Itália, outro fugitivo nos Estados Unidos.

O caso de Zambelli zanza há meses na Câmara e, ainda que a Comissão de Constituição e Justiça se manifeste, falta o plenário, que, a rigor, não precisaria dar opinião. Sobre Ramagem, Motta ainda estuda o rito. Se não for semelhante ao da deputada, terá sido por exposição da vergonha no noticiário.

Eduardo Bolsonaro (PL-SP) nos EUA, assim como os outros, segue gerando despesas com os gabinetes. O corte de salários é o mínimo. Foi proibido de votar, mas na primeira chance valeu-se do sistema do Senado para desafiar a decisão da Câmara. Ele não é antiético, decidiu semanas atrás o Conselho —note-se— de Ética.

Daqueles muitos promotores de motim de agosto último, temos notícia de apenas três passíveis de leves punições que ainda não foram aplicadas. O presidente não parece se incomodar por ter sido tratado aos trancos pelos companheiros ao tentar presidir uma sessão.

Talvez Motta não se dê conta, mas a leniência no comando o leva à conivência e a Câmara a ser morada de transgressões.

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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

MICHELLE NO OLHO DO FURACÃO

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

Crise com Michelle confirma que todos brigam e ninguém tem razão no PL e na família

Ex-primeira-dama entrou no olho do furacão e não tem autonomia nem mais a força do marido, preso e inelegível, para sair por aí desautorizando articulações

O PL vai meter a colher hoje em mais uma crise na família Bolsonaro, que enveredou ainda mais profundamente por um caminho que pode ser definido como “todos brigam e ninguém tem razão”. Depois de meses de desgaste com as verdades sobre o golpe do patriarca Jair, as graves inconsequências do 03 Eduardo e, por último, o descontrole do até então controlado 01 Flávio, quem entra no olho do furacão é Michelle.

O presidente do partido, Valdemar Costa Neto, cortou o cargo e o salário de R$ 46 mil de Jair no PL depois da prisão definitiva, mas não mexeu nos de Michelle, importante ponte com o eleitorado feminino e evangélico que a leva aos vários cantos do País, à chance de disputar o Senado pelo DF e até – quem diria? – às pesquisas presidenciais de 2026.

Michelle, porém, não tem autonomia nem mais a força do marido, preso e inelegível, para sair por aí desautorizando as articulações estaduais do PL. Foi o que ela fez, em público, em plena Fortaleza, contra a aliança com Ciro Gomes, que volta ao PSDB com o objetivo de disputar mais um mandato ao governo do Ceará.

Ela tem lá suas razões, já que Ciro, candidato à Presidência em 2022, disse poucas e boas contra Bolsonaro e classificou como “crime de responsabilidade”, sujeito a cassação, a reunião que o então presidente convocou com embaixadores estrangeiros para difamar o Brasil, as instituições, seus representantes e as urnas eletrônicas. Ciro era do PDT, que entrou com a ação no TSE que tornou Bolsonaro inelegível.

Para o PL e o pragmático Costa Neto, porém, isso é coisa do passado, aliás, como o próprio Bolsonaro e seu filho Eduardo, que já foi o deputado federal mais votado do País, em 2018, mas está nos EUA, sem trabalhar, vivendo à custa dos brasileiros. Para o partido e seu presidente, interessa mais ter uma chapa forte no Ceará, Estado com 7 milhões de eleitores em pleno Nordeste, o bolsão lulista do País.

O problema, porém, é que a reunião de hoje terá, além do próprio Costa Neto, Flávio Bolsonaro, que assumiu a linha de frente da família, e o líder da oposição no Senado, Rogério Marinho, que não apenas foi ministro no governo Bolsonaro como se mantém leal a ele e é um dos maiores críticos do julgamento no STF.

Logo, várias respostas poderão sair do encontro: até que ponto o PL vai com Bolsonaro ou apenas tirar proveito do espólio eleitoral? A quantas andam as relações entre Flávio e Michelle e entre os membros da família? E, afinal, para onde vai a crise na família Bolsonaro e na cúpula bolsonarista, que tanto favoreceu Lula e já projeta a disputa do Centrão contra a esquerda em 2026? Vão jurar paz eterna, mas o pau está quebrando.

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DEMOCRACIA FICARÁ MAIS POBRE SE CONGRESSO NÃO SE RENOVAR

Artigo de Fernando Gabeira

Parlamentares brasileiros, parabéns: vocês arrasaram. Numa só noite derrubaram os vetos de Lula ao projeto da devastação e demoliram o alicerce de nossa legislação ambiental.

Verdade é que foram cautelosos no timing de destruir as regras de licenciamento. Não foi durante a COP, para que os estrangeiros não vissem nosso atraso. Naturalmente, imaginam que as notícias não correm rápido, nem que temos concorrentes internacionais a nosso agronegócio. Daqui a pouco, poderíamos firmar o acordo entre Mercosul e União Europeia. A contribuição de vocês pode ser decisiva para o fracasso.

Vivemos semanas estranhas. Por delicadeza, veria nelas certo realismo fantástico dos trópicos. Mas seria comunicar uma aura romântica a algo que me parece pura degradação de nossa vida política.

Uma empresa conseguiu sonegar R$ 26 bilhões em impostos. Só agora nos damos conta de que um projeto para punir esses devedores contumazes dorme na gaveta de Hugo Motta. E dorme com uma classificação de urgência, algo contraditório com o sono profundo.

Da mesma forma, descobrimos que o Banco Master deu um rombo de R$ 12 bilhões. Todo mundo sabia, todo mundo desconfiava, mas nada foi feito. O dono do banco teve de passar alguns dias na cadeia, nada comparado, é claro, às longas penas de quem rouba um sabonete no supermercado.

Talvez a estranheza se aproxime mais do realismo fantástico no caso do general Augusto Heleno. Condenado, informou, ao ser preso, ter sido diagnosticado em 2018 com o mal de Alzheimer. Deve haver um engano, um lapso de memória.

De lá para hoje, passaram sete anos. Conheci Heleno no Haiti; mais tarde visitei os ianomâmis ao seu lado, quando era comandante na Amazônia. Não subestimo seu domínio de línguas estrangeiras, nem seu conhecimento de nosso país. Mas, sinceramente, se for verdade, em 2018, ano em que Bolsonaro foi eleito, Heleno não tinha condições de supervisionar a inteligência do país, muito menos a segurança do presidente. Teríamos vivido esta anomalia secreta: o chefe da inteligência nacional sofrendo de sérios problemas cognitivos.

Apesar de falar muito no avanço democrático que foi a condenação da trama do golpe, nosso sistema continua enfraquecendo. O caso da indicação de um novo ministro do STF é típico. Lula optou por escolher alguém de sua confiança máxima. Mas não é criticado pelo critério personalista. Ao contrário, Davi Alcolumbre quer indicar alguém de sua confiança. Quer disputar com Lula uma prerrogativa que pertence ao presidente. Diante disso, surgem várias rebeliões no Congresso, aprovando pautas-bomba destinadas a estourar o Orçamento.

A redemocratização viveu um sobressalto em 2018. Mas os avisos já haviam sido dados nas manifestações de 2013. Se não fizermos um esforço extraordinário para renovar o Congresso, a democracia no Brasil continuará empobrecendo. Pode não cair, mas ninguém vai querer mover uma palha para mantê-la de pé.

Estas semanas nos mostram discretamente o que 2013 revelou com o impacto do povo na rua. Ignorar pode nos custar muito caro.

Artigo publicado no jornal O Globo em 02 /12 / 2025

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