Apesar de tardio, agora é ainda mais necessário o desejo
de que os brasileiros coloquem o Brasil acima dos interesses de grupos
corporativos
Neste primeiro dia do ano, desejo que meu país seja
descoberto por seus cidadãos. Isso deveria ter ocorrido há décadas, ou séculos,
para que o Brasil tivesse seu berço: um sistema nacional único de educação com
qualidade e equidade para todas as nossas crianças, independentemente de renda
e endereço. Mas não aconteceu. Por isso, apesar de tardio, agora é ainda mais
necessário o desejo de que os brasileiros coloquem o Brasil acima dos
interesses de grupos corporativos.
Desde o início, somos divididos socialmente entre escravos e
senhores, ricos e pobres, doutores e analfabetos, favelas e condomínios e,
politicamente, em sindicatos, partidos, igrejas, municípios, estados, cada um
se colocando acima do país. No último mês, esse divisionismo se mostrou
descaradamente diante da constatação de que esgotamos os recursos fiscais do
país. Mas, quando o ministro da Fazenda apresenta proposta para equilibrar as
contas, cada setor da sociedade se levanta e diz: "Não no meu pedaço do
orçamento".
Os donos de salários astronômicos não
aceitam tocar em qualquer um dos penduricalhos que lhes permite romper o teto
constitucional para saquear o Tesouro Nacional. A corporação militar, que
deveria dar exemplo de patriotismo, não aceitou abrir mão da aposentadoria, nem
mesmo para integrantes cuja carreira se passa quase toda em escritórios e sem
riscos de vida. Dentro do próprio governo, surgiram sugestões para desidratar a
proposta inicial do seu ministro. Em nome de votos e de interesses que defende,
o partido do ministro adotou a regra "no meu pedaço não".
Os agentes do mercado — investidores, especuladores,
consumidores, vendedores — não fizeram gestos para colocar o Brasil acima do
lucro individual, com sacrifícios de todos para manter a confiança necessária
nas nossas finanças, sem o que ameaçamos o valor do real e aumentamos a taxa de
juros. Os parlamentares chantagearam o governo ao condicionarem só votar na
necessária redução dos gastos estatais se houvesse aumento no valor destinado a
suas emendas para comprar votos com dinheiro público; e, irresponsável e
desastradamente, fizeram pedaladas jurídicas para burlar a lei e enganar a
população.
Nós, brasilienses, unimos-nos contra a proposta do ministro.
Pela primeira vez em décadas, partidos que, até a véspera, digladiavam-se,
agora tiveram uma só voz: "No valor do Fundo Constitucional do DF não se
toca". Não levamos em conta nossa responsabilidade com os demais 200
milhões de brasileiros aos quais servimos como a capital federal e, por isso,
devem nos financiar. Não pedimos desculpas pelo fato de que a Secretaria de
Segurança, financiada pelo Brasil, participou da tentativa de golpe do 8 de
janeiro, ao ser comandada por golpistas que estão em julgamento; tampouco
nos desculpamos pelo fato de não sabermos até hoje onde estava nosso governador
naquele dia.
Não explicamos aos brasileiros porque nossa educação, que
eles financiam com mais recursos do que usam para suas próprias crianças, não é
mais um exemplo de qualidade. Tampouco explicamos como recebemos recursos dos
brasileiros para cuidarmos da saúde na capital deles, e, no ano passado, fomos
campeões em casos de dengue, ao ponto de ameaçar o bom funcionamento da máquina
do governo federal e das embaixadas; não explicamos aos irmãos goianos o porquê
de eles financiarem nosso sistema de saúde e doentes nossos buscarem apoio
médico em suas cidades. Corretamente, defendemos a absoluta necessidade da
manutenção do fundo — que a proposta do ministro nunca ameaçou — mas raros
entre nós propuseram uma auditoria para que nossa Câmara Legislativa e nosso
Tribunal de Contas indicassem se e onde seria possível haver maior eficiência,
menos desperdício, menos corrupção, para reduzir o sacrifício do resto do
Brasil e ajudar no necessário ajuste nas contas públicas do país.
Não importou o tamanho da crise, o bolso individual
continuou na frente do Tesouro Nacional, todo saque aceito, desde que não se
toque no interesse pessoal de cada um. O sentimento "no meu pedaço do
orçamento não" foi usado pelos que têm poder para vitimar 50 milhões de
crianças, porque o Fundeb será reduzido; aos milhões que recebem salário
mínimo, porque seus reajustes serão menores; milhões de pobres perderão porque
parte dos seus benefícios serão cortados; aos que recebem até R$ 5 mil por mês,
porque a isenção que receberiam foi postergada para algum momento no futuro. Em
uma atitude suicida, porque o câncer de um país é sua divisão em pedaços que
não abrem mão de interesses específicos e imediatos em favor do conjunto do
país e seu futuro.
*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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