Ali pelo final da ditadura militar, as bancas com livros nos
corredores das universidades vinham povoadas de Trótski, Lênin e até Rosa
Luxemburgo. Ou Karl Liebknecht. Como refresco, havia a redescoberta (para a
minha geração) de Oswald de Andrade e a leitura silenciosa de “Poema sujo” de
Ferreira Gullar. Apesar da bela sedição de ambos os poetas, havia um ar
restrito e nada múltiplo para o pensamento. Mas estávamos numa guerra, e
excessos podiam ser tolerados. O compromisso: abater o governo autoritário.
Nos 40 anos da redemocratização, a mais longa convivência do
brasileiro com a democracia no período republicano, apesar do fétido 8 de
Janeiro, no lugar de Trótski e Lênin, entrou em cena a literatura racial e de
gênero de cepa nacional numa imitação calamitosa da esquerda de Nova York.
E preguiçosa: James Baldwin ou Amiri Baraka (nascido LeRoi
Jones), dois autores negros de primeira linha, ícones nos inquietos 1960, não
produziam títulos de espírito óbvio ou ativista. Por aqui não encontraram eco,
onde a geografia ideológica se viu aparentada de algo vizinho ao grupo Panteras
Negras.
Não exagero, dou exemplos. O documentário
“I am not your negro” é baseado no que seria um roteiro inédito de James
Baldwin. Tendo-o como personagem, traz o testemunho do minado ambiente político
entre os principais líderes na luta pelos direitos civis — de Martin Luther
King a Malcolm X e os Panteras Negras, estes últimos estando à direita no
espectro ideológico: armados até os dentes e exímios destruidores de reputação.
Ao mesmo tempo, intolerantes à ideia de convívio social com os brancos. Não
havia simpatia — o que pode ser visto como reprovação — em relação aos casais
mistos.
Pois nos 40 anos da redemocratização, em nome de vocalizada
diversidade, as bancadas das livrarias surgem como o microcosmo identitário das
discussões pautadas no meio progressista. Pela primeira vez pode-se falar na
categoria de literatura racial e de gênero. Sem possuir um senso estético, são
produzidos à luz de uma arte tipicamente engajada como ditava sob chicote
Andrei Jdanov nos anos stalinistas. Chame de “realismo socialista”.
Negros na literatura brasileira existem desde sempre — de
Machado a Castro Alves e Mário de Andrade até Solano Trindade. Como também
mulheres — de Francisca Júlia e Maura Lopes Cançado a Lygia Fagundes Telles e
Adélia Prado. Todos com uma literatura recheada de exemplos de questões raciais
ou feministas. Do poeta negro Cruz e Sousa, “O emparedado”, de 1898:
— E as estranhas paredes hão de subir longas, negras,
terríficas.
Cruel. Diz sobre a realidade da acorrentada escravidão.
O ideário ativista da literatura racial e de gênero se apoia
no curioso mandamento do lugar de fala; por exemplo, só um autor desfavorecido
pode criar um personagem socialmente prejudicado. Apenas um(a) escritor(a) gay
possui legitimidade para imaginar um(a) personagem homossexual. Chame de
reserva de mercado. Ano passado, o escritor negro Itamar Vieira Junior
protestou por um de seus livros ser resenhado (e malfalado) por uma crítica
branca. No seu arrazoado, só poderia ser avaliado por um negro. Buscou um
compadrio. Os Panteras Negras agradecem. A resenha era ainda tolerante, já que
a obra é uma tese, não literatura de ficção.
Por tal luz, Émile Zola não poderia ter escrito “Germinal”,
sobre o trabalho nas minas de carvão. Desconheço se algum mineiro teria
alcançado a mesma sensibilidade. Herman Melville nunca pescou uma sardinha, mas
agradeço diariamente por seu “Moby Dick”. Victor Hugo jamais roubou alguma
coisa na feira, mas bastou sua genialidade para transformar “Os miseráveis”
numa obra-prima dos desmandos da protoindustrialização. Por conta do talento,
não precisariam recorrer à nomeação identitária, do tipo: Fulano, escritor,
homossexual e favelado.
Baseadas em obras literárias, o sucesso das produções “Ainda
estou aqui” e “Cem anos de solidão”, junto do best-seller “Tudo é rio”, de
Carla Madeira, ajuda a desmontar o marketing da literatura engajada dos últimos
anos. Todos na lista dos mais vendidos, não trazem em seus enredos os típicos
mandamentos da estética preconizada pelo realismo socialista. Os personagens
surgem devastados na complexidade comum aos simples mortais; podem ser bons,
mas possuem seus defeitos; talvez heróis, mas culpados; atormentados pela
finitude da vida, só que por vezes esperançosos. Humanos, enfim. Dá gosto,
porque literatura é diferente de tese ou panfleto.
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