Presidente argentino vive agora um dilema, de olho nas
eleições para o Congresso, ciente de que ocasiões anteriores de
supervalorização do peso foram seguidas por depreciações abruptas, fuga de
capitais e turbulências
O choque econômico executado por Javier Milei em seu
primeiro ano como presidente da Argentina está começando a surtir o efeito
desejado. A inflação anual, que fechou 2023 em 211,4%, recuou para 117,8% no
ano passado, como resultado do drástico ajuste nas contas públicas imposto pelo
governo, que segue com amplo apoio popular, mesmo com o alto custo social de
suas polêmicas medidas. Apesar do prognóstico animador para um país marcado por
crises sucessivas e planos fracassados, a supervalorização do peso, combinada
com as turbulências externas, impõem desafios aos próximos passos da
estabilização.
Embora a inflação anual ainda permaneça em três dígitos,
único caso entre os países da América Latina em 2024, o Índice de Preços ao
Consumidor (IPC) encerrou dezembro em alta de 2,7%. Trata-se de uma
desaceleração mais do que significativa ante dezembro de 2023, quando o IPC foi
de 25,5% logo após a posse.
O resultado é expressivo, ainda que o país esteja longe de
“pulverizar a inflação”, como celebrou o ministro da Economia, Luis Caputo, e
decorre do programa implementado para domar a rápida escalada dos preços que
colocava o país à beira de uma hiperinflação. A estratégia escolhida foi
combinar um programa de austeridade sem precedentes em tempos de paz e uma
série de medidas para desregular a economia, com um regime pouco ortodoxo de
depreciação gradual do peso (“crawling peg”), implementado após uma megadesvalorização
da moeda.
De um lado, o corte nos gastos federais permitiu uma
consolidação fiscal de quase 5% do Produto Interno Bruto (PIB) e fortaleceu as
contas públicas, que tiveram um superávit primário de 1,8% do PIB, o primeiro
desde 2010. O rígido pacote de austeridade desacelerou a atividade econômica e
causou uma forte recessão, com queda estimada de 2,8%, segundo o Fundo
Monetário Internacional (FMI). Milei também implementou uma política de
emissões quase zero de moeda pelo Banco Central para o pagamento das dívidas,
limitando o crescimento da base monetária local e reduzindo uma grande fonte de
pressão inflacionária. Já a depreciação gradual do peso, de 2% ao mês, foi
efetiva em atacar outro grave problema: as múltiplas cotações do dólar. Com o
“crawling peg”, o governo conseguiu reduzir para menos de 20%, nível
historicamente baixo, a diferença entre a cotação oficial do dólar e a do
“dólar blue”, negociado no mercado paralelo e usado como parâmetro no cotidiano
dos argentinos.
As medidas, especialmente o “crawling peg”, fizeram com que
o peso se valorizasse mais do que qualquer outra moeda em termos reais em 2024.
Esta forte apreciação, somada aos controles cambiais herdados, agora está
trazendo problemas à economia e se tornando um motivo de preocupação para a
inflação. As exportações, por exemplo, podem ser prejudicadas, já que os
produtos argentinos se tornam menos competitivos no mercado, e as importações,
por sua vez, ficam mais baratas, com impacto sobre a conta corrente. Em 2024 a
Argentina teve um superávit recorde de US$ 18,9 bilhões. O país ficou muito
caro, o que já provocou queda expressiva no fluxo de turistas, outra fonte
importante de entrada de moedas fortes para a economia.
Milei vive agora um dilema, de olho nas eleições para o
Congresso em outubro deste ano, ciente de que ocasiões anteriores de
supervalorização do peso foram seguidas por depreciações abruptas, fuga de
capitais e turbulências. Para consolidar a queda celebrada do IPC em 2024 e
garantir a manutenção do apoio popular, o governo anunciou a redução do ritmo
de depreciação do peso para 1% ao mês, mas hesita em acabar com outros
controles cambiais por temer uma nova disparada da inflação, como ocorreu
quando o ex-presidente Mauricio Macri iniciou movimento similar, culminando em
um quase default da dívida e no resgate histórico de US$ 57 bilhões por parte
do FMI.
Embora haja otimismo sobre as perspectivas de crescimento do
país neste ano, que pode chegar a 5%, e para inflação, que deve cair para 26%,
segundo estimativas privadas, a incerteza sobre as restrições cambiais afasta
investidores estrangeiros, pois a manutenção das regras implica restrições à
eventual saída do capital, e dificulta a reconstrução das frágeis reservas
internacionais do Banco Central, ainda longe do suficiente para garantir a
promessa de Milei de dolarizar a economia. A situação já foi pior, no entanto.
Um programa de incentivo à repatriação de recursos de argentinos no exterior
trouxe US$ 35 bilhões ao país o que, somado ao superávit comercial, deu mais
fôlego aos planos de Milei.
O cenário externo também traz dúvidas. Embora Donald Trump
seja um aliado de Milei e possa ajudá-lo nas renegociações do acordo com o FMI
- que aplaudiu os resultados da economia em 2024 -, suas promessas de campanha
tendem a embaralhar o comércio global e fortalecer o dólar, o que colocaria
mais pressão sobre a estratégia cambial da Casa Rosada. As medidas também podem
acelerar o enfraquecimento do real, o que teria um impacto direto sobre as
receitas de exportação da Argentina, que é importante parceiro comercial do
Brasil e concorrente em diversos setores, como o agronegócio.
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