Como mostra Latinobarômetro, confiança na democracia
resiste, mas tentação iliberal também. Após 40 anos de redemocratização, a
região precisa amadurecer sua vocação política
Há não muito tempo, o futuro da América Latina era
promissor. Nos anos 2000, o superciclo das commodities viabilizou novos
programas sociais. A redução da desigualdade reforçava a redemocratização. Mas
os governantes não empenharam seu capital político em modernizações estruturais
(políticas, tributárias, administrativas) e desperdiçaram o capital físico que
deveria ter sido investido nas engrenagens de um crescimento sustentável, como
infraestrutura, educação, produtividade e diversificação econômica.
Se aquele círculo virtuoso era frágil, o atual círculo
vicioso é forte. Uma década de estagnação acentuou a frustração com a falta de
oportunidades, especialmente entre os jovens. A fúria popular se voltou não só
contra os políticos incumbentes, mas contra a política. Reacende-se a esperança
em salvacionistas autoritários. Mas, além de serem tão ou mais ineficientes que
seus pares moderados, eles dilapidam o Estado Democrático de Direito.
Não surpreende que a confiança na democracia seja
ambivalente. Em 2023, o Latinobarômetro, uma pesquisa anual de opinião pública
em 18 países da América Latina, estampava o título A recessão democrática. Em
contraste, a última edição celebra uma Democracia resiliente. “O ano de 2024
nos surpreende com aumento de quatro pontos porcentuais de apoio à democracia,
chegando a 52%, um recorde de expectativas econômicas pessoais positivas e um
aumento no apoio à economia de mercado.”
E, no entanto, o apoio à democracia ainda está abaixo da
média da década de 2007 a 2017. A satisfação com o funcionamento da democracia
aumentou, mas dois terços dos latino-americanos permanecem descontentes. Quatro
em dez acreditam que seu país pode funcionar sem partidos, Parlamento ou
oposição. Mais da metade diz que não se incomodaria com um governo autocrático,
desde que resolvesse os problemas do país. Mais alarmante: entre os que se
dizem de classe alta, essa proporção é maior (61%) e, quanto mais jovens os
latino-americanos, mais propensos são ao autoritarismo.
A mescla de desconfiança e esperança, as oscilações e
contradições refletem uma cidadania incompleta. A evolução da cidadania
celebrizada por T.H. Marshall – a cidadania civil no séc. 18, a política no
séc. 19 e a socioeconômica no século 20 – ainda está longe de ser consumada na
América Latina do século 21.
Só há quatro décadas os latino-americanos recuperaram seus
direitos políticos. A combinação de privilégios oligopolistas e protecionismo
perpetua a baixa produtividade do setor privado e a falta de investimentos e
inovação, que são chave para a mistura tóxica de desigualdade e baixo
crescimento – tornada explosiva pela violência política, criminal e social.
Na esfera pública, o centro colapsa, a direita, em nome da
“liberdade”, se aferra a regalias elitistas e a esquerda, em nome da
“igualdade”, insiste na tara estatista. A política é, a um tempo, polarizada
entre demagogos populistas, fragmentada entre partidos amorfos e paroquiais e
inflamada pela agitação das redes sociais.
A armadilha do subdesenvolvimento é tanto mais dramática
porque não faltam recursos para desarmá-la. Afastada de conflitos geopolíticos
graves, a América Latina é rica em culturas multiétnicas e em alimentos,
minérios e energia renovável que a colocam numa posição-chave para tirar
proveito de grandes tendências globais, como a disputa entre China e EUA ou a
alta das commodities, e solucionar desafios do século 21, como a segurança
alimentar e as mudanças climáticas.
Mas não há atalhos. Os latino-americanos precisam
redescobrir sua vocação para a política e cultivar a arte de formar consensos.
Felizmente, em “quase 30 anos de medições”, dizem os pesquisadores, “os muitos
altos e baixos e períodos ruins não conseguiram matar as democracias como
tantos auguram nem tampouco declará-las um caso perdido”. A democracia, dizia
Churchill, é o pior dos regimes, exceto por todos os outros. A duras penas essa
consciência se consolida na América Latina. Mas saber disso é uma coisa. O
desafio do século será provar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário