O aviso de Kakay vai além de amizade responsável, alerta
que a esquerda não percebeu as transformações que exigem mudanças nos
propósitos e na forma de fazer política
Um ditado antigo diz "amigo do rei que o avisa, além de
amigo, é bom cidadão". Ao avisar que o isolamento do PT e do presidente
Lula pode levar os eleitores a caírem na tentação por regime autoritário de
direita, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay, foi amigo e
cidadão. Sua manifestação vai além de amizade responsável, alerta que a
esquerda não percebeu as transformações tecnológicas, sociais, culturais,
econômicas e ecológicas que ocorreram nas últimas décadas, exigindo mudanças
nos propósitos e na forma de fazer política. O mundo entrou no século 21, mas
ideias da esquerda continuam em séculos passados. Isso não é problema para a
direita conservadora, mas é a negação da esquerda progressista.
A esquerda não viu que os trabalhadores do
setor moderno foram incorporados entre os beneficiários do progresso
capitalista e, no lugar de revolução, agora defendem privilégios que adquiriram
e não são distribuíveis a todos. Por isso, na Europa e nos Estados Unidos se
opõem aos imigrantes e no Brasil excluem os pobres, tratados como
"inmigrantes", imigrantes sociais. Não percebe que o individualismo
consumista move mais vontades e paixões políticas do que o sentimento de classe
e de solidariedade. Demorou a entender os limites ecológicos ao crescimento
econômico e, quando passou a falar no tema, defende apenas a conservação da
natureza, sem oferecer uma alternativa de bem-estar com sustentabilidade.
A esquerda continua querendo se diferenciar da direita ao
prometer política distributiva, sem perceber que, na atual era de limites, a
distribuição de benefícios exige sacrifício dos que já foram beneficiados. Não
entendeu que a sociedade se divide não apenas entre capitalistas e
trabalhadores, mas entre esses dois de um lado e as massas pobres excluídas de
outro, em um sistema de apartação: condomínios e favelas, "escolas casa
grande" e "escolas senzala". A esquerda não apresenta esperança
que emancipe a população pobre da necessidade de sobreviver graças a bolsas que
já são propostas incorporadas pela direita. Não está trazendo esperança para os
jovens que preferem a liberdade do empreendedorismo à segurança por leis em que
não confiam.
Não percebeu que o avanço técnico que antes gerava
abundância por aumentar a produção dos mesmos bens, agora aumenta necessidades
por inovar criando novos bens cuja oferta está limitada por razões ecológicas;
nem percebeu que o Estado se esgotou fiscal, moral e gerencialmente, não
permitindo mais a mágica de oferecer benefícios públicos no presente jogando o
pagamento para as gerações futuras, sob forma de depredação da natureza,
inflação e dívida. Não entende que a justiça social só caminha sobre economia eficiente
que depende da responsabilidade fiscal do governo e do talento e
empreendedorismo de indivíduos.
A esquerda não viu que seu fracasso eleitoral decorre menos
de sua incompetência em comunicar-se pelas novas redes sociais e muito mais por
falta de propostas, esperanças e sonhos sintonizados com a realidade do
individualismo e dos limites de recursos ecológicos e fiscais, que já não
permitem aumentar benefícios sem reduzir privilégios, e que a única maneira de
avançar a civilização é oferecer uma utopia diferente daquela a que se
acostumou e nostalgicamente não ousa livrar-se dela.
Não percebe que, ao optar pelo eleitoralismo de vantagens
individuais imediatas, cai no campo em que a direita leva vantagem. Que a
defesa de direitos identitários obscurece a percepção da desigualdade que
divide cada identidade conforme a classe social do indivíduo. Não percebe que
as lúcidas defesas de avanços nos costumes começaram a incomodar aos arraigados
valores morais e às crenças religiosas que a população tem o direito de manter.
Não percebeu que uma utopia possível e necessária consiste
em acenar com um sistema nacional de educação com qualidade e equidade,
independentemente da renda e do endereço, filhos de pobres e ricos na mesma
escola com qualidade entre as melhores do mundo. Além da visão do capital
monetário, não percebeu os tempos do capital conhecimento, por isso prefere
apoiar greves dos trabalhadores da educação que apoiar os interesses dos
alunos. Prefere continuar como o partido do sindicato de professores em vez de
ser o partido da educação.
Em seu conservadorismo ideológico e apego ao passado, sua
prisão ao eleitoralismo e aos privilegiados, a esquerda não parece capaz de
entender que o amigo que avisa ao rei é amigo e cidadão.
*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Nenhum comentário:
Postar um comentário