Steven Levitsky e Lucan A. Way afirmam que novo governo
prenuncia enfraquecimento de eleições livres e justas e de proteção de
liberdades civis
[Resumo] Cientistas políticos americanos
argumentam que a democracia nos EUA está à beira da ruína em seus principais
pilares neste segundo mandato de Donald Trump. A isso se seguirá, dizem, não
uma ditadura clássica, mas um modelo de autoritarismo competitivo. Embora
nesses casos a ordem liberal pareça preservada, autocratas no poder usam
sistematicamente a máquina do Estado para reprimir a oposição, usar brechas da
lei a seu favor e fortalecer seu poder.
A
primeira eleição de Donald Trump à Presidência em 2016 desencadeou uma
defesa enérgica da democracia por parte do establishment americano, mas seu
retorno ao cargo foi recebido com uma indiferença marcante.
Muitos políticos, comentaristas, figuras da mídia e líderes
empresariais que viam Trump como uma ameaça agora tratam essas preocupações
como exageradas —afinal,
a democracia sobreviveu ao seu primeiro mandato. Em 2025, preocupar-se com
o destino da democracia americana tornou-se quase banal.
O momento dessa mudança de humor não poderia ser pior, pois
a democracia está em maior perigo hoje do que em qualquer outro momento da
história moderna dos EUA. A América tem regredido por uma década: entre 2014 e
2021, o índice anual de liberdade
global da Freedom House, que avalia todos os países em uma escala de 0 a
100, rebaixou os Estados Unidos de 92 (empatado com a França) para 83 (abaixo
da Argentina e empatado com o Panamá e a Romênia), onde permanece.
Os aclamados controles constitucionais do país estão
falhando. Trump violou a regra cardinal da democracia quando tentou reverter os
resultados de uma eleição e bloquear uma transferência pacífica de poder.
No entanto, nem o Congresso nem o Judiciário o
responsabilizaram, e o Partido Republicano, tentativa de golpe à parte,
escolheu-o novamente para disputar a eleição.
Trump conduziu
uma campanha abertamente autoritária em 2024, prometendo processar seus
rivais, punir a mídia crítica e mobilizar o Exército para reprimir protestos.
Ele venceu, e graças a uma decisão extraordinária da Suprema Corte, desfrutará
de ampla imunidade presidencial em seu segundo mandato.
A democracia sobreviveu ao primeiro mandato de Trump porque
ele não tinha experiência, plano ou equipe. Ele não controlava o Partido
Republicano quando assumiu o cargo em 2017, e a maioria dos líderes partidários
ainda estava comprometida com as regras democráticas do jogo.
Trump governou com republicanos do
establishment e tecnocratas, e eles em grande parte o contiveram. Nada disso é
mais verdade. Desta vez, Trump deixou claro que pretende governar com
"pessoas leais". Ele
agora domina o Partido Republicano, que, purgado de suas forças anti-Trump,
consente com seu comportamento autoritário.
A democracia dos EUA provavelmente entrará em colapso
durante o segundo governo Trump, no sentido de que deixará de atender aos
critérios padrões para uma democracia liberal: sufrágio adulto pleno, eleições
livres e justas e ampla proteção das liberdades civis.
O colapso da democracia nos Estados Unidos não dará origem a
uma ditadura clássica em que as eleições são uma farsa e a oposição é presa,
exilada ou morta. Mesmo no pior cenário, Trump não será capaz de reescrever a
Constituição ou derrubar a ordem constitucional.
Ele será contido por juízes independentes, pelo federalismo,
pelas Forças Armadas e por altas barreiras à reforma constitucional. Haverá
eleições em 2028, e os republicanos poderão perdê-las.
O autoritarismo não requer a destruição da ordem
constitucional. O que está por vir não é fascismo ou ditadura de partido único,
mas autoritarismo competitivo —um sistema em que os partidos competem nas
eleições, mas o abuso de poder do incumbente inclina o campo de jogo contra a
oposição.
A maioria das autocracias que surgiram desde o fim da Guerra
Fria se enquadra nessa categoria, incluindo o Peru
de Alberto Fujimori, a Venezuela
de Hugo Chávez e os contemporâneos El Salvador, Hungria, Índia,
Tunísia e Turquia. Sob o autoritarismo competitivo, a arquitetura formal da
democracia, incluindo eleições multipartidárias, permanece intacta.
As forças de oposição são legais e atuam abertamente,
disputam seriamente o poder. As eleições são muitas vezes batalhas ferozmente.
E, de vez em quando, os incumbentes perdem, como aconteceu na Malásia em 2018 e
na Polônia em 2023.
No entanto, o sistema não é democrático, porque os
governantes manipulam o jogo ao usar a máquina do Estado para atacar os
oponentes e cooptar críticos. A competição é real, mas injusta.
O autoritarismo competitivo transformará a vida política nos
Estados Unidos. Como a enxurrada inicial de ordens executivas de
constitucionalidade duvidosa de Trump deixou claro, o custo da oposição pública
aumentará consideravelmente: doadores do Partido Democrata podem ser alvos do
IRS (Receita Federal dos Estados Unidos), empresas que financiam grupos de
direitos civis podem sofrer maior escrutínio fiscal e legal ou ver seus
empreendimentos impedidos por reguladores. Veículos de mídia crítica provavelmente
enfrentarão processos por difamação ou outras ações legais, bem como políticas
retaliatórias contra suas empresas-mãe.
Os americanos ainda poderão se opor ao governo, mas a
oposição será mais difícil e arriscada, levando muitos cidadãos a decidirem que
a luta não vale a pena. Abandonar a resistência, no entanto, poderia abrir
caminho para o enraizamento autoritário, com graves e duradouras consequências
para a democracia global.
O Estado como arma
O segundo governo Trump pode violar liberdades civis básicas
de maneiras que subvertam inequivocamente a democracia. O presidente, por
exemplo, poderia ordenar que o Exército atirasse em manifestantes, como ele
supostamente quis fazer durante seu primeiro mandato.
Ele também poderia cumprir sua promessa de campanha de
lançar a "maior operação de deportação da história americana",
lançando milhões de pessoas em um processo repleto de abusos que
inevitavelmente levaria à detenção equivocada de cidadãos americanos.
Todavia, grande parte do autoritarismo que está por vir
assumirá uma forma menos visível: a politização e a instrumentalização da
burocracia governamental. Estados modernos são entidades poderosas. O governo
federal dos EUA emprega mais de 2 milhões de pessoas e tem um orçamento anual
de quase US$ 7 trilhões.
Funcionários do governo servem como árbitros importantes da
vida política, econômica e social. Eles ajudam a determinar quem é processado
por crimes, quando e como regras e regulamentos são aplicados, quais
organizações recebem status de isenção fiscal, quais agências privadas obtêm
contratos para credenciar universidades e quais empresas obtêm concessões,
contratos, subsídios, isenções tarifárias e resgates.
Mesmo em países como os Estados Unidos, com governos
relativamente pequenos e livre mercado, essa autoridade cria incontáveis
oportunidades para líderes recompensarem aliados e punirem oponentes.
Nenhuma democracia está totalmente livre de tal politização.
Todavia, quando os governos transformam o Estado em arma contra seus
adversários, usando seu poder para sistematicamente enfraquecer a oposição,
eles minam a ordem liberal. A política torna-se uma partida de futebol em que
os árbitros e os zeladores do campo trabalham para um time para sabotar seu
rival.
É por isso que todas as democracias estabelecidas têm
conjuntos elaborados de leis, regras e normas para prevenir a
instrumentalização do Estado. Isso inclui judiciários independentes, bancos
centrais e autoridades eleitorais e serviços públicos com proteções de emprego.
Nos Estados Unidos, o Ato Pendleton de 1883 criou um serviço público
profissionalizado em que a contratação é baseada no mérito.
Funcionários federais são proibidos de participar de
campanhas eleitorais e não podem ser demitidos ou rebaixados por razões
políticas. A grande maioria dos mais de 2 milhões de funcionários federais há
muito tempo desfruta de proteção do serviço público. No início do segundo
mandato de Trump, apenas cerca de 4.000 deles eram nomeados políticos.
Os Estados Unidos também desenvolveram um extenso conjunto
de regras e normas para prevenir a politização de instituições estatais. Isso
inclui a confirmação pelo Senado de nomeados presidenciais, mandato vitalício
para juízes da Suprema Corte, segurança de mandato para o presidente do Federal
Reserve (o Banco Central do país), mandatos de dez anos para diretores do FBI e
de cinco anos para diretores do IRS.
As Forças Armadas são protegidas da politização por aquilo
que o estudioso jurídico Zachary Price descreve como "uma sobreposição
incomumente espessa de estatutos" que governam a nomeação, promoção e
remoção de oficiais militares. Embora o Departamento de Justiça, o FBI e o IRS
tenham permanecido um tanto politizados até a década de 1970, uma série de
reformas pós-Watergate efetivamente encerrou a instrumentalização partidária
dessas instituições.
Servidores públicos profissionais muitas vezes desempenham
um papel crítico em resistir aos esforços do governo para instrumentalizar
agências estatais. Eles têm servido como a linha de frente de defesa da
democracia nos últimos anos em países como Brasil, Índia, Israel, México e
Polônia, bem como nos Estados Unidos durante o primeiro governo Trump.
Por essa razão, um dos primeiros movimentos realizados por
autocratas eleitos —como Nayib Bukele em El Salvador, Chávez
na Venezuela, Viktor Orbán na Hungria, Narendra Modi na Índia e Recep
Tayyip Erdogan na Turquia— tem sido purgar servidores de agências públicas
responsáveis por coisas como investigar e processar irregularidades, regular a
mídia e a economia e supervisionar eleições. Eles são substituídos por
parceiros leais ao mandatário.
Depois
que Orbán se tornou primeiro-ministro em 2010, seu governo retirou dos
funcionários públicos proteções essenciais, demitiu milhares e os substituiu
por membros leais do partido governante Fidesz. Da mesma forma, o partido Lei e
Justiça da Polônia enfraqueceu as leis ao eliminar o processo de contratação
competitiva e preencher a burocracia, o Judiciário e as Forças Armadas com
aliados partidários.
Trump e seus aliados têm planos semelhantes. Por exemplo,
americano reviveu seu esforço do primeiro mandato para enfraquecer o serviço
público ao reinstaurar o Schedule F, uma ordem executiva que permite ao
presidente retirar de dezenas de milhares de funcionários do governo proteções
legais em cargos considerados "de caráter confidencial, determinante de
políticas, formulador de políticas ou defensor de políticas."
Caso implementado, o
decreto possibilitará que esses servidores públicos sejam facilmente trocados
por nomes políticos. O número de nomeações partidárias, já mais alto no
governo dos EUA do que na maioria das democracias estabelecidas, poderia
aumentar mais de dez vezes.
A Heritage Foundation e outros grupos de direita gastaram
milhões de dólares recrutando e avaliando um exército de até 54 mil pessoas
leais a Trump para ocupar cargos no governo. Essas mudanças poderiam ter um
efeito mais amplo de intimidação, desencorajando críticas ao presidente.
Finalmente, a declaração de Trump de que demitiria o diretor
do FBI, Christopher
Wray, e o diretor do IRS, Danny Werfel, antes do fim de seus mandatos levou
ambos a renunciar, abrindo caminho para trumpistas com pouca experiência
assumirem o comando.
Trocas assim no Departamento de Justiça, no FBI e no IRS
podem levar o governo a usar essas agências para três fins antidemocráticos:
investigar e processar rivais, cooptar a sociedade civil e livrar aliados de
processos.
Choque e lei
O meio mais visível de transformar o Estado em arma é
através de processos direcionados. Praticamente todos os governos autocráticos
eleitos utilizam ministérios da Justiça, escritórios de promotores públicos e
agências fiscais e de inteligência para investigar e processar políticos
rivais, empresas de mídia, editores, jornalistas, líderes empresariais,
universidades e outros críticos.
Em ditaduras tradicionais, críticos são frequentemente
acusados de crimes como sedição, traição ou conspiração para insurreição, mas
autocratas contemporâneos tendem a processá-los por ofensas mais mundanas, como
corrupção, evasão fiscal, difamação e até mesmo violações menores de regras
obscuras.
Se os investigadores procurarem o suficiente, geralmente
podem encontrar infrações pequenas, como renda não declarada ou descumprimento
de regulamentos raramente aplicados.
Trump declarou repetidamente sua intenção de processar seus
rivais,
incluindo a ex-representante republicana Liz Cheney e outros
legisladores que serviram no comitê da Câmara que investigou o ataque de 6 de
janeiro de 2021 ao Capitólio dos EUA. Em dezembro de 2024, republicanos da
Câmara pediram uma investigação do FBI sobre Cheney.
Os esforços da primeira administração Trump para usar o
Departamento de Justiça como arma foram em grande parte frustrados
internamente, então desta vez ele buscou nomear pessoas que compartilhassem seu
objetivo de perseguir adversários.
Sua indicada para procuradora-geral, Pam
Bondi, declarou que os promotores que investigaram Trump serão processados,
e sua escolha para diretor do FBI, Kash
Patel, repetidamente pediu que rivais fossem investigados. Em 2023, Patel
até publicou um livro com uma lista de funcionários públicos
"inimigos" a serem alvos.
Como a administração Trump não controlará os tribunais, a
maioria dos alvos de processos seletivos não acabará na prisão, mas o governo
não precisa prender seus críticos para causar danos a eles.
Pessoas investigadas serão forçadas a dedicar tempo, energia
e recursos consideráveis para se defender; gastarão suas economias com
advogados; terão suas carreiras e reputações maculadas. No mínimo, sofrerão
meses ou anos de ansiedade e noites sem dormir com suas famílias.
Os esforços para assediar adversários não se limitarão ao
Departamento de Justiça e ao FBI. Uma variedade de agências e órgãos pode
servir ao mesmo objetivo. Governos autocráticos, por exemplo, rotineiramente
usam autoridades fiscais para mirar opositores em investigações politicamente
motivadas.
Na
Turquia, o governo Erdogan destruiu o grupo de mídia Dogan Yayin,
cujos jornais e redes de TV estavam relatando corrupção governamental,
acusando-o de evasão fiscal e impondo uma multa esmagadora de US$ 2,5 bilhões,
o que forçou a família Dogan a vender seu império a aliados do governo. Erdogan
também usou auditorias fiscais para pressionar o Grupo Koc, o maior
conglomerado industrial do país, a abandonar seu apoio a partidos de oposição.
Trump poderia agir de forma semelhante. Um influxo de
nomeações políticas potencialmente deixaria doadores democratas na mira. Como
todas as doações de campanha individuais são divulgadas publicamente, seria
fácil identificar essas pessoas; de fato, o medo de tal direcionamento poderia
dissuadir indivíduos de contribuir para políticos de oposição em primeiro
lugar.
O status de isenção fiscal também pode ser politizado. Em
seu governo, Richard Nixon trabalhou para negar ou atrasar essa classificação
para organizações e think tanks consideradas politicamente hostis.
Sob Trump, tais esforços seriam facilitados por uma
legislação antiterrorismo aprovada em novembro de 2024 pela Câmara dos
Representantes, o que autoriza o Departamento do Tesouro a retirar o status de
isenção fiscal de qualquer organização suspeita de apoiar o terrorismo, sem a
necessidade de divulgar evidências para justificar tal ato.
Como "apoio ao terrorismo" pode ser definido de
forma muito ampla, Trump poderia, nas palavras do representante democrata Lloyd
Doggett, "usá-lo como uma espada contra aqueles que vê como seus inimigos
políticos."
Da mesma maneira, quase certamente o Departamento de
Educação servirá de munição contra universidades, que, por serem centros de
ativismo de oposição, despertam a ira de governos autoritários competitivos.
O Departamento de Educação distribui bilhões de dólares em
financiamento federal para universidades, supervisiona as agências responsáveis
pela avaliação de faculdades e aplica o cumprimento dos Títulos 6º e 9º, leis
que proíbem instituições educacionais de discriminar com base em raça, cor,
origem nacional ou sexo. Essas capacidades raramente foram politizadas no
passado, mas líderes republicanos pediram seu uso contra escolas de elite.
Autocratas eleitos também rotineiramente usam processos por
difamação e outras formas de ação legal para silenciar seus críticos na mídia.
No Equador, em 2011, o então presidente
Rafael Correa ganhou um processo de US$ 40 milhões contra um colunista
e três executivos de um jornal que publicou um editorial chamando-o de
"ditador."
Embora figuras públicas raramente ganhem tais processos nos
Estados Unidos, Trump fez amplo uso de uma variedade de ações legais para
desgastar meios de comunicação, mirando ABC News, CBS News, The Des Moines
Register e Simon & Schuster. A estratégia já deu frutos.
Em dezembro de 2024, a ABC tomou a chocante decisão de
chegar a um acordo em um processo por difamação movido por Trump, pagando-lhe
US$ 15 milhões para evitar um julgamento que provavelmente teria vencido. Os
proprietários da CBS também estão supostamente considerando fazer o mesmo,
exemplo de como ações legais espúrias podem se mostrar politicamente eficazes.
A administração não precisa atacar diretamente todos os seus
críticos para silenciar a maioria das dissidências. Lançar alguns ataques de
alto perfil pode servir como um dissuasor eficaz. Uma ação legal contra Cheney
seria observada de perto por outros políticos; um processo contra o New York
Times ou Harvard teria um efeito intimidante em dezenas de outros meios de
comunicação ou universidades.
Armadilha do mel
Um Estado transformado em arma não é apenas uma ferramenta
para punir oponentes. Também pode servir para construir apoio. Governos em
regimes autoritários competitivos rotineiramente se valem de políticas
econômicas e decisões regulatórias para recompensar indivíduos, empresas e
organizações politicamente amigáveis.
Líderes empresariais, empresas de mídia, universidades e
outras organizações têm tanto a ganhar quanto a perder com decisões antitruste
do governo, a emissão de licenças e permissões, a concessão de contratos
governamentais, a dispensa de regulamentos ou tarifas e a isenção fiscal. Se
acreditarem que essas decisões são tomadas com base política em vez de técnica,
têm um forte incentivo para se alinhar com os incumbentes.
O potencial de cooptação é mais claro no setor empresarial.
Em 2023, o governo americano gastou mais de US$ 750 bilhões, ou quase 3% do
PIB, na concessão de contratos.
Para autocratas aspirantes, decisões políticas e
regulatórias são poderosas cenouras e bastões para atrair apoio empresarial.
Esse tipo de lógica patrimonial ajudou autocratas na Hungria, Rússia e Turquia
a garantir a cooperação do setor privado.
Se Trump enviar sinais de que se comportará de maneira
semelhante, as consequências políticas serão de longo alcance. Se líderes
empresariais se convencerem de que é mais lucrativo evitar financiar candidatos
de oposição ou investir em mídia independente, eles mudarão seu comportamento.
De fato, o comportamento deles já começou a mudar. No que a
colunista do New York Times Michelle
Goldberg chamou de "a Grande Capitulação", poderosos CEOs
que antes criticavam o comportamento autoritário de Trump agora estão correndo
para se encontrar com ele, elogiá-lo e dar-lhe dinheiro. Amazon, Google, Meta,
Microsoft e Toyota doaram cada uma US$ 1 milhão para financiar a posse presidencial,
mais do que o dobro de suas doações inaugurais anteriores.
No início de janeiro, a
Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, anunciou que estava abandonando
suas operações de checagem de fatos —uma medida que Trump se gabou de
"provavelmente" ter resultado de suas ameaças de tomar medidas legais
contra o CEO da empresa, Mark Zuckerberg. O próprio Trump reconheceu que em seu
primeiro mandato "todos estavam lutando contra mim", mas agora
"todos querem ser meus amigos".
Um padrão semelhante está surgindo no setor de mídia. Quase
todos os principais veículos dos EUA —ABC, CBS, CNN, NBC, The Washington Post—
são de propriedade e operados por grandes corporações.
Embora Trump não possa cumprir sua ameaça de reter licenças
de redes de televisão nacionais, pode pressionar seus proprietários
corporativos.
O Washington Post, por exemplo, é controlado por Jeff Bezos,
cuja maior empresa, a Amazon, compete por grandes contratos federais. Da mesma
forma, o dono do Los Angeles Times, Patrick
Soon-Shiong, vende produtos médicos sujeitos à revisão pela Administração
de Alimentos e Medicamentos. Antes das eleições presidenciais de 2024, os dois
anularam os endossos planejados de seus
jornais à democrata Kamala Harris.
Escudo autoritário
Finalmente, um Estado transformado em arma pode servir como
um escudo legal para proteger funcionários do governo ou aliados que tiveram
comportamentos antidemocráticos.
Um Departamento de Justiça leal, por exemplo, poderia fechar
os olhos para atos de violência política pró-Trump, como ataques ou ameaças
contra jornalistas, funcionários eleitorais, manifestantes ou políticos e
ativistas da oposição. Também poderia se recusar a investigar casos de
intimidação de eleitores ou até mesmo manipular os resultados das eleições.
Isso já aconteceu nos Estados Unidos. Durante e após a
Reconstrução, a Ku
Klux Klan e outros grupos armados de supremacia branca, com laços com
o Partido Democrata, realizaram campanhas de terror violentas em todo o Sul,
assassinando políticos negros e republicanos, incendiando casas, empresas e
igrejas negras, cometendo fraudes eleitorais e ameaçando, espancando e matando
cidadãos negros que tentavam votar.
Essa onda de terror, que ajudou a estabelecer quase um
século de governo de partido único em todo o Sul, foi possibilitada pela
conivência das autoridades de aplicação de leis estaduais e locais, que
rotineiramente fechavam os olhos para a violência e sistematicamente não
responsabilizavam seus perpetradores.
Os Estados Unidos experimentaram um aumento acentuado na
violência de extrema direita durante o primeiro governo Trump. As ameaças
contra membros do Congresso cresceram mais de dez vezes. Uma das consequências:
segundo o senador
republicano Mitt Romney, o medo da violência dos apoiadores de Trump
dissuadiu alguns senadores republicanos de votar pelo seu impeachment após o
ataque de 6 de janeiro de 2021.
Por quase todas as medidas, a violência política diminuiu
após a
invasão ao Capitólio, em parte porque centenas de participantes do ato foram
condenados e presos. Mas agora o perdão de Trump a quase todos os
insurrecionistas enviou uma mensagem de que atores violentos ou
antidemocráticos serão protegidos.
Tais sinais encorajam o extremismo violento. Neste segundo
mandato de Trump, críticos do governo e jornalistas independentes quase
certamente enfrentarão ameaças mais frequentes e até mesmo ataques diretos.
Nada disso seria inteiramente novo para os Estados Unidos. J.
Edgar Hoover, diretor do FBI, usou a agência como arma política para os
seis presidentes. A administração Nixon utilizou o Departamento de Justiça e
outras agências contra seus inimigos. O período atual, contudo, difere em
aspectos importantes.
Os padrões democráticos globais aumentaram
consideravelmente. Por qualquer medida contemporânea, os Estados Unidos eram
consideravelmente menos democráticos na década de 1950 do que são hoje. Um
retorno às práticas de meados do século 20 constituiria, por si só, retrocesso
democrático significativo.
Mais importante, o próximo uso do governo como arma
provavelmente irá muito além das práticas de meados do século 20. Há 50 anos,
ambos os principais partidos dos EUA eram internamente heterogêneos,
relativamente moderados e amplamente comprometidos com as regras democráticas
do jogo.
Hoje, esses partidos estão muito mais polarizados. O
Republicano radicalizado abandonou seu compromisso de longa data com as regras
democráticas básicas, incluindo aceitar a derrota eleitoral e rejeitar
inequivocamente a violência.
Além disso, grande parte do partido Republicano agora abraça
a ideia de que as instituições da América —desde a burocracia federal e escolas
públicas até a mídia e universidades privadas— foram corrompidas por ideologias
de esquerda.
Pelo mundo, movimentos autoritários também acusam inimigos
de subverter as instituições de seu países; líderes autocráticos, incluindo
Erdogan, Orbán e Nicolás
Maduro, da Venezuela, com frequência promovem tais alegações.
Essa visão de mundo tende a justificar, e até motivar, o
tipo de expurgo e loteamento de cargos que Trump promete. Enquanto Nixon
trabalhou secretamente para fazer do Estado uma arma e enfrentou oposição
republicana quando esse comportamento veio à tona, o Partido Republicano de
hoje encoraja abertamente tais abusos.
A transformação do Estado em arma tornou-se estratégia
republicana. O partido que uma vez abraçou o ditado de campanha do presidente
Ronald Reagan, segundo o qual o governo era a fonte dos problema, agora
abraça entusiasticamente o governo como forma de munição política.
Usar o Poder Executivo dessa maneira é o que os republicanos
aprenderam com Orbán. O autocrata húngaro ensinou uma geração de conservadores
que o Estado não deve ser desmantelado, mas sim usado em busca de causas de
direita e contra oponentes.
É por isso que a pequena Hungria se tornou um modelo para
tantos apoiadores de Trump. Instrumentalizar o Estado não é uma nova
característica da filosofia conservadora —é uma característica antiga do
autoritarismo.
Imunidade natural?
A administração Trump pode descarrilar a democracia, mas é
improvável que consolide o governo autoritário. Os Estados Unidos possuem
várias fontes potenciais de resiliência. As instituições americanas são mais
fortes do que as da Hungria, Turquia e de outros países com regimes
autoritários competitivos.
O Judiciário independente, o federalismo, o bicameralismo e
as eleições de meio de mandato —fatores ausentes na Hungria, por exemplo—
provavelmente limitarão o alcance do autoritarismo de Trump.
Trump também é politicamente mais fraco do que muitos
autocratas eleitos bem-sucedidos. Líderes autoritários causam mais danos quando
desfrutam de amplo apoio público: Bukele, Chávez, Fujimori e Vladimir
Putin ostentavam índices de aprovação acima de 80% quando lançaram
golpes de poder autoritários.
Tal apoio público esmagador ajuda os líderes a garantir as
supermaiorias legislativas ou vitórias plebiscitárias esmagadoras necessárias
para impor reformas que consolidam o governo autocrático. Também ajuda a
dissuadir rivais intrapartidários, juízes e até mesmo grande parte da oposição.
Líderes menos populares, por outro lado, enfrentam maior
resistência de legislaturas, tribunais, sociedade civil e até mesmo de seus
próprios aliados. Seus golpes de poder são, portanto, mais propensos a falhar.
O peruano Pedro Castillo e o
sul-coreano Yoon Suk-yeol tinham índices de aprovação abaixo de 30%
quando tentaram tomar o poder de forma extraconstitucional, e ambos falharam.
O índice de aprovação de Jair Bolsonaro estava bem abaixo de
50% quando tentou orquestrar um golpe para reverter a eleição presidencial de
2022. Ele também foi derrotado nas urnas e
declarado inelegível por 8 anos.
O índice de aprovação de Trump nunca ultrapassou 50% durante
seu primeiro mandato, e uma combinação de incompetência, políticas impopulares
e polarização partidária provavelmente limitará seu apoio durante este novo
mandato. Um autocrata eleito com índice de aprovação de 45% é perigoso, mas
menos do que um com 80% de apoio.
A sociedade civil é outra fonte potencial de resiliência
democrática. Uma razão importante pela qual as democracias ricas são mais
estáveis é que o desenvolvimento capitalista dispersa recursos humanos,
financeiros e organizacionais para longe do Estado, gerando poder de
contraposição na sociedade.
A riqueza não liberta completamente o setor privado das
pressões impostas por um Estado transformado em arma. No entanto, quanto maior
e mais rico for um setor privado, mais difícil será capturá-lo totalmente ou
intimidá-lo à submissão.
Além disso, cidadãos mais ricos possuem mais tempo,
habilidades e recursos para se juntar ou criar organizações cívicas ou de
oposição —e como dependem menos do Estado para seu sustento do que cidadãos
pobres, estão em melhor posição para protestar ou votar contra o governo.
Comparadas às de outros regimes autoritários competitivos,
as forças de oposição nos Estados Unidos são bem organizadas, bem financiadas e
eleitoralmente viáveis, o que as torna mais difíceis de cooptar, reprimir e
derrotar nas urnas.
Falhas na armadura
Ainda assim, mesmo uma inclinação modesta do campo de jogo
poderia prejudicar a democracia americana. As democracias exigem uma oposição
robusta, e oposições robustas devem ser capazes de contar com um grande e
renovável pool de políticos, ativistas, advogados, especialistas, doadores e
jornalistas.
Um Estado transformado em arma põe em perigo tal oposição.
Embora os críticos de Trump não sejam presos, exilados ou banidos da política,
o custo elevado da oposição pública levará muitos deles a se retirarem para as
margens políticas.
Diante de investigações do FBI, de auditorias fiscais,
audiências no Congresso, processos judiciais, assédio online ou a perspectiva
de perder oportunidades de negócios, muitas pessoas que normalmente se oporiam
ao governo podem concluir que simplesmente não vale o risco ou o esforço. Esse
processo de autoexclusão talvez não atraia muita atenção pública, mas teria
graves consequências.
Diante de investigações iminentes, políticos promissores,
tanto republicanos quanto democratas, deixam a vida pública. CEOs em busca de
contratos governamentais, isenções tarifárias ou decisões antitruste favoráveis
param de contribuir com candidatos democratas, de financiar iniciativas de
direitos civis ou democracia, e de investir em mídia independente.
Veículos de notícias cujos proprietários se preocupam com
processos judiciais ou assédio governamental restringem suas equipes
investigativas e seus repórteres mais agressivos. Editores praticam
autocensura, suavizando manchetes e optando por não publicar matérias críticas
ao governo.
E líderes universitários, temendo investigações
governamentais, cortes de financiamento ou impostos punitivos sobre doações,
reprimem protestos no campus, removem ou rebaixam professores mais combativos e
permanecem em silêncio diante do crescente autoritarismo.
Estados usados como arma criam um problema difícil de ação
coletiva para as elites do establishment que, em teoria, prefeririam a
democracia ao autoritarismo competitivo.
Os políticos, CEOs, proprietários de mídia e reitores de
universidades que modificam seu comportamento diante de ameaças autoritárias
estão agindo racionalmente, fazendo o que consideram melhor para suas
organizações. Tais atos de autopreservação, contudo, têm um custo coletivo.
À medida que atores individuais se retiram para as margens
ou se autocensuram, a oposição social enfraquece. O ambiente midiático torna-se
menos crítico. E a pressão sobre o governo autoritário diminui.
A retração da oposição social pode ser pior do que parece.
Observamos isso quando atores relevantes se autoexcluem, quando políticos se
aposentam, reitores de universidades renunciam ou veículos de mídia mudam sua
programação e pessoal.
Mais difícil é ter a percepção de uma oposição que poderia
ter se materializado em um ambiente menos ameaçador —os jovens advogados que
decidem não se candidatar a cargos públicos; os jovens escritores aspirantes
que decidem não se tornar jornalistas; os potenciais denunciantes que decidem
não se manifestar; os inúmeros cidadãos que decidem não participar de um
protesto ou se voluntariar para uma campanha.
Mantenha a linha
A América está à beira do autoritarismo competitivo. A
administração Trump já começou a cooptar instituições estatais e a usá-las
contra os oponentes. A Constituição sozinha não pode salvar a democracia dos
EUA. Mesmo as constituições mais bem elaboradas têm ambiguidades e lacunas que
podem ser exploradas para fins antidemocráticos.
Afinal, a mesma ordem constitucional que sustenta a
democracia liberal contemporânea dos Estados Unidos permitiu quase um século de
autoritarismo e segregação
racial no sul do país, a
"internação" em massa de nipo-americanos durante a Segunda Guerra e
o macarthismo
nos anos 1950.
Em 2025, os Estados Unidos são governados nacionalmente por
um partido com maior vontade e poder de explorar ambiguidades constitucionais e
legais para fins autoritários do que em qualquer outro momento nos últimos dois
séculos.
Trump será vulnerável. O apoio público limitado da
administração e os erros inevitáveis criarão oportunidades para forças
democráticas —no Congresso, nos tribunais e nas urnas.
A oposição, contudo, só pode vencer se permanecer no jogo.
Sob autoritarismo competitivo, ela se torna extenuante. Desgastados por assédio
e ameaças, muitos críticos de Trump serão tentados a se retirar para as
margens.
Tal retirada seria perigosa. Quando o medo, o cansaço ou a
resignação suprimem o compromisso dos cidadãos com a democracia, o
autoritarismo emergente começa a criar raízes.
********
*Steven Levitsky
Professor de ciência política da Universidade Harvard.
Autor, entre outros livros, de "Como as Democracias Morrem" e
"Como Salvar a Democracia", escritos com Daniel Ziblatt
Lucan A. Way
Professor de democracia no departamento de Ciência Política
da Universidade de Toronto (Canadá)
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