Em apenas duas semanas, presidente dos EUA possivelmente
causou mais do que no primeiro ano inteiro de seu governo anterior
Quase todo mundo esperava que o governo de Donald
Trump nos EUA fosse disruptivo. Mas poucos esperam o nível atual de
disrupção. Em apenas duas semanas, Trump possivelmente causou mais do que
no primeiro ano inteiro de seu governo anterior. Muitas medidas serão
questionadas na Justiça americana. Outras talvez sejam irrealizáveis. Mas tudo
isso acaba criando expectativas, que movem os mercados e influenciam as
decisões e ações de indivíduos, empresas e governos.
A disrupção, isto é, a ruptura de uma atividade, uma
prática, um modo de pensar, não é negativa em si. Pode trazer novas abordagens
para velhos problemas, permitir avançar em questões que estavam paralisadas
devido a posições endurecidas, pode gerar inovação e tirar pessoas, grupos,
empresas ou países de suas zonas de conforto.
Mas quanta disrupção é demais? E se não
houver um plano claro por trás de toda essa disrupção? O resultado, então, pode
ser o caos. Foi o que ocorreu quando os EUA invadiram o Afeganistão e o
Iraque sem ter um objetivo coerente e factível. O resultado foram sangrentas
guerras civis, o deslocamento e sofrimento de milhões de pessoas, trilhões de
dólares gastos e, por fim, o Afeganistão voltou ao controle do Talibã e o
Iraque (ou uma parte dele) passou para a órbita do Irã.
Em questões externas, Trump ameaçou tomar a Groenlândia e
o Canal do Panamá, quer a anexação do Canadá aos EUA e, na noite de
terça-feira (4), anunciou
que os EUA vão ocupar por um período longo a Faixa de Gaza, após a retirada
de seus dois milhões de habitantes palestinos. Nada disso nem começou a ser
feito e pode se tratar de bravata, como disse o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. A proposta de limpeza étnica em Gaza foi amplamente
criticada ontem por líderes globais.
Mas há já medidas que não são bravatas e que afetam milhões
de pessoas. Na semana passada o governo Trump suspendeu quase toda a ajuda
externa americana. Nesta semana, Elon Musk, encarregado de eficiência
governamental, iniciou o desmantelamento da Usaid, a agência
americana de cooperação internacional. Isso vai afetar programas contra a fome
ou que beneficiam pacientes de aids em países pobres da Ásia, África e América
Latina.
A Usaid poderia ser melhorada? Tudo pode ser melhorado. Mas
cortar esses programas não busca eficiência. É apenas crueldade. Ironicamente,
é o homem mais rico do mundo que está cortando ajuda literalmente vital a
milhões de pobres pelo planeta.
Do mesmo modo, Trump anunciou a saída dos EUA da Organização
Mundial da Saúde (OMS) e do acordo de Paris. Pouca gente parece
satisfeita com a gestão de Tedros Adhanom à frente da OMS, mas deixar a
entidade significa enfraquecer a capacidade global de reação a epidemias, por
exemplo. A Argentina, que possivelmente mais ganha do que gasta com a OMS,
também resolveu sair, num gesto de agrado político de Javier Milei a Trump.
Trump também anunciou e depois recuou de tarifas de
importação de 25% sobre produtos da Colômbia, México e Canadá.
Supostamente o recuo é por ter obtido concessões. Mas as tarifas contra os
países da América do Norte causaram um forte abalo nos mercados e possivelmente
a Casa Branca foi alvo de pressões do meio empresarial americano.
Já as tarifas contra a China, principal alvo do presidente
na campanha eleitoral, entraram em vigor, mas em modestos 10%. Como a moeda
chinesa já perdeu quase 4% do valor em relação ao dólar desde setembro, isso
atenua o impacto da tarifa, que é administrável para os chineses. A relação
moderada com Pequim favorece especulações de que Trump está negociando uma
grande barganha com o presidente Xi Jinping.
Segundo vários estudos que estão sendo publicados nos EUA,
as tarifas ameaçam aumentar a inflação nos EUA, o que pode manter os juros
altos por mais tempo. O resultado final é um crescimento menor.
A estratégia negocial de Trump é, a essa altura, bem
conhecida. Ele ameaça ou às vezes até adota medidas punitivas, negocia e recua
de muitas delas após obter qualquer concessão que possa chamar de vitória,
ainda que isso não venha a se concretizar. Foi o que ocorreu no seu governo
anterior, quando Pequim não cumpriu o acordo de compra de produtos americanos.
Mas, mesmo sendo em parte uma estratégia negocial, as
ameaças comerciais movem expectativas e influenciam decisões. Que empresa vai
investir no México sem saber se poderá exportar para os EUA? Se o objetivo é
trazer empresas para produzir nos EUA, o tiro também pode sair pela culatra.
Que empresa vai investir nos EUA sem saber para quem poderá exportar, de onde
poderá comprar insumos e com quais tarifas? Confiança é um acelerador dos
negócios; já incertezas são um freio. O risco, ao final, é o de todos ficarmos
mais pobres.
Internamente, ao invés de tentar reformar setores do
governo, Trump (junto com Musk) está adotando a estratégia de destruir primeiro
para reconstruir depois. É o que aconteceu com a Usaid, mas também com
áreas afetadas por cortes de gastos (alguns derrubados judicialmente), por
tentativa de redução de pessoal com programa de demissão voluntária (para o
qual não há dotação orçamentária) ou ameaças de demissões.
O objetivo desses cortes de gastos (inclusive com a ajuda
externa) e pessoal parece ser puramente fiscal: abrir espaço para reduzir
impostos para as empresas americanas. O governo federal americano tem cerca de
3 milhões de funcionários civis e responde por apenas 15% dos servidores
totais. O grosso, mais de 17 milhões, está nos Estados e municípios. Ou seja, o
risco de disrupção é grande, mas a economia pode ser pouca.
Além disso, muitas dessas medidas serão (ou já estão sendo)
contestadas na Justiça americana. Foi o caso do cancelamento da concessão de
cidadania americana a filhos de estrangeiros que não são residentes nos EUA. Ou
da ameaça de demitir agentes do FBI (a polícia federal americana) que
participaram de investigações contra Trump. Podem ser milhares.
Tudo isso está causando muita incerteza e uma grande
confusão em setores da administração federal americana e possivelmente
prejudicando a execução de serviços e a sua eficiência. Como o Estado é o maior
provedor de serviços, o risco é essa disrupção toda causar ineficiências, que
custam dinheiro às pessoas e às empresas.
Por fim, há o risco de Trump estar gerando uma nova onda
global de antiamericanismo. Isso não pode prejudicar os EUA, se
causar boicotes a produtos e serviços americanos. No Canadá, talvez o mais fiel
aliado dos EUA, houve vaias contra o hino americano em partidas de basquete e
hóquei no gelo, e o premiê Justin Trudeau pediu à população
que não compre produtos americanos e não viaje de férias para os EUA. O
governador de Ontário, a principal província canadense, ameaçou romper um
acordo de US$ 100 milhões com a empresa de internet por satélite Starlink, de
Musk. A deportação de milhares, talvez milhões, de imigrantes ilegais dos EUA
também ameaça a imagem do país na América Latina. Uma eventual retirada forçada
da população palestina de Gaza seria uma tragédia também para a reputação de
Washington.
O crescente isolacionismo dos EUA e uma possível onda de
antiamericanismo podem também prejudicar interesses americanos em todo o
mundo. É muito provável que a China ocupe parte do espaço deixado, por
exemplo, pela retirada da ajuda externa americana e pela saída dos EUA da OMS.
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