As extravagâncias do presidente americano podem unir a Europa e dela reaproximar o Reino Unido, que se retirou da UE
A eleição para o parlamento alemão confirmou expectativas ruins para a maior economia da Europa. As duas maiores legendas tradicionais, a União Democrata Cristã (CDU) e sua aliada União Social Cristã (CSU), com 28,5% dos sufrágios, venceram o pleito, mas tiveram seu segundo pior desempenho nas urnas desde 1949. O SPD, a social-democracia alemã, foi pior. Depois do fraco governo de Olaf Scholz, obteve 16,4% dos votos, o menor apoio desde 1887. Avançaram a extrema-direita da Alternativa para a Alemanha (AfD), com 20,8%, e a Esquerda (Die Linke), com 8,5%, que conquistou votos dos jovens entre 18 e 24 anos. Friedrich Merz, líder do CDU, poderá ´formar governo com os social-democratas, com maioria tênue de 13 cadeiras nas 630 do Bundestag. Poderia parecer mais um governo de coalizão dos contrários no estilo alemão, mas nada está tão distante disso. O mapa geopolítico está mudando e colocou sérios desafios para a segunda maior economia da região, a Franca, onde Emmanuel Macron sofre o cerco da esquerda e da extrema-direita. O eixo da estabilidade europeia, a aliança França-Alemanha, está abalado.
A eleição foi mais disputada que as demais - teve um dos maiores engajamentos da história, com 82,5% de comparecimento -, por fatores internos e externos. Entre os primeiros, estão a forte onda de apoio ao AfD, partido que abriga neonazistas, com alguns membros hoje na prisão por tentativa de golpe de Estado, e uma crise econômica que levou o país à beira da estagnação econômica. Mas os fatores externos são tão ou mais importantes quanto os domésticos para sinalizar o futuro. Nunca se viu o governo americano fazer propaganda eleitoral aberta a favor da extrema-direita, e interferir diretamente nos assuntos internos de um país desenvolvido, ainda por cima um aliado dos EUA de longa data.
Elon Musk, o bilionário com funções no governo de Donald Trump, participou por vídeo de solenidades da AfD. O vice-presidente J. D. Vance foi mais agressivo. Ele disse na Conferência de Segurança Europeia que o maior desafio da Europa não era a Rússia, que deixou o continente sem gás, mas o “afastamento da Europa de seus valores democráticos mais fundamentais”. Criticou o cordão de isolamento, criado desde o fim da Segunda Guerra, pelos partidos democráticos para separar as legendas extremistas, para em seguida encontrar-se com Alice Weidel, colíder da AfD.
O progresso da extrema-direita não é uma fatalidade nem tampouco inexorável no futuro. Ele alimentou-se do descontentamento geral com o fraco e indeciso governo tripartite de Olaf Scholz, da paralisia da outrora poderosa máquina econômica alemã e de atentados recentes realizados por imigrantes no país. Há décadas seu congênere francês, o RPR, hoje chefiado por Marine Le Pen, tenta, sem sucesso, chegar a presidir a França. Já os trabalhistas ingleses deram uma surra na direita radical de Nigel Farage, o Reform UK. Partidos ultraconservadores na Espanha e Portugal cresceram, mas têm sido derrotados.
A tarefa do novo governo alemão foi em parte facilitada porque o prognóstico de uma maior fragmentação da representação partidária no parlamento não se confirmou. Os liberais do FDP e os stalinistas do BSW não ultrapassaram a barreira dos 5%, desobrigando Merz da penosa tarefa de formar uma coalizão com três ou mais partidos. Com os social-democratas, é possível ter a maioria, menos para um ponto vital do programa da CDU do qual Scholz discordou e derrubou a aliança na gestão passada, abrindo caminho a novas eleições: o freio da dívida.
A Constituição alemã obriga o governo federal e os Estados ao equilíbrio orçamentário e não permite que endividamento via crédito conte como receitas para fechar as contas. O governo federal tem um atenuante de 0,35% do PIB de US$ 4,2 trilhões (ou US$ 15 bilhões) para gastos em situações extraordinárias. O objetivo da CDU é aumentar as despesas com armamentos, o que os governos europeus estão fazendo depois que os “EUA se tornaram amplamente indiferentes ao destino da Europa”, nas palavras de Merz.
As ações de Trump apontam na direção de uma nova ordem em que ditarão as regras os EUA, a China, a Rússia e quem mais as idiossincrasias do presidente americano julgarem digno de negociação. Ao alijar os europeus na negociação da paz na Ucrânia, não considerar a invasão russa como agressão e extorquir a Ucrânia para que pague pelo auxílio militar, Trump deu uma amostra do que será a lei dos mais fortes no mapa de poder global.
A Europa, por sua força militar e econômica - maior bloco comercial do mundo e maior exportador de bens e serviços -, pode firmar-se como uma alternativa em um mundo multipolar, se conseguir achar seu centro. As extravagâncias de Trump podem unir a Europa e dela reaproximar o Reino Unido, que se retirou da UE. Espaços comerciais e políticos abertos serão importantes para potências médias como o Brasil, que até hoje evitaram alinhar-se em disputas de blocos hegemônicos. Ao afirmar sua independência, a Europa pode tornar-se um anteparo às tendências autoritárias que Trump tenta hoje galvanizar.
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