Em nome do slogan de sua campanha, Trump vem perturbando
as relações internacionais e enfraquecendo as organizações multilaterais
Acena foi curta, mas rendeu imagens marcantes. Durante a
Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC, na sigla em inglês) realizada
na semana passada em National Harbor, Maryland, o presidente argentino Javier
Milei entregou uma reluzente motosserra vermelha ao bilionário Elon Musk,
encarregado pelo presidente norte-americano, Donald Trump, de reduzir o peso do
Estado. Naquele momento, embora enfrentando uma crise política interna gerada
por seu envolvimento no escândalo com criptomoedas que provocou prejuízos para
seus concidadãos, Milei pôde desfrutar de uns poucos minutos de atenção da
imprensa mundial. Motosserra foi um dos símbolos de sua campanha presidencial,
baseada na promessa de profundos cortes de gastos do governo. Reduzir despesas
públicas é também a função de Musk no governo Trump.
Com empresas gigantescas de sua propriedade
para gerir, Elon Musk ainda tem tempo para trabalhar no corte de gastos da
administração pública federal dos Estados Unidos para reduzir o déficit do
governo em US$ 1 trilhão. O programa é parte do projeto de reduzir a
interferência do Estado nas atividades econômicas e na vida das pessoas. Até a
semana passada, de acordo com o Departamento de Eficiência Governamental
(Doge), chefiado por Musk, a economia já alcançava US$ 55 bilhões.
Conduzido por pessoas que veem certas ações públicas como
desnecessárias e custosas demais, especialmente quando se trata do apoio aos
mais necessitados, um programa dessa natureza traz riscos de esvaziar
perigosamente o papel do Estado. Em coluna publicada no Financial Times, de
inspiração liberal, seu principal comentarista, Martin Wolf, fez uma vigorosa
defesa do Estado. Quanto mais complexas as sociedades, mais vital será o papel
das instituições como o Estado, disse Wolf. Quando se unem as forças que consideram
de pouca importância o papel do Estado no atendimento às necessidades do grande
público, prenunciam-se “autocracia, plutocracia e disfunção”.
É difícil imaginar como isso poderá vir a acontecer nos
Estados Unidos. Mas a gestão Trump tem suscitado dúvidas sobre como será o
mundo daqui a algum tempo. Instituições tradicionais nacionais e internacionais
estão sendo questionadas vigorosamente pelo ocupante da Casa Branca e por sua
equipe, especialmente Elon Musk e o vice-presidente J. D. Vance.
Em nome do slogan de sua campanha (Make America Great Again,
Maga), Trump vem perturbando as relações internacionais e enfraquecendo as
organizações multilaterais construídas e modernizadas nos últimos 70 ou 80 anos
à custa de muitas negociações e concessões. É parte do programa de redução de
despesas com essas organizações, mas sobretudo de retirada dos Estados Unidos
de instituições internacionais que impõem obrigações a seus membros. Embora já
fracos, muitos desses organismos continuam a ter papel relevante no
relacionamento e na cooperação entre os países para o enfrentamento de grandes
problemas mundiais, da paz ao combate à pobreza, do meio ambiente à preservação
da saúde da população do planeta.
Já no dia de sua posse, em 20 de janeiro, Trump anunciou a
retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS), alegando má
atuação da instituição no combate à pandemia de covid-19 e acusando-a de estar
sujeita a “influência política inapropriada de seus Estadosmembros”. Difícil
imaginar como o mundo teria enfrentado a pandemia de 2020 sem o papel de
articulação desempenhado pela OMS. Também é difícil admitir que uma instituição
não esteja sujeita a influências de seus membros.
Com as taxas de importação que impôs unilateralmente a todos
os demais países, o governo Trump rompeu regra essencial do antigo Acordo Geral
de Tarifas e Comércio (Gatt), estabelecido em 1947, que se transformou na
Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995. Já em processo de
enfraquecimento desde o primeiro governo Trump (2017-2021), a OMC perde mais
poder com a nova decisão dos Estados Unidos.
No início deste mês, Trump assinou decreto punindo o
Tribunal Penal Internacional (TPI) por investigar os Estados Unidos e países
aliados, como Israel. O TPI foi estabelecido em 1998 como tribunal permanente
para processar pessoas por crimes contra a humanidade, delitos de guerra e
genocídio. Em novembro de 2024, o TPI emitiu mandado de prisão contra o
primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e um então líder do Hamas. O decreto de
Trump impõe sanções financeiras e de vistos para pessoas e familiares que ajudarem
nas investigações do tribunal sobre cidadãos americanos ou de países aliados
aos Estados Unidos.
Para a Europa, a semana passada foi a mais sombria desde a
queda da Cortina de Ferro, publicou a revista britânica The Economist. “A
Ucrânia está sendo vendida, a Rússia está sendo reabilitada e, sob Trump, não
se pode mais contar com os Estados Unidos para ajudar a Europa em tempos de
guerra”, disse a revista. Nem a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(Otan), de papel essencial durante a guerra fria, está a salvo.
Afinal, alguém pode se considerar a salvo com o que Trump,
Musk e companhia vêm anunciando e fazendo?
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