Comissão de conciliação mostrou que salvaguardar esses
direitos não é seu objetivo
Embora o Supremo tenha declarado inconstitucional a tese
do marco
temporal, o Congresso Nacional aprovou em 2023 nova legislação
reintroduzindo esse obstáculo ilegítimo à demarcação de terras indígenas em
nosso ordenamento jurídico.
Sob o pretexto de pacificar e reconciliar as partes
envolvidas em conflitos em torno de terras indígenas, foi criada uma comissão
de conciliação no âmbito do STF. A condução da
comissão surpreendeu mesmo os mais céticos.
Desde o início dos seus trabalhos a comissão deu sinais de
que salvaguardar os direitos originários dos povos indígenas não era seu
objetivo. Afinal, sendo direitos originários e inalienáveis, não poderiam ser
objeto de barganha.
A desqualificação da representação dos
povos indígenas durante as sessões foi um alerta do que viria. Um processo que
deveria ser consensual e participativo tornou-se excludente, resultando na
subordinação dos direitos dos povos indígenas aos interesses econômicos
daqueles que ameaçam suas terras.
A Apib (Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil), reconhecida pelo próprio STF como legítima
representante dos povos indígenas nas ações constitucionais, viu-se obrigada a
abandonar a mesa de negociação por não se sentir ouvida. Mesmo na ausência
dessa importante representação indígena, o processo de conciliação seguiu seu
rumo, sem considerar que conciliação, quando imposta, não reconcilia, como
elegantemente pondera Luiz Armando Badin, meu colega de Comissão Arns.
Além desse vício insanável em um autêntico processo de
conciliação, também causou enorme perplexidade o fato de que o tema da
mineração em terra indígena, que não foi objeto de uma discussão mais profunda
durante as sessões, se tornou o centro da proposta apresentada como resultado
da conciliação.
A proposta de lei complementar, além de alterar o
procedimento para a demarcação de terras indígenas, promovendo insegurança
jurídica e incentivando novas invasões e conflitos, abriu espaço para um
procedimento temerário voltado a autorizar a mineração em terras indígenas. Sem
considerar as salvaguardas necessárias, estabeleceu um conjunto de
circunstâncias que mitigam a consulta prévia, além de permitir, em determinadas
situações, que a vara mágica do interesse público seja invocada para autorizar
a lavra sem prévio estudo de impacto.
Ao trazer para dentro das muralhas da Constituição proposta
legislativa que subordina os direitos inalienáveis dos povos indígenas a
interesses políticos e econômicos, a comissão de conciliação funcionou como um
verdadeiro Cavalo de Troia.
Cumpre à maioria dos ministros do STF, agora, conter essa
iniciativa. A função do tribunal é guardar a Constituição e, com especial
ênfase, proteger os direitos de minorias vulneráveis. Os direitos originários
dos povos indígenas não constituem privilégios. Ao contrário, são direitos que
transcendem, em muito, os interesses dos próprios povos indígenas. Sua função
não é apenas fazer justiça a povos que tiveram suas culturas e modos de vida
violados pela violência e pela usurpação, mas também assegurar que esses povos
possam continuar a exercer o papel de guardiões de nossas florestas e de nossa
biodiversidade.
Garantir os direitos dos povos indígenas é, mais do que
nunca, indispensável para mitigar os efeitos das mudanças climáticas, assim
como para assegurar condições mínimas de existência para as futuras gerações.
O STF não pode se furtar a essa obrigação.
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