quarta-feira, 5 de março de 2025

DE ROOSEVELT A TRUMP

Luiz Gonzaga Belluzzo, Valor Econômico

Os eflúvios protecionistas são escoltados pela súcia de super-ricos que se empenham no projeto de apropriação privada das instituições do Estado

No Congresso do Partido Democrata, em 1936, Franklin D. Roosevelt discursou sobre as ameaças da oligarquia financeira para a sociedade: “Era natural e talvez humano que os príncipes privilegiados dessa nova dinastia econômica, sedentos por poder, tentem alcançar o controle do próprio governo. Eles criaram um novo despotismo e o embrulharam nos vestidos de sanções legais. Em seu serviço, novos mercenários procuraram regimentar o povo, seu trabalho e sua propriedade.”

Mais adiante Roosevelt fulminou: “Novos impérios foram construídos a partir do controle das forças materiais. Mediante o novo uso das corporações, dos bancos e da riqueza financeira, da nova maquinaria da indústria e da agricultura, do trabalho e do capital – nada disso sonhado pelos fundadores da pátria –, a estrutura da vida moderna foi totalmente convertida ao serviço da nova realeza. Não havia lugar nos seios da nova nobreza para abrigar os milhares de pequenos negócios e comerciantes que desejavam fazer um uso sadio do sistema americano de livre-iniciativa e busca do lucro.”

O espaço econômico internacional, na posteridade da Segunda Guerra Mundial, foi construído a partir do projeto de integração entre as economias nacionais proposto pelo Estado americano na reunião de Bretton Woods.

A concepção da ordem internacional nascida das ideias do New Deal imaginava erigir um sistema monetário-financeiro capaz de estimular o desenvolvimento do comércio entre as nações. Isso seria feito dentro de regras monetárias que garantissem a confiança na moeda-reserva, sem o ajustamento deflacionário dos balanços de pagamentos, mas, antes, permitindo o abastecimento adequado da liquidez às transações em expansão. Tratava-se, portanto, de erigir um ambiente econômico internacional destinado a propiciar um amplo raio de manobra para as políticas nacionais de desenvolvimento, industrialização e progresso social.

“A América vai ser grande outra vez” ou “Vamos devolver os empregos aos americanos”. Em suas arengas eleitoreiras, Trump prometia impor tarifas sobre produtos chineses, mexicanos canadenses e europeus além de promover a volta das empresas americanas (des)localizadas em plagas não americanas.

Os eflúvios protecionistas são escoltados pela súcia de super-ricos que se empenham no projeto de apropriação privada das instituições do Estado. Em seus movimentos, Donald Trump e Elon Musk realizam os propósitos da democradura.

Ao responder à governadora do Maine que invocava a lei e os tribunais para se defender das ameaças do presidente desvairado, Trump expressou com clareza sua cumplicidade com a democradura. “Eu sou a lei.”, disparou o alucinado.

Diante dessa declaração, irromperam forças do passado que recordaram o dito do rei da França Luis XIV, L’Etat c’est Moi. Argumenta o historiador Herberth Rowen da Duke University: o Estado não poderia ser propriedade privada do Rei, pois o termo "privado" aplicado à propriedade representa uma negação do caráter público, e o problema diz respeito à propriedade do poder público. O rei francês sempre foi visto na teoria política e jurídica como o titular de um cargo, isto é, como o destinatário da função delegada e da autoridade, enquanto a "propriedade" era inerente, era própria, não delegada. Como então o cargo e a propriedade poderiam coexistir na mesma instituição? A frase de Luis XIV estava fundada nas concepções do Estado Absolutista.

Seguimos com a história. Ainda antes da Segunda Guerra Mundial, em carta a um amigo, Wilhelm Röpke, um dos corifeus do liberalismo autoritário, desvelou a incompatibilidade entre seu ideário e a democracia geral e irrestrita. “É possível que minha opinião sobre um ‘Estado forte’ (um governo que governa) seja ainda ‘mais fascista’, porque eu realmente gostaria de ver todas as decisões de política econômica concentradas nas mãos de um Estado vigoroso e totalmente independente e não fragilizado pelas forças pluralistas de natureza corporativista... Estou procurando a força do Estado na intensidade e não na abrangência de sua política econômica. (...)Compartilho a opinião de que as velhas fórmulas da democracia parlamentar demonstraram sua futilidade. As pessoas precisam se acostumar com o fato de que há também uma democracia presidencial, autoritária, sim, e até mesmo – horribile dictum – uma democracia ditatorial.”

Em 1942, Röpke revisitou as categorias Dominium e Imperium. Dominium significa “dominância sobre as coisas”, Imperium significa “dominância sobre os homens”. Ele diz: “Imperium e Dominium estão separados no mundo do liberalismo clássico”. Já o trumpismo deve manter a convergência entre essas duas esferas, o que corresponde à visão de um “governo duplo”: haveria um mundo de economia e da propriedade, coexistindo com outro mundo, o dos espaços jurídico-políticos onde vivem e padecem os homens de carne e osso.

Corey Robin, em artigo sobre as afinidades entre Nietzsche e Hayek, afirma que o economista austríaco admite a necessidade das “decisões de uma elite governante” com antidoto às trapalhadas da malta ignara. Nas páginas do famoso livro The Road to Serfdom, Hayek escreve: “O empregador e o indivíduo independente estão empenhados em definir e redefinir seu plano de vida, enquanto os trabalhadores cuidam, em grande medida, de se adaptar a uma situação dada”. Ao trabalhador de Hayek faltam responsabilidade, iniciativa, curiosidade e ambição. É um perdedor.

Por isso, nos escritos político-jurídicos, Hayek não hesita em escolher o liberalismo diante dos riscos da democracia. “Há um conflito irreconciliável entre democracia e capitalismo – não se trata da democracia como tal, mas de determinadas formas de organização democrática... Agora tornou-se indiscutível que os poderes da maioria são ilimitados e que governos com poderes ilimitados devem servir às maiorias e aos interesses especiais de grupos econômicos. Há boas razões para preferir um governo democrático limitado, mas devo confessar que prefiro um governo não democrático, limitado pela lei, a um governo democrático ilimitado (e, portanto, essencialmente sem lei).”

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