terça-feira, 8 de abril de 2025

A VIOLÊNCIA BANALIZADA

Jorge J. Okubaro, O Estado de S. Paulo

Armas são necessárias no combate à criminalidade, mas quando usadas por funcionários públicos adequadamente preparados para isso

Deu no jornal: Mortes de menores em ações policiais em SP mais do que dobram (Estadão, 4/4, A16). Mais do que espanto, um título desses deveria causar indignação, revolta. Mesmo num país em que a violência se tornou a maior preocupação da população, a informação de que não apenas a polícia de São Paulo mata crianças, meninos e adolescentes, mas de que passou a matar mais deveria levar-nos a refletir sobre o que estamos fazendo com os jovens, e sobretudo como permitimos que a ação policial chegasse a esse ponto.

Estatisticamente, o aumento de 120% no número de crianças e adolescentes que morreram em decorrência de intervenções policiais no Estado de São Paulo entre 2022 e 2024 resulta da comparação de números relativamente baixos (35 vítimas em 2022 e 77 em 2024). Estes números foram apurados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e fazem parte do estudo As câmeras corporais na Polícia Militar do Estado de São Paulo (2.ª edição): mudanças na política e impacto nas mortes de adolescentes. Não se trata, porém, de mera estatística. Nem se pode dizer que se trata, como se justifica em certas ações, de danos colaterais. Vidas em construção foram brutalmente interrompidas pela ação policial.

Assassinatos de crianças e adolescentes não são problema novo. Os números são chocantes. Não podem ser banalizados. Relatório de 2024 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mostrou que, entre 2021 e 2023, o Brasil registrou morte violenta intencional de pelo menos 15.101 crianças e adolescentes. Essa categoria (morte violenta intencional) inclui registros criminais de homicídio doloso, feminicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e morte decorrente de intervenção policial em serviço ou não. Somam-se aqui apenas os casos registrados. Certamente há subnotificação.

Em debate na Comissão de Direitos Humanos do Senado em agosto do ano passado, o pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Cauê Martins disse que os números evidenciam uma realidade brutal “e dimensionam o fracasso da sociedade brasileira, que banaliza a morte violenta intencional de 13 crianças por dia”. Participantes do debate disseram que os índices mostram uma epidemia de violência contra os jovens.

Há particularidades na violência letal que atinge crianças e adolescentes, observou Martins. Houve redução do número total de mortes violentas intencionais no País nessa parcela da população, mas a redução não foi homogênea entre as diferentes faixas etárias. Nas faixas de 10 a 14 e de 15 a 19, o número de mortes diminuiu, mas, o que é assustador, aumentou na de crianças mais novas, especialmente de 0 a 4 anos. A pesquisa trata de mortes violentas de todas as naturezas; as decorrentes de ações policiais compõem parcela pequena.

No caso da ação policial no Estado de São Paulo, é preciso destacar que não se trata de violência individual do agente ou dos agentes das forças de repressão causada por estresse, forte emoção, descontrole ou outro fator de natureza psicológica ou pessoal, embora esse tipo de causa possa ter havido em algum episódio. O que torna mais grave o aumento do número de crianças e adolescentes mortos pela polícia do Estado de São Paulo é o fato de ser decorrência de decisões tomadas em instâncias superiores da segurança pública. Trata-se de um efeito da política do governo de Tarcísio de Freitas.

O relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre o uso de câmeras corporais pela Polícia Militar (PM) do Estado de São Paulo observa que mudanças nas políticas de controle da corporação resultaram em aumento de 153,5% entre 2022 e 2024 nas mortes em intervenções policiais. O número de mortes em ações de batalhões que utilizam câmera corporal aumentou mais (175,4%) do que nos que não usam (129,5%). Mas é apenas uma casualidade. Dados a partir de 2020, quando a PM adotou o programa de câmeras, mostram notável redução da letalidade das unidades que utilizam o equipamento, o que demonstra sua eficácia. O que o crescimento recente mostra é apenas que, a partir de 2023, isto é, no governo atual, a letalidade aumentou muito em toda a PM, com ou sem o uso da câmera corporal.

A missão da polícia é garantir segurança e paz, sem acentuar ou perpetuar a violência, especialmente a praticada em nome do combate ao crime, mas fora dos limites da lei. Despreparo, ineficiência dos setores de inteligência, apologia da violência, desrespeito aos direitos do cidadão e conivência com organizações criminosas vêm sendo apontados como graves vícios de forças policiais em diferentes regiões. Boa parte dos governantes ainda ameaça puxar o revólver quando fala de reforçar a segurança pública. Armas são necessárias no combate à criminalidade, mas quando usadas por funcionários públicos adequadamente preparados para isso. Nem sempre tem sido assim.

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