O Brasil não reconhece mais a si próprio, não consegue
compreender a profundidade das mudanças em curso e não faz escolhas
inteligentes
Nenhuma sociedade pode ser indiferente à sua história. Ela
transmite características que condicionam o modo como as sociedades vão se
forjando. Pode até mesmo fornecer certas “vantagens”. É preciso, portanto,
avaliar com rigor o “peso do passado”.
No imaginário brasileiro, porém, o passado seria uma
maldição. Fomos nos acostumando a selecionar aspectos particularmente nefastos
de nossa história – a escravidão, as ditaduras, as desigualdades reproduzidas
ao longo do tempo – para, então, concluir que estamos avançando com bolas de
chumbo presas aos pés, levando-nos a buscar modelos externos (países europeus
ou os Estados Unidos) para nos inspirar. Com isso, deixamos de lado o que houve
de virtuoso e “vantajoso” antes.
Num importante livro recém-publicado –
Sinfonia barroca: o Brasil que o povo inventou (Ateliê de Humanidades, RJ,
2025) –, o cientista político Rubem Barboza Filho nos convida a seguir outro
rumo. Com uma pesquisa minuciosa e amplo diálogo com as Ciências Sociais, ele
argumenta que, no Brasil colônia, uma rala população de indígenas, negros,
estrangeiros e mestiços conseguiu forjar uma sociedade impressionantemente
dinâmica e aberta, que não só ocupou o vasto território de que dispúnhamos,
como também ativou uma economia produtiva que atingiu o auge no final do século
18, impulsionada pelo comércio, pelo trabalho com a terra e pelo ciclo do ouro.
Aquela sociedade não cresceu estruturada, não dispôs de
instituições que lhe dessem coesão nem de um poder central que a dirigisse. A
Coroa portuguesa estava distante e o território era vasto demais para ser
administrado por quem quer que fosse. Foi-se então constituindo uma sociedade
composta de diferentes “socialidades”, sem uma estrutura clara. A população, ao
se distribuir pelo território, assumiu a forma de uma multidão, que adquiriu
alguma coalescência graças à elaboração de uma linguagem comum, que misturava o
português, as línguas indígenas e africanas, algo de francês e espanhol, para
criar uma língua nova, que aos poucos passou a ser falada por todos,
funcionando como elo de coesão.
Para Barboza Filho, no decorrer dos três primeiros séculos
emergiu “uma forma de vida criada de baixo para cima, num constante aprendizado
da multidão de homens e mulheres comuns, economicamente dinâmica e
politicamente mais aberta, socialmente complexa e mestiça no plano cultural e
religioso”. A experiência teve grande originalidade e projetou a colônia para o
mundo. No início do século 19, o Brasil produzia riqueza comparável à dos
Estados Unidos.
Com a Independência, surge um poder central que, bem ou mal,
passa a cobiçar o território de modo mercantil, concorrendo com a multidão
produtiva que preexistia. Pior: avolumou-se a escravidão, que se tornou negócio
extremamente lucrativo e se articulou com o “ciclo do café”. Por um lado, isso
rebaixou negros e indígenas; por outro, dividiu o País entre um Sudeste rico e
um “resto” quase abandonado. A própria multidão criativa perdeu dinamismo. No
final do século 19, a riqueza nacional era dez vezes menor do que a
norte-americana. Nem a República mudou o cenário.
Vieram depois os anos 19201930, a ditadura de Vargas com sua
valorização autoritária do povo trabalhador. Mais tarde, o golpe de 1964, com
sua “modernização demofóbica”. O retorno à democracia, a partir de 1985, trouxe
esperanças e novas possibilidades, mas na sequência aprofundou-se o embate
político entre as forças que se destacaram na transição (MDB, PT e PSDB). O
Brasil entrou no século 21 com a política ficando progressivamente inoperante e
alheia à nova estrutura do mundo.
O livro de Barboza Filho chama a atenção para uma de nossas
chagas históricas: a inexistência de “elites”, lideranças imbuídas de um
propósito maior, de uma visão abrangente e de caráter público e estatal. As
“elites” que por aqui surgiram não proliferaram nem alçaram voo.
A recuperação de nosso passado “virtuoso” e dos entraves que
impediram sua florescência é um desafio para nosso imaginário e nossa
inteligência científica. Hoje, o Brasil não reconhece mais a si próprio, não
consegue compreender a profundidade das mudanças em curso e não faz escolhas
inteligentes para enfrentar os desafios atuais e aplainar o futuro. Flutua como
um transatlântico à deriva, sem controle do leme. Não sabe buscar em seu povo o
fator fundamental para se emancipar democraticamente. A própria política que
aqui se pratica está apodrecida, sem partidos e líderes de envergadura. Focada
em eleições.
Seguimos acreditando que a solução para nossos dilemas passa
por figuras carismáticas ou por instituições redentoras (as Forças Armadas, o
Supremo Tribunal Federal). A extrema direita grita e mobiliza, mas nada propõe.
A esquerda fala em “revolução social”, mas não sabe qual é seu agente.
Poucos percebem que um programa ousado de ação precisa ser
sustentado por um bloco de forças orientado por uma ideia de futuro para todos.
É um buraco com que dialogamos há décadas e que não temos
conseguido ultrapassar.
*Professor titular de teoria política da Unesp



















