Ao aprovar PEC da Blindagem, Câmara transforma mandatos
em escudos de impunidade, violenta a Constituição, trai a representação popular
e abre as portas do Congresso para o crime organizado
A Câmara escreveu uma das páginas mais vergonhosas de sua
história ao aprovar, no dia 16 passado, a Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) 3/2021, a chamada PEC da Blindagem. Como se sabe, pretende-se tornar
deputados e senadores praticamente inimputáveis ao impedir que sejam
investigados, processados e até presos em flagrante por crime inafiançável sem
que para tanto haja licença prévia de suas respectivas Casas Legislativas. Há
poucos dias, o Estadão revelou que entre 1988 e 2001, período
em que a licença prévia vigorou no País, só uma mísera vez o Congresso
autorizou que um de seus membros fosse investigado pelos crimes de que foi
acusado. O que reinou foi o espírito de corpo, quando não o compadrio.
Não satisfeitos em esbofetear a sociedade legislando
escancaradamente em causa própria, mais de 340 deputados ainda violentaram a
Constituição em seu princípio mais elementar – a igualdade de todos perante a
lei. Até para os padrões desta legislatura é espantosa a desfaçatez com que a
Câmara traiu sua missão de ser “a tribuna onde a Nação fala”, para lembrar Ruy
Barbosa, um gigante do Parlamento brasileiro. Sob a falsa justificativa de
proteger o mandato parlamentar de supostos “abusos” e “atropelos” que teriam
sido cometidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os deputados decidiram
colocar-se acima da lei, nada menos, furtando-se em responder pelos crimes que
vierem a cometer.
Nesse sentido, a PEC da Blindagem, que bem poderia ser
chamada de PEC da Impunidade, deve ser vista como um ataque frontal à
democracia representativa. Se promulgada, estará criado o ambiente no qual
bandidos poderão ficar impunes apenas porque lograram obter um mandato eletivo.
Deputados de todos os matizes ideológicos, do governo e da oposição, deram-se
as mãos para escarnecer dos eleitores.
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), um
anão diante da grandeza institucional do seu cargo, abusou da má-fé e afrontou
a inteligência alheia em seu discurso em defesa da PEC da Blindagem. Em tom
solene que mal escondia a desfaçatez, Motta ignorou a história da Nova
República e distorceu o contexto da Assembleia Nacional Constituinte
disseminando a lorota de que a Casa, ora vejam, só estaria restaurando o texto
original da Carta de 1988. É preciso recordar, então, que o dispositivo da licença
prévia, àquela época, era a resposta idealizada a um momento da vida nacional
totalmente distinto. O Brasil mal havia saído de uma ditadura militar. Os
constituintes originários buscavam proteger o mandato parlamentar de eventuais
arbitrariedades em uma transição de regime ainda em andamento.
A realidade hoje é completamente diferente. O regime
democrático está consolidado. Parlamentares já têm assegurada pela Lei Maior a
inviolabilidade civil e penal por suas opiniões, palavras e votos. Ademais, há
quase 40 anos, o País não estava assolado pela infiltração de organizações
criminosas de caráter mafioso no sistema político nem tampouco pela rapinagem
de recursos bilionários do Orçamento por meio de emendas parlamentares – é
contra a investigação desses desvios que os deputados querem se proteger.
Como se nada disso bastasse, a PEC da Blindagem ainda é um
convite para que membros de facções como o PCC e o Comando Vermelho entrem no
Congresso pela porta da frente. Se antes as organizações criminosas já
exploravam o mandato de maus parlamentares como espécie de casamata em defesa
de seus interesses no Legislativo, agora têm o incentivo adicional para
financiar candidaturas de seus próprios gângsteres e, assim, blindá-los do
alcance da lei sem intermediários. O que a Câmara aprovou, portanto, foi um programa
de fomento à criminalidade política no País.
Agora resta torcer para que o Senado se erga como o adulto
na sala desta república tão maltratada e enterre de vez a ignomínia que passou
na Câmara, resgatando alguma aura de decência para o Congresso perante a
opinião pública. A democracia brasileira estará novamente sob risco se a Casa
Alta for cúmplice de uma delinquência política, nada menos. Não à toa, a
eleição para o Senado no ano que vem tem despertado a atenção de muita gente –
não necessariamente gente bem-intencionada.


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