Com o apoio de Motta, o bolsonarismo se apropria e
insiste em desfigurar o PL Antifacção. Mas o plano tem furos
Furto custa quatro anos de cadeia. A pena dobra quando o
autor se aproveita da confiança da vítima. A Lei Antifacção proposta pelo
governo Lula contra o crime organizado foi surrupiada metaforicamente na Câmara
dos Deputados. Enquanto bandeira política, foi parar nas mãos do bolsonarismo.
Seu nome e teor de momento não lembram em nada a proposta presidencial. O
líder do PT, Lindbergh Farias, citou nas redes sociais a acusação de furto com
abuso de confiança. E culpou Guilherme Derrite, o deputado PM que é secretário
de Segurança Pública do estado de São Paulo. Derrite encaixa-se melhor no papel
de receptador. O verdadeiro culpado, aquele que afanou a lei lulista e entregou
ao receptador, é outro, o presidente da Câmara, Hugo Motta.
Cabe a Motta decidir o deputado que dá a
cara final a um projeto antes da votação. É uma prerrogativa do cargo. O
paraibano designou Derrite para cuidar da lei lulista. Quando a escolha do
relator foi feita, o destino da proposta estava selado. Nas primeiras versões
do relatório, o deputado pesou nas penas, do jeitinho que o direitismo gosta,
igualou condutas violentas da bandidagem àquela dos terroristas, novo dogma dos
reacionários, e quis escantear a Polícia Federal das investigações sobre o PCC,
CV e cia. O governo revoltou-se, espancou o texto de Derrite. Na sociedade,
levantaram-se vozes contra os propósitos do deputado, caso do promotor paulista
Lincoln Gakiya, experiente em PCC. Motta marcou a votação assim mesmo. Só
desistiu na última hora, depois de cinco governadores direitistas, entre eles o
“herói” da vez, Cláudio Castro, irem a Brasília e sugerirem o adiamento.
Alguns partidos seguiram a toada, como o Republicanos de
Motta. Mais cedo, a ministra da área política do governo, Gleisi Hoffmann,
também tinha defendido mais tempo para negociações. Tudo somado, Derrite viu-se
obrigado a requerer a Motta que a votação não ocorresse. Uma derrota para o
linha-dura? Em princípio, sim. As polêmicas do relatório foram usadas pelos
governadores como argumento para adiar. Castro comentou que havia risco de
certas medidas serem derrubadas na Justiça. Minutos depois de Motta jogar a
votação para o dia 18, um integrante do governo, participante das negociações
do projeto, disse a um interlocutor: “Eles querem retomar a ideia de
narcoterrorismo, de equiparar facção a terrorismo”. Intenção que teria sido
verbalizada nos bastidores por Sóstenes Cavalcante, líder do PL, o partido de
Castro e, até maio, o de Derrite, que agora integra o PP.
No dia da viagem dos governadores a Brasília para reunir-se
com Motta, uma pesquisa mostrou que 73% dos brasileiros apoiam a equiparação
das organizações criminosas a terroristas e que 45% acham que o Brasil deveria
pedir apoio aos Estados Unidos contra o tráfico no Rio (50% discordam). Os
números da Genial/Quaest sobre violência em geral e a recente matança policial
no Morro do Alemão revelam uma população com sangue nos olhos. A ação da PM de
Castro contra o Comando Vermelho foi aprovada por 67%. Os defensores de penas
mais altas e de que a Justiça não solte presos são 46%. Dois dados servem de
alerta para Lula: 81% divergem de uma frase dita por ele, de que traficante é
“vítima” de usuário de droga, e 57% não pensam que a operação fluminense tenha sido
“desastrosa” como o petista a definiu.
A violência é a maior preocupação nacional na pesquisa: 38%
colocam-na no topo da lista. Avanço expressivo em um ano. Em outubro de 2024,
eram 17%. Em maio, 27%. Em setembro, mês anterior ao do massacre policial no
Rio, 29%. A Lei Antifacção desenhada pelo Ministério da Justiça é uma das
respostas federais ao problema, da mesma maneira que a PEC da Segurança
Pública. A lei foi enviada por Lula ao Congresso em 31 de outubro, três dias
após a operação ordenada por Castro. Uma ação policial que o juiz Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e o relator da CPI do Crime Organizado, o
senador Alessandro Vieira, do MDB, querem que seja devidamente esclarecida pelo
governador fluminense.
Em 30 de outubro, aliados de Derrite, se não o próprio,
contaram a um jornalista da CNN Brasil que o secretário elaborava um relatório
para tratar facção criminosa como terrorista. O deputado sequer exercia o
mandato. Estava de licença desde 2023, para comandar a Secretaria de Segurança
Pública paulista, função imposta ao governador Tarcísio de Freitas pelo clã
Bolsonaro. O retorno à Câmara e a tentativa de emplacar na legislação a ideia
de “narcoterrorismo” tinham sido combinadas no escurinho com Motta. Equiparar
facção e terrorismo era o objetivo de uma proposta de Danilo Forte, do União
Brasil do Ceará. O governo era contra e achou que havia marcado um gol ao ver
Motta à frente de sessões plenárias que impediram o texto de Forte de ir a voto
em uma comissão da Câmara na semana anterior. Engano. Era teatro.
A escolha de Derrite como relator “contamina o
debate”, diz Gleisi Hoffmann
Os registros da Câmara apontam que Derrite reassumiu o
mandato em 6 de novembro. No dia seguinte, o presidente da Casa informou no
ex-Twitter que o havia designado para cuidar da Lei Antifacção, cujos pilares
são o aumento de penas, a criação de um crime específico para integrantes de
facções, o confisco de bens oriundos do crime organizado, a infiltração de
empresas fictícias em esquemas criminosas e a determinação de que plataformas e
fintechs facilitem o acesso a dados que permitem localizar investigados. Em
suma, uma aposta maior no uso de inteligência e asfixia financeira. Duas horas
após Motta anunciar o relator, Derrite entregava um parecer de 32 páginas que
estava no forno e guardava pouca semelhança com a lei lulista. Até o nome
mudou: Marco Legal de Combate ao Crime Organizado.
Derrite escreveu mais três versões do relatório. Aquela que
deveria ter sido votada no dia do adiamento foi apresentada em uma entrevista
com ele, Cavalcante e próceres da extrema-direita, entre eles Bia Kicis (PL),
Marcel van Hattem (Novo) e Kim Kataguiri (União Brasil). No meio da turma,
Motta. Que, ao explicar a escolha de Derrite como relator, disse: “Para o tema
da segurança pública não ser usado como palanque por ninguém”. Estava
subentendido que quem não podia usar o “palanque” era Lula. O direitismo, via
relator, pode. A propósito: Derrite é o predileto de Eduardo Bolsonaro para
concorrer ao Senado por São Paulo em 2026. Eduardo queria a vaga, mas a
conspiração contra o Brasil no autoexílio no Tio Sam deve deixá-lo inelegível.
O Supremo iniciou em 14 de novembro o julgamento para torná-lo réu.
Na visão de Gleisi, Derrite em cena “contamina o debate com
os objetivos eleitoreiros de seu campo político” e a escolha foi um
“desrespeito com o governo, ao próprio presidente, porque era um projeto do
governo”. Lula ligou para Motta e queixou-se da relatoria. O pai do deputado,
Nabor Wanderley, quer ser senador pela Paraíba. Serão duas vagas. O governador
João Azevêdo, do PSB, concorrerá e é favorito a uma. É bem avaliado pela
população e tem boa relação com Lula. Veneziano Vital do Rêgo, do MDB, quer se
reeleger, e também é próximo do petista. Wanderley precisa que o presidente
fique neutro, no mínimo. O filho pode usar a Câmara para tentar arrancar isso.
Já Lula pode fazer o oposto para domesticar Motta: acenar com apoio aos rivais.
Haverá retaliação do Palácio do Planalto ao deputado? “Não acredito. Tem quem
ache que é melhor o governo não se afastar dele, se não ele cai no colo da
direita. Para mim, ele já está do outro lado, sempre esteve”, afirma um petista
influente.
Coube ao líder do PT expressar a bronca do Planalto com o
presidente da Câmara. Faria e Motta alteraram a voz em uma reunião de líderes
partidários. O paraibano tinha vestido a carapuça do “roubo com abuso de
confiança”. “Motta subiu na reunião o tom e quem estava na reunião pode saber
que eu respondi no mesmo tom. Se ele está irritado com algum tuíte nosso, eu
estou muito irritado com o presidente da Câmara ter escolhido um relator dessa
forma e que tinha descaracterizado o projeto (de Lei Antifacção)”, contou o
petista.
Faria tem outra visão sobre o motivo que levou governadores
direitistas e Derrite a optarem por adiar a votação: medo das ruas diante das
consequências do possível esvaziamento da Polícia Federal. As primeiras versões
do relatório do pepista subordinavam aos estados as investigações da PF sobre
crime organizado. Os federais poderiam atuar apenas quando chamados. Há
investigações da PF com potencial político explosivo na seara do crime
organizado. No Piauí, foi preso um ex-assessor do senador Ciro Nogueira, o
presidente do partido de Derrite. No Rio, a PF incriminou o deputado estadual
TH Joias por envolvimento com facção. O parlamentar é aliado de Castro. Mais:
Moraes, do Supremo, ordenou à PF que apure a infiltração de facções e milícias
no poder do Rio.
A quarta e última versão do relatório de Derrite não altera
o papel da PF. Impõe pena de 20 a 40 anos de prisão para integrantes de facção
criminosa e estabelece que 70% sejam cumpridos em regime fechado. Na lei atual,
crime organizado custa até 8 anos de prisão. O projeto de Lula ampliava para 10
anos e fixava em 15 anos a pena de um associado a facções. O batismo da lei no
relatório de Derrite é Marco Legal do Combate ao Crime Organizado
Ultraviolento. “Não abro mão de um texto duro”, repete o preposto de Freitas. O
“roubo com abuso de confiança” da Lei Antifacção proposta pelo governo levou o
debate para a linguagem típica do direitismo: mão pesada nas penas. Falta saber
como o governo tentará recolocar o debate nos termos que prefere: inteligência
e asfixia financeira. •
Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19
de novembro de 2025.


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