Lei que cria a Política Nacional de Linguagem Simples não
é aceno aos conservadores, mas ao bom senso
Durou pouco a fantasia autoritária do pequeno grupo que quis
impor uma mudança estrutural no idioma. “Pouco” é modo de dizer. Durou o
suficiente para causar treta, virar piada e demarcar a diferença entre os
defensores da língua como organismo vivo, que evolui natural e incessantemente,
e os que se acham no direito de moldar, segundo seu viés ideológico, o que é
patrimônio de mais de 200 milhões de falantes.
A lei sancionada pelo presidente Lula criando a Política
Nacional de Linguagem Simples não é um aceno aos conservadores, mas ao bom
senso. Tem vários defeitos e uma grande virtude: propõe que órgãos e entidades
públicas usem língua de gente — sem jargão, sem palavrório e respeitando a
norma-padrão.
Os partidários do “todes” certamente teriam
levantado a voz em defesa do idioma se os reacionários do governo anterior
ousassem falar “o vítimo”, “o crianço”, “o pessoo” para que os machos não se
sentissem emasculados com o artigo no feminino. Confundir gênero gramatical e
gênero biológico seria tratado como negacionismo linguístico e desprezo pela
cultura, além de bobagem sem tamanho.
A lei põe fim a desatinos como os propostos no texto “Bom
dia a Tod@s, TodEs, TodXs: o uso de pronomes neutros (não binários) e a
desconstrução da linguagem sexista, machista, misógina, transfóbica”, da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Tenho
dúvida se os acadêmicos se referiam à língua sexista de Rubem Braga e Pedro
Nava, à língua misógina de Adélia Prado e Hilda Hilst, à língua machista de
Marina Colasanti e Clarice Lispector, à língua transfóbica de Guimarães Rosa e
Machado de Assis.
Outro bem-vindo sinal de lucidez está na vazante da
problematização racial do idioma. Nesta semana em que se comemorou o Dia da
Consciência Negra, já não houve a tradicional torrente de cartilhas com
delírios pseudoetimológicos.
Ao contrário dos anos anteriores, nenhuma universidade
federal ou Ministério Público estadual torrou nosso dinheiro e nossa paciência
tentando convencer os incautos de que houvesse racismo em “mais vale um na mão
do que dois voando”. Não se condenou o uso de expressões como “quadro-negro”,
“noite em claro”, “cheque em branco” ou “faixa preta”. Nem se desenvolveu a
tese de que é sintoma de racismo estrutural o time da Ponte Preta permanecer na
série C enquanto o Vasco da Gama (cujo nome homenageia um colonizador branco)
está na série A (em 13º lugar, mas está lá). Faltou pouco para isso.
Alguns dos manuais de letramento racial lançados em 2025
(como os do Instituto Federal do Tocantins e da Secretaria de Cidadania de Mato
Grosso do Sul) ainda insistem na lorota do “criado-mudo”, mas a maioria já se
desapegou das fake news.
Passada a pandemia identitária, linguistas e cientistas
sociais talvez se voltem para este período com a mesma incredulidade com que
procuramos entender a febre dos discos voadores durante a Guerra Fria, a
histeria com o bug do milênio, o brinco de pena, as ombreiras, as meias de
Lurex.
É um alívio saber que não corremos mais o risco de vir a ter
de cantar “des filhes deste solo és pessoa que pare gentil”. E diminui a cada
ano a ameaça de ouvir que é preciso decolonizar o hino por causa de “e diga o
verde-louro desta flâmula” — e esse “louro” aí ser parte de algum pacto da
branquitude.


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