Meninos, eu vi o professor Salomão pegar a minha mão esquerda e, calmamente, ordenar que abrisse bem a palma quando escutei o estalar da palmatória e uma dor como uma picada de marimbondo. Minha mão ficou vermelha e ardia. Tinha quase 8 anos de idade. Já fazia um mês que começara a ir no grupo escolar mas nem o alfabeto eu ainda sabia. Professor Salomão, um homem calmo e muito respeitado na pequena cidadezinha de Barracão, no Rio Grande do Sul, era amigo e freguês no armazém do meu pai onde comprava com caderneta para pagar no fim do mês.
Escutava meu pai dizer ao professor que eu tinha o bicho carpinteiro para fazer molecagens. Verdade, eu não prestava atenção nas aulas. Inesquecível para mim, não pela dor em si, mas porque uma semana depois eu já estava lendo e escrevendo meu nome e orgulhoso fui mostrar pro meu pai que me abraçou e vi seus olhos marejados de lágrimas pela emoção do meu aprendizado.
Hoje, não existe mais a famosa palmatória (sumiu na década de 1950 depois da Declaração do Direitos do Homem), e, desde então, os castigos físicos na escola e na família foram extintos. Passadas estas décadas, a nossa educação vem despencando a níveis humilhantes para uma nação emergente. Em hipótese alguma defendo castigo corporal na educação, mas me espanto com o surrealismo atual de saber que hoje muito professores – quando tentam corrigir ou admoestar um aluno – sejam agredidos e espancados na frente da própria classe. Minha preocupação me constrange ainda mais porque sei que na América do Sul estamos em último lugar no aprendizado de matemática.
Muita coisa mudou neste tempo. Hoje, as crianças que têm oportunidade e privilégio de frequentarem boas escolas, com menos de 8 anos já têm instrução e raciocínio lógico igual a muitos adultos. Não só a neurociência mostrou que existem meios e métodos de aprendizagem sem castigo, mas mais que isso, a informática e a inovação revolucionaram a carga de informação que chega ao mundo infantil. Numa conferência sobre tecnologia em 2010, Eric Schmidt, CEO do Google, afirmou que “a quantidade de informação que produzimos coletivamente a cada dois dias é igual a informação produzida pela humanidade até 2003, algo impulsionado principalmente pela velocidade extrema com a qual dados gerados pelos usuários são postados online”.
“Esta informação espantosa deveria alarmar todas as empresas, pois evidencia que a nossa abordagem atual, a execução de multitarefas, precisa ser revisada com urgência. Em vez de tratá-la como antídoto para a complexidade, a pressão e a quantidade de informação crescente, deveríamos considerá-la uma de suas doenças”.
A preocupação atual dos educadores é até onde a máquina pode ajudar as novas gerações do celular e da televisão. Quando vejo meus netos absortos e embevecidos pelo celular ou famílias reunidas na sala com atenção nos seus celulares, e não no diálogo gostoso, como tínhamos com nossos pais e avós que nos contavam histórias, lembro-me da advertência do Juiz Thompson, quando em sua sentença – logo depois da independência americana. Ao decidir num processo pela disputa de duas ferrovias, questionou: “Afinal, o que é a máquina?” Ele mesmo respondeu: “A máquina é o gênio que o homem deixou escapar da lâmpada e jamais irá aprisioná-lo novamente. E, se o homem não tomar cuidado, será a máquina que irá tomar conta dele”.
Meninos eu venho do tempo que os humanos ainda dominavam as máquinas. Avó Ida, com sua habilidade e esmero na máquina, costurou para gerações, inclusive o vestido de casamento da minha esposa, por isso ela ainda está guardada como relíquia da família.
Como advogado, eu tinha que bater forte nas teclas da velha Olivetti para imprimir, com dois papéis carbonos, as cópias dos meus processos. Durante meus 50 anos de advocacia eu vi surgir a cópia xerox e atualmente até o papel sumir do processo eletrônico. Menos esforço físico, mas muito mais atenção com o atrevido corretor que pode nos fazer pagar micos, com uma só palavra que inverta o sentido do que queremos escrever.
Meninos, eu vi que os homens também mudam e outros continuam coerentes com os valores que apreenderam na família. Na Universidade vi os que se diziam socialistas, comunistas, progressistas e anti-imperialistas – aquela famosa esquerda festiva ou do caviar – que pregavam a derrubada do Regime Militar seguindo os intelectuais e artistas, transformar-se na atual burguesia avarenta e retrógrada que não pensa no seu semelhante, mas hipocritamente ainda invocam a Carta de Puebla, pregando a enganosa opção preferencial pelos pobres. Transformaram suas vidas estéreis e egoístas, para viverem como nababos regurgitando o odor alcoólico das suas riquíssimas adegas abastecidas dos Chateau Haut-Brion, Latife Rothschild, Barca Velha e Romanee Conti.
Vi que outro lado o então ministro Roberto Campos, naquela sua costumeira ironia burguesa cutucava: “É divertidíssima a esquizofrenia de nossos artistas e intelectuais de esquerda: admiram o socialismo de Fidel Castro, mas adoram também três coisas que só o capitalismo sabe dar – bons cachês em moeda forte, ausência de censura e consumismo burguês; trata-se de filhos de Marx numa transa adúltera com a Coca-Cola”.
Mas eu também vi os que eram considerados conservadores e retrógrados vencerem na vida. Meninos, eu vi o comerciante Rubens dizer ao industrial Gilson, quando os dois se encontraram 50 anos depois numa reunião do nosso IDL (Instituto Democracia e Liberdade) para tratarmos de ações humanitárias e mobilizadoras via participação popular cobrando dos governantes as sonhadas mudanças e reformas que possam melhorar a vida das próximas gerações: “Sabias que fui teu empregado? Era ainda moleque com 12 anos e recolhia as farpas de madeira que saíam da laminadora para serem queimadas como lixo, limpando o assoalho da tua serraria”.
Lado a lado eu vi estes ditos conservadores, com brilho nos olhos daquela luz que, como imã, os agregam pela busca do bem público. Já não precisam mais se preocupar em ganhar dinheiro, mais ainda conservam a sagrada teimosia de buscar uma sociedade mais justa, humana e igualitária. Meninos, em contrapartida eu estou vendo e tendo que assistir o deprimente espetáculo que outros dois – não da iniciativa privada, mas daqueles que vivem às custas do governo – monopolizarem a imprensa e redes sociais, numa briga de foice no escuro, com golpes abaixo da linha da cintura, num verdadeiro vale-tudo como se fossem DEFENSORES DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO, mas no fundo, no fundo, não representam mais que o autoritarismo passional e partidário que contaminou nossas instituições com este bestial radicalismo, do nosso retrógado sistema partidário. Certo estava João XXIII quando disse: “AS INSTITUIÇÕES SERÃO AQUILO QUE FOREM SEUS DIRIGENTES” .
O deputado careca que foi o menos votado do seu partido, só se elegeu pela magia enganadora do voto proporcional, sistema em que mais de 90% dos deputados federais chegaram ao poder sem votos, nesta clara demonstração da crescente perda de qualidade dos nossos legislativos. Já o careca, alçado à ministro pela indicação política, banaliza a Justiça e aumenta a insegurança jurídica com decisões teratológicas e autocráticas.
Os carecas diferem do Gilson e do Ivo que são da iniciativa privada e, como patrão e empregado de outrora, hoje se alinham nos mesmos propósitos cívicos e democráticos, enquanto os dois carecas (ironicamente ambos vindos da área da segurança pública) estão embriagados pelo egoísmo de serem agentes da insegurança. Um careca do Rio e outro de São Paulo, estão dominados pelo lado perverso da máquina que exaspera o ego dos fracos. Parecem os graúdos da Rússia e Ucrânia, que travam a imbecilidade de mais guerra que mata vidas, separa famílias e destrói bens expandindo o temor da terceira guerra mundial. Até quando, meninos?
* Nilso Romeu Sguarezi é advogado. Foi deputado federal constituinte de 1988 (parlamentarista, defensor de uma Constituinte Exclusiva, eleita pelo voto distrital, com 50% de homens e mulheres constituintes, sem financiamento público, com limites de arrecadação privada, através de uma Emenda Constitucional de Iniciativa Popular)
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