quarta-feira, 20 de novembro de 2024

TRAIDORES DA PÁTRIA

Editorial O Estado de S. Paulo

Revelação de audacioso plano para matar Lula da Silva, entre outras autoridades, mostra até onde os golpistas pretendiam chegar com seu furor delitivo para manter Bolsonaro no poder

É de indignar todos os democratas deste país, sejam quais forem as identidades político-ideológicas que possam distingui-los, a revelação de que autoridades do governo de Jair Bolsonaro e militares das Forças Especiais do Exército, além de um policial federal, teriam conspirado para assassinar, no fim de 2022, o então presidente eleito Lula da Silva, o vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que à época acumulava o cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Como se sabe, na manhã de ontem a Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Contragolpe, que culminou na prisão do general reformado Mário Fernandes, ex-secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência (2020) e atualmente assessor do deputado Eduardo Pazuello (PL-RJ). Além de Fernandes, outros três militares com formação em Forças Especiais, conhecidos no Exército como “kids pretos”, foram presos por suspeita de elaborar o plano homicida com vistas “à abolição violenta do Estado Democrático de Direito”: Rafael Martins de Oliveira, Rodrigo Bezerra de Azevedo e Hélio Ferreira Lima. O quinto envolvido diretamente na trama, também preso, é o policial federal Wladimir Matos Soares.

A tentativa de golpe de Estado urdida pelos inconformados com a democracia, uma súcia de civis e militares, da ativa e da reserva, todos do entorno de Bolsonaro, já era execrável por tudo o que se sabia a respeito da sedição até agora. Por meio da desqualificação do processo eleitoral, entre outras artimanhas, pretendia-se evitar a eleição de Lula da Silva como presidente da República. Malfadado esse desiderato, partiu-se, então, para o impedimento da posse. A rigor, o que a Operação Contragolpe fez foi mostrar ao País, com impressionante riqueza de detalhes, até onde esses golpistas pretendiam chegar com seu furor delitivo para manter Bolsonaro no poder, em afronta à vontade popular legitimamente consagrada pelas urnas em 2022.

Chamado no ninho golpista de “Punhal Verde e Amarelo”, como se patriota fosse, o plano dos militares liderados, do ponto de vista operacional, pelo general Mário Fernandes, ex-comandante de Operações Especiais do Exército (2018-2020), consistia, pasme o leitor, em envenenar Lula, “considerando a vulnerabilidade de seu atual estado de saúde e sua frequência a hospitais”. Alckmin, segundo consta, também seria envenenado. Já para matar Alexandre de Moraes, os golpistas pretendiam detonar explosivos durante uma cerimônia pública. Eis a dimensão da infâmia. Ainda segundo a PF, ao menos uma reunião para arquitetar o triplo homicídio teria sido realizada na residência do general Walter Braga Netto, então ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro pela reeleição. Este jornal apurou que a PF não tem dúvidas sobre o “envolvimento direto” de Braga Netto nessa trama mais do que antidemocrática, macabra.

Em um ofício de 221 páginas endereçado ao gabinete do ministro Alexandre de Moraes, relator do Inquérito 4.874, que investiga no âmbito do STF a ação das chamadas “milícias digitais antidemocráticas”, a PF detalhou como os militares sediciosos monitoraram os passos de Lula, Alckmin e do próprio Moraes para decidir como e quando agir. Resta claro que o País esteve muito próximo de ser tragado por uma convulsão política e social inaudita em sua história recente. E é lícito inferir que as consequências mais nefastas dessa extrema violência política, gravíssima por sua mera cogitação, só não se materializaram porque o Alto Comando do Exército não endossou a estupidez.

Mas que ninguém se deixe enganar. Se felizmente a intentona não foi adiante, o simples fato de frutificar entre os mais bem treinados militares do Exército esse ímpeto golpista em nada tranquiliza a Nação. O País só estará em paz quando, um por um, todos os traidores da Constituição, que, como dissera Ulysses Guimarães, também são traidores da Pátria, forem julgados por seus crimes sob a égide do mesmo Estado Democrático de Direito contra o qual se insurgiram.

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BOLSONARO ACABOU ?

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Revelações sobre trama golpista pioram situação política de ex-presidente

O tempo fechou para Jair Bolsonaro e seus acólitos. As novas revelações sobre a trama golpista mostram que o movimento avançou bem mais do que se imaginava, estava muito mais próximo do Alvorada do que se supunha e tinha características bem mais radicais também, tendo chegado a arquitetar os assassinatos de Lula, Alckmin e Moraes.

Haverá consequências em três planos, o político, o jurídico e o institucional. Na esfera política Bolsonaro já foi atingido. Não digo que está liquidado, porque em política nada é tão definitivo (vide Trump), mas acho que a partir de agora será muito difícil que ele consiga apoio para uma anistia.

O centrão que deu sobrevida a seu governo tolera bravatas e irresponsabilidades, mas tende a ser cioso da democracia. É dela, afinal, que os integrantes do bloco tiram seu sustento.

No plano jurídico a situação é menos clara. Em direito, importa o que se pode provar. É preciso ver se haverá evidências diretas do envolvimento de Bolsonaro na conspiração. O nome de Braga Neto já apareceu.

E mesmo aí nada é muito certo. Por estranho que pareça, planejar um golpe não é crime. Nem mesmo prepará-lo. A possibilidade de punir só surge quando a conjura entra em fase de execução. Foi provavelmente por isso que Moraes só autorizou a prisão dos oficiais envolvidos em atos que podem ser descritos como executórios, poupando por ora o ex-ministro da Defesa e outros oficiais.

Há ainda a esfera institucional. Após o 8/1, a cúpula das Forças Armadas teve algum sucesso em vender-se como paladina da democracia por não ter embarcado na aventura. Nunca me convenceram. Vê-se agora que o envolvimento de setores do Exército foi bem mais direto e profundo do que o inicialmente admitido.

Temos de discutir medidas para profissionalizar e modernizar as Forças Armadas, afastando-as de sua sina golpista. É urgente tirar os militares da ativa de cargos políticos, rever os currículos das escolas de oficiais e reescrever o artigo 142 da Carta, para deixar claro que não cabe aos fardados escolher qual Poder vão obedecer.

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PLANO DO GOLPE VESTIA FARDA DOS PÉS À CABEÇA

Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo

Preparativos de ruptura e instalação de regime de exceção foram uma operação essencialmente militar

O planejamento de um golpe para manter Jair Bolsonaro no cargo foi uma operação essencialmente militar. Integrantes das Forças Armadas fizeram preparativos para anular as eleições, sequestrar autoridades e assassinar o futuro presidente. Armaram a instalação de um regime de exceção que seria controlado pelos generais que haviam patrocinado a ascensão do capitão em 2018.

As investigações reveladas nesta terça (19) são mais uma prova de que o envolvimento de militares na trama do golpe jamais foi um fato isolado. O plano tinha a participação de integrantes das Forças Especiais do Exército. As ideias eram discutidas com generais influentes e foram levadas para dentro do Palácio da Alvorada.

As mensagens obtidas pela Polícia Federal mostram que o general da reserva Mario Fernandes organizou uma operação clandestina para consumar o golpe. A ação envolvia o monitoramento de alvos, o uso de um lançador de granadas e até o envenenamento de Lula e Alexandre de Moraes. Segundo os investigadores, ele levou o plano ao Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro estava entocado.

A PF também aponta que um grupo de "kids pretos", militares de elite que seriam responsáveis pela execução dos crimes, se reuniu na casa do general Braga Netto em 12 de dezembro de 2022. Três dias depois, eles prepararam uma tocaia para uma provável prisão ilegal de Moraes.

O plano do golpe vestia farda dos pés à cabeça. Depois da operação, Bolsonaro deveria criar um gabinete de crise que seria comandado pelos generais Braga Netto e Augusto Heleno, com a participação de outros militares.

Segundo documentos dos golpistas, o arcabouço jurídico desse período de exceção seria elaborado pelo Superior Tribunal Militar, e as Forças Armadas participariam da organização de novas eleições. O STM divulgou uma nota em que rejeita a hipótese de envolvimento na empreitada.

A tentativa de ruptura nunca foi apenas um sonho pessoal de Bolsonaro, seguido de forma obediente por seus aliados na caserna. Os fardados que estiveram no poder durante o mandato do ex-presidente tinham seus próprios interesses. Não é difícil imaginar quem exerceria autoridade dentro de um regime iniciado por um golpe militar.

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DNA MILITAR DO GOLPE DE BOLSONARO DIFICULTA VIDA DA DEFESA

Igor Gielow, Folha de S. Paulo

Ação da PF ocorre em meio à pressão por cortes, que atiçam antipetistas da ativa

A operação da PF que revelou o indiscutível DNA militar da trama urdida para tentar manter Jair Bolsonaro (PL) no poder no fim de 2022, incluindo ali nada menos que execuções de autoridades, atinge a área da Defesa em um momento delicado.

O ministro José Múcio está tentando driblar a demanda da Fazenda pelo ingresso da pasta no pacote de corte de gastos, e foi pressionado pelo colega Fernando Haddad, que disse que só falta a parte dos fardados para fechar a conta.

Não que uma coisa tenha a ver com a outra, é óbvio, mas no caldo de difícil cozimento que é a relação Lula-militares, tudo se retroalimenta.

Já ao longo desta tarde de terça (19) havia oficiais-generais da ativa sussurrando por grupos de WhatsApp suas suspeitas acerca da operação, alegando que seu "timing" era estranho e questionando o fatiamento da investigação pela PF.

A ausência de ação contra aquele que vem sendo apontado como o eixo da trama, Walter Braga Netto, chama a atenção desses fardados. O general nunca foi muito bem visto no Alto-Comando por seus pares, dadas suas pretensões política abertas.

Afinal de contas, deixou publicamente a farda para ser ministro de Bolsonaro e, depois, seu candidato a vice na chapa derrotada por Lula (PT) em 2022.

Era visto como uma versão ativa e pragmática da linha dada a zonas cinzentas do general Augusto Heleno, que era chamado de "Raspútin da Alvorada" por alguns de seus ex-colegas de farda naqueles obscuros meses em que Bolsonaro trancou-se em casa deprimido pela derrota e em meio a vendaval de golpismos.

Ao menos um deles, ainda que inexequível por descontar a falta de adesão da tropa e a resistência dentro das Forças, tinha alguma espinha dorsal, ora sendo destrinchada pela polícia. Onde chegará, é algo a ver.

Para Múcio, o desafio é desassociar as coisas, seu trabalho desde que foi anunciado na quase inexistente transição de governo, em dezembro de 2022. De lá para cá, o ministro virou alvo preferencial do PT, que o acusa de passar pano para golpistas em nome da estabilidade do estamento militar.

De tempos em tempos, o queixume vira proposta que os fardados identificam como danosas, ainda que prevaleça a ordem unida simbolizada pelo comandante do Exército, Tomás Ribeiro Paiva. Uma das primeiras contendas foi a da mudança do artigo que rege o emprego militar, o famigerado 142 da Constituição. Múcio venceu. 

Neste ano, surgiu o tema da aposentadoria dos militares, que segue um rito à parte do funcionalismo. O ministro ameaçou deixar a cadeira se a ideia fosse em frente e assim a esfriou, só para vê-la reintroduzida no debate das contas públicas.

O tema incomoda muito a cúpula militar. A reportagem já ouviu de seus integrantes falas críticas ao PT e a Lula devido à ideia de mexer no assunto que em nada devem ao que diziam generais da ativa mesmo antes da eleição de Bolsonaro.

Outro alvo usual de cortes em tempo de crise, os programas estratégicos das Forças, também pode ser acionado. O problema aí é conciliar compra de caças com a vontade expressa por Lula de ter um avião novo, por exemplo.

Novamente, são coisas distintas, mas aos olhos do público e na retórica de Haddad, é tudo igual. Com o mal-estar generalizado na caserna devido às parcelas que ainda paga pela associação com o bolsonarismo, é um capítulo de crise já contratado.

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O CONGRESSO E O GOLPE DE BOLSONARO

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

Com mais provas do golpe de Bolsonaro, direitão e centrão do Congresso se fingem de mortos

Parlamentares vão continuar cozinhando projeto de anistia de ex-presidente?

ataque terrorista da semana passada teria "enterrado" as tentativas de dar cabo do plano de anistia de Jair Bolsonaro e de quem atacou as sedes dos Poderes no 8 de Janeiro —o movimento maior mesmo é de livrar Bolsonaro, da inegibilidade e do inquérito do golpe.

Talvez não enterrasse. Sem novidades, com o passar dos meses e a depender dos acordões do Congresso, sempre se pode tentar dar um jeito. O acordão de enterro da Lava Jato levou meia dúzia de anos para dar certo, de resto com a colaboração da repulsiva República de Curitiba.

Nesta terça-feira (19), o acordão para livrar a cara de Bolsonaro e comparsas levou mais um tombo. Segundo a PF, a gangue de militares do golpe planejava assassinar a cúpula da República e organizava parte da coisa sob as barbas do general Braga Netto, braço forte de Bolsonaro.

Com as prisões de militares e mais delações, mais podres virão, indicam investigadores da PF. O resultado do inquérito sobre Bolsonaro sairia apenas no início de 2025.

Fora o caso de polícia brutal, há o caso de política. O que vão fazer os direitões e centrões que dominam o Congresso? Até agora, fora o bolsonarismo de sangue, lideranças e a maioria se fingem de mortos, mudam de assunto ou esperam para ver como é que fica.

terrorista da semana passada é um elemento da onda de propaganda e ataque criminoso de Bolsonaro ao STF (que prometeu não cumprir ordens do tribunal) e às eleições (que prometeu cancelar). A organização militar golpista era um instrumento assassino para levar o plano adiante. O plano morreu porque menos de um terço do Alto Comando apoiaria o golpe, diziam os militares golpistas.

O que há de novo? A Polícia Federal descobriu mais detalhes e agravantes do plano de golpe militar. De mais grave, havia o plano de assassinar o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, talvez também seu vice, Geraldo Alckmin, e de ao menos sequestrar Alexandre de Moraes, ministro do Supremo, operações que seriam levadas a cabo na segunda quinzena de dezembro de 2022.

Talvez mais substancial, as investigações da PF colocam o grupo de oficiais do Exército em uma reunião na casa do general Braga Netto, ministro da Casa Civil, ministro da Defesa e candidato a vice de Bolsonaro em 2022.

Segundo a PF, o general de brigada (reserva) Mário Fernandes, sub da Secretaria Geral da Presidência de Bolsonaro, comandava a organização dos ataques assassinos, mas não apenas. Articulava-se com os acampados no Quartel General do Exército, tentava dar apoio logístico a essa tropa do golpe, "pessoal do agro" e "caminhoneiros", e tinha contatos com acusados de ataques terroristas no dia da diplomação de Lula, em 12 de dezembro (quando houve incêndio de veículos e tentativa de invasão da PF).

Tudo era coordenado por Mauro Cid, ora tenente-coronel, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Cid também estava no centro de malfeitos como a falsificação dos certificados de vacina de Bolsonaro e a muamba das joias das arábias.

No início de dezembro, Bolsonaro e entorno discutiam uma "minuta de golpe" e como fazer com que o comando das Forças Armadas aderisse à intervenção militar contra o resultado da eleição e contra o Supremo. Toda essa conversa agora se amarra e se comprova, mais e mais.

O Congresso será cúmplice do golpismo?

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PLANO ERA MATAR LULA, ALCKMIN E MORAES

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

As evidências colhidas por STF e PF apontam que segundo documento-chave do plano, intitulado "Punhal Verde Amarelo", foi elaborado pelo general Mario Fernandes

O plano para matar o presidente Luiz Inácio lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, revelado, nesta terça-feira, pela Polícia Federal (PF), roubou a cena do último dia de reunião do G20 e tornou-se o principal assunto político de Brasília. As investigações mostram que havia, sim, um plano golpista, que seria iniciado no dia 15 de dezembro de 2022, com o sequestro e/ou assassinato de Moraes, mas foi abortado em razão de um imprevisto: a suspensão da sessão do Supremo marcada para aquele dia.

O plano para envenenar ou executor o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e assassinar o vice Geraldo Alckmin com objetivo de manter o ex-presidente Jair Bolsonaro no poder, foi descoberto com recuperação de mensagens do celular do tenente-coronel Mauro Cid, então ajudante de ordens da Presidência da República. A localização dos contatos incrimina também o ex-ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, general de quatro estrelas, que foi escolhido como candidato a vice na chapa de Bolsonaro e era um dos chefes do grupo que pretendia impedir a posse de Lula. Uma das reuniões para traçar o plano, segundo a PF, teria sido realizada na casa do militar.

A descoberta dos arquivos, que haviam sido deletados, complica ainda mais a situação de Mauro Cid, que não havia fornecido essas informações na sua delação premiada. Todo réu tem direito a não fornecer provas contra si próprio, porém, no caso de delação premiada, isso pode resultar na anulação desse benefício, porque o acordo exige que o delator fale tudo o que sabe. Nesta terça-feira, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro prestou um longo depoimento à PF e disse que não sabia da existência do plano.

Até agora, o principal militar comprovadamente envolvido na conspiração é o general Mário Fernandes, ex-assessor da Presidência, que aparece com a camisa da seleção brasileira em atos pró-Bolsonaro em Copacabana. Ex-secretário-executivo da Secretaria Geral do governo do ex-presidente, também exerceu a função de assessor do deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), mas foi afastado do posto por determinação do STF.

Mais três militares do Exército ligados às Forças Especiais da corporação, os chamados "kids pretos", participaram do grupo: o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, que já havia sido preso pela PF em fevereiro, com outros 16 militares, e participou da reunião de "preparação" do golpe, em 2022, na casa de Braga Netto; o major Rodrigo Bezerra Azevedo, que servia no Comando de Operações Especiais, em Goiânia, em 2022; e o major Rafael Martins de Oliveira, com quem a PF apreendeu, em fevereiro deste ano, os materiais que mostram que o ministro Alexandre de Moraes era monitorado.

Um policial federal, que participou da segurança de Lula, também foi preso: Wladimir Matos Soares passava informações sobre a segurança do atual presidente e está envolvido no caso da falsificação do atestado de vacina de Bolsonaro. Rafael Oliveira e Hélio Lima teriam participado de uma reunião, em 12 de novembro, na casa de Braga Netto, na companhia de Mauro Cid. Após este encontro, Rafael teria enviado a Cid um documento em formato word intitulado "Copa 2022", que detalhava as necessidades iniciais de logística, armas e recursos financeiros para realizar uma operação planejada para 15 de dezembro.

"Punhal Verde e Amarelo"

Ao recuperar o material, a PF descobriu que o grupo "Copa 2022", com codinomes de países que estavam disputando a Copa do Mundo naquele ano, planejava o sequestro de Moraes, que foi abortado. A PF cruzou dados de chips de celular, aluguel de carros e outras fontes. Concluiu que o grupo monitorava o ministro. Os celulares estavam cadastrados em nomes de terceiros, em outras regiões do país.

"Às 20h33, a pessoa associada ao codinome 'Brasil' informa um dos locais em que estavam atuando. Diz: 'Estacionamento em frente ao Gibão Carne de Sol [restaurante]. Estacionamento da troca da primeira vez'. Em seguida, a pessoa associada ao codinome 'Gana' informa que já estava no local combinado: Tô na posição'. O interlocutor 'Brasil' responde 'Ok'". A troca de mensagens continua até que, às 20h57, a pessoa de codinome Áustria diz: "Tô perto da posição. Vai cancelar o jogo?". Cerca de dois minutos, Japão, o suposto líder do grupo, respondeu: "Abortar... 'Áustria'... volta para local de desembarque... estamos aqui ainda..."

As evidências colhidas pela PF apontam que um segundo documento-chave da investigação, denominado "Punhal Verde e Amarelo", foi elaborado pelo general Fernandes. Esse arquivo revela um "planejamento operacional" que "tinha como objetivo executar o ministro Alexandre de Moraes e os candidatos eleitos Luíz Inácio Lula da Silva e Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho".

A PF aponta que o documento foi impresso pelo general no Palácio do Planalto, em 9 de novembro de 2022. Nessa mesma ocasião, os aparelhos telefônicos de outros investigados — Rafael Oliveira e Mauro Cid — também estavam conectados à rede que cobre o Palácio do Planalto. Depois, esses papéis foram levados ao Palácio da Alvorada, residência oficial do então presidente Bolsonaro.

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'QUATRO LINHAS DA CONSTITUIÇÃO É O CACETE'

Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo

‘Quatro linhas da Constituição é o cacete’: militares golpistas queriam acabar com o Alto Comando

Em conversas, general Mário Fernandes trata de ideia de modificar a organização das Forças Armadas em razão da oposição ao golpe entre oficiais generais, principalmente do Exército, e demonstra ataque à legalidade

A história do golpe bolsonarista ganhou uma nova face: a das mensagens entre o general Mário Fernandes e o coronel Reginaldo Vieira de Abreu, seu chefe de gabinete. Elas mostram detalhes cruciais para entender a empreitada, como a resistência do Alto-Comando do Exército.

Vieira escreveu a Fernandes, em 19 de dezembro de 2022: “Cinco (generais) não querem, três querem muito e os outros, zona de conforto. É isso. Infelizmente”. Ambos reclamavam do Alto-Comando do Exército (ACE). Queriam mudar a forma como as decisões são tomadas no colegiado, estabelecer uma chefia de Estado-Maior Conjunto, como nos EUA, e acabar com o ACE. “A lição que a gente deu para a esquerda é que o Alto-Comando tem que acabar. Se cria um general de cinco estrelas (...), mexe na promoção dos generais e só se promove, nos próximos oito anos, só um general quatro estrelas. Aí acaba essa palhaçada de unanimidade.”

Fernandes diz ao subordinado: “Tem o dissidente, tem os filha da p... lá, tem, já tá comprovado. Mas nós sabemos que é um colegiado, cara. Cinco caras não iam interferir tanto assim. (...) Cara, o presidente tem que decidir e assinar esta m...” Em diálogos anteriores, o coronel havia revelado ao general seu estado de ânimo diante da indefinição sobre o golpe: “O senhor me desculpe a expressão, mas quatro linhas é o car... Quatro linhas da Constituição é o cacete. Nós estamos em guerra, eles estão vencendo, está quase acabando e eles não deram um tiro por incompetência nossa”.

Em 4 de novembro, Fernandes escreveu ao colega de governo, o general Luiz Eduardo Ramos. Revelou a ligação entre o Plano Punhal Verde e Amarelo, os acampamentos em frente aos quartéis e os ataques de 8 de janeiro. É que o golpe exigiria clamor popular, como em 1964, para que o Exército o apoiasse.

“O senhor tem que dar uma forçada de barra com o Alto Comando, cara. Com o general Freire Gomes (então comandante do Exército), com o general Paulo Sérgio, porra (...) Tá na cara que houve fraude, porra (...). E outra coisa, nem que seja pra divulgar e inflamar a massa. Pra que ela se mantenha nas ruas e aí, sim, talvez, seja isso que o Alto Comando, que a Defesa quer. O clamor popular, como foi em

64. Porque como o senhor disse mesmo, boa parte do Alto Comando, pelo menos do Exército, não ‘tá’ muito disposto, né? Ou não vai partir pra intervenção, a não ser que, pô, o start seja feito pela sociedade. Pô, general, reforça isso aí. Eu tô fazendo meu trabalho junto à Brigada (de Operações Especiais) e ao pessoal de divisão (generais) da minha turma (de 1986, da Academia das Agulhas Negras), cara. Força, Kid Preto.” É preciso acrescentar alguma coisa mais?

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PREPARAÇÃO DO GOLPE FOI DO ENVENENAMENTO AO ATENTADO DE TÁXI

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

Elo entre o Planalto e os acampamentos, general Mario Fernandes coloca Bolsonaro dentro do 8/1

Os autos da Operação Contragolpe, deflagrada pela Polícia Federal na terça, relatam a preparação de um golpe de Estado dentro do Palácio do Planalto em atos que vão da ousadia do envenenamento de um presidente eleito ao amadorismo de um atentado contra ministro do Supremo Tribunal Federal por um agente que se deslocava de táxi.

O eixo da operação é o general de brigada Mario Fernandes. A recuperação de seus diálogos e das planilhas do golpe que lhe foram atribuídas mostra a degradação a que chegou o Exército nos anos que precederam a chegada do ex-presidente Jair Bolsonaro ao poder. O descompromisso com a institucionalidade foi de um oficial que comandou o batalhão de Operações Especiais, um grupo de elite do Exército, destinado a missões de alto risco.

Secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, primeiro cargo que exerceu depois de passar para a reserva, Fernandes continuou a comandar oficiais egressos das Forças Especiais, desta vez, para operações golpistas. Por derradeiro, as ações nas quais se envolveu não apenas jogam a anistia aos golpistas do 8/1 para as calendas, como contribuirão para minar as resistências a uma reforma do sistema social dos militares.

Três meses antes da eleição, Fernandes tentou convencer o ex-presidente Jair Bolsonaro a se antecipar a uma eleição que já davam por fraudada. “É 64 de novo? É uma junta de governo? É um governo militar? É um atraso de tudo o que se avançou no país? Porque isso vai acontecer. O país vai ser todo desarticulado.” A pressão por um decreto presidencial fechando o regime revelava o mal-estar com o Alto Comando do Exército. Nas suas contas, dos 16 generais do colegiado, cinco resistiam ao golpe, três “querem muito” e os demais estariam na “zona de conforto”.

O regime que surgiria de uma quebra da institucionalidade determinada pelo comandante-em-chefe estaria a cargo de generais de pijama a partir de um gabinete de crise integrado pelo então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno Ribeiro, e pelo ex-ministro da Casa Civil Walter Braga Netto. Num dos diálogos reportados pela Polícia Federal, Mario Fernandes mostra-se determinado a convencer Bolsonaro de que Braga Netto deveria voltar para o Ministério da Defesa com vistas a dobrar as Forças Armadas rumo ao golpe.

Os relatos de Fernandes, que tinha acesso direto à Presidência da República, sobre a falta de paciência dos acampados com a lerdeza do golpe, joga por terra a linha de defesa de que Bolsonaro, da Flórida, para onde viajou em 31 de dezembro, estava alheio à invasão dos Poderes em 8 de janeiro.

A proximidade entre Fernandes e Braga Netto, em casa de quem foi realizada uma das primeiras reuniões preparatórias ao golpe, também sugere que o ex-ministro da Casa Civil não custará a ser atingido pelas próximas operações. Outro general que tem tido sua atuação nos atos preparatórios ao golpe preservada, mas é abertamente citado no relatório da PF, é o general Estevam Cals Theophilo de Oliveira. Á época dos fatos descritos, Theophilo estava à frente do Comando de Operações Terrestres (Coter), unidade responsável pelo emprego direto de tropas no caso de uma intervenção militar. Nesta condição, integrava o Alto Comando do Exército. Permaneceu no cargo até o fim de 2023. Seu irmão, Guilherme Theophilo, foi secretário de Segurança Pública sob Bolsonaro e candidato ao governo do Ceará pelo PSDB em 2018.

Já o então comandante do Exército, general Freire Gomes, é reiteradamente citado como fonte de resistência às manobras golpistas. Em 7 de dezembro, por meio do coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Fernandes encaminha um vídeo para o general Freire Gomes. Tanto no vídeo quanto nas conversas com o ex-presidente, o esforço do general é o de provar que a presença dos movimentos antidemocráticos nas ruas indicava a possibilidade de se perder o controle da situação, o que exigiria uma ação rápida. A PF descreve a pressão exercida por Fernandes como decorrente da aproximação de 20 de dezembro, prazo em que o comando das Forças Armadas seria passado para militares indicados pelo governo eleito, a que as mensagens se referem como “governo do presidiário”. Esses diálogos foram captados no celular de Mauro Cid por meio de um sistema israelense que permite a decodificação de mensagens apagadas. As informações levaram à revisão da delação premiada do ex-ajudante de ordens porque evidenciam que ele não contou tudo que sabia.

Se há elementos de sobra para comprovar este planejamento, as lacunas aparecem no monitoramento do ministro Alexandre de Moraes, também supervisionado por Fernandes. Mauro Cid e o coronel Marcelo Câmara, ex-assessor de Bolsonaro que já foi preso e hoje está em regime de liberdade condicional com tornozeleira eletrônica, trocam mensagens sobre o tema. Se há dias em que o monitoramento tem a placa de veículos utilizados, há outros, como o 15 de dezembro de 2022, que a polícia traz como a data em que “possivelmente seria realizada a prisão/execução do ministro Alexandre de Moraes” em que o agente envolvido ficou, literalmente, a pé.

Esta ação teve celulares habilitados em nomes de terceiros com codinomes. Uma das pessoas, Arão Edmundo da Silva (“Gana”), deixa seu ponto de observação próximo à residência de Moraes a pé porque não conseguiu encontrar um táxi. Ele foi instruído a deixar o local depois do adiamento, pelo Supremo, da votação sobre o chamado orçamento secreto. O monitoramento também se mostra amador porque quando o ministro se desloca para São Paulo, no segunda quinzena de dezembro, os agentes desconhecem seu endereço, informação disponível até na imprensa.

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EFEITOS COLATERAIS DA OPERAÇÃO CONTRAGOLPE

Fernando Exman, Valor Econômico

Detalhes da trama golpista emergiram quando os principais líderes do mundo ainda estavam reunidos no Rio de Janeiro para o último dia da cúpula do G20

Deflagrada nas primeiras horas dessa terça-feira (19) pela Polícia Federal, a Operação Contragolpe tem a implicação prática e imediata, que converge com os interesses do Ministério da Defesa, de dar mais um passo na direção de separar os CPFs dos militares supostamente envolvidos na trama golpista dos CNPJs das Forças Armadas. Mas ela tem efeitos colaterais que não devem ser desprezados.

Não foi algo corriqueiro. A operação revelou uma estratégia para matar em 2022 o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro militares do Exército foram presos por envolvimento na trama, além de um agente da própria PF.

Criou-se um constrangimento para os militares, em meio às discussões conclusivas sobre o pacote que será adotado pelo governo para controlar as despesas públicas.

Faz praticamente uma semana que o Ministério da Defesa foi convocado para debater medidas adicionais de contenção de gastos. Pastas da área social já haviam tratado do assunto com a equipe econômica e o próprio presidente Lula, mas as Forças Armadas foram deixadas por último. E diferentemente do que ocorreu com alguns ministros civis, não houve quebra de hierarquia: nenhum oficial fez queixas ou ameaças públicas ao presidente da República, comandante em chefe das Forças.

Militares argumentam que a atividade na caserna tem particularidades e o seu sistema de seguridade não deve ser considerado um regime previdenciário. Para autoridades civis, contudo, alguns pontos dele podem ser aprimorados. Mais do que uma grande economia, acrescentam, essas mudanças teriam um efeito “simbólico”.

Na visão de interlocutores de Lula, o esforço fiscal deve ser feito por todos os segmentos da sociedade, e não somente pela camada mais pobre da população. Em outras palavras, não apenas pelos eleitores tradicionais do PT, e por esse motivo se decidiu ouvir mais uma pasta antes da conclusão do desenho do pacote que visa a sustentabilidade do novo arcabouço fiscal.

Além disso, as notícias sobre a operação da PF chegaram a um qualificadíssimo público sem filtros ou atrasos.

Já era de conhecimento da comunidade internacional o ambiente político conturbado no Brasil durante o processo eleitoral de 2022, o que levou à realização de articulações entre interlocutores de Lula e autoridades estrangeiras antes mesmo do pleito. Uma das preocupações era que acontecesse um tumulto semelhante ao ocorrido em Washington no dia 6 de janeiro de 2021: na ocasião, uma multidão invadiu a sede do Congresso americano para tentar impedir a confirmação da vitória do presidente Joe Biden na eleição e a derrota de Donald Trump.

Tanto que houve um rápido reconhecimento, por parte da Casa Branca, do resultado das eleições brasileiras. Por meio de uma nota, Biden parabenizou Lula pela vitória pouco mais de meia hora depois do anúncio oficial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Para dissipar qualquer contestação do resultado, o presidente americano citou ainda o fato de as eleições terem sido “livres, justas e críveis”. Ele não tardou a ser acompanhado por líderes europeus e latino-americanos naquela mesma noite.

Nessa terça-feira, contudo, os estarrecedores detalhes da trama golpista emergiram quando os principais líderes do mundo ainda estavam reunidos no Rio de Janeiro para o último dia da cúpula do G20. Lula tratou a questão com discrição, sem deixar que a operação ofuscasse o evento preparado há meses pela chancelaria. Ainda assim, o noticiário sobre a conspiração não teve como ser ignorado pela comunidade internacional.

Em outro potencial desdobramento, deve ser mantida a pressão da oposição para que uma proposta de anistia avance no Congresso. No entanto, os novos fatos revelados reforçam a convicção no STF de que a ideia não tem como prosperar.

O artigo 5 da Constituição, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, estabelece que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. O indulto dado ao ex-deputado Daniel Silveira foi cancelado devido à interpretação de que atos atentatórios à democracia e ao estado democrático de direito tampouco podem ser objeto de anistia.

Cresce, também, a atenção dentro do governo em relação às indicações para o Superior Tribunal Militar (STM). Isso porque, segundo as investigações, o arcabouço jurídico do golpe seria desenhado justamente pela corte. O STM refuta veementemente essas afirmações.

Lula já fez uma primeira indicação, a do general de Exército Guido Amin Naves. Ele exercia o comando militar do Sudeste, é considerado um legalista e, se for aprovado pelo Senado, deve ocupar uma cadeira que ficará vazia no mês que vem.

Outra vaga só abrirá em 2025. Porém, já há movimentações no Supremo, na área jurídica do Executivo e na Defesa para a indicação, considerada delicada e estratégica.

O ministros do STM julgam os crimes previstos no Código Penal Militar cometidos por integrantes das Forças Armadas ou civis. São peças importantes no processo de pacificação das instituições.

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O CERCO SE FECHA EM TORNO DE BOLSONARO

Vera Magalhães, O Globo

Apurações sobre plano para matar autoridades se aproximam um pouco mais a cada etapa de nomes do círculo mais próximo do ex-presidente, como Braga Netto e Augusto Heleno

Se, na semana passada, o ataque de um extremista à Praça dos Três Poderes foi o ato tresloucado que explodiu as conversas para uma anistia aos golpistas do 8 de Janeiro, as revelações estarrecedoras desta terça-feira sepultam qualquer tentativa de minimizar as tentativas de supressão da democracia naquele dia e nos meses que o antecederam. Os subordinados diretos de Jair Bolsonaro urdiram o assassinato de autoridades de primeiro escalão da República para manter o ex-capitão no poder.

A gravidade do que se tem até aqui é inaudita. Mas, como as investigações insistem em demonstrar, não é possível assegurar que tenhamos chegado a todos os fatos e a todos os envolvidos na trama. Os novos depoimentos do tenente-coronel Mauro Cid — personagem que permitiu que se desenrolasse o fio da meada da tentativa de melar a eleição e empastelar a democracia — e também dos cinco presos ontem mostrarão quem mais estava no plano, a mando de quem e com que grau de anuência e deliberação de Bolsonaro e de seus ministros mais próximos.

Como informei em meu blog, a prisão do ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto ainda não foi pedida, mas por excesso de zelo da Polícia Federal em preencher os requisitos técnicos e jurídicos para embasá-la. Até aqui, a evolução das investigações tem se dado de fora para dentro, descrevendo círculos que vão ficando menores, até chegar ao núcleo decisório e político do golpismo.

Na operação de ontem, se chegou pela primeira vez à prisão de um general da reserva, Mário Fernandes, mas ainda com menos poder e proximidade com Bolsonaro que Braga Netto ou Augusto Heleno, de quem as apurações se aproximam um pouco mais a cada etapa. Diante do que veio à tona até aqui, com um plano impresso nas dependências do Palácio do Planalto em que se admitia a eliminação do então presidente eleito Lula, do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, é impossível dizer se haveria um limite ao que os bolsonaristas inconformados com a derrota estavam dispostos a perpetrar.

O ministro Paulo Pimenta foi feliz na escolha da palavra: foi por um detalhe que o Brasil, menos de 40 anos depois de reconquistar sua democracia, não assistiu a uma nova quartelada para suprimi-la. A extensão das tratativas e a abundância de rastros deixados explicam o nervosismo que se abateu sobre Bolsonaro, familiares e aliados nos últimos meses, desde a mobilização para o reiterado sequestro do Sete de Setembro para pregar contra o Judiciário até a campanha indecente pela injustificável anistia aos bagrinhos do 8 de Janeiro — mirando, evidentemente, não neles, mas nos fardados e em seus superiores, que estavam mergulhados até a cabeça na articulação para assassinar adversários e reinstalar o arbítrio no país.

Muito se tem discutido, também neste espaço, a respeito da extensão dos inquéritos sob a relatoria de Alexandre de Moraes. É possível encontrar argumentos jurídicos para questionar o fato de, sendo vítima dessa e de outras tramas sob investigação, ele continuar relatando os inquéritos. Nada disso, no entanto, é capaz de desviar o debate do que é central: não fosse a atuação firme e articulada da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do Judiciário, a democracia teria soçobrado.

A Justiça formou sucessivas barreiras, primeiro no TSE, depois no Supremo, às ações do ex-presidente para se perpetuar no poder, primeiro tentando evitar as eleições de 2022 , depois com as maquinações que até aqui já têm as digitais de nomes de alta patente de seu entorno para impedir a diplomação, a posse e o governo de Lula.

O inquérito da tentativa de golpe pré-8 de Janeiro será concluído até o fim do ano. Não só não haverá anistia, como parece claro que os próximos alvos estão num círculo ainda mais restrito e nuclear.

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CUSTOS E BENEFÍCIOS DA REFORMA TRIBUTÁRIA

Lu Aiko Otta, Valor Econômico

Primeiro boleto da reforma tributária já vai chegar no ano que vem

Os efeitos mais visíveis da reforma tributária sobre a economia brasileira ainda vão demorar a aparecer, mas o primeiro boleto já chegou. No ano que vem, a União terá de aportar cerca de R$ 9 bilhões no Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, criado para viabilizar o fim da “guerra fiscal”. Será o primeiro pagamento para um conjunto de quatro novos fundos, numa conta que ultrapassará a marca de R$ 1 trilhão nos próximos 20 anos. É muito? Pode não ser, se forem levados em consideração os ganhos esperados na arrecadação a partir das mudanças.

Os R$ 9 bilhões deveriam estar previstos no Orçamento de 2025, que está em análise no Congresso. Mas não estão. Além disso, os projetos de lei que vão regular o funcionamento dos fundos ainda nem foram enviados ao Legislativo.

Será preciso cortar despesas para viabilizar esse pagamento, caso o gasto seja considerado primário. Mas, segundo se comenta nos bastidores, existe a possibilidade de ser financeiro.

O elevado custo fiscal dos fundos é um aspecto da reforma tributária que tem recebido pouca atenção, na visão do ex-secretário da Receita Federal José Tostes Neto. Ele cita estudo elaborado por Cristiane Schmidt, ex-secretária de Fazenda de Goiás que atuou como consultora do Banco Mundial, segundo o qual o custo estimado é de R$ 1,057 trilhão até 2046.

“Não há espaço fiscal para a União assumir esse compromisso tão alto, tão significativo, nesse curto espaço de tempo”, avalia Tostes. Em tese, o custo vai se estender pela eternidade. “E a mudança de governo às vezes muda as políticas, as prioridades, a forma de ver as coisas”, pontua.

A criação dos quatro fundos foi uma contrapartida cobrada pelo Congresso para aprovar a reforma. São eles: o de compensação de benefícios fiscais, o de desenvolvimento regional, o de diversificação econômica da Amazônia e o de desenvolvimento da Amazônia Ocidental e Amapá.

Esses se somarão aos fundos constitucionais de Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que já existem hoje e que custarão R$ 64 bilhões este ano. Tostes, que foi secretário de Fazenda do Pará, questiona se, em vez de criar novos fundos, não seria melhor fazer funcionar os que já existem.

Autora do cálculo que apontou para o custo trilionário da reforma tributária, Schmidt lembra que originalmente os fundos estavam dirigidos para infraestrutura e tecnologia, como é feito na União Europeia. No entanto, o texto foi modificado de forma que os governadores terão plena liberdade para alocar o dinheiro.

O impacto fiscal dos fundos é o principal ponto de crítica da especialista, porque os valores são elevados e não está claro de onde virão os recursos. É um problema, principalmente levando em conta o cenário difícil para as contas do governo federal.

Ainda assim, ela considera que a reforma tributária é positiva. A criação dos fundos, na sua visão, foi uma medida correta dentro do processo de negociação no Congresso. Porém, é preciso encontrar fontes de financiamento. Por exemplo, os fundos constitucionais existentes.

A conta dos fundos assusta, mas é preciso compará-la com os benefícios decorrentes da reforma, diz Bráulio Borges, pesquisador do FGV Ibre e economista sênior da LCA Consultores. Ele estimou o custo dos fundos, com pressupostos diferentes dos utilizados por Schmidt, e chegou a um total de R$ 1,49 trilhão no período de 2025 a 2050.

Do outro lado da moeda, Borges calculou quanto a União arrecadará a mais no período. Para tanto, considerou a média apontada em dez diferentes estudos sobre o aumento do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro como consequência da reforma: 10,7%.

Considerando que a receita líquida da União permanecerá em 18,5% do PIB, o ganho de arrecadação no período chegaria a R$ 6,1 trilhões.

A conclusão é que, apesar do custo elevado dos fundos, a reforma tributária será vantajosa para o país. “O custo-benefício é claramente positivo”, afirma. Os ganhos são 4,1 vezes maiores do que o custo dos fundos.

Dado que a reforma entrará em operação aos poucos, no começo do processo a União terá mais gastos do que ganhos. No período de 2025 a 2030, a diferença será de R$ 48,1 bilhões, uma média de R$ 9,6 bilhões por ano. A partir de 2030, a relação se inverte, com a balança pendendo para o lado da União em R$ 9,1 bilhões. Em 2050, as receitas estarão R$ 506,7 bilhões maiores, para gastos de R$ 84,8 bilhões.

Borges vê outras vantagens na reforma. Por exemplo: o uso dos recursos dos fundos terá de estar nos orçamentos dos Estados e municípios. É uma forma mais transparente do que a atual, baseada na concessão de benefícios tributários.

Além disso, o Fundo de Desenvolvimento Regional beneficiará todas as unidades da Federação, e não apenas o Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste, como hoje. Há áreas no Sul e no Sudeste que precisam de apoio para seu desenvolvimento, aponta.

Os fundos da reforma tributária custarão caro ao contribuinte brasileiro. Sua regulamentação será uma boa oportunidade para estabelecer regras que garantam boa alocação dos recursos e transparência na aplicação.

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O FANTASMA DA GUERRA ESTÁ NO AR

Elio Gaspari, O Globo

Discursando no G20, Lula foi genérico:

— Não é preciso esperar uma nova guerra mundial ou um colapso econômico para promover as transformações de que a ordem internacional necessita.

Há duas semanas, o jornalista americano George Will foi específico em sua coluna no Washington Post:

— A Terceira Guerra Mundial já começou.

Will é um veterano conservador, independente e erudito. Ele lembra que a Segunda Guerra começou cronologicamente em setembro de 1939, com a invasão da Polônia pela Alemanha, depois de uma “cascata de crises”.

Àquela altura, o Japão já havia ocupado a Manchúria (1931). Some-se a isso que o Terceiro Reich já havia engolido a Áustria (março de 1938) e um pedaço da Tchecoslováquia (dezembro de 1938). A Itália atacou a Abissínia em 1935 e invadiu a Albânia em abril de 1939.

Will lembra que a Rússia anexou a Crimeia em 2014 e invadiu a Ucrânia em 2022. Para ele, a participação americana na Segunda Guerra começou em 1940, quando a Marinha patrulhou as rotas marítimas do Atlântico Norte. A mobilização dos Estados Unidos nesta Terceira Guerra começou antes mesmo da remessa para Israel de um escalão de cem soldados para operar um sistema de defesa antimísseis. Os Estados Unidos abastecem com informações os governos da Ucrânia e de Israel.

Depois do artigo de Will, a crise escalou. O presidente Joe Biden autorizou as forças ucranianas a disparar mísseis americanos de médio alcance contra tropas russas que estão em seu território. Na outra ponta, hierarcas russos falam no risco de uma guerra, e as tropas de Vladimir Putin receberam um reforço de 10 mil soldados norte-coreanos.

Para Will, a cascata de crises se espalha por seis dos 24 fusos horários do planeta, indo da fronteira ocidental da Rússia até os mares da Ásia, onde a China aperta as Filipinas. Enquanto isso, nenhum dos dois candidatos à Presidência dos Estados Unidos parecia perceber o tamanho do problema.

Para o americano comum, a Segunda Guerra só começou em dezembro de 1941, quando os japoneses atacaram a base naval de Pearl Harbor, no Pacífico. Para os russos, ela começou seis meses antes, em junho, quando o aliado alemão invadiu a falecida União Soviética. Eram os maremotos da cascata de crises.

Will fala de um eixo que junta Rússia, China, Irã e Coreia do Norte. Tratando da China, o falecido Henry Kissinger escreveu, em 2012, que os Estados Unidos e a China construíam uma rivalidade semelhante à de Inglaterra e Alemanha nos primeiros anos do século passado. A Primeira Guerra Mundial começou em 1914.

A cascata de crises está na mesa. Talvez a Terceira Guerra ainda não tenha começado. Caso ela comece, os primeiros anos desta década serão vistos como se olha hoje para a segunda metade dos anos 30 do século passado. Todos os maus augúrios não levam em conta que, em janeiro, Donald Trump assumirá a Presidência dos Estados Unidos. George Will foi republicano e, em 2020, votou em Joe Biden. Na última eleição, anunciou que votaria em Kamala Harris.

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PATRIOTADA DE TRUMP ME ESPANTA PORQUE EUA É PAÍS DE IMIGRANTES

Roberto DaMatta, O Globo

O estrangeiro não é apenas um intruso ilegal. Ele é um intrometido que idealiza e admira o país que o acolhe

Espanta-me o signo-lema que elegeu Donald Trump. O mote isolacionista e literalmente reacionário “Make America Great Again” (Torne a América grande novamente) — um slogan agressivo, explicitamente nacionalista e exclusivista no melhor estilo autocrático. O Maga (na sigla em inglês) de Trump é, sem sombra de dúvida, o primeiro degrau de um neofascismo cujo sintoma é a cruel deportação em massa de imigrantes “ilegais”. Como se fosse “legal” largar nosso lugar de nascimento — a terra por onde entramos como atores passageiros neste terrivelmente maravilhoso Vale de Lágrimas. Este vale que a ideologia trumpista quer transformar num inferno, pois imigrar é um movimento dramático, que suplanta escolhas turísticas.

Trata-se de ato contrário ao que paulatinamente fabricou os Estados Unidos e está expresso no projeto dos milhões que assim fizeram, demonstrando justamente o oposto do que Trump proíbe. O “fazer América” que os pais ou avós da maioria dos meus amigos americanos (os de Trump eram alemães e escoceses) realizaram, provando (muitos, sem dúvida, ilegais) o lado mais generoso e tolerante da igualdade como valor difícil de praticar.

O Maga é o dístico expressivo de um perigoso nacionalismo. É a marca dos movimentos afins de hierarquia de raças e gentes. É a negação do acolhimento e uma clara exaltação do etnocentrismo que Trump e os neorrepublicanos transformam em entusiasmo eleitoreiro. Queira Deus que não vire política de Estado. É um disparate reacionário ao estreitamento solidário de um mundo globalizado, marcado por teias de mensagens que nos tornam parte de algo maior que nossas aldeias, grandes não por voltarem a seu passado, mas por se abrirem a um futuro planetário nivelador de estilos de vida.

Ninguém pode ser contra a legalidade imigratória, mas a relação inconsciente entre a ilegitimidade e o expurgo migratório justamente na fronteira sul não pode ser ignorada. Ali — pasmem — se faz um muro entre povos e humanidades num planeta cada vez mais interligado.

Contra essa aversão, deve-se ressaltar o poder da esperança que todo imigrante traz dentro de si quando muda de pátria. O caso da América como república democrática até agora triunfante revela como os peregrinos que, em 1620, atracaram em Plymouth, Massachusetts, criaram um pacto de liberdade e igualdade. Essa igualdade foi repetidamente vivida por milhões de outros “peregrinos”, que reiteraram aos locais a virtude do acolhimento, não do expurgo.

É um espantoso paradoxo essa pintura trumpista dos imigrantes como vilões, justamente numa nação construída por imigrantes. Estrangeiros que lembravam aos americanos a preciosidade de suas heranças políticas e o valor de sua difícil, arriscada e preciosa experiência democrática. Muitos eventos foram lembrados e reeditados justamente por recém-chegados.

O estrangeiro não é apenas um intruso ilegal. Ele é um intrometido que idealiza e admira o país que o acolhe. Falo disso porque muitas vezes testemunhei estrangeiros lembrando aos americanos natos a importância de seus valores e a riqueza de seu estilo de vida. O expurgo de estrangeiros, mesmo ilegais, ao lado do lema de “tornar a América grande novamente”, chega a meus velhos ouvidos como toque antidemocrático e espantosamente isolacionista.

Lembra “América somente para americanos”, quando sabemos que a experiência dos Estados Unidos é parte de toda a Humanidade e com ela compartilhada sem as reservas do nós contra vocês.

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OS BARULHOS DOS AUSENTES

Bernardo Mello Franco, O Globo

Sem pisar no Rio, Trump e Putin tumultuaram cúpula do G20

Russo atacou Ucrânia e quase melou declaração conjunta; americano pairou como ameaça a futuro do bloco

Donald Trump e Vladimir Putin não saíram na foto diante do Pão de Açúcar nem provaram as caipirinhas oferecidas aos líderes globais no Museu de Arte Moderna. Mesmo assim, encontraram suas maneiras de tumultuar a reunião do G20 no Rio.

O presidente da Rússia cancelou a viagem por um motivo singelo: poderia ir em cana se pisasse em solo brasileiro. Putin é alvo de mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional. Para evitar uma surpresa indesejada, preferiu ficar em Moscou.

Apesar da distância de 11 mil quilômetros, o mandachuva do Kremlin se fez notar no Parque do Flamengo. Às vésperas do encontro, autorizou um bombardeio a centrais elétricas da Ucrânia. A ofensiva irritou países europeus e quase melou a declaração conjunta do G20.

O impasse foi solucionado com uma gambiarra diplomática: o texto final condenou a guerra sem citar a Rússia, que iniciou o conflito. A solução não agradou a ninguém, mas evitou que a cúpula terminasse sem consenso — o que seria considerado um fiasco de dimensões planetárias.

Recém-eleito para a Casa Branca, Trump também não participou da reunião. A delegação americana foi chefiada por Joe Biden, ex-presidente em atividade até janeiro. O democrata se enrolou com a própria agenda e conseguiu perder a foto de lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, principal legado do Brasil como anfitrião do G20.

Enquanto Biden cometia suas gafes, a sombra de seu sucessor pairava sobre a Guanabara. O republicano faz oposição cerrada a tudo o que os líderes globais negociaram: da taxação dos super-ricos à transição energética, da preocupação com a emergência climática ao combate às desigualdades.

Ontem, no último dia do encontro, o presidente Lula deixou um recado para Trump: “Na luta pela sobrevivência, não há espaço para o negacionismo e a desinformação”. Mais tarde, ao se despedir dos convidados, o brasileiro lembrou uma frase de Nelson Mandela: “É fácil demolir e destruir, os heróis são aqueles que constroem”.

Bonitas palavras, mas daqui a exatos dois meses o poder voltará às mãos do homem laranja.

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O SILÊNCIO DE TARCÍSIO SOBRE AS REVELAÇÕES DA TRAMA GOLPISTA

Naira Trindade, Blog do Lauro Jardim, O Globo

Dois meses atrás, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), subiu em um trio elétrico na Avenida Paulista, ao lado de Jair Bolsonaro, para pedir anistia aos presos pelos atos golpistas de 8 de janeiro em discurso em que os considerava como “apenados de forma desproporcional e cruel”.

Agora, revelada uma trama golpista envolvendo militares que planejaram a morte de Lula, Alckmin e até mesmo de Alexandre de Moraes para impedir que o presidente eleito assumisse o poder, o governador de São Paulo evita qualquer tipo de posicionamento ou declaração em defesa de alguém.

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MORRE DOM JOSÉ LUÍS AZCONA HERMOSO

Do O Liberal

Dom Azcona, Bispo Emérito do Marajó, morre aos 84 anos, em Belém

Dom Azcona tinha 84 anos de idade e estava internado em cuidados paliativos no Hospital Porto Dias, em Belém.

O Bispo Emérito, Dom José Luís Azcona Hermoso, de 84 anos, morreu na manhã desta quarta-feira (20/11), em Belém. O falecimento foi comunicado pela Prelazia do Marajó. Dom Azcona, como era carinhosamente chamado, estava internado em cuidados paliativos no Hospital Porto Dias.

“Nesse momento, nossa Prelazia do Marajó enlutada louva a Deus pela vida e ministério de nosso bispo emérito e pede ao Senhor Bom Pastor, que o acolha em sua misericórdia e lhe conceda o descanso eterno”, escreveram no instagram.

O corpo de Dom Azcona será velado em Belém, na noite de hoje, das 21h à meia-noite, na Paróquia São José de Queluz, localizada na avenida Cipriano Santos, 311, no bairro de Canudos.

Na quinta-feira, 21, a igreja será aberta às 5h30 para a continuação das últimas homenagens até o horário da Missa de Corpo Presente, marcada para 7h. Às 9h, o corpo de Dom Azcona sairá do local para ser trasladado até Soure, no Marajó. A viagem deve acontecer entre 10h30 e 11h.

Ainda não está confirmada como será a programação de despedida do bispo em Soure, entretanto, Dom Azcona deverá ser sepultado na Catedral Nossa Senhora da Consolação.

Câncer 

Bispo Azcona foi trazido a Belém no dia 16 de junho deste ano. Segundo o padre Casimiro Antoni Skorski, administrador diocesano da prelazia do Marajó, inicialmente o bispo Azcona foi internado devido a um distúrbio metabólico do sódio. No dia 16 de junho, o bispo Azcona foi internado em um hospital particular em Belém, para o tratamento médico. Três dias depois, já em 19 de junho, foi constatada uma lesão no pâncreas que necessitava de melhor investigação.

A informação sobre o diagnóstico do câncer no pâncreas foi divulgada no dia 27 de junho, após o recebimento do boletim médico, enviado à igreja na quinta-feira (26/06). Conforme divulgado na época, se tratava de Neoplasia maligna, quando há a proliferação anormal de células com estrutura diferente do tecido original e possibilidade de metástase. 

No dia 6 de agosto o bispo Azcona iniciou o primeiro ciclo de quimioterapia. Azcona também chegou a mostrar melhora no quadro de saúde. A informação foi confirmada pelo Chanceler da Prelazia do Marajó, padre Rafael Guedes, por meio de nota divulgada nas redes sociais. 

No dia 28 de agosto, o bispo Azcona recebeu alta do hospital e retornou para casa. Sete dias depois, já em 4 de setembro, ele retornou para o ambulatório de oncologia, para realizar um novo ciclo de quimioterapia. Após o retorno ao hospital, o bispo permaneceu internado recebendo cuidados paliativos relativos à doença. Conforme divulgado pela Prelazia do Marajó, a saúde estava estável.

O último boletim médico divulgado pela Prelazia do Marajó foi no dia 13 de novembro, quando informaram que Dom Azcona estava “conversando e consciente da realidade”. O comunicado foi assinado pelo Bispo Dom José Ionilton de Oliveira e pelo Chanceler Padre Raimundo Rafael de Souza Guedes.

Trajetória

Dom José Luiz Azcona nasceu em Pamplona, na Espanha, em 28 de março de 1940. Foi para o Seminário Menor aos dez anos de idade na cidade de São Sebastião (Espanha). Professou os votos simples em 1958 e os votos solenes em 1961. Foi ordenado sacerdote por Dom Giovanni Canestri, na Basílica de São João de Latrão, em Roma, em pleno Concílio Vaticano II. Em 1964 concluiu a teologia e cursou o doutorado em teologia moral no Instituto Alfonsiano dos padres redentoristas em Roma. Foi premiado em 2022 com a Ordem do Mérito Princesa Isabel

Em 21 de dezembro de 1963, foi ordenado padre na Ordem dos Agostinianos Recoletos na basílica de São João de Latrão, em Roma, em pleno Concílio Vaticano II. Em 1964 concluiu a teologia e cursou o doutorado em teologia moral no Instituto Alfonsiano dos padres redentoristas em Roma. Foi premiado em 2022 com a Ordem do Mérito Princesa Isabel. Em 1985, chegou ao Brasil.

Foi nomeado bispo por São João Paulo II, em 1987. A sua sagração episcopal ocorreu em 5 de abril de 1987 por Dom Alberto Gaudêncio Ramos, em Belém (Pará). Desde 12 de abril daquele ano permaneceu em Soure, na Ilha de Marajó.

Por sua atuação contra o tráfico humano e a exploração sexual de crianças e adolescentes no Marajó, Dom Azcona sofreu ameaças de morte na região Norte. Ele permaneceu na prelazia marajoara até a renúncia ao governo pastoral, em 2016.

Em 2018, ele foi o pregador do retiro para o episcopado brasileiro reunido na 56ª Assembleia Geral da CNBB. Também participou de reuniões promovidas pela Comissão Episcopal para a Ação Sociotransformadora da CNBB.

Em 10 de setembro deste ano, Azcona recebeu a visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré no leito do hospital onde esteve internado, em Belém.

Combate ao tráfico humano e exploração sexual

Ao longo do tempo em que esteve no Marajó, Dom Azcona foi assíduo denunciante de casos de exploração sexual e até mesmo de tráfico de pessoas, como destacuo a Regional Norte 2 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em sua nota de pesar:

"Recordando o seu lema episcopal “In Nomine Domini - Em nome do Senhor”, elevamos aos céus as súplicas pelo descanso eterno deste irmão ao retorno a Casa do Pai. Com uma vida dedicada a missão em cuidar do povo do Marajó ao longo de 37 anos no episcopado, Dom Azcona não mediu esforços, e colocou sua vida em risco, ao denunciar a situação miserável em que vive a população do arquipélago, a devastação ambiental e a pesca predatória na região, assim como também denunciou a exploração sexual infantil e o tráfico de mulheres. Na certeza, Dom José Luís Azcona parte deixando em seu legado episcopal a força de lutar pelo povo e para o povo do Arquipélago do Marajó".

A irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, de 64 anos, fundadora e presidente do Instituto Dom Azcona (IDA), conta que, desde 2006, o bispo já vinha acumulando uma série de denúncias que, muitas vezes, chegavam até ele sem esforço: "As pessoas começavam a nos procurar, porque elas diziam que confiavam em nós. Elas sabiam que a gente não ia se calar", detalha Marie Henriqueta.

Um dos grandes marcos na trajetória de enfrentamento a esses crimes aconteceu em março de 2008, quando foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia, que buscou reivindicar os resultados das investigações de denúncias já feitas por Azcona. "Ele insistentemente fez com que fosse instalada uma CPI para que fossem investigadas tantas denúncias", declara Marie Henriqueta.

O preço de ocupar o front também era cobrado, relembra a fundadora do IDA: "as ameaças foram explícitas. Chegavam recados. Eu lembro que, há alguns anos atrás, quando ele denunciou um esquema de tráfico de pessoas no Marajó, ele recebeu explicitamente ameaças, através de outras pessoas que o viam nas ruas. Mas ele nunca recuou, sempre enfrentou com muita força e coragem toda denúncia que chegava para nós resolvermos".

Comoção

O governador do Estado do Pará, Helder Barbalho, usou sua rede social no 'X' para manifestar pesar e decretou luto oficial:

"Lamento profundamente a morte de Dom José Luis Azcona Hermoso, bispo emérito da Prelazia do Marajó. Meus sentimentos aos amigos e familiares. Decreto, portanto, luto oficial em todo o Estado".

Semelhantemente, a vice-governadora, Hana Ghassan se manifestou:

"Com tristeza recebi a notícia da morte de Dom José Luís Azcona Hermoso, Bispo Emérito da Prelazia do Marajó. Dom Azcona tinha 84 anos e ao longo da sua vida defendeu os direitos humanos no nosso estado. Meus sentimentos aos familiares e amigos".

Jader Barbalho citou o reconhecimento internacional de Dom Azcona:

O prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues, também aproveitou a rede social para deixar uma mensagem de lamento:

"O meu pesar pela partida de Dom Luís Azcona Hermoso, bispo emérito do Marajó, defensor da justiça social. Ele lutou incansavelmente pelas crianças e adolescentes do Marajó, protegendo e inspirando muitos. Hoje, choramos, mas fica o exemplo de coragem, amor e fé a ser seguido".

O Ministro das Cidades, Jader Filho, se pronunciou e destacou a vida de Azcona como um exemplo a ser seguido:

"Dom Azcona teve uma vida de exemplo de amor ao próximo. Me solidarizo com todos os fiéis, amigos e familiares. Que sua memória inspire a todos a continuarem trabalhando por um mundo mais justo e fraterno".

A senadora do Distrito Federal, Damares Alves, fez uma extensa publicação em homenagem a Azcona:

"Hoje nos despedimos de um amigo, um líder que ultrapassou todas as barreiras, que enfrentou com todas as forças os poderosos e me inspirou na luta pelo fim da violência sexual contra crianças e adolescentes no arquipélago do Marajó".

Ela também cita o começo do relacionamento com Azcona e a luta contra o abuso sexual infantil no Marajó: "Conheci Dom Ascona ainda no início dos anos 2000. Eu era uma assessora e ativista em defesa das crianças. Ele, uma liderança religiosa do Pará, de voz grave e corajosa, com firmeza para denunciar, em uma CPI da Câmara dos Deputados, todas as barbaridades cometidas contra tantos pequeninos ao longo das últimas décadas na terra onde ele exercia o sacerdócio".

"Sem Dom Ascona jamais existiria Abrace o Marajó. Sem a determinação dele, talvez o Brasil não conhecesse aquela terra e as necessidades daquele povo sofrido e trabalhador", afirma enfaticamente Damares Alves e se despede: "Vá em paz, meu amigo. Aqui nessa terra continuaremos sua luta. Não vamos esquecer as crianças pelas quais o senhor tanto lutou".

Destacando o legado de Azcona na luta contra a exploração sexual infantil no Marajó, a secretária de Cultura do Pará, Úrsula Vidal, publicou:

"Partiu hoje deste plano uma das mais ativas vozes no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes no arquipélago do Marajó. Dom José Azcona estava internado em Belém se tratando de um câncer no pâncreas, mas não resistiu, falecendo aos 84 anos de idade. O religioso - homem corajoso e firme em sua luta na Prelazia do Marajó - chegou a ser ameaçado de morte em 2008. Que descanse na paz dos justos e valentes".

A prefeita de Ponta de Pedras, no Marajó, Consuelo Castro, foi mais uma das autoridades a lamentar a morte de Azcona. Ela enfatizou o impacto da vida do religioso na região:

"É com profundo pesar que lamentamos o falecimento de Dom José Luis Azcona, Bispo Emérito do Marajó. Sua dedicação incansável à fé, à justiça e à luta pelos mais necessitados marcou profundamente nossa região e deixou um legado de amor e coragem. Que Deus o acolha em Sua glória eterna e que seu exemplo continue a inspirar a todos nós. Nossas orações e sentimentos aos familiares, amigos e à Diocese do Marajó".

O deputado federal Delegado Éder Mauro também escreveu: "O Marajó perdeu seu grande defensor. Dom Azcona nos deixa, mas o trabalho em defesa da região, principalmente das crianças e dos adolescentes, é um legado para todos nós e deve ser ampliado e fortalecido. Que Deus o receba".

A Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa) lamentou a morte de Dom Azcona.

“Lamentamos profundamente o falecimento do Bispo Emérito do Marajó, Dom José Luís Azcona. O líder religioso tinha 84 anos e tratava um câncer no pâncreas diagnosticado este ano. Dom José Luís Azcona era um religioso espanhol da Ordem dos Agostinianos Recoletos. Foi bispo da prelazia do Marajó de 1987 a 2016 e, mesmo após sua renúncia, continuava vivendo na ilha. Nossos sentimentos a parentes, amigos e a todos que admiravam o trabalho de Dom José Luís Azcona”, escreveu em uma publicação nas redes sociais.

O advogado Jarbas Vasconcelos do Carmo, membro honorário vitalício da OAB e ex presidente da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Pará também se manifestou nas redes sociais após a morte de Dom Azcona.

“Lamento, profundamente, a morte de Dom José LuÍs Azcona, bispo emérito da Prelazia do Marajó, ocorrida hoje (20). Dom Azcona foi um baluarte na defesa dos direitos humanos das populações mais vulnerabilizadas do nosso arquipélago do Marajó, sobretudo das crianças. Suas denúncias fizeram com que sua vida fosse ameaçada inúmeras vezes, mas ele nunca se calou. Nos deixa um belo exemplo de fé, dignidade, caridade e amor ao próximo. Que siga em paz e que o seu legado continue nos guiando”, escreveu.

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MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS PIONEIRAS


Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra 

Larissa Lopes, GALILEU

11 mulheres negras brasileiras pioneiras em cultura, política e ciência

Tereza de Benguela, Carolina de Jesus, Sônia Guimarães... Conheça as histórias de mulheres que influenciaram e mudaram a história do país

Você sabia que a primeira atriz brasileira a receber indicação em um festival internacional de cinema foi Ruth de Souza, ativista e pioneira no movimento artístico negro? Ou que, um século antes desse feito, a maranhense Maria Firmina dos Reis, filha de uma escravizada alforriada, se tornava a primeira mulher romancista do país?

Essas e outras histórias compõem o livro Narrativas Negras, iniciativa criada por um coletivo homônimo que reúne 70 brasileiras com um único objetivo: resgatar e divulgar a trajetória de mulheres negras que influenciaram a cultura do país.

Junto a elas, mais de 800 pessoas se mobilizaram para tornar o livro uma realidade, arrecadando R$ 45.147, até o início de agosto de 2020, para a produção de mil exemplares, equivalente a 205% da meta proposta em março daquele ano. "Esses 205% vieram só para acrescentar e mostrar o quão grande é o que estamos criando e quantas pessoas acreditam nessa iniciativa", comemora Isadora Ribeiro dos Santos, UX designer e uma das líderes do coletivo.

Pouco conhecidas, as histórias dessas mulheres têm ganhado visibilidade por meio de coletivos como o Narrativas Negras e de pesquisas que têm resgatado cada vez mais informações sobre personalidades importantes, como Carolina de Jesus, e símbolos de resistência, a exemplo de Dandara dos Palmares e Tereza de Benguela.

A seguir, confira os feitos de 11 mulheres negras que influenciaram (e influenciam até hoje) a cultura e a política do país:

1. Dandara dos Palmares (século 17)

Líder feminina do Quilombo dos Palmares, Dandara era companheira de Zumbi dos Palmares, com quem teria tido três filhos. Ao longo de décadas, a matriarca participou de decisões políticas e militares em prol da luta pela abolição da escravatura e assumiu o compromisso de lutar pela liberdade das cerca de 30 mil pessoas que chegaram a compor o quilombo.

Resistiu ao poder do colonizadores europeus até sua morte: acredita-se que ela teria se jogado de uma pedreira para que as forças militares que tomaram o quilombo no fim do século 17 não a capturassem e a escravizassem novamente.

2. Tereza de Benguela (século 18)

Parceira de José Piolho, líder do maior quilombo do Mato Grosso, Tereza de Benguela assumiu o comando do refúgio após a morte do companheiro. Por duas décadas, ela esteve à frente das decisões políticas, econômicas e administrativas do grupo, que era formado por negros e indígenas que resistiam à escravidão.

A estrutura do Quilombo do Quariterê (ou do Piolho) compreendia um parlamento para discutir questões da população local, sistemas de defesa e também de cultivo, como algodão, feijão e milho.

Com o sucesso da organização do quilombo, ela ficou conhecida como Rainha Tereza e se tornou símbolo de resistência. Desde 2014, é celebrado o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra em 25 de julho.

3. Maria Firmina dos Reis (1822 - 1917)

Nascida em São Luís do Maranhão, a professora Maria Firmina dos Reis é conhecida como a primeira romancista do Brasil. Seu único livro, Úrsula, de 1859, é considerado a primeira obra literária brasileira a fazer críticas à escravidão, superando O Navio Negreiro (1870), de Castro Alves, e A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães.

Nascida em São Luís do Maranhão, a professora Maria Firmina dos Reis é conhecida como a primeira romancista do Brasil. Seu único livro, Úrsula, de 1859, é considerado a primeira obra literária brasileira a fazer críticas à escravidão, superando O Navio Negreiro (1870), de Castro Alves, e A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães.

Apesar de ter sido bem recebida pela crítica local em sua época, a publicação acabou sendo esquecida — até ser reencontrada em 1962 pelo historiador Horácio de Almeida em um sebo.

Com poucos registros sobre sua história, boa parte da vida de Maria Firmina permanece um mistério para os pesquisadores. Sabe-se que era filha de uma escravizada alforriada e um homem negro. Depois de ficar órfã, foi viver em Guimarães, no litoral maranhense, com uma tia.

Trabalhou como professora de primário até 1881, quando se aposentou. Um ano antes, fundou a primeira escola mista do Maranhão, onde crianças eram alfabetizadas gratuitamente. Ainda como autora, escreveu diversos textos em jornais, deixando clara sua posição abolicionista.

4. Antonieta de Barros (1901 - 1952)

Nascida em Santa Catarina, a educadora Antonieta de Barros foi uma importante política na luta contra o racismo e o machismo na região Sul. Recém-formada na Escola Normal Catarinense, instituição que preparava professores na época, criou em 1922 um curso para alfabetizar a população carente. Também fundou o jornal A Semana, em que publicava seus artigos sobre educação e desigualdade racial e de gênero.

Seu ingresso na política começa concomitantemente ao sufrágio feminino no Brasil. Conquistado em 1932, o direito ao voto estendido às mulheres foi consolidado na Constituição em 1934, ano em que Barros se tornou suplente do Partido Liberal Catarinense (PLC).

Como o engenheiro agrônomo Leônidas Coelho de Souza não pôde assumir o cargo, a educadora cumpriu o mandato de 1935 a 1937, tornando-se a primeira deputada de Santa Catarina e a primeira deputada negra do Brasil.

Em 19 de julho de 1937, conquistou outro feito: tornou-se a primeira mulher a presidir uma sessão da Assembleia Legislativa no Brasil.

5. Laudelina de Campos Melo (1904 - 1991)

Obrigada a trabalhar como empregada doméstica desde os 7 anos de idade, Melo se envolveu no movimento sindical e na luta contra o racismo ainda jovem. Aos 16 anos, já havia sido nomeada presidente do Clube 13 de Maio, um projeto voltado para recreação de jovens negros na cidade de Poços de Caldas, em Minas Gerais. Na época, trabalhava para criar os cinco irmãos ao lado da mãe e na ausência do pai, falecido quando ela tinha 12 anos.

Aos 18 anos, mudou-se para São Paulo, onde construiu sua própria família e fortaleceu o movimento por direitos das empregadas domésticas. Em 1936, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro e fundou a primeira Associação de Trabalhadores Doméstico do Brasil, em Campinas, no interior paulista. Entre 1937 e 1946, suas atividades foram interrompidas por conta das normas estabelecidas durante o Estado Novo. A instituição deu origem, em 1988, ao sindicato da classe.

Sua trajetória foi relembrada em Laudelina: Lutas e Conquistas, documentário de 2015 produzido pelo Museu da Cidade e o Museu da Imagem e Som, ambos da Secretaria Municipal de Cultura de Campinas.

6. Carolina de Jesus (1914 - 1977)

Filha de pais analfabetos, Carolina cresceu no interior de Minas Gerais e teve a oportunidade de começar a estudar aos 7 anos. Frequentou o Colégio Allan Kardec, a primeira escola espírita do Brasil, com o auxílio financeiro de uma mulher para quem sua mãe trabalhava como lavadeira. Em pouco tempo, aprendeu a ler e a escrever, conquistas que mudariam sua vida e a história da literatura brasileira.

Em 1947, mudou-se para São Paulo com seus três filhos. Viveu como catadora na favela do Canindé, onde começou a escrever suas memórias no que se tornaria seu primeiro livro: Quarto de despejo, publicado em 1960. O livro foi um sucesso de vendas, traduzido para 13 idiomas e distribuído para mais de 40 países.

Em vida, publicou mais dois livros, Casa de Alvenaria (1961) e Pedaços de Fome (1963). Desde sua morte, em 1977, muitas outras obras e estudos têm sido publicados sobre seu legado literário, que deu visibilidade à população em vulnerabilidade social.

7. Ruth de Souza (1921 - 2019)

Criada em uma fazenda no interior de Minas Gerais até os 9 anos da idade, Souza começou a se interessar pela atuação após se mudar para o Rio de Janeiro e assistir a peças no Teatro Municipal da Cidade Maravilhosa. Em 1945, passou a atuar no Theatro Experimental do Negro, projeto liderado pelo artista e professor universitário Abdias do Nascimento.

Em 8 de maio daquele ano, prestes a completar 24 anos, estreou no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro com a peça O imperador Jones. Pela performance, recebeu uma bolsa da Fundação Rockefeller para estudar por um ano nos Estados Unidos.

Desde então, sua carreira cruzaria com a de vários dramaturgos, escritores e autores, como os brasileiros Jorge Amado e Anselmo Duarte, o norte-americano Edmond Bernoudy e o argentino Tom Payne.

Este último dirigiu Sinhá Moça, filme de 1953 em que Souza interpretava a personagem Balbina. Sua performance a tornou a primeira atriz brasileira a ser indicada em um festival internacional de cinema, o de Veneza.

Em 1954, a artista concorreu ao Leão de Ouro de Melhor Atriz com a francesa Michèle Morgan, a norte-americana Katharine Hepburn, até hoje a atriz que ganhou mais Oscars, e a alemã Lilli Palmer, que saiu vencedora por apenas dois pontos à frente de Souza.

8. Marli Pereira Soares (1954)

Intitulada Tenho pavor de barata, de polícia não, a autobiografia da empregada doméstica que se tornou um do maiores símbolos da resistência contra a ditadura militar, explica bem por que Marli Pereira Soares ficou conhecida como Marli Coragem.

No dia 13 de outubro de 1979, ela testemunhou seu irmão Paulo Pereira Soares, de 18 anos, ser morto com 12 tiros pela polícia militar. Valente, denunciou o caso na delegacia de Belford Roxo, no Rio de Janeiro, onde passou a fazer reconhecimentos quase que diariamente para identificar os algozes de Paulo.

Durante sua luta por justiça, Marli sofreu constantes ameaças. Sua casa foi saqueada e incendiada e sua família voltou a ser vítima de violência policial. Em 13 de janeiro de 1993, seu filho Sandro foi assassinado aos 15 anos e, três meses mais tarde, Luiz Carlos Fusco, afilhado de Marli, foi executado por policiais do 18º BPM, aos 18 anos. O atual paradeiro de Marli é desconhecido.

9. Sonia Guimarães (1957-presente)

Filha de um tapeceiro e uma comerciante, Guimarães deixou sua casa em Brotas, interior de São Paulo, em 1976, quando foi aprovada em Licenciatura em Ciências na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Aluna de destaque desde os tempos de escola pública, na faculdade não foi diferente.

Concluiu especialização em química e tecnologia de materiais e fez mestrado em física aplicada. Em 1986, uma década após ingressar no ensino superior, mudou-se para a Inglaterra para cursar doutorado em Materiais Eletrônicos na Universidade de Manchester, onde saiu formada como a primeira mulher negra brasileira a ser doutora em Física.

Desde 1993, Guimarães é professora do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), onde leciona física experimental e também discute as desigualdades raciais e de gênero na ciência, especialmente nas áreas de exatas. “[O ITA] É uma instituição conservadora, masculina e branca. Mas aos poucos estamos ganhando espaço. Isso tudo era restrito e anos de exclusão são revertidos aos poucos", disse, em entrevista ao G1, em 2018. "O conservadorismo pode até desacelerar esse processo, mas hoje já não é mais capaz de nos parar”, disse.

Além da carreira como cientista, Guimarães também palestra para vítimas do racismo e machismo, motivando várias pessoas a persistirem em seus sonhos e carreiras. A física também é membro de diversas instituições, como a Sociedade Brasileira de Física, a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e a Afrobras, organização não governamental pela inserção social, econômica, educacional e cultural de jovens negros.

10. Marielle Franco (1979 - 2018)

Criada na favela do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, Marielle Franco despontou como uma das principais vozes defensoras dos direitos de mulheres, negros e da comunidade LGBTQI+ no Brasil. Socióloga formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, defendeu seu mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense sobre a intervenção militar nas favelas do RJ.

Em 2017, tornou-se vereadora da cidade do Rio de Janeiro, sendo a quinta mais votada no município. Infelizmente, a ativista não pôde completar seu mandato porque, em 14 de março de 2018, foi executada com três tiros na cabeça e um no pescoço ao lado do motorista Anderson Pedro Mathias Gomes. Seu assassinato repercutiu em todo o mundo, escancarando a violência e perseguição sofridas por ativistas sociais e políticos. Sua morte continua sob investigações, apesar de tentativas de obstrução por parte de policiais e políticos suspeitos.

Após sua morte, sua família criou o Instituto Marielle Franco para garantir formação política à mulheres e à população que vive em favelas. Em 2019, recebeu postumamente o Diploma Bertha Lutz, um reconhecimento dado pelo Senado Federal àquelas que contribuíram para o avanço das questões de gênero no país.

11. Marta da Silva Vieira (1986)

Mais conhecida apenas como Marta, a jogadora nascida em Dois Riachos, no interior de Alagoas, é a maior artilheira da história Seleção Brasileira. Somando 110 gols, a marca supera a de todos os homens e mulheres que já vestiram a camisa canarinho.

Além disso, Marta também já foi escolhida seis vezes a melhor jogadora do mundo (nos anos de 2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2018), outro feito que ainda não foi superado por nenhum outro futebolista, brasileiro ou estrangeiro.

“Em todo o mundo, hoje, as mulheres estão demonstrando que podem ter sucesso em papéis e posições anteriormente mantidas para os homens. A participação das mulheres no esporte e na atividade física não é exceção", disse Marta em 2018, quando se tornou embaixadora da ONU Mulheres.

"Por meio do esporte, mulheres e meninas podem desafiar normas socioculturais e estereótipos de gênero e aumentar sua autoestima, desenvolver habilidades de vida e liderança; elas podem melhorar sua saúde e posse e compreensão de seus corpos; tomar consciência do que é violência e como evitá-la, procurar serviços disponíveis e desenvolver habilidades econômicas”.

Ilustrações do livro Narrativas Negrasque homenageia e conta a história de 40 mulheres negras que mudaram a história do Brasil (Foto: Narrativas Negras)

Texto publicado na GALILEU em 12 AGO 2020 - 12H41 ATUALIZADO EM 10 AGO 2022 - 17H00

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