quarta-feira, 20 de novembro de 2024

MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS PIONEIRAS


Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra 

Larissa Lopes, GALILEU

11 mulheres negras brasileiras pioneiras em cultura, política e ciência

Tereza de Benguela, Carolina de Jesus, Sônia Guimarães... Conheça as histórias de mulheres que influenciaram e mudaram a história do país

Você sabia que a primeira atriz brasileira a receber indicação em um festival internacional de cinema foi Ruth de Souza, ativista e pioneira no movimento artístico negro? Ou que, um século antes desse feito, a maranhense Maria Firmina dos Reis, filha de uma escravizada alforriada, se tornava a primeira mulher romancista do país?

Essas e outras histórias compõem o livro Narrativas Negras, iniciativa criada por um coletivo homônimo que reúne 70 brasileiras com um único objetivo: resgatar e divulgar a trajetória de mulheres negras que influenciaram a cultura do país.

Junto a elas, mais de 800 pessoas se mobilizaram para tornar o livro uma realidade, arrecadando R$ 45.147, até o início de agosto de 2020, para a produção de mil exemplares, equivalente a 205% da meta proposta em março daquele ano. "Esses 205% vieram só para acrescentar e mostrar o quão grande é o que estamos criando e quantas pessoas acreditam nessa iniciativa", comemora Isadora Ribeiro dos Santos, UX designer e uma das líderes do coletivo.

Pouco conhecidas, as histórias dessas mulheres têm ganhado visibilidade por meio de coletivos como o Narrativas Negras e de pesquisas que têm resgatado cada vez mais informações sobre personalidades importantes, como Carolina de Jesus, e símbolos de resistência, a exemplo de Dandara dos Palmares e Tereza de Benguela.

A seguir, confira os feitos de 11 mulheres negras que influenciaram (e influenciam até hoje) a cultura e a política do país:

1. Dandara dos Palmares (século 17)

Líder feminina do Quilombo dos Palmares, Dandara era companheira de Zumbi dos Palmares, com quem teria tido três filhos. Ao longo de décadas, a matriarca participou de decisões políticas e militares em prol da luta pela abolição da escravatura e assumiu o compromisso de lutar pela liberdade das cerca de 30 mil pessoas que chegaram a compor o quilombo.

Resistiu ao poder do colonizadores europeus até sua morte: acredita-se que ela teria se jogado de uma pedreira para que as forças militares que tomaram o quilombo no fim do século 17 não a capturassem e a escravizassem novamente.

2. Tereza de Benguela (século 18)

Parceira de José Piolho, líder do maior quilombo do Mato Grosso, Tereza de Benguela assumiu o comando do refúgio após a morte do companheiro. Por duas décadas, ela esteve à frente das decisões políticas, econômicas e administrativas do grupo, que era formado por negros e indígenas que resistiam à escravidão.

A estrutura do Quilombo do Quariterê (ou do Piolho) compreendia um parlamento para discutir questões da população local, sistemas de defesa e também de cultivo, como algodão, feijão e milho.

Com o sucesso da organização do quilombo, ela ficou conhecida como Rainha Tereza e se tornou símbolo de resistência. Desde 2014, é celebrado o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra em 25 de julho.

3. Maria Firmina dos Reis (1822 - 1917)

Nascida em São Luís do Maranhão, a professora Maria Firmina dos Reis é conhecida como a primeira romancista do Brasil. Seu único livro, Úrsula, de 1859, é considerado a primeira obra literária brasileira a fazer críticas à escravidão, superando O Navio Negreiro (1870), de Castro Alves, e A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães.

Nascida em São Luís do Maranhão, a professora Maria Firmina dos Reis é conhecida como a primeira romancista do Brasil. Seu único livro, Úrsula, de 1859, é considerado a primeira obra literária brasileira a fazer críticas à escravidão, superando O Navio Negreiro (1870), de Castro Alves, e A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães.

Apesar de ter sido bem recebida pela crítica local em sua época, a publicação acabou sendo esquecida — até ser reencontrada em 1962 pelo historiador Horácio de Almeida em um sebo.

Com poucos registros sobre sua história, boa parte da vida de Maria Firmina permanece um mistério para os pesquisadores. Sabe-se que era filha de uma escravizada alforriada e um homem negro. Depois de ficar órfã, foi viver em Guimarães, no litoral maranhense, com uma tia.

Trabalhou como professora de primário até 1881, quando se aposentou. Um ano antes, fundou a primeira escola mista do Maranhão, onde crianças eram alfabetizadas gratuitamente. Ainda como autora, escreveu diversos textos em jornais, deixando clara sua posição abolicionista.

4. Antonieta de Barros (1901 - 1952)

Nascida em Santa Catarina, a educadora Antonieta de Barros foi uma importante política na luta contra o racismo e o machismo na região Sul. Recém-formada na Escola Normal Catarinense, instituição que preparava professores na época, criou em 1922 um curso para alfabetizar a população carente. Também fundou o jornal A Semana, em que publicava seus artigos sobre educação e desigualdade racial e de gênero.

Seu ingresso na política começa concomitantemente ao sufrágio feminino no Brasil. Conquistado em 1932, o direito ao voto estendido às mulheres foi consolidado na Constituição em 1934, ano em que Barros se tornou suplente do Partido Liberal Catarinense (PLC).

Como o engenheiro agrônomo Leônidas Coelho de Souza não pôde assumir o cargo, a educadora cumpriu o mandato de 1935 a 1937, tornando-se a primeira deputada de Santa Catarina e a primeira deputada negra do Brasil.

Em 19 de julho de 1937, conquistou outro feito: tornou-se a primeira mulher a presidir uma sessão da Assembleia Legislativa no Brasil.

5. Laudelina de Campos Melo (1904 - 1991)

Obrigada a trabalhar como empregada doméstica desde os 7 anos de idade, Melo se envolveu no movimento sindical e na luta contra o racismo ainda jovem. Aos 16 anos, já havia sido nomeada presidente do Clube 13 de Maio, um projeto voltado para recreação de jovens negros na cidade de Poços de Caldas, em Minas Gerais. Na época, trabalhava para criar os cinco irmãos ao lado da mãe e na ausência do pai, falecido quando ela tinha 12 anos.

Aos 18 anos, mudou-se para São Paulo, onde construiu sua própria família e fortaleceu o movimento por direitos das empregadas domésticas. Em 1936, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro e fundou a primeira Associação de Trabalhadores Doméstico do Brasil, em Campinas, no interior paulista. Entre 1937 e 1946, suas atividades foram interrompidas por conta das normas estabelecidas durante o Estado Novo. A instituição deu origem, em 1988, ao sindicato da classe.

Sua trajetória foi relembrada em Laudelina: Lutas e Conquistas, documentário de 2015 produzido pelo Museu da Cidade e o Museu da Imagem e Som, ambos da Secretaria Municipal de Cultura de Campinas.

6. Carolina de Jesus (1914 - 1977)

Filha de pais analfabetos, Carolina cresceu no interior de Minas Gerais e teve a oportunidade de começar a estudar aos 7 anos. Frequentou o Colégio Allan Kardec, a primeira escola espírita do Brasil, com o auxílio financeiro de uma mulher para quem sua mãe trabalhava como lavadeira. Em pouco tempo, aprendeu a ler e a escrever, conquistas que mudariam sua vida e a história da literatura brasileira.

Em 1947, mudou-se para São Paulo com seus três filhos. Viveu como catadora na favela do Canindé, onde começou a escrever suas memórias no que se tornaria seu primeiro livro: Quarto de despejo, publicado em 1960. O livro foi um sucesso de vendas, traduzido para 13 idiomas e distribuído para mais de 40 países.

Em vida, publicou mais dois livros, Casa de Alvenaria (1961) e Pedaços de Fome (1963). Desde sua morte, em 1977, muitas outras obras e estudos têm sido publicados sobre seu legado literário, que deu visibilidade à população em vulnerabilidade social.

7. Ruth de Souza (1921 - 2019)

Criada em uma fazenda no interior de Minas Gerais até os 9 anos da idade, Souza começou a se interessar pela atuação após se mudar para o Rio de Janeiro e assistir a peças no Teatro Municipal da Cidade Maravilhosa. Em 1945, passou a atuar no Theatro Experimental do Negro, projeto liderado pelo artista e professor universitário Abdias do Nascimento.

Em 8 de maio daquele ano, prestes a completar 24 anos, estreou no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro com a peça O imperador Jones. Pela performance, recebeu uma bolsa da Fundação Rockefeller para estudar por um ano nos Estados Unidos.

Desde então, sua carreira cruzaria com a de vários dramaturgos, escritores e autores, como os brasileiros Jorge Amado e Anselmo Duarte, o norte-americano Edmond Bernoudy e o argentino Tom Payne.

Este último dirigiu Sinhá Moça, filme de 1953 em que Souza interpretava a personagem Balbina. Sua performance a tornou a primeira atriz brasileira a ser indicada em um festival internacional de cinema, o de Veneza.

Em 1954, a artista concorreu ao Leão de Ouro de Melhor Atriz com a francesa Michèle Morgan, a norte-americana Katharine Hepburn, até hoje a atriz que ganhou mais Oscars, e a alemã Lilli Palmer, que saiu vencedora por apenas dois pontos à frente de Souza.

8. Marli Pereira Soares (1954)

Intitulada Tenho pavor de barata, de polícia não, a autobiografia da empregada doméstica que se tornou um do maiores símbolos da resistência contra a ditadura militar, explica bem por que Marli Pereira Soares ficou conhecida como Marli Coragem.

No dia 13 de outubro de 1979, ela testemunhou seu irmão Paulo Pereira Soares, de 18 anos, ser morto com 12 tiros pela polícia militar. Valente, denunciou o caso na delegacia de Belford Roxo, no Rio de Janeiro, onde passou a fazer reconhecimentos quase que diariamente para identificar os algozes de Paulo.

Durante sua luta por justiça, Marli sofreu constantes ameaças. Sua casa foi saqueada e incendiada e sua família voltou a ser vítima de violência policial. Em 13 de janeiro de 1993, seu filho Sandro foi assassinado aos 15 anos e, três meses mais tarde, Luiz Carlos Fusco, afilhado de Marli, foi executado por policiais do 18º BPM, aos 18 anos. O atual paradeiro de Marli é desconhecido.

9. Sonia Guimarães (1957-presente)

Filha de um tapeceiro e uma comerciante, Guimarães deixou sua casa em Brotas, interior de São Paulo, em 1976, quando foi aprovada em Licenciatura em Ciências na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Aluna de destaque desde os tempos de escola pública, na faculdade não foi diferente.

Concluiu especialização em química e tecnologia de materiais e fez mestrado em física aplicada. Em 1986, uma década após ingressar no ensino superior, mudou-se para a Inglaterra para cursar doutorado em Materiais Eletrônicos na Universidade de Manchester, onde saiu formada como a primeira mulher negra brasileira a ser doutora em Física.

Desde 1993, Guimarães é professora do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), onde leciona física experimental e também discute as desigualdades raciais e de gênero na ciência, especialmente nas áreas de exatas. “[O ITA] É uma instituição conservadora, masculina e branca. Mas aos poucos estamos ganhando espaço. Isso tudo era restrito e anos de exclusão são revertidos aos poucos", disse, em entrevista ao G1, em 2018. "O conservadorismo pode até desacelerar esse processo, mas hoje já não é mais capaz de nos parar”, disse.

Além da carreira como cientista, Guimarães também palestra para vítimas do racismo e machismo, motivando várias pessoas a persistirem em seus sonhos e carreiras. A física também é membro de diversas instituições, como a Sociedade Brasileira de Física, a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e a Afrobras, organização não governamental pela inserção social, econômica, educacional e cultural de jovens negros.

10. Marielle Franco (1979 - 2018)

Criada na favela do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, Marielle Franco despontou como uma das principais vozes defensoras dos direitos de mulheres, negros e da comunidade LGBTQI+ no Brasil. Socióloga formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, defendeu seu mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense sobre a intervenção militar nas favelas do RJ.

Em 2017, tornou-se vereadora da cidade do Rio de Janeiro, sendo a quinta mais votada no município. Infelizmente, a ativista não pôde completar seu mandato porque, em 14 de março de 2018, foi executada com três tiros na cabeça e um no pescoço ao lado do motorista Anderson Pedro Mathias Gomes. Seu assassinato repercutiu em todo o mundo, escancarando a violência e perseguição sofridas por ativistas sociais e políticos. Sua morte continua sob investigações, apesar de tentativas de obstrução por parte de policiais e políticos suspeitos.

Após sua morte, sua família criou o Instituto Marielle Franco para garantir formação política à mulheres e à população que vive em favelas. Em 2019, recebeu postumamente o Diploma Bertha Lutz, um reconhecimento dado pelo Senado Federal àquelas que contribuíram para o avanço das questões de gênero no país.

11. Marta da Silva Vieira (1986)

Mais conhecida apenas como Marta, a jogadora nascida em Dois Riachos, no interior de Alagoas, é a maior artilheira da história Seleção Brasileira. Somando 110 gols, a marca supera a de todos os homens e mulheres que já vestiram a camisa canarinho.

Além disso, Marta também já foi escolhida seis vezes a melhor jogadora do mundo (nos anos de 2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2018), outro feito que ainda não foi superado por nenhum outro futebolista, brasileiro ou estrangeiro.

“Em todo o mundo, hoje, as mulheres estão demonstrando que podem ter sucesso em papéis e posições anteriormente mantidas para os homens. A participação das mulheres no esporte e na atividade física não é exceção", disse Marta em 2018, quando se tornou embaixadora da ONU Mulheres.

"Por meio do esporte, mulheres e meninas podem desafiar normas socioculturais e estereótipos de gênero e aumentar sua autoestima, desenvolver habilidades de vida e liderança; elas podem melhorar sua saúde e posse e compreensão de seus corpos; tomar consciência do que é violência e como evitá-la, procurar serviços disponíveis e desenvolver habilidades econômicas”.

Ilustrações do livro Narrativas Negrasque homenageia e conta a história de 40 mulheres negras que mudaram a história do Brasil (Foto: Narrativas Negras)

Texto publicado na GALILEU em 12 AGO 2020 - 12H41 ATUALIZADO EM 10 AGO 2022 - 17H00

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O PROCLAMADOR DA REPÚBLICA

Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra o blog Sou Chocolate e Não Desisto faz homenagem a José do Patrocínio e a  negras e negros de luta e paz.

Tainara Rebelo, ECOA, UOL

QUEM FOI O HOMEM NEGRO QUE PROCLAMOU A REPÚBLICA ANTES DE MARECHAL DEODORO

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

Muitas histórias são contadas sobre a proclamação da República do Brasil, que se deu a 15 de novembro de 1889 e foi atribuída ao Marechal Deodoro da Fonseca, e todas elas têm sempre personagens brancos ilustres. Mas a maioria dos livros omite a participação igualmente protagonista que diversos negros tiveram em momentos importantes de nossa história. Neste 15 de novembro, Ecoa lembra um desses personagens que, segundo relatos de alguns historiadores, foi quem tomou a iniciativa, antes do Marechal Deodoro, de proclamar a República. Ele era um jornalista negro e se chamava José do Patrocínio.

Além de jornalista, Patrocínio era escritor e farmacêutico. Na época da proclamação também era vereador. De acordo com o livro 1889, do jornalista Laurentino Gomes, foi ele quem tomou a iniciativa de proclamar a República, por volta das 18h, perante um grupo reunido na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, enquanto Marechal Deodoro da Fonseca ainda elaborava a mudança de regime. 

O livro conta que Deodoro estava doente, destituiu o ministério e promoveu um desfile de tropas pela capital demonstrando um levante militar. No entanto não proclamou o novo regime. Ainda segundo a publicação, no calor do momento da revolta, o escritor e político Aníbal Falcão foi até o jornal de Patrocínio para que fosse escrita uma moção pública abolindo a monarquia. Foi esse documento que ele leu no plenário da Câmara e que colocou fim à monarquia. 

"A história contada é quase sempre branca, restringindo a população preta aos papéis de escravizados ou a personagens em lutas pontuais, como Zumbi dos Palmares. José do Patrocínio é uma das figuras mais emblemáticas na luta abolicionista brasileira"

Henry Guimarães, historiador 

Mas a importância deste homem para o Brasil é ainda maior do que essa participação e mudaria o curso de nossa história. Saiba um pouco mais sobre ele. Meio livre, meio escravizado.

José do Patrocínio nasceu em 1853 na cidade de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, do ato violento de um padre branco contra uma mulher escravizada de 15 anos de idade. Como era comum acontecer, não foi assumido pelo pai, que o enviou para crescer como homem livre e uma de suas fazendas. 

Teve acesso a boas escolas públicas e começou a dar aulas particulares na idade adulta para conseguir sobreviver. Foi em uma dessas aulas que conheceu sua futura esposa, Maria Henriqueta, filha de um militar que frequentava o Clube Republicano, entidade que apoiava a adoção de uma República em lugar ao regime monárquico.

Eles se casaram e tiveram filhos, mas sua vida privada não é muito conhecida. Sabe-se apenas que um de seus filhos também se tornou jornalista e que o casal, durante toda a sua vida, recebeu ataques públicos racistas pela cor da pele de Patrocínio. 

Para o historiador, que é professor da Universidade Federal da Grande Dourados, ele representa a contradição da sociedade brasileira, uma vez que era livre, mas jamais integrou a sociedade como os brancos devido à sua cor.

"Ao contrário, ele se reuniu com importantes figuras negras da época e, juntos, criaram uma das maiores campanhas para a libertação dos escravizados, a Confederação Abolicionista, resultando na assinatura da Lei Áurea, em 1888."

Henry Guimarães, historiador 

'Tigre da abolição'

Dono de uma retórica cativante, Patrocínio conseguia prender a atenção de grandes multidões quando falava e, como já escrevia para o jornal Gazeta de Notícias, um dos maiores da época, pediu um empréstimo ao pai de sua esposa, o militar Emiliano Rosa de Sena, e comprou o jornal para si, assumindo uma luta pública contra a escravidão.

De acordo com a Enciclopédia Negra, publicação com biografias afro-brasileiras (Companhia das Letras), Patrocínio reuniu ao seu redor um grupo de jornalistas e oradores que, ao lado de André Rebouças, deu origem à Confederação Abolicionista, em 1880. Esta agremiação ajudou a manter vivo o quilombo do Leblon e, por meio de comícios em teatros e manifestações em praça pública, financiou e acolheu escravizados fugitivos.

Logo, a redação do jornal servia como sede da Confederação e coordenou as ações da luta abolicionista que se espalhava no território nacional. Por toda a sua atuação nessa luta, ficou conhecido como o Tigre da Abolição.

Apoiador ou opositor?

José do Patrocínio provocou dúvida em seus apoiadores ao beijar as mãos da Princesa Isabel quando a Lei Áurea foi assinada. "Acredita-se que ele ficou muito feliz em ter conquistado a assinatura da lei por que tanto lutou, mas isso não foi bem-visto na época", explica o historiador. Isso porque Patrocínio era vereador quando a lei foi assinada, e causou a impressão de estar a favor da monarquia.

Nos anos seguintes, o jornalista se empenhou em usar as publicações do seu jornal para falar da inclusão do ex-escravizado à população liberta, o que não tinha sido detalhado ou contemplado na Lei Áurea. Com isso, firmou sua oposição ao governo e acabou exilado na Amazônia. 

Por volta de 1893, ele retornou ao Rio de Janeiro e logo encerrou as atividades na do seu jornal. Buscou a mãe já liberta para viver junto dela, mas ela estava muito doente e morreu em seguida, não desfrutando da liberdade.

José do Patrocínio tinha tuberculose e morreu aos 51 anos no dia 30 de janeiro de 1905. Ele se engasgou enquanto fazia um discurso sobre os direitos dos animais. "Esse discurso nunca foi concluído, mas se tratava de um apelo aos maus tratos que os animais sofriam ao serem usados como meio de transporte", analisa o historiador.

Carros, aviões e ABL

Em uma viagem à Europa, José do Patrocínio conheceu carros e aviões. Muito progressista, ele gostava de inovações tecnológicas e trouxe ao Brasil um dos primeiros carros de que se tem conhecimento. 

O jornalista também tentou construir um balão dirigível, o Santa Cruz, para demonstrar sua admiração ao pai da aviação, Santos Dumont, mas o veículo nunca levantou voo e se transformou em motivo de chacota pública. 

José do Patrocínio foi ainda um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou o assento nº 21.

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HISTÓRIA DE INSPIRAÇÃO

Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra o blog Sou Chocolate e Não Desisto faz homenagem a Antonieta de Barros, autora da lei que criou o Dia do Professor e a negras e negros de luta e paz.

Do HISTORY

PRIMEIRA DEPUTADA NEGRA DO BRASIL CRIOU O DIA DO PROFESSOR EM 1948

A partir de 1963 o Dia do Professor passou a ser comemorado oficialmente em 15 de outubro em todo o Brasil. Mas a data já era celebrada em Santa Catarina desde 1948 por iniciativa de Antonieta de Barros, a primeira mulher negra a ser eleita deputada no país. Professora por formação e filha de uma ex-escrava, ela teve papel fundamental na luta pela igualdade racial e pelos direitos das mulheres.

O dia 15 de outubro foi escolhido como Dia do Professor em referência à data em que o imperador D. Pedro I instituiu o Ensino Elementar no Brasil, em 1827. No ano de 1947, o professor paulista Salomão Becker já havia proposto a criação de um dia de confraternização e homenagem aos professores. No ano seguinte, Antonieta de Barros apresentou à Assembleia Legislativa catarinense o projeto de lei que criava o Dia do Professor. Somente 15 anos depois é que a data passou a ser oficializada em todo o Brasil, após a assinatura de um decreto do presidente João Goulart.

A trajetória de vida de Antonieta de Barros é admirável. Nascida em Florianópolis, em 1901, ela teve uma infância difícil. Após ser libertada da escravidão, sua mãe trabalhou como lavadeira e, para completar o orçamento, transformou sua casa em pensão para estudantes. O pai de Antonieta, um jardineiro, morreu quando ela ainda era menina. 

Foi convivendo com os estudantes na pensão de sua mãe que Antonieta se alfabetizou. Aos 17 anos, entrou na Escola Normal Catarinense, concluindo o curso em 1921. No ano seguinte, fundou o Curso Particular Antonieta de Barros, voltado para a educação da população carente.

Antonieta também trabalhou como jornalista, sendo fundadora do periódico A Semana, que circulou entre 1922 e 1927. Por meio de suas crônicas, divulgava ideias ligadas às questões da educação, dos desmandos políticos, da condição feminina e do preconceito.  

Em 1934, na primeira vez em que as mulheres brasileiras puderam votar e se candidatar, filiou-se ao Partido Liberal Catarinense, elegendo-se deputada estadual. Uma das principais bandeiras de seu mandato foi a concessão de bolsas de estudo para alunos carentes. Ela exerceu o mandato até 1937, quando começou o período ditatorial de Getúlio Vargas. No mesmo ano, sob o pseudônimo Maria da Ilha, escreveu o livro Farrapos de Idéias.

Em 1947, após o fim da ditadura Vargas, ela se elegeu deputada novamente, desta vez pelo Partido Social Democrático, cumprindo o mandato até 1951. Antonieta nunca deixou de exercer o magistério. Ela dirigiu a escola que levava seu nome até morrer, em 1952. 

Fontes: El País, NSC Total, Hypeness, HuffPost Brasil, Fundação Cultural Palmares e A Cor da Cultura

Imagens: Instituto Histórico e Geográfico De Santa Catarina e Assembleia Legislativa de Santa Catarina

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LUTA E REPRESENTATIVIDADE

Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra o blog Sou Chocolate e Não Desisto faz homenagem a Tereza de Benguela e, todas negras e negros de luta e paz.

O dia 25 de julho tem um peso maior, é que, desde 2014 é comemorado o Dia Nacional da Mulher Negra e de Tereza de Benguela.

Teresa é considerada uma heroína por ter defendido seu povo da opressão, por volta de 1750, em Mato Grosso.

Chamada de Rainha Tereza, ela liderou o quilombo Quariterê, próximo a Vila Bela da Santíssima Trindade, em Mato Grosso, na fronteira com a Bolívia.

Uniu negros, brancos e indígenas para defender o território por muitos anos. Foi ela a responsável pelo desenvolvimento do quilombo, implantando novos modelos de desenvolvimento, como o uso do ferro na agricultura.

A rainha chegou a ser comparada a Zumbi dos Palmares, um dos símbolos da resistência negra no país. A data agora é Lei e foi sancionada em 2014, pela presidenta Dilma.

Hoje, 25 de julho também se comemora o Dia Internacional da Mulher Negra Latinoamericana e Caribenha. A data foi instituída em 1992.

A data é um marco na luta da mulher negra contra opressão de gênero, o racismo, exploração de classe. A data dar visibilidade, reconhecimento, e reforça a presença da mulher negra nesse continente.

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CONQUISTA NEGRA

Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra 

Paulo Sérgio Gonçalves, Folha de S.Paulo

Paulo Sérgio Gonçalves - Professor, é coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Estácio e doutorando em literaturas africanas

Que o Brasil foi o último dos países das Américas a abolir a escravatura não é novidade para nós. Dizer que a Lei Áurea trouxe, além da “liberdade” aos negros brasileiros, uma espécie de segregação social e que a sociedade não estava preparada —e nem queria estar— para o novo grupo social colocado nas ruas, também não é novidade.

O que nos resta refletir nesta quinta-feira, dia 13 de maio, é que a data deve ser vista não como um ato de bondade da Coroa portuguesa e do Parlamento brasileiro, mas sim como um dos grandes resultados da resistência negra que perdurava há muito tempo no Brasil.

Tal resistência se dava com a formação dos quilombos, com a compra de cartas de alforria e com as fugas em massa das fazendas. A abolição da escravatura no Brasil foi escrita por mãos negras. “Não há nada para se comemorar em 13 de maio” —este era o posicionamento do grupo de negros gaúchos que, liderados pelo poeta Oliveira Silveira, viram na data um verdadeiro paradoxo para se levantar a bandeira da consciência negra, quando, então, instituíram a data do aniversário da morte de Zumbi como o verdadeiro dia de conscientização e de resistência negra (20 de novembro).

Assim, o 13 de maio é mais um dia de luta contra o racismo, porque, a partir de 14 de maio de 1888 até os dias de hoje, o negro brasileiro é considerado grupo minoritário, embora represente cerca de 54% da população deste país. Até hoje o negro sofre, social e culturalmente, as sequelas dos anos de subserviência a que foi submetido no regime escravocrata e após a abolição.

A verdadeira e total abolição ainda não aconteceu, porque continuamos cativos do preconceito, da desigualdade e da falta de representatividade. Chega de estereótipos, de paradigmas e de esconder o que já foi escondido há muito tempo: o 13 de maio é uma data de oficialização do que já estava sendo conquistado pelos negros, verdadeiros protagonistas de sua própria conquista.

Em suma, comemorar o 13 de maio sob o título de “Dia da Abolição dos Escravos Negros no Brasil” deve, obrigatoriamente, vir com uma descrição que informe e conte a verdadeira história de um processo de resistência que se inicia muitos anos antes. Resistência como a ocorrida na serra da Barriga, onde existiu o maior quilombo brasileiro, o quilombo de Palmares.

Chega da síndrome do Tarzan, que é branco, vive na selva africana, mais corajoso que os próprios nativos e consegue salvá-los dos perigos de sua própria terra.

Para um sentido mais amplo de consciência negra, é necessário que se ensine tudo isso nas escolas. Nossos jovens, negros e brancos, devem enxergar o negro brasileiro como ator de suas lutas e não como um indivíduo indefeso e inerte que precisou sempre da intervenção branca para trilhar seu futuro.

Por isso, repetimos: não há nada para se comemorar no dia 13 de maio da maneira como a data é vista e ensinada no Brasil. Salve Zumbi dos Palmares. Salve os movimentos negros do Brasil. Salve as conquistas da resistência negra.

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VIVA BENEDITA DA SILVA !

Hoje, Dia da Consciência Negra, o blog Sou Chocolate e Não Desisto faz uma homenagem a Benedita da Silva, sinônimo de superação e persistência.

Ela é guerreira e sempre combateu a desigualdade racial, a violência, a injustiça social – na adolescência foi vítima de estupro – e qualquer forma de preconceito neste país.

Benedita é protagonista de uma saga de dar inveja a roteirista de cinema. Filha de lavadeira, sua família de quinze irmãos, dos quais conheceu oito. Benedita trabalhou como engraxate, camelô, doméstica e vendedora de pastel.

Viúva duas vezes, teve quatro filhos, dois morreram, um deles foi enterrado como indigente. Apesar de hoje ser o principal nome do PT no Rio de Janeiro, sabe que seu maior feito foi ter sobrevivido a um destino que tinha sinais de fracasso. Atualmente é casada com o ator Antônio Pitanga.

Fadada ao destino reservado a muitas mulheres negras e faveladas desse país, Benedita da Silva enfrentou as adversidades da vida e contornou todas como as águas de um rio diante de obstáculos.

A menina da favela, negra e pobre jamais tinha chegado perto do poder, o lugar mais próximo tinha sido a porta dos fundos do apartamento de Juscelino Kubitschek, onde entregava as roupas da família do ex-presidente, lavadas pela mãe.

Em 1982, Benedita da Silva é eleita vereadora no Rio de Janeiro e começa a trajetória singular na história da política brasileira. De lá para cá, Benedita subiu mais patamares na carreira política.

Foi deputado federal, senadora, vice-governadora, governadora, ministra da Promoção e Ação Social no governo Lula, secretária de Ação Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro no governo Sérgio Cabral e atualmente está deputada federal em seu terceiro mandato.

Viva a Benedita da Silva! Viva o Dia da Consciência Negra!

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CANTO DAS TRÊS RAÇAS

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PERSONALIDADES NEGRAS MARCANTES

Do UOL

Fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL), advogado autodidata que defendeu mais de 500 escravos e o líder do movimento em favor das liberdades civis dos negros nos Estados Unidos. Os legados de heróis negros como Machado de Assis, Luís Gama e Martin Luther King, respectivamente, merecem ser lembrados neste Dia da Consciência Negra.

Eles e tantas outras personalidades negras continuam a inspirar quem busca se superar, à revelia do preconceito social e de raça. Confira a história resumida de homens e mulheres negras considerados como exemplos na cultura, na política e até na geografia.

Luís Gama

Patrono da cadeira nº 15 da Academia Paulista de Letras, Luís Gama (1830-1882) atuou como poeta, advogado e jornalista. Filho de Luiza Mahin, uma das principais figuras da Revolta dos Malês, com um fidalgo branco de origem portuguesa, foi vendido como escravo pelo próprio pai, aos 10 anos. Em 1848, Gama fugiu, pois sabia que sua situação era ilegal, já que era filho de mãe livre. Autodidata, tornou-se advogado e iniciou suas atividades contra a escravidão, conseguindo libertar mais de 500 escravos.

Zumbi dos Palmares

Foi o grande líder do quilombo dos Palmares, comunidade livre formada por escravos fugitivos, localizado na serra da Barriga (AL). O quilombo dos Palmares foi defendido no século 17 durante anos por Zumbi (1665-1695) contra as expedições militares que pretendiam trazer os negros fugidos novamente para a escravidão. Em 2003, a data da morte de Zumbi dos Palmares, 20 de novembro, foi escolhida para ser o Dia da Consciência Negra.

Rosa Parks

Rosa Parks (1913-2005) foi símbolo do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Em 1º de dezembro de 1955, a costureira americana se negou a ceder seu lugar a um homem branco em um ônibus em Montgomery (Alabama), onde regiam leis de segregação racial.

Nelson Mandela

Nelson Mandela (1918-2013) foi um líder rebelde e, posteriormente, presidente da África do Sul de 1994 a 1999. Seu nome verdadeiro é Rolihlahla Madiba Mandela. Principal representante do movimento contra o apartheid, considerado pelo povo um guerreiro em luta pela liberdade, era tido pelo governo sul-africano como um terrorista e passou quase três décadas na cadeia. Mandela e o Frederik de Klerk, que também foi presidente da África do Sul, dividiram o Prêmio Nobel da Paz, em 1993.

Martin Luther King

"Eu tenho um sonho. O sonho de ver meus filhos julgados pelo caráter, e não pela cor da pele." Este é um trecho do famoso discurso de Martin Luther King (1929-1968) em Washington (EUA), pronunciado em 28 de agosto de 1963. Das manifestações contra a segregação racial, lideradas por King, nasceram a Lei dos Direitos Civis, de 1964, e a Lei dos Direitos de Voto, de 1965. Ganhador do Prêmio Nobel da Paz, o pastor seguia a linha de Mahatma Gandhi de defender os direitos civis por vias pacíficas. Em abril de 1968, foi assassinado a tiros por um opositor.

Barack Obama

Político norte-americano, Barack Hussein Obama Jr., eleito presidente dos Estados Unidos em novembro de 2008, é o primeiro negro a conquistar o comando do país. Obama, 55, termina o segundo mandato neste ano com atos marcantes como a retomada das relações diplomáticas com Cuba, a reforma do sistema de saúde nos EUA e a legalização do casamento gay.

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CHICA DA SILVA: A VIDA E A INFLUÊNCIA DA MULHER LIVRE NO BRASIL COLONIAL

Chica da Silva, nascida em 1732, em uma sociedade marcada pela escravidão, tornou-se uma figura emblemática da história brasileira colonial. Nascida como Francisca da Silva Oliveira, ela era filha de um escravo e de uma mulher livre, o que a posicionou em um contexto social complexo. Chica se destacou na sociedade de Minas Gerais, especialmente na cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto), onde sua trajetória se entrelaçou com a de um dos homens mais poderosos da época, o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira.

Chica da Silva ganhou notoriedade ao se tornar amante de João Fernandes, com quem teve vários filhos. Sua relação com ele não apenas lhe conferiu status social, mas também a possibilitou a ascensão econômica. De acordo com a historiadora Mary del Priore, "Chica conseguiu, através de sua inteligência e carisma, estabelecer uma posição privilegiada em uma sociedade que, apesar de sua origem, era profundamente estratificada e racista" (Del Priore, 2007, p. 97). Ela se tornou uma mulher livre, com a capacidade de negociar sua própria vida e seu futuro, o que a distingue de muitas outras mulheres negras que viviam sob a opressão da escravidão.

Chica da Silva construiu uma casa em Vila Rica que se tornou um centro de convivência social, onde se realizavam festas e eventos que reuniam a elite local. Essa casa, conhecida por sua opulência, refletia não apenas sua riqueza, mas também sua habilidade em navegar e manipular as dinâmicas sociais da época. Segundo o historiador João Carlos de Oliveira, “a trajetória de Chica ilustra como a mobilidade social era possível, embora limitada, para algumas mulheres negras na sociedade colonial” (Oliveira, 2019, p. 123).

A figura de Chica da Silva é frequentemente romantizada e estereotipada na cultura popular, mas sua vida real foi marcada por desafios e conquistas. Ela enfrentou preconceitos e a desconfiança da sociedade elitista.

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QUARTO DE DESPEJO

Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o blog Sou Chocolate e Não Desisto faz homenagem a escritora Carolina Maria de Jesus. 

Negra, moradora de favela, Carolina foi catadora de papel, mãe e escritora. O seu diário foi transformado em livro, o Quarto de Despejo – diário de uma favelada, se tornou um best-seller, sendo traduzido para 13 idiomas e fazendo uma denúncia sócio-política sobre a vida do negro na favela.

O sucesso estrondoso de Quarto de despejo, o livro, motivou Quarto de despejo, o disco. Em 1961, Carolina Maria de Jesus gravou um LP com doze composições, todas de sua autoria. Clique aqui e ouça as 12 faixas.

Carolina Maria de Jesus nasceu em Minas Gerais, em 1914, numa comunidade rural onde seus pais eram meeiros. Filha ilegítima de um homem que já era casado, foi tratada como pária durante toda a infância, e sua personalidade agressiva não fez nada para aliviar a situação.

Quando chegou à idade de sete anos, a mãe de Carolina forçou-a a frequentar a escola depois que a esposa de um rico fazendeiro pagou as despesas para Carolina, bem como outras pobres crianças negras no bairro.

No entanto, ela parou de frequentar a escola pelo segundo ano, mas aprendeu a ler e escrever. Ela mal sabia na época, essas coisas desempenhariam um papel muito importante na sua vida adulta.

A mãe de Carolina tinha dois filhos ilegítimos, o que ocasionou sua expulsão da Igreja Católica enquanto ela ainda era jovem. No entanto, ao longo de sua vida, ela foi uma católica devota, mesmo nunca tendo sido readmitida na Igreja Católica. Em seu diário, ela muitas vezes fez referências bíblicas, e à Deus.

Em 1937 sua mãe morreu e ela foi forçada a migrar para a metrópole de São Paulo. Carolina fez sua própria casa, usando madeira, lata, papelão, e qualquer outra coisa que pudesse encontrar. Ela iria sair todas as noites para coletar papel, a fim de conseguir dinheiro para sustentar a família.

Quando ela encontrava revistas e cadernos antigos, guardava para escrever dentro Ela começou a escrever sobre seu dia-a-dia, sobre como foi morar na favela. Isto irritava seus vizinhos, que não eram alfabetizados, e por isso se sentiam desconfortáveis por vê-la sempre escrevendo, ainda mais sobre eles.

Teve vários casos amorosos quando jovens, embora tenha se recusado a casar-se, por ter visto muita violência doméstica na favela. Ela preferiu permanecer independente. Todos os seus três filhos tinham pais diferentes, um dos quais era um homem rico e branco.

Em seu diário, ela detalha o cotidiano de favelados e, sem rodeios, descreve os fatos políticos e sociais que ordem as suas vidas. Ela escreve sobre como a pobreza e o desespero pode levar as pessoas de alta autoridade moral a comprometer seus princípios, honra, e a si mesmos simplesmente para conseguir comida para si e suas famílias. Não há nenhuma chance de economizar dinheiro, pois quaisquer ganhos extras devem ir imediatamente para pagar dívidas.

O Diário de Carolina Maria de Jesus foi publicado em agosto de 1960. Ela foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, em abril de 1958. Dantas estava cobrindo a abertura de um pequeno parque municipal. Imediatamente após a cerimônia uma gangue de rua chegou e reivindicou a área, perseguindo as crianças.

Dantas viu Carolina de pé na beira do playground gritando "Saia, ou eu vou colocar você em meu livro!" Os intrusos partiram. Dantas perguntou o que ela queria dizer sobre seu livro. Ela se mostrou tímida no início, mas levou-o para seu barraco e mostrou-lhe tudo. Ele pediu uma amostra pequena e correu no jornal. A história de Carolina "eletrizou a cidade" e, em 1960, Quarto de Despejo, foi publicado.

A tiragem inicial de dez mil exemplares se esgotou em uma semana (a wikipédia gringa diz que foras trinta mil cópias vendidas nos primeiros 3 dias). Embora escrito na linguagem simples e deselegante de uma favelada, seu diário foi traduzido para treze idiomas e tornou-se um best-seller na América do Norte e Europa.

Mas não foi somente fama e publicidade que Carolina ganhou com a publicação de seu diário, mas desprezo e hostilidade de seus vizinhos. "Você escreveu coisas ruins sobre mim, você fez pior do que eu fiz", gritou um vizinho bêbado. A chamavam de prostituta negra, que tinha se tornado rica por escrever sobre a favela, mas recusou-se a compartilhar do dinheiro.

Junto com as palavras dos vizinhos cruéis, as pessoas jogavam pedras e penicos cheios nela e em seus filhos. As pessoas também estavam com raiva porque ela se mudou para uma casa de tijolos nos subúrbios com os ganhos iniciais do seu diário. "Vizinhos se juntaram ao redor do caminhão e não deixá-la partir. "Você acha que são de classe alta agora, não você", eles gritavam.

Os vizinhos locais desprezavam mesmo que a alta realização de seu diário aumentou o conhecimento dessas favelas ao redor do mundo. Para vizinhos locais Carolina esta publicação foi uma contusão de seu modo de vida.

Quarto de despejo – diário de uma favelada:  "Eu durmo. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vestido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contempla-las. Conversar com as estrelas. Elas organizaram um espetáculo para homenagear- me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso. Quando despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso. Ir a um espetáculo, por isso Deus me envia estes sonhos deslumbrantes para minh'alma dolorida. Ao Deus que me protege, envio meus agradecimentos".

Leia mais sobre outras mulheres negras guerreiras que nos enchem de orgulho, entre elas: Benedita da Silva, Tereza de Benguela.

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terça-feira, 19 de novembro de 2024

LULA RI POR ÚLTIMO NA REUNIÃO DO G20

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

O presidente brasileiro defendeu a taxação de operações financeiras de super-ricos, para financiar o combate às desigualdades

Se não houver nenhum imprevisto grave ou ninguém falar besteira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já pode comemorar o seu sucesso pessoal na reunião do G20, o grupo dos países mais ricos do planeta, com a adesão da Argentina à Aliança contra a Fome e a Pobreza, num documento final que fala em reforma do Conselho de Segurança da ONU, taxação de super-ricos e combate ao aquecimento global. Recalcitrante, o presidente argentino, Javier Milei, havia criticado o texto, mas voltou atrás depois de exaustivas negociações entre os diplomatas que articularam a declaração do grupo.

A unanimidade do encontro a favor do combate à fome e à pobreza é uma vitória pessoal de Lula. São 82 países, entre os quais os mais ricos do mundo, e 148 organizações internacionais, instituições financeiras e ONGs que apoiam a iniciativa, uma bandeira de Lula desde o primeiro mandato.

Na abertura do encontro, ao discursar, Lula marcou posição em relação a temas nos quais havia pouca possibilidade de avanço no encontro, entre os quais as guerras da Ucrânia e do Oriente Médio. Criticou Israel e a Rússia, indiretamente, ao citar as invasões da Faixa de Gaza e da Ucrânia, e atacou sanções unilaterais impostas a outros países, porém, sem fazer referência aos Estados Unidos.

"Do Iraque à Ucrânia, da Bósnia à Gaza, consolida-se a percepção de que nem todo território merece ter sua integridade respeitada e nem toda vida tem o mesmo valor. Intervenções desastrosas subverteram a ordem no Afeganistão e na Líbia. A indiferença relegou o Sudão e o Haiti ao esquecimento. Sanções unilaterais produzem sofrimento e atingem os mais vulneráveis", argumentou. O documento conclama que "todas as partes devem cumprir suas obrigações sob o direito internacional, incluindo o humanitário e de direitos humanos, condenando ataques contra civis e infraestrutura."

Lula havia criticado o neoliberalismo pela deterioração da situação internacional: "Não é surpresa que a desigualdade fomente ódio, extremismo e violência. Nem que a democracia esteja sob ameaça. A globalização neoliberal fracassou". O presidente brasileiro também defendeu que a taxação de 2% sobre o patrimônio de indivíduos super-ricos poderia gerar recursos da ordem de US$ 250 bilhões por ano para serem investidos no enfrentamento dos desafios sociais e ambientais do nosso temp. O texto final incorporou a tese, genericamente.

Lula marcou posição diante de temas nos quais o Brasil tem limitações estratégicas, por falta de projeção de poder econômico e militar, mas o Itamaraty, politicamente, demonstrou sua tradicional capacidade de articulação na condução da reunião, sob a presidência de Lula. Dois grandes protagonistas da política mundial não participaram do encontro: Vladimir Putin, da Rússia, representado pelo chanceler Sergey Lavrov; e o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump. Sem o apoio do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden; do presidente chinês, Xi Jinping; do presidente da França, Emmanuel Macron; do chanceler da Alemanha, Olaf Scholz; e da primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, não haveria possibilidade de um consenso básico.

Governança global

O fato de defender a democracia como um tema central do seu discurso foi relevante para Lula na relação com os países europeus, num encontro que reuniu líderes de regimes autoritários, como os da Rússia e da Indonésia; autocráticos, como o da Arábia Saudita; e iliberais, casos da Índia e da Turquia, todos players da política mundial. Estados Unidos, Rússia, China, França e Inglaterra, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, com poder de veto sobre qualquer proposta, por exemplo, concordaram com a necessidade de reforma desse órgão da ONU.

Lula criticou e responsabilizou o imobilismo do Conselho de Segurança pela escalada das guerras de Gaza e da Ucrânia. Como Biden autorizou a utilização de mísseis de longo alcance de fabricação norte-americana contra a Rússia, que promete retaliar duramente a Ucrânia se isso ocorrer, a tensão na Europa aumentou e esse assunto dividiu as atenções dos chefes de Estado na reunião. Era um tema que Lula tentava evitar, para não complicar e melar reunião.

Objetivamente, a reforma da governança global entrou na agenda do G20 por outra porta. A Aliança Global contra a Fome e a Pobreza foi uma proposta apresentada por Lula no encontro do G20 realizado em Nova Delhi. Agora, ganhou materialidade, porque tem metas e fontes de financiamento. Cerca de 750 milhões de pessoas estão na miséria no mundo. Como potência agrícola, produtora de grãos e proteína, o Brasil tem projeção internacional para protagonizar esse esforço.

O BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), presidido pelo brasileiro Ilan Goldfajn, se comprometeu a destinar até US$ 25 bilhões (R$ 145 bilhões) para financiar ações da Aliança. O Banco Mundial também deverá financiar os países que apoiarem a Aliança. As metas são alcançar 500 milhões de pessoas com programas de transferências de renda e sistemas de proteção social até 2030; expandir as merendas escolares para mais 150 milhões de crianças com fome endêmica; promover a saúde materna e infantil para 200 milhões de mulheres e crianças de 0 a 6 anos; e atingir 100 milhões de mulheres nos programas de inclusão.

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OS AVANÇOS DO BRASIL NO G20

Míriam Leitão, O Globo

A soma de avanços globais, como o combate à fome e a citação dos super-ricos, consolida o sucesso da presidência brasileira no G20

A presidência do Brasil no G20 veio construindo consensos e avanços concretos durante o ano todo. Mesmo assim, o dia de ontem foi intenso. A crise provocada pelo ataque russo à Ucrânia levou o G7 a pedir a reabertura da declaração conjunta, já fechada, e o Brasil resistiu. Aceitou depois incluir duas palavras que não alteravam o texto. A Argentina criou problemas em vários pontos que já estavam acordados e não queria fazer parte da Aliança contra a Fome. Depois, recuou e disse que não atrapalharia o consenso. O presidente Lula tinha pedido para manter-se o dia inteiro na sala e ficou até sair o comunicado conjunto.

Quando Lula declarou que estava lançando naquele momento a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza era o final de um processo de muita negociação e que, ao fim, teve um nível de adesão surpreendente: 82 países. A Argentina, que chegou criando caso para chamar a atenção, acabou aderindo porque tinha se isolado. Já se sabia que no comunicado seria necessário aparar muitas arestas e para isso trabalharam os diplomatas numa visão pragmática. Não haveria mesmo consenso sobre taxação dos super-ricos, mas a meta que a diplomacia perseguiu foi a de introduzir pela primeira vez o tema num documento do G20. E conseguiu. E por que não tratar do assunto? Os números são acachapantes: 10% da população mundial têm 50% da renda e 75% da riqueza. Enquanto 50% das pessoas têm 8,5% da renda e 2,5% da riqueza.

— A disparidade é alta, um acordo sobre o que fazer é difícil. Tínhamos a total consciência disso desde o início, mas agora a questão está posta. Haverá mais troca de informações tributárias e mais troca de experiência sobre o assunto — disse uma pessoa que participou das negociações.

Existem outros avanços. Os bancos multilaterais passarão agora a ter um roteiro de reformas. Tem um nome pomposo: “Roadmap Towards Better, Bigger and More Effective MDBs”, mas é conhecido mesmo por “roteiro do G20 para os bancos multilaterais”. Eles não vão reformar a governança, mas se comprometeram com uma série de reformas internas para serem mais eficientes e terem mais dinheiro para projetos como combater a fome e agir contra a mudança climática. “E nós fizemos isso, esse consenso, ao longo deste ano”, disse um negociador.

Houve uma coincidência feliz. No ano em que o Brasil está presidindo o G20, o brasileiro Ilan Goldfajn é o presidente do conjunto dos bancos em desenvolvimento. Isso tornou mais fácil o entendimento, mais intensas as conversas e mais convergentes os objetivos, me disseram fontes do governo. Falei com Goldfajn sobre isso, e ele me disse o seguinte.

— A gente trabalhou este ano com dois grandes assuntos: a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza e a reforma dos bancos multilaterais. O presidente Lula fez bastante esforço e ele criou essa aliança. Aderimos. E o que significa aderir à Aliança? Significa entrar na tentativa de combate à fome e à pobreza nos próximos anos e se comprometer com isso. O compromisso do BID foi um dos mais fortes. A gente realocou 25 bilhões de dólares nos próximos três anos para essa iniciativa. Em reais, são R$ 140 bilhões. Isso sem falar que faremos uma doação de 200 milhões de dólares, cerca de R$ 1,3 bilhão, para assistência técnica junto aos países pobres que adotarem políticas de combate à fome.

Ter bancos multilaterais maiores, melhores e mais eficientes, significa ter mais recursos. Como? Uma das formas será o uso dos Direitos Especiais de Saque para alavancar a ação dos bancos de desenvolvimento. Houve avanço também nessa complicada negociação técnica. O FMI teve que concordar, dado que o DES é uma moeda de reserva. Mas será fundamental para aumentar os recursos para a Aliança.

Na área climática houve avanços relevantes. João Paulo Capobianco, secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática, ressalta a criação da força-tarefa de clima para enfrentar a emergência climática que gerou o documento “Esforço de empenho”, que é uma chamada à ação. Os países do G20 são 80% das emissões do mundo. O secretário-executivo adjunto do Ministério da Fazenda, Rafael Dubeux, destaca a criação do fundo de florestas tropicais, o TFFF, um mecanismo inovador que paga a quem preserva as florestas. A soma de todos os avanços consolida o sucesso da presidência do Brasil no G20.

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A IA CHEGOU A UM LIMITE ?

Pedro Doria, O Globo

Tudo o que está na internet e pode ser usado para treinar os modelos já se esgotou

Os meses passam, e não há notícia de GPT 5, de Claude 3.5, de Gemini 2. Os atuais LLMs, modelos de linguagem de grande porte, estão na terceira geração. A expectativa da iminência de uma quarta é grande — mas temos poucas pistas de como vai seu desenvolvimento. Ou ao menos tínhamos poucas pistas. Na semana passada, três veículos de imprensa trouxeram a informação de que há dificuldades nas três companhias — OpenAI, Anthropic e Google. Dificuldades que ninguém esperava.

Primeiro foi The Information, o site ultraespecializado que cultiva as melhores fontes no Vale do Silício. Orion, a nova versão do GPT, tem ficado superior à versão atual. Mas numa escala de melhoria bastante inferior. O salto da versão 2 para a 3 foi enorme, da 3 para a 4 maior. Esta 5 parece estar aquém. É razoavelmente melhor em texto, mas para código de programação não parece ser tão superior. Como a informação para o site foi em off, não há muitos detalhes.

Aí veio a Reuters. A agência britânica entrevistou Ilya Sutskever, um dos fundadores da OpenAI, que deixou a companhia neste ano. É um dos responsáveis diretos pela revolução de inteligência artificial recente.

— A década de 2010 foi a era de ganhar escala — ele afirmou. — Agora voltamos a um tempo de busca e descoberta. Melhorar a coisa certa se tornou mais importante do que nunca.

A mensagem parece críptica, mas dá para traduzir.

Quando cientistas do Google bolaram o modelo Transformer, que permite a um computador se treinar para produzir textos, não imaginavam que a técnica seria tão revolucionária quanto se mostrou. Então a OpenAI pôs uma quantidade muito grande de textos para alimentar o treinamento do GPT2. Ele parecia escrever como um ser humano. A versão seguinte foi ainda mais convincente, treinada com uma quantidade ainda maior de textos. A hipótese em que a indústria depositou todas suas fichas era uma premissa simples: quanto mais textos se dá para um computador cada vez mais poderoso, mais “inteligente” se torna o modelo.

Sutskever parece dizer que se encontrou o limite da força bruta. Não adianta mais jogar muito texto e muito processamento. Para tornar os modelos melhores, mais capazes de raciocínio, será preciso descobrir outros truques no entorno.

Por fim, veio a Bloomberg. Informou, em termos sucintos, que a OpenAI não está sozinha. Que tanto Google quanto Anthropic, suas principais concorrentes, têm encontrado dificuldades semelhantes.

O burburinho se espalhou rapidamente. Sam Altman, CEO da OpenAI, se sentiu compelido a ir para o X. “Não há parede”, ele escreveu. Só isso. Sucinto. Sundar Pichai também foi ao X ser igualmente econômico nas palavras: “Há mais por vir”.

O debate é importante, e não há informação suficiente para entender o que acontece. Muito do intenso debate sobre inteligência artificial, nos últimos dois anos, se baseia na premissa de que é só dar mais texto e mais processamento que, a cada volta, os modelos ficam imensamente melhores. É assim que foi no passado. Mas nada garante que continuará sendo no futuro. E ninguém conhece o teto para essa melhoria continuada — nem sabe se há teto.

As grandes companhias do Vale do Silício vêm apostando dinheiro como jamais fizeram nessa premissa. Gastos na base das centenas de bilhões de dólares. Cada um desses modelos da geração que virá, cada um unitariamente, custará ao todo US$ 10 bilhões só para treinar. Para produzir o pacote bruto que ainda precisaria ser calibrado e ajustado, para então se tornar um serviço comercial. Não conta o custo de uso, cada vez que alguém faz uma pergunta.

Pode ser que o alarme seja falso. Ao menos por enquanto, os CEOs mantêm o discurso de que tudo continua como dantes. É possível que o problema seja outro: acabaram os textos fáceis de encontrar. Tudo o que está na internet e pode ser usado para treinar os modelos já se esgotou. Se for isso, virá o trabalho difícil. Negociar com editoras, com veículos jornalísticos e com quem mais tiver grandes massas de textos fora da internet os direitos autorais para poder usar.

De qualquer forma, há ansiedade na espera. Quando vem a próxima geração?

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SEMENTES ENVENENADAS

Merval Pereira, O Globo

Existe um clima violento na política brasileira que precisa ser contido. A tentativa de golpe em 2023 e este atentado agora não podem ser vistos como normais. É preciso uma reação contundente, para evitar repetição e que esse clima tome conta do país

Comparar o atentado a faca sofrido pelo candidato Bolsonaro na campanha presidencial de 2018 com o da semana passada em Brasília, quando o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) foi mais uma vez atacado por bombas caseiras, é misturar alhos com bugalhos. Os dois atentados terroristas foram perpetrados por indivíduos conhecidos como “lobos solitários”, mas os contextos são completamente diferentes. No de Bolsonaro, não havia nenhum clima de radicalização na campanha que estimulasse o assassinato do candidato, ao contrário. Era Bolsonaro quem insuflava a violência durante seus discursos.

O atentado recente, em contraste, está claramente ligado aos acontecimentos de janeiro de 2023, quando hordas de manifestantes, com a conivência das forças policiais, avançaram sobre a Praça dos Três Poderes a fim de depredar os prédios simbólicos da República — Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo —, numa demonstração de força que prenunciaria o golpe de Estado.

A frase “Perdeu, mané”, pintada com batom na estátua de Alfredo Ceschiatti que representa a Justiça em frente ao prédio do Supremo, explicitava o espírito do momento. Foi essa frase, aliás, que o terrorista de Brasília deixou numa mensagem, lamentando a prisão de sua autora. A ligação dos dois casos é evidente. O sujeito que jogou as bombas e se suicidou com uma delas era um rescaldo dos acampamentos de 2023. O fato de serem bombas caseiras, montadas com fogos de artifício, não descaracteriza a gravidade da situação. Coquetéis molotov também são bombas caseiras.

O atentado em Brasília foi um acontecimento muito sério. Imaginar que alguém tenha chegado tão perto do prédio do STF, a ponto de querer tentar ferir algum ministro, como revelou sua ex-mulher, e fazer um estrago maior é muito grave. O policiamento desses locais é difícil, os espaços são muito grandes e abertos. Poderia ter sido pior. Precisa ser esclarecido se havia algum grupo por trás ou se foi mesmo apenas um “lobo solitário”, como tudo indica. Mas, mesmo se for, não será menos grave.

Existe um clima violento na política brasileira que precisa ser contido. A tentativa de golpe em 2023 e este atentado agora não podem ser vistos como normais. É preciso uma reação contundente, para evitar repetição e que esse clima tome conta do país. A impunidade alimenta esse tipo de ação. Nada indica que o ex-presidente Bolsonaro tenha alguma culpa no atentado desta vez, mesmo que o terrorista tenha sido filiado ao PL, mas é evidente que a excitação que ele favorece com seu modo beligerante de fazer política tem a ver com o que aconteceu.

Hoje, a postura da esquerda é igual à da direita à época da facada. Não aceitam que tenha sido uma ação isolada. Querem, como insistiu Bolsonaro quando tinha poder, encontrar uma conspiração por trás do recente ataque terrorista em Brasília, assim como queriam ver conspiração em Juiz de Fora. Por trás dessas atitudes de facções partidárias, está o ambiente de radicalização política que leva desequilibrados como os dois “lobos solitários” a agir como agiram. Ou outros milhares de desequilibrados a se reunir em acampamentos para preparar a invasão, como aconteceu em 2023.

Assim como a leniência das autoridades permitiu que os baderneiros invadissem a Praça dos Três Poderes, a repetição dos atos terroristas desta vez mostra que, se justiça não for feita com rigor, outros “lobos solitários” surgirão. Já não havia razão para aprovar uma anistia no Congresso, que levaria Bolsonaro de roldão, antes mesmo que ele tenha sido condenado.

Mesmo que o ministro do Supremo Alexandre de Moraes, e o procurador-geral da República, Paulo Gonet, tenham se precipitado e enunciado seus votos antes de o inquérito ter sido instalado, tudo leva a crer que não apenas a anistia não virá, como a punição será mais rigorosa diante da constatação de que as sementes golpistas têm gerado novos frutos envenenados.

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DISCUSSÃO NECESSÁRIA

Jorge J. Okubaro, O Estado de S. Paulo

O confronto dos custos dos benefícios dos militares com os dos trabalhadores civis deixa muitas indagações

A discussão sobre a necessidade de mudanças no sistema de proteção social dos militares pode criar mais problemas para o governo. Ao escolher um político com boas relações na cúpula das Forças Armadas para ocupar o Ministério da Defesa, o presidente Lula da Silva recebeu fortes críticas de companheiros do PT. Mas parecia ter aquietado um braço do Estado com o qual seu partido nem sempre mantém entendimento fluente. A comparação dos gastos com “o conjunto integrado de direitos, serviços e ações, permanentes e interativas, de remuneração, pensão, saúde e assistência” dos militares (como a legislação define o sistema de benefícios sociais e previdenciários desses profissionais) com o custo da Previdência dos servidores civis e dos demais trabalhadores, porém, mostrou disparidades tão gritantes que assustam. E podem gerar atritos políticos.

Utilizou-se a expressão legal que trata dos benefícios sociais dos militares porque eles não os consideram um regime previdenciário como o dos trabalhadores dos setores público e privado. Ainda que se reconheça a relevante diferença conceitual e de fonte de recursos (no caso das Forças Armadas, é o Tesouro Nacional), o confronto dos custos dos benefícios dos militares com os dos trabalhadores civis deixa muitas indagações. Trata-se de um sistema que mantém privilégios dos militares em relação aos demais trabalhadores ou de um regime jurídico que mitiga desvantagens impostas a esses servidores em razão das particularidades de sua profissão?

Em análise das contas públicas divulgada em junho, o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Walton Alencar Rodrigues afirmou que, nas mudanças ocorridas nos últimos anos, “os militares das Forças Armadas foram os que preservaram as maiores vantagens”. Por isso, no seu entender, é imprescindível “implementar mudanças no SPSMFA, com o objetivo de torná-lo consentâneo com o contexto nacional, no qual a manutenção de privilégios, em relação aos demais trabalhadores, às custas da sociedade, é cada vez menos aceitável, diante da difícil situação fiscal do País e dos naturais anseios sociais pela moralidade e isonomia”. Esclareça-que SPSMFA é o Sistema de Proteção Social dos Militares das Forças Armadas, que recebeu esse nome em 2019.

No Caderno de Orientação aos Agentes da Administração sobre o SPSMFA, que estava na quarta edição em setembro, a Secretaria de Economia e Finanças do Exército ressalta que militar não é privilegiado, nem tem direito a aposentadoria. Num quadro didático sobre “ideias equivocadas e suas devidas correções”, afirma pelo menos quatro vezes que “militares das Forças Armadas não têm previdência”.

Segundo o Caderno, o regime jurídico dos militares não gera privilégio; “ao contrário, busca atenuar as desvantagens a esses profissionais pelas particularidades da profissão militar”. A carreira, diz ainda, exige habilidades técnicas e físicas; impõe desafios que demandam coragem, liderança e conhecimento especializado; e implica frequentes transferências, com mudanças constantes de residência. Além disso, dos militares são suprimidos certos direitos sociais, como os de greve, de sindicalização e de filiação a partidos.

Ainda que meritória, essa discussão não é suficiente para tornar esmaecidos alguns números levantados pelo TCU. São dados que podem até causar perplexidade. Em 2023, o déficit per capita do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), conhecido como Regime Geral de Previdência Social (RGPS), foi de R$ 9,4 mil; no Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), que abarca os servidores civis, de R$ 69 mil; e, no caso dos militares, de R$ 159 mil. O custo per capita do déficit do regime dos militares equivale a 17 vezes o do trabalhador comum.

Quaisquer que sejam as justificativas para essa discrepância, ela propicia reflexões de natureza ética (essa disparidade acentua a desigualdade numa sociedade muito desigual) e, sobretudo, fiscal. Nestes tempos em que parte dos agentes econômicos, especialmente os vinculados a instituições financeiras, cobram do governo com veemência crescente o ajuste das contas públicas, essa não é uma questão a ser tratada com indiferença. Combater o déficit implica escolhas políticas. Cortar gastos com defesa, com infraestrutura, com programas sociais ou com benefícios tributários?

Há negociações para a redução da ampla distância entre os custos dos regimes de proteção social (chamemos assim) dos civis e dos militares. O presidente Lula pediu ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a inclusão do Ministério da Defesa no corte de despesas necessário para reduzir o déficit.

Já se discute a redução de benefícios como pensões de filhas solteiras de militares (com impacto até 2060), pagamento por mortes fictícias (devido a dependentes de militares expulsos por conduta inadequada) e remuneração aos que deixam o serviço ativo.

Se as medidas forem aprovadas, seus efeitos serão lentos. Por isso, a despeito de politicamente perturbadora, a questão suscitada pelos números do TCU merece reflexão mais profunda da sociedade.

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O FUTURO E A ORDEM DOS ADVOGADO DO BRASIL

Luiz Antonio Sampaio Gouveia, O Estado de S. Paulo

A OAB deve impor-se em prol da cidadania, do Estado de Direito e da liberdade, porque ela não pode ser uma ONG, um clube de serviços ou um sindicato

Advocacia dever-se-ia grafar com “a” maiúsculo por ser uma instituição constitucional, essencial à concretização da justiça. Equivocam-se os que a redigem com “a” minúsculo porque diminuem sua expressão simbólica no quadro em que concorre para efetivação da Constituição com instituições públicas, como a magistratura, o Ministério Público e a Defensoria Pública, e a reflexão que se pode extrair desse contexto é própria do momento em que se realizam eleições para os quadros dirigentes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

As primeiras instituições de ensino do Direito formavam bacharéis a atender à demanda do Estado, como, por exemplo, as escolas de São Paulo e do Recife. A Advocacia enquanto instituição privada não se personificava juridicamente e fora parceira menor da magistratura e da promotoria, enquanto a maior parte dos bacharéis não integrantes do serviço estatal dirigiam-se à política. As entidades de congregação da Advocacia (do século 18 ao início do século 20) nem eram de representação ou disciplina legais para os advogados. Mas eram associações que denominados institutos mais se dedicavam à reunião de seus pares objetivando a cultura jurídica sobretudo livremente do poder.

Advogados, ligando-se a movimentos políticos que inspiravam e impulsionavam ideologicamente mudanças sociais, fizeram a abolição, a República, a Revolução de 1930, e esta última, enquanto governo provisório da República, organizou a Advocacia e outras profissões liberais em corporações de ofício, à semelhança de guildas medievais, com forte conotação fascista, mas sem tolher a Advocacia em sua liberdade, como fizera com organizações de outros profissionais liberais, o que constituiu a Ordem dos Advogados do Brasil, órgão público independente do poder e dotado de autonomia administrativa e financeira ampla e total.

Instaurado o Estado Novo, em 1937, foi a Advocacia o grande impulso da democratização, dando causa civil à queda da ditadura e, a partir daí, lideranças da Advocacia, incorporadas à OAB, foram protagonistas da redemocratização, após o golpe de 1964, e do impeachment do presidente Fernando Collor, e fora ela a fautora da Constituição de 1988, em que se deu contemporaneidade ao Direito brasileiro alinhando-o aos mais avançados sistemas constitucionais e de Justiça.

O desenvolvimento brasileiro e a tecnização da Advocacia, concomitantes à massificação da profissão, fizeram surgir miríades de associações à margem da OAB, voltadas à defesa de interesses segmentados das múltiplas especializações jurídicas, desligando de sua militância expressivo contingente de advogados, que a tem apenas como órgão de inscrição profissional e excepcionalmente de disciplina e ética; passando a entidade a congregar tão somente uma Advocacia de exercício tradicional, com muitas questões relacionadas a dificuldades de formação de seus recéminscritos e sobrevivência financeira deles, em que a Ordem dos Advogados do Brasil desempenha papel social de grande envergadura pedagógica e de educação continuada, preparando para a sociedade algo entre 1 milhão de advogados atualmente.

Acontece que a grandeza da Ordem dos Advogados do Brasil vem do papel da Advocacia, na ordem judiciária brasileira, e muito de sua função de guardiã da ordem democrática e constitucional, em que, nos últimos anos, processa-se um afastamento da entidade das lides cívicas, com expressiva perda de prestígio no cenário nacional, que não nos faz lembrar as grandes campanhas do passado, voltada à construção de uma nação, pelo Estado de Direito sem cujas liberdades a Advocacia não se realiza. Em face da pandemia, a atividade do Poder Judiciário tornou-se restritiva à cidadania e o extraordinário da peste tornouse o ordinário da Justiça. Cabe à ordem cumprir o seu papel constitucional ante a desagregação desse Poder que afrontoso ao direito de defesa e ao contraditório sobrepõe-se à Advocacia, em sistemas de operação que afastam de seus préstimos o acesso presencial a seus juízos, e age restritivamente à função constitucional dos advogados por conseguinte. Com o misterioso julgamento virtual que sonega participação à defesa técnica da Advocacia e em alguns tribunais, jamais se sabe onde ele começa e muito menos quando termina. A Ordem dos Advogados do Brasil deve impor-se em prol da cidadania, do Estado de Direito e da liberdade, porque ela não pode ser uma ONG, um clube de serviços ou simplesmente um sindicato, a ela cabe grafar Advocacia com “a” maiúsculo eternamente.

Por isso somos instituição constitucional e agentes legitimados à arguição de constitucionalidade das leis e outros atos do poder. Propugnar eleições diretas para a presidência nacional da ordem, por exemplo, pode ser pouco em função de nossas missões constitucionais que não se resumem à aprovação do quinto constitucional dos advogados, que sempre merece qualificada e efetiva representação da Advocacia, a qual quase nunca se realiza nos tribunais.

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PRAGMATISMO TOMOU POSSE ANTES DE TRUMP

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

Lula e Milei produzem frieza para as redes sociais e acordos para os interesses nacionais

Ao subir a rampa do Museu de Arte Moderna no Rio para ser recebido pelo anfitrião, o presidente argentino protagonizou a troca de cumprimentos mais fria da abertura do G20. Nos 20 segundos em que durou a cena, coube apenas um aperto de mão e uma foto sem sorrisos dos quatro, Javier Milei e a irmã, Karina, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira-dama, Janja da Silva. Contrastou com os demais chefes de Estado. Joe Biden posou de mãos dadas com Lula e Emmanuel Macron deu até uma corridinha na rampa para abraçar o presidente brasileiro. Foi uma frieza moldada para as redes. Milei não apenas assinou tudo o que o Brasil queria como ainda fechou um acordo que Lula não conseguiu arrancar de Alberto Fernandez.

O G20 é o último grande encontro da diplomacia mundial antes da posse de Donald Trump. Anfitrião do encontro em 2026, os EUA dificilmente manterão a linha adotada pelos países em desenvolvimento que se tornaram anfitriões. Na Índia, a prioridade foi o aquecimento global, no Brasil, o combate à pobreza e à fome e, na África do Sul, no próximo ano, será a taxação das grandes fortunas.

É mais do que a temática que está em risco. Daí porque este G20 se revestiu da expectativa de que as 20 maiores economias do planeta pudessem vir a fazer um “hedge” contra a volta do ex-presidente americano ao tablado. Esta expectativa pode vir a se revelar excessivamente otimista, mas Brasil e Argentina mostraram que as relações internacionais não são movidas a maniqueísmo mas pelo interesse nacional. E não é a posse de Trump que vai mudar isso.

Enquanto Biden autorizou de lá o uso de mísseis de longa distância na Ucrânia contra a Rússia, comprovando os limites do fórum para a paz mundial e Macron disse que se opõe ao acordo entre o Mercosul e a União Europeia, foi a Argentina do gélido Milei que deu a notícia mais importante para o Brasil ontem.

Milei aderiu à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, principal iniciativa brasileira no encontro, e subscreveu os parágrafos sobre a tributação dos mais ricos e o combate à desinformação. Não bastasse, o ministro da Economia, Luis Caputo, assinou, nesta segunda-feira, com o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, memorando de importação de gás natural argentino pelo Brasil.

É um acordo financeiramente vantajoso para ambos os países. Alberto Fernández era tão próximo de Lula que chegou a visitá-lo em sua prisão curitibana, mas a amizade não deu conta de superar as dificuldades deste acordo. Quem o fez foi Milei, três dias depois de se encontrar com Trump e se vender como um aliado contra “comunistas” como Lula.

O Brasil conseguiu o gás, da reserva argentina de Vaca Muerta, por até US$ 8 o BTU (sigla para a unidade térmica utilizada) enquanto o mercado interno brasileiro o produz a US$ 14. E a Argentina vai gerar divisas exportando um ativo energético e ocupando um espaço que hoje é da Bolívia.

É bem verdade que a exploração deste gás afronta os compromissos assumidos pelo Brasil de mitigação do aquecimento global na COP29. O gás desta reserva é de xisto. Para separá-lo desta rocha, é preciso usar água de alta pressão, o que arrisca os lençóis freáticos e abala comunidades indígenas próximas à área. O Brasil sempre poderá dizer que a responsabilidade da exploração é da Argentina, cabendo ao país apenas transportá-lo até seus depósitos.

Quem tornou esse acordo possível foram os interesses empresariais, a diplomacia e a burocracia de ambos os países que prosseguem interagindo, independentemente de quem esteja no poder. É o “deep state” dos pampas que segue em curso enquanto as caretas mal-humoradas dos chefes de Estado cumprem a missão a que se destinam nas redes sociais.

É cinismo, mas é assim que se move a chamada lógica transacional da qual Donald Trump é o principal artífice. É neste sentido que o presidente americano tem estimulado a “blindagem” contra sua volta ao poder. Enquanto acordos como este entre Brasil e Argentina mostram-se viáveis, o multilateralismo de organismos como o G20 ainda terá que mostrar sua eficácia. Biden prometeu doar U$$ 4 bilhões para que o Banco Mundial se envolva no acordo para a superação da fome e da pobreza, mas a destinação terá que ser submetida a um Congresso de dominância republicana.

É esta perspectiva de ganho bilateral que move o encontro pós-G20 entre Lula e Xi Jinping na visita de Estado do presidente chinês, que acontecerá na quarta-feira, em Brasília. Mas não será fácil. Ameaçada de sobretaxação por Trump, a China quer diversificar o mercado de sua indústria. O Brasil pretende o inverso: investimento chinês para deixar de ser um eterno exportador de commodities para a China e poder desenvolver sua própria indústria.

A declaração final, obtida no primeiro dia do encontro, pode ser lida como uma resposta do G20 à necessidade de reforçar o multilateralismo antes do seu algoz tomar posse na Casa Branca. Está claro, porém, que o alcance é limitado. Lula valeu-se da condição de único chefe de Estado presente no primeiro encontro do G20, em 2008, para atestar, 16 anos depois, que o mundo piorou. Ao reconhecer o fracasso do fórum, legitima os ganhos que o Brasil vier a obter na edição deste ano, todos juntos ou separados: o que vier é lucro. A lógica transacional tomou posse antes de Trump.

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