segunda-feira, 30 de junho de 2025

HUGO MOTTA DEFENDE SEU CERCADINHO

Miguel de Almeida, O Globo

O posto de deputado ou senador é um empregão como poucos para tanta falta de responsabilidade

Pelas redes circula um abaixo-assinado pelo fim das mordomias dos parlamentares. Até agora, angariou milhares de apoios. O posto de deputado ou senador é um empregão como poucos para tanta falta de responsabilidade. Fora o majestoso salário, as verbas de gabinete (combustível, vale-paletó etc.), as emendas secretas e o fundo eleitoral tornam a ocupação um pedaço de paraíso na Terra.

A atual fotografia do Congresso Nacional não é um espelho do Brasil. O que está ali é uma distorção provocada pelas anomalias impostas ao sistema eleitoral, num caso bem pensado de esculhambação. Com o intuito de esmorecer a vontade popular e tornar irrelevante a participação dos eleitores, tipo:

— Deixe esses caras para lá, vou cuidar da minha vida.

Políticos como os Bolsonaros e Sóstenes Cavalcante contam com o desânimo e o ódio da população na desmontagem da democracia representativa. Quanto pior, melhor.

A comparação entre o Congresso Constituinte de 1988 e a atual formação, onde o destaque se dá pela irrelevância intelectual, mostra um desnível brutal. Basta lembrar que o presidente da Câmara se chamava Ulysses Guimarães, um dos líderes na derrubada da ditadura. Hoje temos lá no cargo um pau-mandado corporativo de verbas. Não fala só por si, mas pelo Arthur Lira e outros que o instruem sobre como arruinar o país.

Não culpemos o eleitor. O sistema democrático brasileiro se vê montado para privilégio de poucos. Nunca da maioria. Veio contaminado pelos generais da ditadura, e os congressistas o tornaram pior com suas inúmeras revisões — que ocorrem sempre a cada primavera ou pleito. Com tantos senões, os melhores nomes da sociedade ou se eximem da política ou são batidos pelos latifundiários das emendas. Não é que o atual Congresso seja o mais direitista desde a redemocratização. É o mesmo bolo: PT e PL estão iguais. Os petistas têm votado na mesma sintonia corporativa. Vários de seus deputados ajudaram a manter os jabutis na conta da energia. Se a esquerda antes contou com o sociólogo Florestan Fernandes… bem, hoje tem maquiador e cabeleireiro na folha do gabinete.

No Brasil sempre se busca compreender por que as coisas pioram mesmo quando se pensa ter tomado a decisão racional. Foi o caso de o STF proibir as contribuições de empresas privadas aos candidatos. E dar gás ao fundo eleitoral. Naquele momento, olhou-se apenas para as eleições presidenciais. Parecia enfim o caminho para uma democracia madura. Imagine ser como os Estados Unidos, onde o poder econômico das big techs desequilibra a vontade popular ao despejar milhões de dólares num único nome. Melhor afastar tal perigo colocando o dinheiro público em defesa da boa consciência — e a coisa deu ruim. Por ingenuidade, não se contava com a sanha desmesurada de quem ganha mesada. Soa como crack: qualquer quantidade traz o vício. Ao contrário de outras ocupações, para as quais se requer estudo e investimento do próprio bolso, ser parlamentar no Brasil não implica risco. Não se põe dinheiro à frente, porque os chefões dos partidos escolhem os futuros príncipes ao distribuir o ouro aos apaniguados. Com a sorte de não ser cobrado por seus votos, porque no Brasil só se olha para o presidente da República. Qual seria o ônus daqueles que diminuíram o imposto sobre as bets de 18% para 12% e agora aumentam o número de colegas em virtude do novo cálculo demográfico?

O modelo político leva o eleitor a só pensar no próximo candidato a presidente. Nunca a senador ou deputado. Qualquer ação política, para melhora da representação democrática, passa por escolher no próximo ano parlamentares com currículo, créditos e serviços já prestados à população. Dá trabalho, mas não tem outro jeito. Pesquisar quem não se apoia apenas em likes ou na tediosa polarização como meio gratuito de popularidade. À esquerda ou à direita, aquele que se aproveitou de fake news deveria ser esquecido. Deve ser aposentado.

Mais importante do que saber se Michelle ou Lula ganharão a eleição em 2026, é votar em deputado e senador comprometidos com a reforma eleitoral. Naquele que deseja voto distrital, sendo claramente de direita ou esquerda — e não oportunista. Em nomes cujo número de celular seja conhecido para ser cobrado pelos eleitores. Quando se compra um produto estragado, você não o devolve? Não bate o pé? É o mesmo com o deputado ou senador: devolva-o com seus defeitos. Escolha outra marca.

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ATUALIDADE E DESDOBRAMENTOS POSSÍVEIS DA DEMAGOGIA POLÍTICA

Paulo Fábio Dantas Neto*, Democracia Política

Reclamar da política é sempre uma opção para políticos em dificuldades eleitorais. Impõe-se quando, numa democracia, outra opção lhes falta, seja por uma situação objetiva que os limita, seja por uma atitude subjetiva que os orienta, estrategicamente. Quando as condições objetivas e subjetivas atuam na mesma direção, reclamar da política converte-se em pregação queixosa de algum tipo de antipolítica. Dito de outro modo: se a barriga estiver cheia, o apetite político glutão pode ser adiado, embora sempre se mantenha latente e a postos, como diretriz de conduta. De barriga vazia, a fome e a vontade de comer criam uma sinergia tal que voltar a comer vira programa de ação imediato, apesar de circunstâncias adversas. Um passo imprudente adiante pode fazer o ator político passar da queixa eloquente ao ato inconsequente. Estágio avançado em que, na maionese da demagogia, prosperam tentações golpistas.

Jair Bolsonaro, em cena e nos bastidores, de 2018 a 2022, é um caso exemplar do trajeto acima esboçado, como está ficando cada dia mais patente na nova fase, mais objetiva, do julgamento do STF. Mas a demagogia não tem fronteiras. Pode ser usada por diferentes atores políticos que, a cada conjuntura, estejam por cima ou por baixo, na gangorra do poder de uma democracia. O gesto extremo do demagogo pode não ser tentativa de golpe, mas nem por isso suas consequências são irrelevantes.

Veja-se, por exemplo, o caso dos atuais dirigentes do Congresso Nacional. Adotam discursos até improváveis para demagogos, como, por exemplo, o da austeridade fiscal. É uma fábula de atacado que serve de fórmula política funcional para ocultar, conjunturalmente com êxito, uma demagogia de varejo. Mas não sustentavelmente. A evidência da demagogia, que eleitores vão aos poucos aprendendo a descobrir sob espessas camadas de discursos ocos, é o descompasso entre causa e efeito; desafio e resposta. Importa pouco, aqui, o universo social que mora no endereço a que a fórmula de pura retórica se destina. Decisões e atuação cotidiana da maioria dos parlamentares contribuem objetivamente para o desajuste fiscal. Isso acaba por desmentir a veracidade do discurso da austeridade. É comum, quase um consenso, análises de especialistas na observação da cena política apontarem isso.

Mas, a partir dessas evidências, boa parte das análises aponta o Congresso como a Geni explicativa de inúmeras situações, talvez de todas as mazelas políticas do país, que não são poucas nem filhas de um mesmo tronco causal. Essa simplificação analítica é cacoete às vezes inconsciente, traço de “cultura” que traduz um senso comum oposto ao senso racional dos operadores da política. Estes se acham em sintonia com outro senso comum, a visão da política como espaço impróprio para cultivo de valores e próprio apenas ao puro interesse. Nessa segunda modalidade de senso comum prospera a demagogia que grassa no Congresso. Na primeira (do discurso moralista que enviesa análises) mora uma demagogia equivalente à originária. A pretensão saneadora e caçadora de bodes expiatórios pode produzir resultados ainda mais corrosivos e destrutivos dos tecidos da política e da sociedade do que os do chamado patrimonialismo como uma gramatica ordinária resiliente da política brasileira. Desconhecer e desafiar sensos comuns é erro primário em política, assim como ater-se a eles.

É nessa geleia de simplificações rasteiras que o governo federal e, notadamente, o presidente, ministros de seu governo e importantes lideranças do seu partido mergulham cada dia mais afoitamente. Constroem, assim, uma plataforma eleitoral reativa às vicissitudes que pesquisas recentes apontam. Um moralismo do bem (que defende a democracia e os pobres, quando defende o presidente contra golpistas de extrema-direita e contra a elite econômica) escolhe o Congresso como seu alvo, papel que já coube antes ao BC e cabe sempre à “imprensa elitista”, por mais que ela os ajude na crítica ao Congresso. Trata-se de desaviso surpreendente, por partir de quem foi alvo recente dessa gramática antipolítica.

O Congresso direitista, o presidente esquerdista e seus críticos reciprocamente demolidores constituem fontes inesgotáveis de crônicas sobre a demagogia política, atestados de sua incidência endêmica, na atualidade. Comentarei a seguir duas situações recentes de conflito, que me parecem exemplares.

A demagogia e o nó do INSS e da Previdência Social

Sem dúvida, não é pouca a sangria de recursos públicos pelo funcionamento administrativo, politicamente orientado, da Previdência Social. Mas é maior ainda o bate-cabeça sobre como estancar a sangria. Bate-cabeça que só aumenta se incorremos, pela enésima vez, na ilusão de que "alguém" precisa lançar mão de um bisturi e tomar uma providência para sanear a previdência. Por essa linha de raciocínio redentor, agora seria a vez de Lula, como antes teria sido a de Itamar, a de FHC, a do próprio Lula (duas vezes), a de Dilma, Temer, Bolsonaro. É viés analítico tradicional nomear pessoas ou partidos para tentar elucidar um hábito da prática política cuja dimensão a própria análise qualifica de sistêmica.

O cientista político Sergio Abranches – no momento de maior felicidade, a meu ver, de uma entrevista recente sua (Canal Meio, mesa com Luiza Silvestrini, Flavia Tavares e Pedro Doria) - mencionou dois métodos de gestão política da previdência social, anteriores à atual lei de 1991, que se poderia supor como marco zero de um processo que teria nos trazido à atual situação. Podemos considerar sedimentos culturais do agir de nossas elites políticas, tanto o do PTB, de antes de 64 quanto o do PFL na transição democrática. Os dois partidos ocuparam postos de decisão no setor, nos respectivos períodos.

Talvez ficassem mais claras algumas distinções entre ambos os métodos se, no lugar de PTB e PFL, os termos usados fossem clientelismo abraçado ao corporativismo, no primeiro caso, e clientelismo em relação tensa com o universalismo de procedimentos, no segundo. Estou recorrendo a gramáticas-tipo da “Gramática política do Brasil”, livro de Edson Nunes, publicado em 1997. Quase 30 anos depois da publicação, esse livro talvez seja ainda um bom patamar analítico a partir do qual podemos entender o que mudou de lá pra cá e o que pode mudar hoje (e notem que uso o verbo poder e não o verbo dever).

Compartilho a impressão de que houve mudanças importantes nesses trinta anos e que elas multiplicaram e profissionalizaram maus hábitos. Embora não esteja tão claro se esses maus hábitos são o traço sistêmico principal do processo em curso ou se são dele um fenômeno colateral. Avaliar isso é relevante porque o ponto faz toda a diferença quando prestamos atenção na experiência recente com o voluntarismo moralista da Lava-Jato e na tentação que parece cercar distintas famílias políticas de repetir essa gramática para "resolver", no bico, o problema do INSS. Uma retórica que acessa o fantasma de cometimento de um haraquiri político que pode, em 2026, nos devolver ao clima eleitoral de 2018.

Pondo esses temores entre parênteses, volto ao assunto principal. Como disse, compartilho a percepção diagnóstica (no meu caso, só intuitiva) de que houve mudanças relevantes. Mas tenho dificuldades em compartilhar - com Sergio Abranches e com outros estudiosos de valor, como ele - um tratamento dessa questão à base da premissa de que governabilidade e compartilhamento acentuado de poder decisório não combinam e que uma razão burocrática insulada (e abrigada no Executivo) é melhor garantia de governabilidade do que o jogo político em que o Legislativo seja um "player" de destaque.

Sigo persuadido pela imagem de Nunes de que a "fertilização cruzada" de gramáticas é um caminho empiricamente testado no Brasil como capaz de gerar sub-ótimos. Por ele, o clientelismo e suas conexões com a corrupção podem ser contidos, permitindo implementação gradativa, incremental, de uma gramática de impessoalidade no tratamento de políticas públicas por instituições políticas, agentes econômicos e organização social. Nesse enquadramento analítico, clientelismo deixa de ser patologia inseminada pela classe política para ser marca de origem, neurose antiga com a qual é preciso conviver, evitando sua incidência psicótica. Até porque, diferentemente da corrupção, ele tem, bem ou mal, um lado inclusivo. Que seria de comunidades invisíveis do Brasil diverso se dependessem da racionalidade abrangente de elites tecno-burocráticas, especialmente se aliadas e alinhadas ao poder central?

Acredito que a observação histórica feita por Abranches seria melhor explorada se o cenário que ele descreveu, nomeando o PFL do início do atual período democrático, fosse descrito como um traço sistêmico em que os limites do clientelismo eram dados por uma elite política moderada, ciente (como ele mesmo admite) da força de um contraponto crescente, naquele momento de avanço da gramática do universalismo de procedimentos. Considero que aquela situação não é um passado a ser superado por uma pretensão de instalar o universalismo e a impessoalidade entre nós como obra solitária da razão.

Comparativamente, aquela situação é preferível à da democracia limitada, de antes de 64, em que o corporativismo ecoado da Era Vargas naturalizava a consideração da previdência social como patrimônio do PTB; e o insulamento burocrático demarcava e ampliava seu espaço até pontificar, durante o regime autoritário, sobre as demais gramáticas que buscavam substituir o clientelismo. Este, por sua vez, era o recurso do Congresso para resistir a essa avassaladora blitz da razão modernizante (corporativa e/ou insuladora) contra o governo político. Uma luta sem quartel entre tradição e progresso, cuja vítima certa era a impessoalidade republicana, posto que não poucas vezes o clientelismo expulso pela porta entrava pela janela, abraçado, a depender de cada conjuntura, a sindicalistas e/ou a burocratas estatais.

Aquele lusco-fusco do alvorecer da nossa democracia atual - em que o universalismo passou a ser escalado para contracenar com o clientelismo da nossa tradição, podendo limitá-lo, sem pretender revogá-lo - é um elo perdido que precisa ser recuperado. Além de preferível ao passado que lhe antecedeu, é muitas vezes melhor que o futuro consumado, que hoje vivemos como presente. Sucateamento da elite política, por processo intrínseco (caráter meramente predatório dos lobbies contemporâneos que condicionam a ação dos nossos parlamentares) e extrínseco, ditado pelos ímpetos faxineiros que ameaçam o sistema político com uma frequência similar à dos ciclos eleitorais.

Talvez exagere se considerar plenamente atual o argumento de Edson Nunes. Mas penso que ele ainda é bússola útil para moderar apetites voluntaristas e os racionalistas que não raro aparecerem combinados com os primeiros. Volto a um tema frequentemente visitado nesta coluna: o da conveniência de ser prudente antes de mexer no nosso hardware institucional. Está ruim com ele, mas, sem ele, o que será?

A proeminência crescente do Poder Legislativo é uma distorção da Carta de 88 ou sua realização um pouco mais completa do que era possível em tempos de presidencialismo forte? Os maus hábitos que ali grassam até que ponto são sistêmicos num sentido que transcende o sistema político ou resultam de falhas normatizadoras do sistema político? Até que ponto elas existem e não são corrigíveis por via eleitoral? A correção depende da lucidez e protagonismo de elites extra políticas, ou pode ser obra confiada ao tempo e à dinâmica da representação política e eleitoral, pela interlocução e interação democráticas contínuas entre governantes e governados? Se o problema é mais de interação política (no sentido de politcs), correções de polity auxiliam, mas não são a chave mestra de um melhoramento.

Se bem que a febre moralizante não dependa de comissões de inquérito parlamentares para se estabelecer, é bom que a sorte nos proteja dessa CPMI do INSS e dos demônios saneadores que ela pode liberar para muito além do seu objeto de investigação. E que nos ilumine o espírito conservador que trabalhou contra e abortou a Revisão Constitucional de 1993, remetendo o emendamento para o mundo ordinário da política e das relações entre Executivo e Legislativo, nos anos seguintes. O sub-ótimo durou e agora, que parece ter esgotado sua eficácia, é preciso encontrar um novo sub-ótimo. Nada parecido será encontrado por um ânimo de pretensões constituintes que tente retrair, ou driblar, o Legislativo ordinário que aí está. Constituição já temos e é o que mais nos vale. É preciso evitar o vespeiro que é a aventura de pô-la em xeque, mesmo que com boas intenções. Em tempo de nevoeiro, o menos é mais.

O IOF como argumento de confronto e de instrumentalização eleitoral do Executivo e do Legislativo

O senador Jacques Wagner, líder do governo no Senado, concedeu, neste sábado, uma entrevista ao Grupo Metrópole em que relata fatos de bastidores que antecederam à grande derrota do governo ocorrida no Congresso (Câmara e Senado): a anulação legislativa, por 383 votos contra 98, do decreto presidencial que instituía novas regras na cobrança do IOF, as quais, como se sabe, desagradaram muito a segmentos empresariais, a uma parte do jornalismo especializado e à grande maioria do Congresso.

O relato de Wagner não tem nada que ponha em dúvida sua veracidade, ou seja, dizer que parecia haver um acordo que afinal não vingou no Congresso não agride os fatos. Sustenta-se neles ou, pelo menos, no que deles veio a público. Houve tentativa de acordo, que fracassou, por algum motivo que o próprio Wagner diz não saber qual é. Ele deve ter sua interpretação, mas resolveu não dizer por algum motivo que também não sabemos qual foi. Provavelmente omitiu um juízo para não piorar mais ainda as coisas.

Ficam livres as interpretações. A primeira é de que já havia uma decisão prévia de partidos da base governista de levar as coisas até onde elas foram. Por essa conjectura – que se ampara num histórico de luta interna no governo - a grande e longa reunião de entendimento entre o governo, sua base parlamentar e as lideranças do Congresso, ocorrida no início de junho, na casa do presidente da Câmara, foi mera encenação. Essa primeira hipótese permite uma bifurcação: somente uma parte dos presentes sabia que era encenação, ou todos sabiam e, por motivos distintos entre si, participaram dela?

Uma segunda conjectura é a de pura e simples traição, uma espécie de falha moral que se tornou coletiva após o acordo fechado. Se tivesse alguma sustentação em fatos, essa hipótese, amparada na elasticidade do placar da votação, revelaria uma situação muito preocupante, pois demonstraria inconfiabilidade difusa nas relações internas à base.

Outra conjectura possível é a de que o acordo não chegou a ser suficientemente costurado e pode ter falhado por algum detalhe não negociado, ou por algum ponto negociado não ter sido contemplado na nova redação dada ao decreto presidencial pelo ministro Haddad. Essa insuficiência ou incompletude do diálogo pode ter levado a que boa parte da base não se sentisse contemplada pela nova redação. Isso pediria nova reunião da base, antes de um entendimento com a oposição. Se tal conjectura se sustentasse (com base num histórico de diálogo precário) não ficaria claro por que não teria ocorrido nova reunião, se por resistência do núcleo do governo (que consideraria ter chegado ao seu limite) ou se por açodamento de aliados já desejosos de passar imediatamente a conversas objetivas com a oposição.

Uma quarta hipótese é que pode ter havido a intenção geral, suposta por Wagner, de se fazer o acordo, mas que ao se sondar a oposição, o governo, ou parte da base (ou todo mundo) entendeu que não seria possível qualquer acordo geral o que retiraria o sentido de uma reunião com a oposição. A partir daí o consenso inicial teria sido desfeito e a força de gravidade da oposição prevaleceu sobre a do governo.

E resta ainda, é claro, a versão mais simples e objetiva de que o desfecho resultou de uma estratégia dos dois chefes do Legislativo, que estariam interessados, antes de tudo, em surrar o governo, contando para isso com a adesão do plenário, um fenômeno de comando vertical sobre deputados e senadores por cima das lideranças de bancada, instâncias partidárias, ministros de governo e demais atores.

O mais importante não é saber o que terá causado o desfecho, até porque pode ter havido uma combinação de vários desses fatores e de outras hipóteses, além das levantadas aqui. O mais importante é saber se há e o que há a fazer, diante da situação instalada. Haverá disposição, unilateral ou de ambas as partes, de tentar fazer com que a confrontação se dilua e não se repita adiante, ao menos nesse grau, e com que se reconstrua diálogo melhor do governo com sua base e/ou do Executivo com o Legislativo? Esse parece ser, em parte, o sentido das declarações minimizadoras do fato prestadas pelo próprio líder do governo no Senado, logo após a votação ocorrida naquela casa também. Declarações às quais não faltou também a imputação implícita da responsabilidade pelo desacordo ao presidente da Câmara.

Uma questão subjacente (e talvez condicionante) àquela aqui admitida como problema político principal é a das estratégias particulares dos atores. A qual, ou quais, desses atores interessa estancar a sangria ou mantê-la? O status quo é nefasto, horrível mesmo, mas nem por isso deixa de ser ambíguo.

Governo, presidente e a esquerda-raiz podem continuar transitando entre a imagem de incompetentes / agentes de uma escorcha tributária e a de vítimas/defensores dos pobres contra a gula das elites; o comando do Legislativo e a oposição podem seguir oscilando entre as imagens de detentores efetivos do poder / guardiães do contribuinte e as de usurpadores de poder / cupins patrimonialistas da República; os componentes instáveis da base governista podem navegar entre todos esses estereótipos, positivos e negativos, que podem ser colados no presidente e seu governo e nos chefes do Congresso e da oposição, enquanto políticos. Estereótipos cujo efeito corrosivo afeta o Executivo e o Legislativo, enquanto poderes da República, podendo converter uma competição política sem limites em crise institucional.

Fala-se no STF entrar em campo como bombeiro. É preocupante que precise cumprir esse papel mais uma vez. Mas menos mal do que ser chamado a se perfilar a algum dos "lados". Esse perfilamento foi tentado, sem maiores esperanças, desde a semana passada, pela liderança do Congresso, que pediu ao STF que anulasse o decreto presidencial, por desrespeitar a prerrogativa constitucional do Legislativo de autorizar alterações na ordem tributária. Agora o PSOL faz o mesmo, pedindo a anulação do decreto legislativo por ter ele usurpado o que seria uma prerrogativa constitucional do Presidente.

Nessa cacofonia, os argumentos jurídicos tornam-se biombos para deslanchar táticas de guerra política. O comado do Legislativo pede ao STF que interfira e diante da previsível não-interferência imediata sente-se liberado para defender-se de uma suposta aliança dos outros dois poderes contra si. E libera a direita parlamentar, amplamente majoritária, para surrar o governo. A esquerda lulista usa a natureza jus esperneante do pequeno e bravo PSO e faz um gesto antagonicamente simétrico para, talvez com um pouco mais de esperança, comprometer a Corte com um corretivo ao rolo compressor "das elites". Se o corretivo não vier, sente-se à vontade para associar ao discurso da justiça tributária que o judiciário terá ignorado a denúncia de que se arma um golpe sistêmico contra Lula, semelhante ao que teria vitimado Dilma. Perde um pouco mais a condição de governar, mas tenta afiar o seu discurso eleitoral.

Vamos ver se o STF consegue agir com a própria cabeça nesse pântano demagógico, contra o qual ele próprio já mostrou, por vezes, não estar imune. Pode ser bom sinal o sorteado ministro Gilmar Mendes pedir ao presidente Barroso que redistribua para Alexandre Moraes o recurso do PSOL. Rituais à parte (que devem ser respeitados), de um ângulo estritamente político, melhor que fiquem mesmo com Moraes as duas demandas de continuação da guerra, enquanto bombeiros tentam acionar a diplomacia.

É um desafio grande tentar com que prevaleça, pela persuasão, o primado da Lei, quando dois lados guerreiam em defesa de supostos direitos de governar por decreto. E quando entre esses dois lados há uma nuvem móvel de políticos pragmáticos (perdoem aqui o silogismo) que se manterão em movimento errático enquanto não encontrarem um caminho próprio para disputarem ambos os poderes políticos. Por enquanto parecem ter achado uma rota promissora para alcançarem o poder legislativo, onde já são majoritários, sem mais os antigos limites de um “baixo clero”. O outro poder ainda está entregue à busca de soluções carismáticas que escasseiam enquanto as remanescentes parecem estar ficando impotentes.

Talvez o esgotamento dos carismas de plantão seja a única sinalização positiva dessa conjuntura em que a demagogia pontifica. O país precisa de um ceticismo benigno, para descansar um pouco da pressão sufocante de carismas em luta. Sobre ceticismos e carismas, benignos ou malignos, tratarei em outro artigo. Por ora adianto, como link, uma reflexão: os diferenciais entre benignidades e malignidades não são virtudes morais, nem ideologias. São as possibilidades de agregação ou de desagregação políticas.

*Cientista político e professor da UFBA.

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AUMENTO DO NÚMERO DE DEPUTADOS É JOGO DE PERDE-PERDE

Irapuã Santana, O Globo

Mais uma vez, amplia-se o custo da máquina pública quando o momento exige contenção e responsabilidade fiscal

A Constituição estabelece que o número de deputados federais e a representação por estado, de forma proporcional à população, devem ser definidos por meio de lei. Além disso, prevê que sejam feitos os ajustes necessários no ano anterior às eleições, sem que nenhuma unidade federativa tenha menos de oito ou mais de 70 parlamentares. Mais tarde, a Lei Complementar 78/1993 estabeleceu o máximo de 513 deputados.

Em agosto de 2023, o STF entendeu que o Congresso demorava a adequar o número de vagas na Câmara e fixou um prazo até a data de hoje para que isso fosse cumprido.

Assim surgiu o PLP 177/2023, que aumenta de 513 para 531 as cadeiras disponíveis. Originalmente, o projeto da deputada Dani Cunha (União-RJ) mudava o número de deputados por estado, segundo o Censo de 2022, mas mantinha o total de 513. A alteração ocorreu apenas depois da apresentação do parecer do relator, que informa a adoção de um método de cálculo apontando necessidade de mais 14 vagas. No entanto o relatório propõe o acréscimo de 18, sem qualquer fundamentação.

Para visualizar o quadro de desproporção na representatividade, basta um exemplo. O Estado de São Paulo tem população de 44,4 milhões de habitantes, segundo o último Censo, contando com o limite máximo de 70 cadeiras. Em contrapartida, Roraima, com 636,7 mil, fica com o mínimo de oito representantes. Significa dizer que, enquanto existe um deputado para 634 mil paulistas, há um deputado para 80 mil roraimenses. A sub-representação é muito maior no estado do Sudeste que no do Norte.

Se a representação fosse proporcional, sem limite constitucional, São Paulo deveria ter 112 deputados, mas tem apenas 70. Roraima, que proporcionalmente teria apenas um deputado, tem oito. Existe um ajuste real e importante para Santa Catarina, que hoje tem 16 deputados e passará a ter 20, assim como o Pará, que tem 17 e passará a ter 21.

Mas a reforma capenga não altera os limites constitucionais e, ainda por cima, cria um novo problema: mais gastos. Segundo estudo da Câmara, as novas vagas — aprovadas pelo Congresso na semana passada — terão um impacto anual perto de R$ 750 milhões, incluindo emendas parlamentares. Mais uma vez, amplia-se o custo da máquina pública quando o momento exige contenção e responsabilidade fiscal.

O argumento da proporcionalidade — justo em essência — poderia ser atendido com uma simples redistribuição das cadeiras já existentes, corrigindo distorções históricas sem gerar novas despesas. Em vez disso, opta-se por engordar a estrutura, mantendo privilégios e ineficiências intactas, como se representatividade só fosse possível ao preço de mais gabinetes, verbas e assessores. É um jogo de faz de conta: fala-se em justiça democrática, mas se pratica expansão corporativa.

Para conter críticas, os parlamentares incluíram uma cláusula de contenção de despesas fake: durante a legislatura seguinte à promulgação da lei, não poderá haver aumento real de gastos. Mas nada impede que uma nova proposta orçamentária altere essa previsão.

E assim ficamos com distorção de representatividade e ainda mais pobres, um grande perde-perde.

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CONGRESSO APROVA MEDIDAS QUE VÃO CUSTAR R$ 106 BILHÕES AO COFRES PÚBLICOS NESTE ANO

Cássia Almeida / O Globo

Iniciativas do Legislativo ou mudanças em projetos do Executivo ampliam gastos ou barram cortes em benefícios fiscais

A queda de braço entre o Congresso e o Executivo, que chegou ao ápice na semana passada com a derrubada do decreto presidencial que aumentou a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), está fazendo o desequilíbrio fiscal do país se agravar. Se o governo tem optado, na maioria das vezes, por um ajuste fiscal ancorado no aumento de receitas, o Congresso também adotou medidas que acabaram ampliando gastos ou barrando propostas de ajuste apresentadas pelo Executivo.

Levantamento da Tendências Consultoria feito a pedido do GLOBO mostra que medidas recentes do Legislativo tiveram impacto de mais R$ 100 bilhões só neste ano. São iniciativas que elevaram despesas públicas, travaram cortes de gastos ou rejeitaram limites a isenções fiscais.

A lista de algumas dessas medidas (veja quadro ao lado) soma R$ 106,9 bilhões em 2025. No ano que vem, a conta sobe para R$ 123,25 bilhões, com os efeitos da decisão do Congresso de ampliar o número de deputados e o início do programa de renegociação de dívida com os estados (Propag), projeto de lei do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que praticamente retirou os juros do pagamento da dívida dos estados, mantendo somente a correção pela inflação. O projeto foi sancionado pela União em janeiro deste ano. Antes, havia juro de 2% ao ano. O impacto esperado é de R$ 20 bilhões a partir do ano que vem.

— O Congresso sentou em cima do encaminhamento para reduzir supersalários, houve a questão dos estados, sem contar com o aumento de deputados e o novo patamar de emendas parlamentares. Mas não podemos esquecer que o governo aumentou os gastos com a PEC da Transição em 2023, em R$ 200 bilhões — diz Alessandra Ribeiro, sócia da Tendências Consultoria.

Emendas parlamentares são um peso

O economista Bráulio Borges, pesquisador associado da FGV/Ibre, em artigo recente, chamou o Legislativo à responsabilidade. Segundo ele, reduzir as emendas parlamentares a um nível praticado em outros países para R$ 10 bilhões seria suficiente para ajustar as contas. Elas subiram de R$ 8,6 bilhões em 2014 para R$ 62 bilhões neste ano:

— Há peso excessivamente carregado pelo Executivo federal. Essa responsabilidade tem de ser compartilhada. Temos Legislativo empoderado, governos regionais ganhando espaço no gasto total mas, quando dá problema, batem na porta do governo federal.

Carlos Melo, cientista político e professor do Insper, lembra que serão mais 18 deputados em 2026, que devem custar R$ 165 milhões:

— Vão querer ter emendas, privilégios, o mesmo controle do Orçamento que os demais. Numa tacada só, negam aumento de receita e sobem a despesa (o projeto aumenta o número de deputados de 513 para 531).

Ele diz que faltam instrumentos para negociar. Com as emendas parlamentares, mais o fundo partidário — que aumentou R$ 165 milhões, chegando a R$ 1,368 bilhão neste ano —, e o fundo eleitoral, que foi de R$ 5 bilhões em 2024, os parlamentares “se dão ao luxo” de recusar cargo no governo:

—Eles não dependem do governo. São cinco centenas de vereadores federais. Falam em “governo congressual”.

'Jabutis' do setor elétrico vão custar R$ 190 bilhões

Apesar de não ter impacto no Orçamento, Borges lembra os jabutis incluídos pelo Congresso num projeto para o setor elétrico no último dia 17, que vão custar mais de R$ 190 bilhões, que serão repassados ao consumidor:

—Foi um verdadeiro ataque especulativo do Congresso contra o Brasil. Aproveitou a fraqueza do governo para aprovar um monte de jabutis (matérias estranhas ao projeto original) que só satisfazem alguns interesses muito bem representados no Congresso.

Entre as renúncias fiscais, Borges cita o Perse, de apoio ao setor de eventos em razão da pandemia. O governo queria extingui-lo, mas os parlamentares mantiveram a isenção, de mais de R$ 15 bilhões. Também mantiveram a desoneração da folha de pagamento. A desoneração foi criada no governo de Dilma Rousseff, e o número de setores beneficiados foi reduzido aos atuais 17 na gestão de Michel Temer. O Congresso renovou o prazo de validade do benefício:

— O Supremo exigiu que o Congresso apresentasse compensação para perda de receita (R$ 20 bilhões, com a desoneração), mas só foram indicados R$ 9 bilhões de receitas não recorrentes.

O Congresso também elevou a participação da União no Fundeb, que era de 10% até 2020. A fatia subirá para 21%. O aumento é gradual, de dois pontos percentuais a cada ano. A estimativa da Tendências é que essa alta anual de participação custe R$ 6 bilhões a mais para o governo federal a cada ano.

No Benefício de Prestação Continuada (BPC), transferido a pessoas de 65 anos ou mais e pessoas com deficiência de baixa renda, houve flexibilização de regras em 2021, promovida pelo Executivo, no governo Bolsonaro. Em 2024, tentou-se manter as regras mais rígidas, limitando o benefício a deficiências mais graves, mas o Congresso vetou a restrição.

Segundo cálculos de Borges, o BPC custou nos últimos 12 meses até maio R$ 121 bilhões. Se mantivesse as regras anteriores a 2021, a despesa seria de entre R$ 90 bilhões a R$ 95 bilhões, mesmo considerando o reajuste real do salário mínimo, valor do benefício. A diferença não entrou no cálculo da Tendências.

A compensação para isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil também é outro ponto que pode aumentar a renúncia fiscal, afirma Guilherme Klein, professor na Universidade de Leeds (Inglaterra) e pesquisador do Made-USP. Ele cita a proposta do PP para o projeto:

— A proposta mantém a isenção, mas a cobrança de alíquota mínima de IR, que começaria em R$ 50 mil mensais (segundo o projeto do Executivo), só seria a partir em R$ 250 mil e subiria bem aos poucos. Isso provocaria um déficit fiscal de R$ 38 bilhões.

Para Ricardo Ribeiro, analista político da LCA 4Intelligence, o foco é a eleição de 2026:

— O Centrão que tem um pé no governo está se arrumando para um cenário eleitoral. A questão não é se tem de fato um Congresso a favor ou não de corte de gastos. O essencial é que estamos antevendo o embate eleitoral de 2026.

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POR QUE OS LOBBIES SÃO TÃO FORTES NO BRASIL ?

Bruno Carazza, Valor Econômico

Uma ampliação da discussão proposta por Samuel Pessôa sobre os motivos de o Congresso brasileiro ser tão facilmente capturado por grupos de pressão

Leitura obrigatória de todos os domingos, a coluna de Samuel Pessôa na Folha de S.Paulo de ontem aborda um tema de importância fundamental: a vulnerabilidade do nosso sistema político aos lobbies e grupos de pressão.

Para o economista da FGV, a força desmesurada de pequenos grupos organizados sobre os Poderes da República distorce o nosso processo de escolhas sociais. Assim, a legislação, o orçamento público e o sistema tributário acabam favorecendo empresários de determinados setores e certas categoriais profissionais em detrimento do interesse coletivo.

O economista chega inclusive a arriscar uma série de hipóteses: i) que no Brasil o espaço para atuação dos lobbies seja maior do que em outras nações; ii) que a vulnerabilidade do nosso Legislativo talvez decorra do desenho do nosso sistema eleitoral e iii) que a forma de gestão da base do governo, pelo PT, aumenta a probabilidade de aprovação de desonerações e subsídios que atendam aos interesses empresariais e corporativistas.

Por pesquisar as relações entre “dinheiro, eleições e poder” há muitos anos, ouso aqui discordar em parte e sugerir uma ampliação ao diagnóstico proposto por Pessôa.

Quanto ao fato de o Brasil ser um dos países em que o Estado se dobra mais facilmente aos lobbies, desconheço uma comparação internacional que apresente uma métrica para esse fenômeno. Porém, se contabilizarmos os gastos tributários (entre R$ 544 e R$ 800 bilhões ao ano só no governo federal), os subsídios diretos, os créditos subsidiados via bancos oficiais (BNDES, Caixa, Banco do Brasil, etc), os subsídios cruzados da conta de energia (R$ 48,4 bilhões em 2024, segundo a Aneel), os supersalários no serviço público, entre outras benesses, qualquer observador internacional ficaria estarrecido.

E por que o Estado brasileiro cede tanto à voracidade dos lobbies?

Das duas hipóteses levantadas por Samuel Pessôa, concordo com a direção, embora tenha dúvidas quanto ao sentido apontado por ele, em ambos os casos.

Certamente o desenho do sistema eleitoral brasileiro favorece a vinculação dos políticos à sanha dos lobistas, mas não acredito que isso aconteça exclusivamente porque o nosso modelo afasta o parlamentar do eleitor. Isso certamente contribui, mas a minha hipótese é que os altos custos de se fazer campanha, mesmo em tempos de fundão e emendas bilionárias, faz com que as doações lícitas ou ilícitas de empresas sejam o fiel da balança que pode garantir ou não a reeleição de um político.

Sobre a suposição de que a gestão petista amplia a captura do Estado por grupos privados, acredito que Pessôa mistura o geral com o específico. No caso, minha visão é que o presidencialismo de coalizão brasileiro, em qualquer governo, tem um alto custo de operação que abre os flancos do Estado para a sua cooptação por interesses particulares. Lobbies se aproveitam dos impasses entre Executivo, Legislativo e Judiciário para emplacar suas reivindicações bilionárias.

Isso acontece independentemente do governante. Se o fenômeno é mais forte nas gestões petistas (será?), eu atribuiria mais ao fato de que o PT acredita na ação do Estado como indutor do desenvolvimento, e maneja os incentivos fiscais e creditícios para fomentar os setores que considera estratégicos, para a alegria dos empresários.

Há, ainda, dois outros fatores que eu acrescentaria ao diagnóstico proposto por Pessôa: um de natureza institucional e outro pessoal - pois acredito que instituições (incompletas) e lideranças (falhas) moldam o processo de (sub) desenvolvimento.

No campo institucional, nosso regime de tramitação legislativa oferece inúmeras oportunidades para a aprovação de benefícios privados sem submetê-los ao debate público ou à avaliação da sociedade. Não é coincidência que a maior parte dos privilégios setoriais surja por meio de emendas em medidas provisórias, ou em projetos cujo rito de apreciação é atropelado por pedidos de urgência e acordos de líderes que dispensam a sua discussão em comissões ou suprimem os prazos regimentais para sua apreciação. Além disso, ainda não conseguimos criar canais de participação que deem voz e ouvido, na mesma medida, a diferentes grupos interessados na matéria.

Fora essas deficiências institucionais, não podemos fechar os olhos para o comportamento de nossos líderes. No Brasil há uma banalização da promiscuidade nas interações entre políticos e empresários, julgadores e jurisdicionados, reguladores e regulados que acaba favorecendo os amigos dos reis. Isso vale tanto para ministros do Supremo Tribunal Federal que participam (e promovem!) convescotes com megaempresários aqui e no exterior (vide Esfera, Lide e Gilmarpalooza, que ocorre nesta semana), quanto para o presidente do Banco Central que se reúne com os maiores banqueiros do país em pleno feriado para tratar da operação de salvamento do banco Master.

Aqui no Brasil, a máxima da mulher de César - segundo a qual não basta ser honesta, tem que parecer honesta - nunca funcionou.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “O País dos Privilégios (volume 1) e “Dinheiro, Eleições e Poder”, ambos pela Companhia das Letras.
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BC MIRA 2026 COM JURO ALTO POR MUITO TEMPO

Alex Ribeiro, Valor Econômico

A estratégia é cumprir objetivo de levar a inflação para a meta no horizonte relevante de política monetária

O Banco Central vai deixar os juros básicos bem altos por bastante tempo para levar a inflação para a meta. A estratégia é cumprir esse objetivo no horizonte relevante de política monetária. E o horizonte relevante de política monetária é o período de 12 meses até dezembro de 2026.

Essa foi talvez a mensagem mais importante da entrevista do Relatório de Política Monetária (RPM), divulgado na semana passada, e do pronunciamento feito pelo diretor de Política Econômica do Banco Central, Diogo Guillen, em um evento promovido pelo Banco Barclays, em São Paulo, na sexta.

Parte dos analistas econômicos desconfia que o Banco Central vai adiar o cumprimento da meta por prazo indefinido, diante das dificuldades de baixar a inflação em um ambiente de muita incerteza fiscal.

O ano de 2026 será particularmente difícil, em decorrência das eleições presidenciais. A literatura econômica é farta em apontar que, em período de eleições, há expansões fiscais. A possibilidade de ajustes nas contas públicas é ainda menor quando há forte polarização política e a disputa eleitoral é bastante competitiva.

Para alguns, a anunciada interrupção no ciclo de alta da taxa Selic sem que as projeções de inflação estejam rigorosamente na meta é um sinal de que, de fato, o Banco Central trabalha com um horizonte prolongado para o cumprimento da meta.

Há duas semanas, quando o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central subiu os juros em 0,25 ponto percentual, para os 15%, foi divulgado um comunicado que contém uma projeção de inflação de 3,6% para 2026.

Ou seja, haveria recuo na inflação, que nos 12 meses até maio ficou em 5,32%, mas não chegaria a 3%, que é a meta oficial estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

O quadro seria um pouco mais preocupante porque as projeções divulgadas no relatório indicam inflação de 3,2% em 2027. Assim, a inflação não cai para a meta em nenhum período projetado pelo Copom.

Um detalhe importante, porém, é que essas projeções de inflação não representam a escolha do Copom sobre a trajetória da taxa Selic. São, na verdade, exercícios condicionais que ilustram o que aconteceria com a inflação se o cenário econômico se desenrolar da forma prevista pelo Copom e os juros, hipoteticamente, tiverem a trajetória esperada pelos participantes do mercado.

Os dados usados são as expectativas de inflação coletadas no boletim Focus. O Copom deixa transparente, no Relatório de Inflação, quais são esses números. Às vésperas da reunião do Copom, a aposta mediana era que o BC fosse deixar a taxa Selic estável em 14,75% ao ano. Como o Copom subiu para 15% ao ano, já tem um pouquinho mais de juros, o que ajuda a baixar a projeção de inflação.

Mas não é só isso - os analistas do mercado acham que o Banco Central vai começar a baixar os juros a partir de fevereiro, levando a Selic para 12,5% ao ano ao fim de 2026 e para 10,5% ao ano ao fim de 2027.

Além de observar essa trajetória de juros do Focus, os membros do Copom também examinaram, na reunião, outras. Guillen e o presidente do BC, Diogo Guillen, têm afirmado que algumas dessas trajetórias colocam a projeção de inflação em 3% em dezembro de 2026. O ano é importante: o comitê está mirando 2026, que é o horizonte relevante de política monetária, e não 2027.

Isso está de acordo com a comunicação de política monetária, que passou a dizer que é preciso manter uma taxa significativamente contracionista por um período “bastante” prolongado. A palavra “bastante” foi uma das novidades do comunicado que saiu após a reunião do Copom.

Antes do último encontro, outros membros do Copom, como o diretor de Organização do Sistema Financeiro e Resolução do BC, Renato Gomes, destacaram como o que importa é o integral dos juros. Ou seja, a meta seria cumprida não apenas pelo pico dos juros, mas também pelo tempo que esse aperto vai se estender.

O Banco Central poderia esclarecer mais sobre isso se, a título de ilustração, divulgasse também uma projeção alternativa com juros constantes sempre em 15% ao ano. Guillen e Galípolo foram questionados sobre isso na entrevista do Relatório de Inflação, mas fizeram duas ponderações.

Uma delas é que, quando o Copom divulga um cenário alternativo, os participantes podem se apegar a ele como sendo uma indicação firme de intenção. O correto, naturalmente, seria entender essa projeção alternativa como uma projeção condicional, ou apenas uma ilustração. Todos os participantes do mercado teriam que estar conscientes de que, entre o cenário Focus e o cenário com juros constantes, há várias outras trajetórias possíveis para a Selic.

Na coletiva, Galípolo e Guillen indicaram que, no futuro, podem passar a divulgar essa projeção alternativa. Na última reunião, não fazia muito sentido - e esse foi o segundo ponto levantado por eles - porque o Copom subiu os juros e, na verdade, fez uma pausa no aperto para verificar se os 15% ao ano são suficientes.

Esse é um recado muito importante: a política monetária está viva e pode ser ajustada para que a inflação converja para a meta.

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ESQUERDA CHILENA ESCOLHE COMUNISTA COMO CANDIDATA

Do O Estado de S.Paulo

Jeannette Jara, do Partido Comunista, será candidata governista para suceder Boric no Chile

Lei chilena proíbe o presidente Gabriel Boric de concorrer a um segundo mandato consecutivo

SANTIAGO - A ex-ministra do Trabalho do governo de Gabriel Boric Jeannette Jara, do Partido Comunista Chileno, venceu neste domingo, 29, as prévias da coalizão governista, e será a candidata da situação nas eleições de novembro.

Com 93% dos votos apurados, Jara alcançou 60% das preferências, segundo os dados oficiais do Serviço Eleitoral (Servel).

Em segundo lugar ficou a ex-ministra Carolina Tohá, de centro-esquerda, com 27%. Em seguida, estão Gonzalo Winter (9%), da Frente Ampla, partido de Boric, e Jaime Mulet (2,7%), do partido minoritário Federação Regionalista Verde Social.

A lei chilena proíbe o presidente de esquerda Gabriel Boric, de 39 anos, de concorrer a um segundo mandato consecutivo.

A jornada eleitoral, marcada pelo frio do inverno em boa parte do país, contou com uma baixa participação.

Jara, advogada de 51 anos e militante do Partido Comunista, surgiu como opção presidencial após sua gestão como ministra do Trabalho conseguir reduzir a carga horária semanal no Chile de 45 para 40 horas.

Também impulsionou e liderou negociações para a aprovação de uma aguardada reforma previdenciária.

É a primeira vez na história chilena que uma ampla aliança política apresenta um integrante do Partido Comunista como candidato presidencial.

Baixa participação

Um pouco mais de 1,3 milhão de eleitores participou da votação, apesar de mais de 15 milhões de pessoas estarem habilitadas para votar, correspondendo aos registrados nos partidos da coalizão governista e independentes.

Somente os governistas optaram por participar das eleições primárias previstas na legislação, organizadas pelo Servel. Os outros setores já nomearam ou escolherão seus candidatos de forma interna.

Essas prévias são voluntárias, diferentemente de outras eleições no país, que são obrigatórias. Os únicos eleitores que não podem participar são aqueles filiados aos partidos de oposição.

Direita favorita

Jara será o nome da esquerda para enfrentar os candidatos da oposição: o ultradireitista José Antonio Kast e a representante da direita tradicional Evelyn Matthei, que aparecem como favoritos nas pesquisas.

A agora candidata da coalizão governista tem o desafio de se tornar uma figura competitiva contra a direita e avançar nas pesquisas, para ter chances de chegar a um segundo turno.

Embora “Tohá fosse uma melhor candidata para enfrentar a direita”, a partir de agora tudo começa do zero e “dependerá de como Jara construir sua campanha”, disse Mireya Dávila, acadêmica da Faculdade de Governo da Universidade do Chile.

É preciso observar como será “sua relação com o centro-esquerda e especialmente com seu partido, que terá que controlar para evitar uma fuga de votos para a direita”, disse a especialista./AFP

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A FADIGA DO DISCURSO CONSPIRATÓRIO E AUTOCENTRADO DE BOLSONARO

Diogo Schelp, O Estado de S. Paulo

Há desconexão entre o que Bolsonaro tenta ser para seus apoiadores e o que pode fazer por eles

Nem a sonoplastia dramática, acionada quando a voz ganhava certa intensidade, salvou o discurso de Jair Bolsonaro do marasmo. O público de verde e amarelo na Avenida Paulista, ontem, saiu dali satisfeito por prestar apoio ao seu líder político e reafirmar as próprias convicções, como a teoria de que os atos de 8 de janeiro foram fabricados pela esquerda, e emoções, como o ódio a Alexandre de Moraes e a Lula, mas Bolsonaro já não é capaz de entregar muito mais do que isso. A fadiga com o que ele tem a dizer é evidente.

A repetição de bordões, como “Deus, pátria, família e liberdade”, e da retórica messiânica (“valeu a pena o sacrifício”) nem é o maior problema. A questão é que há uma desconexão entre o que Bolsonaro tenta ser para seus apoiadores, ou seja, o salvador da pátria (“a missão do capitão não acabou, ele ainda vai contribuir muito com o Brasil”, disse o governador Tarcísio de Freitas), e o que o ex-presidente realmente pode fazer por eles.

O máximo de esperança que Bolsonaro consegue oferecer aos seus admiradores é o de “mudar o destino do Brasil” se eles elegerem “50% da Câmara e 50% do Senado”.

Uma fala que, analisada pelo ângulo correto, expõe a esperança que ele tem de mudar o próprio destino se seu grupo político conseguir a maioria absoluta no Congresso Nacional. Bolsonaro quer mesmo é salvar a si próprio, não a pátria.

Tão entediante quanto falar mais uma vez que comprou vacina para todos, mas não tomou por causa da sua “liberdade”, ou que o Tribunal Superior Eleitoral “colocou” Lula na Presidência foi a tentativa de dar visibilidade ao menos carismático de seus filhos, o Carlos, cuja pretensão é se lançar ao Senado por Santa Catarina. “O marqueteiro aqui me botou na Presidência da República”, disse Bolsonaro, enquanto Carluxo, ao seu lado, colocava a mão de forma desajeitada, quase constrangida, sobre seu ombro.

O que deveria ser o ponto alto do discurso do réu por golpe de Estado, a julgar pelo tom de voz e pela quantidade de vezes que ele repetiu a frase, soou mais como uma confissão do que como a descrição de um ato de coragem: “Algo que me fez sair do Brasil não era apenas não passar a faixa. Jamais eu passaria faixa para ladrão. Jamais passaria faixa para ladrão.” E seguiu a ladainha sobre anistia, sobre injustiça, sobre ser preso ou ser morto, sobre a verdade que liberta e pacificação. A Paulista assistiu a um show de fadiga política.

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CONSTRUIR PONTES, NÃO MUROS

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, O Estado de S. Paulo

O apelo de Francisco aplica-se aos países e aos sistemas políticos e econômicos que internamente criam barreiras entre os vários segmentos sociais

O papa Francisco foi um frasista como poucos que o mundo produziu. Não frases de efeito, de impacto midiático. Os seus dizeres eram sempre recheados de conteúdo, de mensagens para reflexão sobre a realidade que nos cerca. Devem ser considerados como lição de vida, como ensinamento para o comportamento do homem, da sociedade e das nações. Podem ser acolhidos ou não, mas, com certeza, sempre conduzem a uma análise que, em regra, abala convicções já sedimentadas e desperta consciências.

Um exemplo de sua sensibilidade, acuidade e completa ausência de preconceito foi a declaração que fez em visita a um presídio. Ao reunir-se com os presos, afirmou “eu poderia ser um de vocês”. Mostrou ter plena ciência de que o crime é um fato humano e social, que pode envolver qualquer um de nós.

Uma frase que denota o seu pleno entendimento das conturbadas e belicosas relações internacionais, especialmente no que tange ao dramático problema dos refugiados e dos imigrantes, foi dita como veemente contestação à postura desumana e cruel dos governantes que não querem acolhê-los em seus países: “Vamos construir pontes, não muros”.

Essa alusão às duas obras não poderia ser mais adequada e atual. O muro divide e isola, a ponte aproxima e congrega. O muro simboliza o egoísmo e a ponte, a união.

Esses símbolos e os seus significados não se aplicam apenas às questões dos que imploram por abrigo e acolhimento em nações que não são as deles.

O muro, no curso da humanidade, foi erguido com base na falsa ideia da superioridade de uns em relação a outros.

A alegoria utilizada pelo papa possui um eloquente significado, como se fora uma sentença declaratória de uma cruel realidade secular e ainda presente. Declara o estado de injustiça imperante no mundo.

Mas a sua declaração contém também uma condenação: condena o egoísmo, a insensibilidade, a falta de humanidade de significativa parcela da sociedade mundial.

Os muros são construídos pelo material da cobiça, do apego cego e sem concessões ao que é meu em detrimento daquilo que poderia ser do outro.

O consumismo, como espinha dorsal de um capitalismo excludente de outros valores, a competição pelo ter, com desprezo absoluto pelo que é, afasta pessoas e grupos, sendo fator de desagregação e de ruptura dos laços de solidariedade.

Ao lado da cultura argentária temos a ânsia pelo poder, pela supremacia de uns sobre outros e pela submissão desses, como fatores de guerras que chegam ao ponto de extermínios de povos e de nações, tal como se assiste nos dias de hoje.

Assim está o mundo, não diferente do que sempre foi. Na contramão de setores que evoluem, da tecnologia que alcança patamares inéditos, a mostrar a estagnação, e mesmo o retrocesso do homem, que continua a sua marcha destruidora com desprezo pelo amor ao próximo. Nós, humanos, não estamos tratando, na expressão de alguém, da “patologia da alma” que atinge quase a todos e quase a tudo.

Nesse panorama, as pontes que com esforço foram construídas estão sendo destruídas facilmente.

O candente apelo do papa Francisco, para que muros que separam e expulsam sejam substituídos por pontes que agregam e unem, não se refere apenas às nações que não acolhem imigrantes e refugiados. Aplica-se aos países e aos sistemas políticos e econômicos que internamente criam barreiras entre os vários segmentos sociais.

Não é de recente data, aliás é histórica, a separação discriminatória existente em nosso país. Há segmentos das elites que não só ficam inertes diante das carências e misérias sociais, como não querem sequer presenciá-las. Há pouco tempo alguém me disse que não se deveria fornecer comida aos moradores de rua, pois do contrário eles permaneceriam em certa região da cidade para serem alimentados... Suprema insensibilidade de um cidadão “bem-posto”, tido como “homem de bem”.

Em outra ocasião, um porteiro de edifício me disse: “São poucos os que nos cumprimentam, nos dão bom dia ou conversam conosco, como o senhor”. Exemplo eloquente da abominável separação, ou muros, de classes. Resquício da escravidão, prova do regime de castas ainda vigente. Intriga-me saber em que se baseiam aqueles que se consideram superiores. Não tenho resposta.

Os que lutam pela diminuição das carências, pelo término desse apartheid caboclo, pela justiça social, enfim, sempre cobraram que o Estado saísse de sua inércia e agisse. Pois bem, quando ocorre alguma ação positiva as camadas privilegiadas protestam.

Um amigo, morador de pequena cidade interiorana, estava indignado, pois a prefeitura local passou a fornecer uma série de benefícios aos menos aquinhoados. Com isso, a cidade estava com falta de mão de obra, pois segundo ele, não queriam mais trabalhar. O município fornecia escola em tempo integral, transporte escolar, ambulância para remoção dos doentes, ambulatório médico e tantos outros favorecimentos básicos. E o que muito o revoltava era um pequeno auxílio mensal em dinheiro.

Pontes entre nações não estão ao nosso alcance, mas derrubar os muros internos e construir canais de solidariedade é mais do que possível para nós. É um dever de humanidade.

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ISRAEL, IRÃ E O OCIDENTE

Denis Lerrer Rosenfield, O Estado de S. Paulo

O Irã terminou indiretamente por confessar a sua fraqueza, implicitamente a sua derrota

No imediato pós-Guerra, o Irã confrontou-se com um dilema: o de permanecer no culto à morte, conforme a sua retórica de destruição do Ocidente e do Estado de Israel, em particular, tudo subordinando ao martírio e ao sacrifício que são a sua expressão, ou o de fazer um cálculo de perdas e danos, considerando o futuro, devido à sua fragorosa derrota militar. Apesar de sua retórica belicista e macabra, exibiu a mera aparência do que parecia ser. Terminou, porém, optando pela racionalidade estratégica, assumindo-se mais como Estado do que como organização terrorista.

Na perspectiva da guerra, a operação israelense é profundamente inovadora, por estar amparada em: 1) inteligência cibernética, inteligência artificial e infiltração real da Guarda Revolucionária, do meio militar em geral, das elites políticas e científicas e dos órgãos de segurança; 2) operações da Força Área, precedidas por uma ação de comandos, conduzida pelo Mossad, introduzindo durante vários meses mísseis e drones no interior do Irã, sem que a inteligência iraniana tivesse tido noção do que lá se passava; 3) Força Aérea, que teve, assim, todo o espaço iraniano a seu dispor, podendo atacar livremente os seus alvos previamente escolhidos. Foi precisa em sua ação, dizimando os sites nucleares (com ajuda americana), suas fábricas e estoques de munições e mísseis, instalações e bases militares, além de ter reduzido substancialmente as baterias lançadoras de mísseis; 4) ausência de perdas de aeronaves israelenses, todas retornando às suas bases militares; e 5) alvos das ações foram militares e não civis, ao contrário do que foi empreendido pelos iranianos, que chegaram a atacar um importante hospital.

Note-se que ainda se trata de uma guerra moderna, do século 21. A guerra entre Israel e Irão não envolve disputas territoriais, de fronteiras, inexistentes entre esses dois países. Israel não enviará tropas ao Irã. Seu objetivo é claro: impedir que o Irã produza uma arma atômica, o que estava perto de fazê-lo, e não mais envie dinheiro, armamentos e munições aos seus grupos/organizações satélites, encarregados da missão de cercar Israel. Trata-se de inviabilizar que o Irã cumpra com seu próprio objetivo: o da destruição do Estado de Israel. O cessar-fogo será uma decorrência da ação militar israelense e americana bem-sucedida, salvo se a liderança islâmica vier a optar pelo culto à morte.

Do ponto de vista geopolítico, a mudança é importante. Os Estados Unidos, sob a liderança de Donald Trump, deixaram de tergiversar, o que vinham fazendo com Obama e a dupla Biden/Blinken, que se contentavam com o status quo, referendando a renúncia do Ocidente a enfrentar os seus próprios inimigos. Mostraram-se frágeis, algo percebido por seus opositores, acostumados que estão com o uso sistemático da violência. Pode-se mesmo dizer que os americanos tiveram medo, sentimento que uma grande potência não pode se dar ao luxo de ter, salvo se renunciar a ser potência.

Saliente-se, ainda, que o revide iraniano ao ataque chegou a ser constrangedor para um país que, até agora, se arrogava ser uma potência regional. Numa operação coreografada, lançou 14 mísseis a uma base americana no Catar, não sem antes ter avisado a esse país e aos Estados Unidos, que nem a julgaram digna de uma resposta militar de tão insignificante. O presidente americano agradeceu ironicamente o gesto. Criaram-se, assim, as condições diplomáticas para um cessar-fogo, agora sob a tutela e a coordenação dos Estados Unidos, que emerge, ao mesmo tempo, como guerreiro e pacificador. Na verdade, o Irã terminou indiretamente por confessar a sua fraqueza, implicitamente a sua derrota.

Os países árabes, de longa rivalidade com o Irã, apesar das declarações de crítica de praxe à “agressão” israelense, reconhecem, entretanto, que Israel esteja fazendo um trabalho que não souberam fazer. No fundo, estão se regozijando. Todavia, já se apressaram a criticar o ataque militar do Irã ao Catar, alinhando-se aos americanos e, indiretamente, aos israelenses. Os países árabes não possuem nenhum alinhamento automático aos iranianos. A clivagem étnica e religiosa entre persas e xiitas de um lado, e árabes e sunitas de outro, tende a se acentuar.

A reação europeia marca, por seu lado, um ponto de virada. Até então vinha se posicionando contra a conduta israelense em Gaza. No entanto, confrontada consigo mesma, assume que o problema colocado pelo Irã não é somente uma questão israelense, mas europeia e, de forma mais geral, ocidental. Países líderes como Alemanha, Reino Unido e França declararam com todas as letras ser inaceitável que o Irã possa possuir uma bomba atômica, constituindo-se numa ameaça mundial. Setor importante dos europeus está, assim, alinhando-se a Israel. O chanceler alemão, Friedrich Merz, o mais incisivo, chegou a declarar, em maio, que Israel estaria fazendo o “trabalho sujo” dos europeus, que não tiveram a coragem de fazê-lo. Pode-se considerar essa declaração um sobressalto do Ocidente.

*Professor de filosofia na Ufrgs

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QUEM RESPONDE PELO USO DO DINHEIRO PÚBLICO ?

Lara Mesquita*, Folha de S. Paulo

Se deputados e senadores querem continuar a definir os rumos do Orçamento, é preciso discutir a responsabilização do Legislativo

O assunto da última semana foi a votação para derrubar o decreto que regulamentava a alíquota do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). Os impactos, as causas e, sobretudo, o que isso significa para a relação entre o Executivo e o Legislativo e para os 18 meses que o governo Lula 3 tem pela frente.

O governo precisa reduzir despesas ou aumentar a arrecadação. Não está claro se deputados e senadores não aceitarão nenhum tipo de corte de despesas ou apenas se não aceitam aqueles que atingem o setor produtivo, como o fim das desonerações da folha de pagamento.

Em todo caso, o resultado é que o Executivo tem menos controle sobre o Orçamento da União e sobre as despesas discricionárias —aquelas alocações financeiras que o governo pode decidir como e onde gastar —, que estão crescentemente concentradas nas mãos dos legisladores, dado o aumento do montante reservado para a destinação por deputados e senadores através das emendas ao Orçamento, sejam individuais, de bancadas ou comissões.

Em 2025, o Orçamento reserva R$ 59,5 bilhões para serem alocados segundo a preferência dos parlamentares. Para se ter uma ideia, as emendas individuais, no período de 2018 a 2025, passaram de R$ 8,8 bilhões para R$ 24,6 bilhões.

Quero destacar duas questões que podem ser associadas à concentração de tantos recursos nas mãos de deputados e senadores. A primeira, diz respeito à responsabilização fiscal. A responsabilização —jurídica, política ou mediante a opinião pública— recai sempre sobre o Executivo, nunca sobre o Legislativo.

A segunda é sobre o legado que a destinação de um volume tão grande de recursos deixa para o país. Isabella Montini, aluna de doutorado em Berkeley, e Alison Post, professora no Departamento de Ciência Política da mesma universidade, exploram como a distribuição de emendas orçamentárias individuais impositivas no período 2015 a 2023 se concentram em pequenos municípios, que recebem desproporcionalmente mais fundos e projetos per capita, especialmente para infraestrutura.

Um destaque do trabalho é que deputados e senadores priorizam projetos mais simples e baratos nessas cidades, contribuindo para disparidades infraestruturais no longo prazo. Enquanto a pavimentação de ruas é abundante nas pequenas cidades, projetos mais complexos e essenciais, como redes de esgoto e tratamento de água, acabam sendo negligenciados.

Não se trata aqui da criminalização do uso das emendas orçamentárias pelos legisladores, nem da defesa de um planejador central onisciente. Mas, se deputados e senadores querem continuar a definir os rumos da política orçamentária do país —tanto em relação ao foco do ajuste fiscal quanto à alocação de parcela maior dos recursos discricionários, buscando controlar fatia maior que a do próprio Executivo—, é preciso discutir a responsabilização do Legislativo pelo legado que deixarão.

Seja o legado da redução do investimento em políticas sociais e de mitigação da pobreza, seja o legado para a infraestrutura, que em breve será um gargalo ao desenvolvimento do país. Quanto maior for o controle do Legislativo sobre o Orçamento, maior deverá ser sua responsabilidade.

*Professora na Escola de Economia de São Paulo (FGV-EESP) e pesquisadora do Cepesp. Doutora em ciência política pelo IESP-UERJ

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RAZÕES DO MAL-ESTAR EM RELAÇÃO À DEMOCRACIA BRASILEIRA

Marcus André Melo, Folha de S. Paulo

Quando os parceiros de coalizão são rejeitados pelos seus apoiadores, a avaliação do sistema piora 

Cresce a percepção de que há algo errado em nossas instituições. Diria até que é quase consensual na opinião pública que as relações entre os três Poderes são disfuncionais. Isto se estende ao próprio funcionamento da democracia no país. Não temos dados para 2025, mas, segundo pesquisa sobre a satisfação com a democracia do Pew Research Center em setembro de 2024, o Brasil está ligeiramente abaixo da mediana global que é 45%.

Apenas 44% da população declara estar satisfeita com o funcionamento da democracia no país, enquanto 54% manifestam algum grau de insatisfação, dos quais 30% afirmam estar "nada satisfeitos". Paradoxalmente, vemos um aumento e não declínio de 7 pontos percentuais em relação a 2023. O Brasil opera na tendência oposta das democracias de alta renda, nas quais se observa queda acentuada nos últimos anos (de 49% em 2021 para 36% em 2024) na satisfação com a democracia.

Mas o mais instigante para analisarmos o "malaise" na conjuntura atual sobre a democracia é como ela varia entre grupos de eleitores. Esta variação nos dá a chave para o consenso negativo atual sobre o funcionamento da democracia. A percepção sobre como o funcionamento das instituições é moldada por vários fatores já identificados em pesquisas sobre o assunto. Um fator decisivo é que ela difere entre os ganhadores e perdedores das eleições (o "winner-loser gap", no jargão).

Há também fortes clivagens ideológicas: entre eleitores de esquerda, 56% estão satisfeitos; entre os de direita, apenas 35%. O fator mais determinante, porém, é o alinhamento com o governo: apoiadores da coalizão governista relatam níveis de satisfação 25 pontos percentuais mais altos que os opositores.

Esses dados revelam um padrão comum em democracias polarizadas: a legitimidade das instituições passa a ser filtrada pelo vínculo partidário, e a percepção de responsividade política se torna mais volátil. A democracia é vista com mais confiança quando o "meu lado" está no poder, e com mais desconfiança quando está na oposição.

O que parece estar ocorrendo no momento é a queda da satisfação com a democracia entre os ganhadores, ou seja, entre os apoiadores da coalizão governista. Em "Strange Bedfellows: Coalition Make-up and Perceptions of Democratic Performance Among Electoral Winners", Electoral Studies, 2016 (Estranhos parceiros: composição da coalizão e percepção de desempenho da democracia entre eleitores vitoriosos), os autores utilizam microdados de pesquisas com 18 mil eleitores de 46 países para testar a clivagem vencedor-perdedor em governos de coalizão.

Concluem que os parceiros da coalizão importam para a satisfação com a democracia. Nos casos em que há o que os autores chamam de "ambivalência de coalizão" —ou seja, se os parceiros de coalizão são rejeitados—, a avaliação do governo e do funcionamento da democracia piora.

O infortúnio faz estranhos companheiros de cama (Shakespeare, "A Tempestade"). Quando o Executivo se enfraquece, eles lhes dão as costas. Assim, entre os eleitores, os vencedores se veem como perdedores. Governar com más companhias cobra um preço entre vitoriosos. Mas mitiga a insatisfação entre os perdedores.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)

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MULHERES SÃO A ESPERANÇA NO IRÃ

Artigo de Fernando Gabeira

A guerra nos bombardeia com fatos e versões. No curto tempo que sobra, tento entender um pouco melhor seus grandes atores: Israel e Irã. A história de Israel como Estado é curta, mas cheia de peripécias. No caso do Irã, tentei revisitar alguns textos, enquanto caíam as bombas.

Um documento muito discutido na época foi a série de reportagens de Michel Foucault no Irã, feitas na véspera da Revolução Islâmica. Ele foi a Teerã duas vezes em 1978, a convite do jornal italiano Corriere della Sera. O regime do xá Reza Pahlavi estava no fim, com o Exército massacrando milhares na Praça Jaleh.

A leitura da Revolução Islâmica realizada por Foucault foi tema de muita discussão. Ele parecia mais interessado na emergência de novas ideias, vindas de baixo, fora dos círculos universitários, que traziam um sopro de modernidade à política: a variável espiritual.

A modernização representada pelo governo do Xá era limitada e tinha fortes componentes arcaicos. Mas a Revolução Islâmica, no meu entender, não poderia ser vista apenas como introdução da espiritualidade. Era a vitória de uma visão religiosa rígida, que determinava como os iranianos deveriam se comportar em suas vidas. As meninas passariam a usar véu.

Por isso, além da visão de Foucault, me interessou muito há alguns anos a leitura do livro de memórias de Azar Nafisi, “O que eu não contei”. Uma professora de literatura ocidental cuja família de políticos e intelectuais nos dá, por meio de sua história, um vislumbre da evolução do país. Nafisi é uma estudiosa de Vladimir Nabokov e escreveu um best-seller mundial: “Lendo Lolita em Teerã”. A mãe de Nafisi foi deputada, o pai prefeito de Teerã. Aos olhos de mulher, a Revolução Islâmica foi um grande retrocesso:

— Vimos as mulheres tornando-se ativas em todos os setores da vida, governando no Parlamento, entre elas minha mãe, e tornando-se ministras. Então em 1984, minha filha, nascida cinco anos depois da Revolução Islâmica, volta a viver as mesmas leis repelidas por minha avó e minha mãe. Sua geração terá de encontrar seu próprio caminho de coragem e resistência.

Uma importante profecia. De lá para cá, as mulheres resistem bravamente ao regime teocrático. Na verdade, o livro de Nafisi fala do primeiro protesto. Por causa da decretação do uso obrigatório do véu (hijab), houve uma grande manifestação no 8 de março de 1979. Vigilantes do novo regime chegaram a usar ácido contra mulheres sem véus, que gritavam:

— A liberdade não é ocidental nem oriental, é global.

Em 2006, elas realizaram a campanha por 1 milhão de assinaturas para exigir mudanças em leis discriminatórias sobre divórcio e guarda de filhos. Em 2009, o Movimento Verde, para denunciar fraudes nas eleições, foi amplamente divulgado no mundo, com a imagem de Neda Agha-Soltan, assassinada durante os protestos.

A luta das mulheres jamais parou. A partir de 2017, elas subiram em postes e retiraram o hijab em sinal de protesto. Em 2022, de novo grandes protestos pelo fim da jovem curda Mahsa Amini, que morreu sob a custódia da polícia moral, presa sob a acusação de uso inadequado do véu. A polícia moral era uma decorrência da visão religiosa rígida, que não é subproduto da espiritualidade.

Nafisi, que nasceu e viveu no Irã, refletindo sobre a vida de suas antepassadas, talvez tenha percebido melhor que Foucault a trajetória da Revolução Islâmica. A aplicação da sharia, a lei islâmica, ou mesmo a substituição de um texto constitucional pela Bíblia, como querem alguns no Brasil, deveriam ser rejeitadas. As sociedades se tornam complexas, e a tolerância com a diversidade é essencial.

Dito isso, é preciso reconhecer que regimes revolucionários não caem por impulso externo. Será preciso que a oposição derrube. Assim como a destruição do aparato nuclear por meio das bombas não é o melhor caminho, diante da possibilidade de acordo, no quadro do Tratado de Não Proliferação. No momento de guerra, essas teses são subestimadas. Logo, logo, sua força se imporá.

Artigo publicado no jornal O Globo em 30 / 06 / 2025

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domingo, 29 de junho de 2025

O CONGRESSO NO TEATRO DE SOMBRAS

Míriam Leitão, O Globo

O Congresso pensou estar derrotando o governo, mas estava onerando o país, ofendendo eleitores e descumprindo seu papel

O Brasil vive um episódio sério de crise de governabilidade, que é um pouco mais grave e complicado do que parece. Ao derrubar os vetos do presidente Lula na energia, o Congresso comprometeu os próximos governos, não apenas o atual, e onerou o consumidor atual e do futuro. Quando revogou um decreto do Executivo, o fez sem olhar os limites de cada poder. Quando aumentou o número de deputados, minou ainda mais a relação entre os eleitores e os representantes políticos. Tudo isso enfraquece, não o governo, mas a democracia, que anda passando por maus bocados nos últimos anos.

A briga não é entre governo e oposição, entre direita e esquerda, entre lulistas e bolsonaristas. Para se ter uma ideia da confusão, até o PT votou pela derrubada dos vetos presidenciais. Perguntei a duas autoridades petistas o que significaram esses votos e recebi uma explicação confusa. Mais turvos são os jabutis do PL das eólicas, que estabelecem a compra compulsória de energia de certas fontes, para atender a interesses de lobbies conhecidos.

— Não é só o custo que é uma aberração. O texto estabelece o lugar de fazer o investimento, a data e o valor a ser pago pela energia. Onde já se viu colocar isso em uma lei? É escandaloso — disse uma das autoridades.

Os vetos do presidente Lula fazem todo o sentido. Os jabutis detalhavam que energia comprar, em que local, a que preço e por quantos anos. Um veto ainda não derrubado cria uma profusão de térmicas a gás, em estados sem gás, e prorroga a obrigação de compra de energia do carvão de 2028 para 2050.

Essas térmicas a gás foram um jabuti dependurado na lei que privatizou a Eletrobrás no governo Bolsonaro. O que fazem no PL das eólicas no mar que é do governo Lula? Perguntei isso a um especialista em energia e ele respondeu: “jabutis migram”. Só os interesses dos barões da energia do Brasil é que não migram. Permanecem fincados no Congresso Nacional.

O país entendeu o que tudo isso significava, até porque anda pagando muito na conta de luz. Foi fácil compreender que a energia iria encarecer por culpa do Legislativo. Os presidentes das duas Casas, irritados, disseram que o governo havia jogado no colo deles essa fatura. E ameaçaram reagir impondo derrotas ao governo.

Era noite de São João, às 23h35, quando o presidente da Câmara, Hugo Motta, irrompeu numa rede social avisando que colocaria para votar no dia seguinte o Projeto de Decreto Legislativo para revogar o aumento do IOF. Na quarta-feira, foi o fim de mundo. O PDL, que revogava o aumento do imposto sobre operações financeiras, foi aprovado com votação estonteante na Câmara e seguiu célere para o Senado, onde também passou em minutos. Como os parlamentares estavam bem poderosos, o Senado aprovou projeto que aumenta o número de deputados, mandou para a Câmara, que confirmou tudo em votação relâmpago. Teremos, portanto, mais 18 deputados em 2027.

O IOF é um imposto feito para regular e não para arrecadar. O problema é que o Congresso usou o instrumento errado para revogar o aumento. O projeto de decreto legislativo é para ser usado quando o Executivo vai além da sua competência. Não é para quando o Congresso discorda do mérito da decisão do governo.

O que une os jabutis, alíquotas de IOF e número de deputados na Câmara? Simples. O Congresso está funcionando muito mal e tomando muita decisão errada. O Brasil tem que tirar o excesso de peso da conta de luz em vez de pôr novos penduricalhos. Os poderes precisam saber exatamente quais são as suas competências. E o país não quer mais 18 deputados.

Quando derruba vetos que impediriam aumento na conta de luz, o Congresso não está derrotando o governo, mas conspirando contra o orçamento das famílias e das empresas. Quando usa um PDL para revogar um aumento de alíquotas, não está derrotando o governo, está ferindo a Constituição. Quando aumenta o número de deputados, não está derrotando o governo, está ofendendo a opinião pública.

A minha geração viu tanques na porta do Congresso. Mais de uma vez. É cena que fica na mente como assombração. Então, a torcida de gente assim como eu é para que o Congresso entenda seus poderes e os exerça bem, reflita sobre o enorme privilégio de representar o país e honre o mandato, respeite os eleitores e não se deixe capturar por grupos de interesse. Essa é a esperança que afugenta as sombras.

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