Um fato de certo modo novo aconteceu. A mentalidade de
senzala está escapando da chibata do capitão do mato. Ganhou visibilidade na
direita e na esquerda
Dezembro de 2024 foi bem diferente de dezembro de 2023.
Provavelmente, foi a primeira vez em nossa história que a passagem de ano foi
algo bem diverso da mera festa de mudança na numeração cronológica das eras.
Em dezembro de 2022 o país se defrontara com a possibilidade
de que nada mudaria com a passagem de ano, não obstante a eleição de um novo
presidente da República, em outubro. Havia sinais de que algo estava errado.
O presidente da República se evadira do país, ausentando-se
sem permissão do Congresso Nacional. Fê-lo para não passar a faixa presidencial
ao sucessor legítimo. Um conjunto extenso de boatos e de inverdades circulava
pelas redes a contestar a legitimidade do voto na urna eletrônica e do
resultado eleitoral.
Desde 2018, o eleito fora empossado em
consequência de uma eleição que ele e sua rede de apoiadores questionavam. No
olavismo pseudofilosófico da ideologia autoritária do bolsonarismo, com
facilidade demoliram a ordem política, satanizaram a democracia e sua
pluralidade de projetos políticos possíveis. Desmoralizaram o mandato enquanto
representação política que se legitima na possibilidade da alternância de poder
entre verdadeiros partidos, os que têm ideias e princípios.
Com as técnicas de manipulação da consciência de milhões de
brasileiros alienados, ressuscitaram a concepção de Deus, pátria e família para
fundamento da ordem política do golpe. Cópia da concepção fascista do golpe de
Estado de 1937. Coisa de um país que muda sem sair do lugar. Pressupõe que o
Brasil carece da anomalia indecente de uma alternativa política sem
alternativa, a do monólogo autoritário e excludente. O povo tratado com bando
carneiril tutelado por pastores de bodes.
O presidente empossado em 1 de janeiro de 2019 delegou o
governo a terceiros sem mandato nem legitimidade, usurpadores do poder, como
revelam as apurações da trama golpista, exposta e julgada nas medidas judiciais
recentes.
Cercado de adjuntos indevidos, optou pela omissão golpista.
Gente escolhida a dedo para ser meramente cúmplice de um governante equivocado.
Tudo indica, mal-intencionado quanto à função de governar. Renunciara
tacitamente ao mandato.
O que veio depois mostrou que o país se tornara reles campo
de exibição extemporânea de motoqueiros e bajuladores. Enquanto milhares de
pessoas padeciam e morriam sufocadas com a pandemia de covid, a política era
praticada como evento de um Carnaval sem graça. Mais de 750 mil pessoas
morreram, quando provavelmente poderiam ter sido salvas se vacinadas.
O poder se transformou em antro de molecagem política, de
desrespeito às instituições e aos direitos dos cidadãos. Militares entraram no
jogo do partido único. Tacitamente estimularam a baderna como expressão de
falso patriotismo, acampamentos de porta de quartel convertidos em feira livre
de um projeto de ditadura e da ruína moral e política do país. Fragilizaram a
sociedade para que os desertores da ordem democrática pudessem mandar no
Brasil. Nem faltou gente da oficialidade fazendo ponte entre os palácios e os
ajuntamentos.
Igrejas e pastores tornaram-se cúmplices da subversão. O
Deus da porta de quartéis apresentou-se como o deus de falsos e decaídos anjos.
O país foi transformado num inferno de insegurança e de incerteza.
As ocorrências recentes, relativas ao desfecho do julgamento
dos baderneiros e conspiradores por tentativa de golpe de Estado e subversão da
ordem, não encerram a anomalia. A desordem foi apenas o disfarce do lado oculto
da trama plantado no subconsciente da população, ressocializada e mobilizada em
concepção subjacente de tempo histórico e temporalidade.
Os envolvidos na conspiração têm como referência ritmos e
etapas das mudanças políticas que não são as dos calendários eleitorais. O
golpe não é cronológico. Suas personagens não são as do cidadão racional e
politizado, mas a de místicos de uma finitude apocalíptica, a que inaugura o
tempo de quartel como tempo da nação. O tempo de uma sociedade de obedientes
cumpridores de ordens em vez de, finalmente, uma sociedade de cidadãos ativos,
corresponsáveis pelos destinos do país e da construção de um país. Diferente do
bolsonarismo de meganhas da destruição da pátria.
Nesse cenário, um fato de certo modo novo aconteceu. A
mentalidade de senzala está escapando da chibata do capitão do mato. Ganhou
visibilidade na direita e na esquerda. É antiga, no Brasil, a concepção
milenarista do apocalipse. Aqui a revolução política se dá pela inversão do
aparente, os toscos dando ordens a generais que, ingênuos, se julgam no comando
da transgressão. Estão sendo mandados pelas forças ocultas dos mistérios da
política do Brasil atrasado.