quinta-feira, 30 de setembro de 2021

COMBUSTÍVEL PARA A DEMAGOGIA

Editorial O Estado de S.Paulo

O presidente Jair Bolsonaro ganhou um reforço de peso em sua campanha para confundir a opinião pública a respeito dos preços dos combustíveis e atribuir a terceiros uma responsabilidade que é parcialmente sua e de seu governo. Trata-se do presidente da Câmara, Arthur Lira, que, na terça-feira passada, sem nenhum pudor, disse que “ninguém aguenta mais” a alta da gasolina e anunciou que vai colocar em debate um projeto para fixar o valor do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) incidente sobre os combustíveis.

“Sabe o que faz o combustível ficar caro? São os impostos estaduais”, declarou o deputado, acrescentando que os governadores têm arrecadado muito na pandemia – sugerindo haver interesse dos Estados na carestia.

Trata-se de uma farsa em múltiplas dimensões, a começar por uma inexistente relação de causalidade. De fato, os Estados estão aumentando expressivamente sua arrecadação, graças em parte ao aumento dos preços dos combustíveis e da tarifa da energia elétrica, principais fontes de cobrança de ICMS. Mas, no caso dos combustíveis, o ICMS é cobrado sobre o preço médio ponderado ao consumidor final – ou seja, mesmo na hipótese maluca de que o ICMS fosse zero (o que, diga-se, o presidente Bolsonaro já teve a audácia de propor, ignorando a enorme importância desse imposto para os Estados), o preço provavelmente seria pouco afetado. 

Por isso, não é o aumento da arrecadação do ICMS que faz subir o preço do combustível, como dizem os bolsonaristas; é, ao contrário, o aumento do preço dos derivados de petróleo que faz crescer a arrecadação, porque a base de cálculo sobre a qual incide o tributo é o preço final do combustível; se essa base aumenta, necessariamente aumentará a arrecadação sobre esse produto, sem que tenha havido mudança nas regras de cálculo ou aumento da alíquota.

Na segunda-feira passada, o presidente da República queixou-se de novo do alto preço dos combustíveis. De maneira elegante, o presidente da Petrobras, general da reserva Joaquim Silva e Luna – escolhido por Bolsonaro com a intenção óbvia de interferir na estatal para frear os preços dos combustíveis –, disse que a empresa não alteraria sua política de preços, que procura acompanhar as alterações do mercado internacional. Ato contínuo, a Petrobras aumentou o preço do diesel, o que afetará os fretes rodoviários, num país cuja matriz de transporte é predominantemente rodoviária.

Em favor de Bolsonaro e Arthur Lira, é preciso reconhecer que os dois não são os únicos demagogos a oferecer aos incautos a ilusão de que o preço dos combustíveis sobe ou desce por ato de vontade, e não por força das circunstâncias de mercado. A política da Petrobras foi criticada também pelo antípoda de Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para o chefão petista, “o que está acontecendo é que a Petrobras está acumulando verba para pagar acionista americano”. É o estado da arte da vigarice lulopetista – a mesma que, sob o infausto governo de Dilma Rousseff, obrigou a Petrobras a subsidiar gasolina barata para segurar a inflação, o que quase quebrou a estatal. 

A explicação para a alta dos preços dos combustíveis é bem mais complexa do que pretendem fazer crer os populistas irresponsáveis. O cenário econômico difícil e uma conjuntura política tensa, graças à incompetência e à truculência de Bolsonaro, tiveram como uma de suas consequências a disparada do dólar – e, por tabela, dos derivados de petróleo.

Ademais, a desvalorização do real potencializa, no caso dos combustíveis, um problema mundial, que é o crescimento muito rápido da demanda. O alívio proporcionado pelo avanço da vacinação estimula a procura por muitos bens, inclusive os da área energética. O resultado é o aumento dos preços – o petróleo alcançou, nesta semana, sua cotação mais alta em três anos – e, agora, o temor de sua escassez.

Pretender que problemas dessa extensão sejam resolvidos com passes de mágica fajuta é típico de quem, como Bolsonaro, Lula, Arthur Lira e companhia bela, vive de vender terrenos na Lua.

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UM PESADELO DE MIL DIAS

Silvio Almeida, Folha de S.Paulo

Silvio Almeida - Professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.

“Nada não está tão ruim que não possa piorar”. A frase dita no último dia 27 pelo presidente da República durante solenidade que marcou os mil dias de seu governo pode ser considerada histórica. Isso porque foi das raríssimas vezes em que o presidente falou algo aparentemente verdadeiro e que, levando em consideração o que tem sido seu governo e sua personalidade, soou como um “lapso de lucidez”.

A frase é também uma boa síntese dos mais de mil dias de horror da gestão de Jair Bolsonaro. De fato, instalou-se no Brasil um governo em que as expectativas são sempre de que tudo vai piorar. Não há absolutamente nada que dê ao menos a impressão de que algo no país funcione, que irá melhorar ou de que algum dos inúmeros problemas nacionais pode ao menos ser encaminhado. É uma mistura fantástica de incompetência, insanidade, crueldade e corrupção.

Em um jantar nos Estados Unidos realizado em 2019, o presidente da República disse que em seu governo seria necessário “desconstruir” muita coisa no Brasil antes que algo pudesse ser construído. Depois de mil dias de governo percebe-se que o presidente, seguindo o padrão que lhe é habitual, não disse a verdade, ao menos não completamente. Este governo não é tão somente de destruição, mas de lesão, de sofrimento e de dor. Matar não é suficiente: é preciso torturar, humilhar e levar à loucura.

É também um governo corrupto, e não apenas no sentido usual do termo. É corrupto no sentido filosófico, já que inverte a finalidade das instituições, fazendo com que operem de forma contrária aos propósitos que declaradamente motivaram sua criação. Exemplos disso são os ministérios.

O Ministério da Economia se torna o fiador da miséria e da pobreza; o Ministério da Justiça promove perseguição e vingança; o Ministério do Meio Ambiente lidera a destruição da natureza; o Ministério da Saúde serve para espalhar a doença e assim por diante.

Os efeitos da decadência civilizatória representada pelo governo brasileiro se apresentam nos mais diversos setores da vida nacional. Na economia, além dos índices de desemprego, de desalento e do aumento progressivo da miséria, o país se vê à mercê de pessoas que, tendo o dever de agir, assistem com cinismo a milhões de pessoas passando fome, comendo restos de carcaças, revirando latas de lixo e sufocando por causa de uma doença para qual já existe vacina.

Na política, as reformas propostas pelo governo e seus aliados têm o claro propósito de facilitar a captura do Estado por interesses privados, seja de grupos econômicos, seja de organizações criminosas. Neste momento, a reforma administrativa é a ponta de lança deste movimento que visa a fragilização dos mecanismo de controle social do Estado brasileiro.

Mas talvez o pior de todos os efeitos destes mil dias de trevas sejam os produzidos na alma dos brasileiros. Desassossego, desesperança, tristeza e ódio são os sentimentos que talvez melhor descrevam este estado suicidário, racista e assassino no qual estamos todos metidos. O governo brasileiro não inventou, mas deu sustentação, potencializou e conferiu legitimidade a uma cultura de morte e cinismo que se disseminou na sociedade brasileira.

Sair deste pesadelo que tem custado milhares de vidas e interditado o futuro irá exigir uma grande recusa dirigida aos propagadores do ódio e aos lesadores que integram ou apoiam o governo, suas ideias e suas ações.

Para isso, instituições como esta Folha tem que assumir a responsabilidade que lhe cabe como o jornal mais lido do país e decidir se quer participar da construção de um país digno ou continuar investindo na criação de polêmicas artificiais em nome de uma suposta “pluralidade”.

Racismo e falsificação histórica nada têm a ver com postura democrática. Quem abre espaço para este tipo de indigência intelectual e moral, que prestigia irresponsáveis e fanfarrões, colabora, ainda que indiretamente, para que esse pesadelo jamais tenha fim.

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VETOS EM QUEDA

Editorial Folha de S.Paulo

Só na segunda-feira (27), o Congresso derrubou 12 vetos que o presidente Jair Bolsonaro apusera a projetos de lei. Nesta quinta (30), está prevista uma nova rodada de votações do tipo, e o governo poderá sofrer novas derrotas.

Bolsonaro já é, de longe, o recordista dos vetos derrubados. Ele já teve mais de meia centena de vetos revertidos. Michel Temer (MDB), o campeão anterior, sofrera 21 reveses; Dilma Rousseff (PT), 7; Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 2.

A comparação direta não é perfeita porque, ao longo dos anos, as regras para tais medidas sofreram alterações. Foi só a partir de 2013, por exemplo, que se efetivou o trancamento de pauta do Congresso caso a matéria não fosse apreciada. Naquele mesmo ano, as votações deixaram de ser secretas.

De toda maneira, quaisquer que sejam as normas, a derrubada de veto não deveria ser um fato corriqueiro, já que exige maioria absoluta nas duas Casas legislativas, ou seja, pelo menos 257 votos dos 513 da Câmara e 41 dos 81 do Senado. É inescapável, portanto, a conclusão de que Bolsonaro se encontra politicamente fragilizado.

Seu acordo com o centrão se mostra suficiente para protegê-lo de um processo de impeachment e talvez de pautas-bombas que desestabilizem de vez o governo, mas não para conferir-lhe a liderança do processo político.

Basicamente, os parlamentares não derrubam o presidente, mas fazem o que querem —não o que interessa à administração.

Isso fica claro quando se considera o teor dos vetos derrubados. Como se viu na segunda, há um pouco de tudo, desde interesses corporativos, como a volta das federações de partidos para escapar à cláusula de desempenho, a gestos simpáticos para a população, caso da suspensão da prova de vida do INSS até o fim do ano.

Há também decisões relevantes, mas caras —tome-se a ampliação do acesso à internet em escolas públicas. Medidas com impacto ainda maior serão apreciadas.

Se não houver surpresas políticas, econômicas ou sanitárias, a tendência é que o centrão mantenha esse arranjo por mais tempo. O grupo, afinal, tem acesso a cargos e verbas e ainda se vê praticamente livre para votar como prefere.

A situação pode mudar à medida que as eleições se aproximarem, e os parlamentares se vejam compelidos a posicionar-se de forma mais vantajosa para o pleito.

De todo modo, a combinação de um presidente fraco e um Congresso oportunista traz riscos consideráveis, aí incluídos danos ao erário e legislação de má qualidade.

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O OUTRO LADO DA PASSAGEM DE BOLSONARO POR NOVA YORK

Freddy Freitas, OS DIVERGENTES

Para Jair Bolsonaro, foi uma viagem muito especial e gratificante. Como medida do êxito de um político, costumam ser apresentados os números de acordos e tratados assinados. No caso de um presidente em campanha para a reeleição, pesa mais a certeza de apoio de velhos amigos e a formação de novas alianças.

Mas, para Bolsonaro, a viagem a Nova York foi magnânima em todos os sentidos. Firmou-se como uma importante chave da expansão da presença estrangeira na América do Sul, principalmente defensor e promotor de uma “modernização” das leis brasileiras.

Diga-se que a barreira que impede a entrada da família Murdoch no Brasil – o artigo 222 da Constituição Federal – poderá ser removida com a permanência do marido de Michelle no Palácio do Planalto. Num país habituado a navegar sobre águas culturalmente rasas, é um passo surpreendente.

Para o castigado Brasil, onde o argumento do desenvolvimento e da segurança, foi uma viagem de importante contatos e grandes expectativas, graças também a fatores políticos, econômicos e sociais capazes de manter agradável a temperatura e esperançosos os ânimos. Assim, o intemperante e conturbado encaminhamento da eleição presidencial de 2022, um episódio que no passado, em frequentíssimas ocasiões, produziu abalos de escalas agitadas, foi certamente decisivo. Em todo caso, a viagem de Bolsonaro traz para a área econômica internacional, aquela nem sempre saudável nos últimos anos, algumas graves preocupações.

A derrota de Donald Trump, festejada nos quatro cantos do planeta, não constitui em absoluto um episódio longínquo para o Brasil. Ainda a principal fonte ideológica de Bolsonaro, o “Trumpismo” parece pingar avaramente no limiar de 2022.

Diplomatas americanos e europeus, neste novo momento mundial, discutem o futuro do Brasil em que procuram, sem cair no exercício fácil das previsões esotéricas a que se dedicam videntes ou cartomantes, detectar as possíveis implicações que o resultado da eleição presidencial da Pátria de Flávia Schilling pode ter no comportamento e estabilidade da economia mundial.

Após a passagem do presidente brasileiro por Nova York, investidores e estrategistas internacionais, que têm os olhos e bolsos voltados para os Três Poderes, procuram opiniões de personalidades políticas, econômicas e empresariais sobre as perspectivas dele nas eleições do ano que vem. E, se há nessas manifestações os temores de consequências desagradáveis, nem por isso estão destituídas de otimismo. Porque nos eventos econômicos, políticos e sociais que não são regidos pelas leis inflexíveis do mundo físico, sempre se pode fazer algo pela ação eficiente do engenho e arte do homem. Por que não da CIA?

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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

OPÇÃO PELO ATRASO

Bolívar Lamounier, ISTOÉ

O Brasil experimentou um pouquinho de desenvolvimento, mas parece não ter gostado. Tudo faz crer que tomou uma firme decisão de regredir. Não chegamos a nos parecer com a Venezuela, mas, pelo andar da carruagem, vamos acabar nos transformando numa Argentina.

É certo que não conseguimos um fanfarrão do calibre do Tenente-General Juan Domingo Perón, mas isso é um detalhe. O fato que melhor comprova a hipótese acima exposta é a desidratação do chamado “centro”. Centro, terceira via, escolha você, caro leitor, o nome que preferir. Somos, com certeza, o único País do mundo que logrou a proeza de arranjar trinta e três partidos políticos e não consegue um candidato capaz de se contrapor ao espectro da polarização, vale dizer, à repetição da loucura Bolsonaro versus PT (agora com Lula).

Mas a coisa não para aí. Em Brasília — isso uma breve espiada nos jornais evidencia — tem um monte de gente empenhada em tirar Bolsonaro do páreo. Tirar, quero dizer, mediante artifícios jurídicos e imputações de ilícitos de toda ordem. Nenhum indivíduo na plena posse de suas faculdades mentais duvida de que ilícitos existem em abundância. A começar pela persistente sabotagem que o ocupante do Planalto perpetrou contra os agentes de saúde que combatem na linha de frente contra a pandemia. Mas isso já está no preço.

Nenhum indivíduo na plena posse de suas faculdades mentais duvida de que ilícitos existem em abundância para tirar Bolsonaro do Planalto

O que não se tem observado é que o clima de turbulência alimentado por Bolsonaro mantém o dólar alto, que empurra para cima a inflação e realimenta a turbulência de que Bolsonaro precisa para criar mais turbulência e mobilizar seus fanáticos. Nesse quadro, surge a genial ideia de convocar Lula primeiro e único, o imbatível, para o papel de pacificador. Transformando-o no estadista que ele nunca foi e não tem condições de ser, rearmamos a polarização e, eureka! Operamos o milagre de devolver Bolsonaro a seu habitat natural e reabrir a larga avenida que haverá de nos levar ao crescimento sustentável.

Em nossa hilária América Latina, os exemplos são Perón, que voltou da Espanha de braço dado com Isabelita. Morto Perón, ela se pôs sob a orientação de Lopez Rega, El Brujo, uma versão portenha de Rasputin.

O outro é Getúlio Vargas, cuja volta em 1950 acirrou até o limite a radicalização política do País. Lula, se tivesse juízo, deveria se convencer de que já fez todo o bem (e todo o mal) que podia fazer pelo Brasil e tirar de vez as férias a que ele há tempo faz jus. Com Bolsonaro X PT, o Brasil não corre o risco de dar certo.

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HÁ UMA BOMBA-RELÓGIO NO TSE

Elio Gaspari, Folha de S.Paulo

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) revelou que nas próximas semanas julgará o processo de cassação da chapa de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Parece falta de assunto, mas é bom que se diga: trata-se de uma iniciativa retardatária e inoportuna, caso clássico de tapetão.

É retardatária porque não faz sentido cassar uma chapa três anos depois da campanha durante a qual teriam ocorrido flagrantes transgressões da lei. Tudo indica que as ilegalidades ocorreram, mas, se o Judiciário levou três anos para decidir julgar o caso, deveria reconhecer que sua morosidade causou danos ao bem público semelhantes aos das malfeitorias cometidas. Se o caso envolvesse uma autoridade conduzida a um cargo vitalício, tudo bem, mas cassar uma chapa a um ano do fim do mandato é uma excentricidade.

É inoportuna, porque o país ainda não se livrou da tensão institucional manipulada por Bolsonaro nos seus confrontos verbais com o Judiciário. Uma nova encrenca nesse quintal é coisa desnecessária.

É um caso de tapetão porque, anulando o resultado de um pleito mais de três anos depois de sua realização, leva água para o moinho do condenado. É tudo do que precisa um governante ameaçado de perder a reeleição. Ele fica com o argumento de que foi eleito por 57 milhões de pessoas e cassado três anos depois pela maioria de um colegiado de sete sábios. Para Bolsonaro, esse seria um cenário de sonho.

A esta altura, Jair Bolsonaro pode ser afastado da Presidência pelo Congresso, por meio de um processo de impedimento. Se faltam apoios para isso, paciência. Resta a alternativa lisa e límpida da eleição do ano que vem.

O TSE já passou por experiência semelhante em 2017, quando julgou o processo de cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer. A senhora já havia sido deposta pelo Congresso, o vice ocupava-lhe a cadeira, e o tribunal rejeitou o pedido. Viveu-se uma tensão desnecessária.

Todas as encrencas que Bolsonaro alimentou com o Judiciário partem da premissa de que ele tenta invadir as competências do Executivo. A cassação da chapa seria uma cereja para esse bolo. Fica a pergunta do que seria possível fazer para desarmar a bomba-relógio. Isso só os ministros do TSE poderão saber. No caso da cassação da chapa Dilma-Temer, seguiram um caminho que resultou na piada segundo a qual a dupla foi inocentada por excesso de provas.

Um dos pilares das denúncias contra Bolsonaro está na exposição do uso abundante de notícias falsas durante a campanha de 2018. Nesse sentido, agora o próprio TSE armou-se para impedir que essa praga contamine a eleição do ano que vem. Há três anos, as notícias falsas eram uma produção nacional. Pelo andar da carruagem, percebe-se que a receita promete ser repetida no ano que vem, com o agravante da internacionalização.

Quando Steve Bannon, o guru de Donald Trump, disse que Lula “é o esquerdista mais perigoso do mundo”, sinalizava o que pode vir por aí.

Em janeiro passado, o mesmo Bannon prometia “destruir a Presidência de Joe Biden no berço”. Referia-se à armação que resultou na invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro. Lá, essas coisas não mofam no Judiciário. A turma que armou a insurreição está respondendo pelos seus crimes, e muitos deles já admitiram suas culpas e apenas esperam as sentenças dos juízes.

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terça-feira, 28 de setembro de 2021

BOIADAS E JABUTIS

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo

Com o País distraído com crises e as bobagens do presidente, a Câmara passa boiadas e jabutis

Com tantas crises, declarações e revelações absurdas, o foco nestes mil dias de governo Jair Bolsonaro foi no presidente e no governo. Enquanto isso, variadas boiadas continuaram passando pelo Congresso, especialmente pela Câmara. A mais nova foi uma drástica mudança num dos eixos do combate à corrupção: a Lei de Improbidade.

Assim como teve de devolver ao Planalto o pedido de impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes e o projeto mexendo com o Marco Civil da Internet, o Senado teve de agir firmemente também para evitar audácias da Câmara: distritão, volta das coligações partidárias e novo Código Eleitoral já para 2022. O atual desafio é evitar que a Lei de Improbidade se transforme na festa da impunidade.

O projeto da Câmara seria aprovado a toque de caixa pelo Senado na semana passada, não fosse uma articulação para uma audiência pública nesta terça-feira, 28/9, antes da votação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na quarta-feira de manhã, e pelo plenário, já à tarde. Assim, rapidinho.

Toda lei é sujeita a mudanças e adaptações à realidade e à dinâmica da política e do próprio País. Foi assim, com bons propósitos, que surgiu o projeto para atualizar a Lei de Improbidade, debatido em 14 audiências públicas por dois anos e meio na Câmara. Ele, entretanto, foi trocado por um substitutivo, aprovado em surpreendentes oito minutos, em junho deste ano, unindo de bolsonaristas a petistas.

Os contrários ao substitutivo conseguiram retirar um “liberou geral” para o nepotismo, mas muitos bois, ou jabutis, como se diz em Brasília, permaneceram. Não para preservar o erário e as boas práticas administrativas e éticas, mas para criar uma blindagem, ou anistia, para os responsáveis.

São três blocos de improbidade na atual lei. Enriquecimento ilícito, dano ao patrimônio público e violação aos princípios da administração pública: impessoalidade, legalidade, publicidade e moralidade, previstos na Constituição. No texto em pauta, porém, só os atos especificados na lei, um por um, serão enquadrados. O que não for citado não vale, como “carteirada” ou furar fila de vacinação, entre tantos outros.

“As maneiras de violar esses princípios são infinitas e é impossível relacionar todas as possibilidades na lei. É por isso que são citados exemplos, referências”, diz o procurador Roberto Livianu, do Instituto Não Aceito Corrupção, ativista contra o substitutivo da Câmara e um dos participantes da audiência pública de terça-feira.

A justificativa dos deputados foi conter promotores que extrapolam no uso da lei, tratando como criminosos gestores públicos que cometam erros administrativos por falta de experiência ou de assessoria. Sim, isso acontece, mas é preciso conter esses promotores, não matar a lei. A Lei de Abuso de Autoridade existe para isso.

O relator no Senado é Weverton Rocha (PDT-MA), alvo de processo por... improbidade. Ele não acatou nenhuma emenda e não mudou uma vírgula no texto da Câmara que, em resumo, estabelece que quem desvia dinheiro público ou causa dano ao patrimônio sem dolo, sem má-fé, coitadinho, está perdoado.

O prazo para investigar quebras de sigilos, provas do exterior e, eventualmente, vários envolvidos será só de seis meses. Mais: a prescrição também é rapidinha, até retroativa; o tempo de pena máxima aumenta, mas acaba o tempo mínimo, que era de oito anos. Cereja do bolo: os procuradores terão de pagar honorários se as ações forem consideradas descabidas.

Se a Câmara não conseguiu criar a “Lei Moro”, para impedir a candidatura do ex-juiz Sérgio Moro em 2022, foi bem-sucedida para transformar a Lei de Improbidade em pá de cal da Lava Jato, a maior operação de combate à corrupção da história. Em vez de ajustes, de meio-termo, joga-se tudo no lixo. Quem comemora?

COMENTARISTA DA RÁDIO ELDORADO, DA RÁDIO JORNAL (PE) E DO TELEJORNAL GLOBONEWS EM PAUTA

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BRASIL DAS MEMORÁVEIS CRÔNICAS DE JOEL SILVEIRA É O MESMO BRASIL DO TWITTER

Karla Monteiro, Folha de S.Paulo

Poucos dias antes do propalado 7 de Setembro, comecei a reler, ao mesmo tempo e ao léu, três livros de Joel Silveira (1918-2007): “Na Fogueira”, “A Feijoada que Derrubou o Governo” e “A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista”. O primeiro, um livro de memórias, e os dois outros, coletâneas de textos publicados originalmente na imprensa.

Como está atual, up-to-date, o velho Joel, o repórter-víbora, segundo Assis Chateaubriand. O Brasil de suas memoráveis reportagens e crônicas é praticamente o mesmo Brasil do Twitter. Na essência, na alma, porque o elenco piorou um bocado.

Por exemplo: a cena do jantar dos homens brancos e ricos que riem à toa, na casa do empresário Naji Nahas, poderia muito bem se encaixar na reportagem “Grã-finos em São Paulo”, de 1943.

Enquanto os presos políticos abarrotavam os porões do Estado Novo e a censura comia solta, “o milionário Lafer, o milionário Pignatari, o milionário Matarazzo, o milionário Crespi” bebiam uísque e jogavam cartas no salão do Automóvel Club, “um lugar triste como um cemitério”. A guerra que devastava a Europa, aliás, estava sendo ótima para os negócios. Nunca as fábricas haviam trabalhado tanto.

“Dia e noite os motores não param. Há uma turma de operários que passa o dia inteiro diante dos motores. Quando chega a noite, a turma vai embora, muito cansada, e chega outra que se cansará até de madrugada”.

No mordaz perfil da elite brasileira, o teso Joel, então com 25 anos, afundara os sapatos gastos em tapetes fofos, comera com talheres de prata, ouvira barbaridades: “Os rapazes se vestem muito bem e telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lelé”.

Ele não descreve, mas posso imaginar os vasos chineses e o papel de parede verde-musgo adornando os ambientes neoclássicos. Segundo Joel, o grã-finismo paulista “não perdoa a Semana de Arte Moderna”.

“São criaturas repletas de antepassados, aqueles senhores heroicos e sem muitos escrúpulos, que rasgaram as matas de São Paulo. Morreram todos, estão enterrados na história, mas deixaram um presente régio: um cartão de visitas.”

Hitchcock da imprensa

Ao longo da profícua carreira, Joel Silveira escreveu pelos cotovelos. São mais de 20 livros, que reúnem reportagens, perfis, crônicas, entrevistas e memórias. Sergipano de Lagarto, desembarcara no Rio de Janeiro no começo de 1937, aos 19 anos, sonhando com as rodas literárias da capital.

Primeiro, trabalhou na Dom Casmurro, revista de Brício de Abreu e Álvaro Moreyra. Em seguida, integrou o time de ouro de Diretrizes, revista fundada por Samuel Wainer, em 1938, que abrigou nomes como Rubem Braga, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queiroz. Adalgiza Nery, Edmar Morel, Moacir Werneck de Castro, Otávio Malta, Carlos Lacerda, Augusto Rodrigues, Nassara.

Fora em Diretrizes que Joel Silveira virou repórter, convencido por Samuel Wainer. Queria mesmo era escrever contos, romances. Dono de um talento raro, acabou por juntar as duas coisas. Antes mesmo de Gay Talese, Truman Capote e Norman Mailer entrarem na moda com o “new journalism”, ele já dava seus pulos no jornalismo literário.

Usando recursos da ficção, abusando da metalinguagem, dos flashbacks e, principalmente, colocando-se na cena, como um Hitchcock da imprensa, legou-nos um interessante mosaico do século 20.

Joel Silveira estava lá, em todos os momentos importantes do país —e do mundo. E escreveu sobre todos eles. Em “O Diabo é Testemunha: Não Foi um Passeio” conta a vida no front da Segunda Guerra.

Em “A Feijoada que Derrubou o Governo” narra, a partir de um almoço na casa de um ministro de Jango, os bastidores de 1964. Em “Maio de 1952: O Integralismo Faz Tricô” discorre sobre a melancólica aposentadoria do fascismo. No texto intitulado “A Renúncia —ou a Verdade de Cada um. Inclusive a dele, Jânio”, bate um papo com o ex-presidente sobre o mistério de 1961.

Entre os muitos perfis da sua lavra —registrou encontros saborosos com todo mundo que importava, da política às artes— talvez o mais sensacional seja o de Antônio Carlos, o cacique do Partido Republicano Mineiro (“Os Andrada nunca se preocupam com dinheiro”), uma síntese dos velhos políticos e da velha política brasileira.

“Durante mais de quarenta anos de vida política, é possível que o presidente Antônio Carlos nunca tenha dito um não.”

A propósito: de Antônio Carlos, o autor da frase “façamos a revolução antes que o povo a faça”, a Michel Temer, os conservadores, que Joel costumava chamar de “liberalões que no fundo são reacionários”, perderam, e muito, em charme.

Na fogueira

O Sete de Setembro passou, com as ruas infestadas pelo “verde-amarelismo”. Nas memórias de Joel Silveira, volta e meia, eles saltam das páginas, os patriotas, uma gente que se apodera da bandeira do Brasil, do Hino Nacional, da moral, debatendo-se contra um comunismo irreal.

Diga-se de passagem, o roteiro vem se repetindo história afora: os golpistas da vez levantam a bandeira da moralidade pública, a classe média compra e a democracia vai para as cordas. Como bem dizia Paulo Francis, o brasileiro é, sobretudo, o sujeito que gosta de chamar o outro de ladrão.

Quantos golpes testemunhou o Joel? No duro, três, se considerarmos a Revolução de 30 um golpe, o que, de fato, foi. Portanto, 1930, 1937 e 1964. Em 1945, ele vira Getúlio Vargas cair. Em 1950, voltar, nos braços do povo. Em 1954, o tiro no peito, que, no fim das contas, serviria para puxar a toalha do banquete dos golpistas, que acabariam por triunfar em 1964.

Um ano depois, em 1955, o contragolpe do marechal Lott, garantindo a posse da vitoriosa chapa JK-Jango. Em 1961, Leonel Brizola levantara o país contra a tentativa de quartelada que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros. Enfim... a lista é praticamente infinita, se contarmos as investidas mal sucedidas.

Se tem uma coisa que o livro de memórias do Joel Silveira ensina é que os golpes de Estado sempre vêm acompanhados de surpresa. Mesmo debaixo da tempestade de indícios, ninguém acredita.

Lembrai-vos de 37, dizia-se à época. Desde 1934, com a promulgação da nova Carta, a mais breve da nossa história, Vargas vinha governando como presidente constitucional, após três anos do governo provisório instaurado pela Revolução de 30. Porém, a partir da Intentona Comunista, de 1935, com a desculpa de combate aos bolchevistas, já passara a abocanhar nacos da lei.

No fim da tarde de 10 de novembro daquele 1937, com os amigos Daniel Bastos e Wilson Lousada, Joel partira para um convescote no elegante apartamento de Brício de Abreu, no Catete. O programa da noite era ouvir o pronunciamento do presidente. O dia havia raiado com tropas na rua e a notícia da morte precoce da Constituição de 34. No lugar, a Constituição de 1937, logo apelidada de “Polaca”. Escrita por um homem só, Francisco Campos, o Chico Ciência, a Carta era inspirada na fascista Constituição de Abril, da Polônia.

“Pausado, paternal, Vargas explicava: havíamos sido salvos do caos iminente, do desmoronamento do estado, da anarquia, da hidra comunista. Enfim, da iminente catástrofe que, não fosse detida, nos levaria sem dúvida à perdição eterna. Mas que todos nós, trabalhadores do Brasil, ficássemos tranquilos. Ele, Vargas, e mais a sua guarda pretoriana, passariam a velar por nós”

Inventado o autogolpe e instaurado o Estado Novo, o que mais podia se fazer? Beber a saideira no “49”. Enquanto iam jogando conversa fora, na caminhada entre o Catete e a Lapa, Joel só pensava em Brício de Abreu: “Não nos serviu nem uma bolacha”. De estômago vazio, o conhaque caíra-lhe como uma bomba. Mal conseguia andar em linha reta.

"Não resta dúvida: já estamos em plena ditadura".

"Não me diga!"

"Vai ser uma merda total"

"Com a porcaria do Congresso abrindo as pernas para tudo, o que se poderia esperar?"

"E agora?"

"Sei lá."

Karla Monteiro  - Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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O QUE SÃO MAIS FALSOS: AS AMEAÇAS OU OS ARREGOS DE BOLSONARO ?

Andrei Meireles, OS DIVERGENTES

Desde o primeiro dos mil dias de seu desgoverno, o presidente Jair Bolsonaro só pensa em salvar a própria pele e a do seu clã e agregados cada vez mais expostos em múltiplos escândalos com dinheiro público. Assim, cada uma de suas principais promessas de campanha como o combate à corrupção, a ruptura com o fisiologismo da “velha política”, e uma política econômica vendida como liberal, foram virando pó ao longo desse período.

O que sobrou pela ótica dos que influenciam seus tortuosos pensamentos foi uma delirante crença em um golpismo travestido de revolucionário. Trocou ou foi trocado por referências em sua largada no governo como os ex-ministros Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta e os generais Santos Cruz, Fernando Azevedo, e Edson Pujol. Viraram entraves à suposição de poderia se livrar e aos seus das punições previstas no Código Penal para crimes contra a administração pública. Optou por compartilhar o poder com os aproveitadores de todos os naipes e os profissionais desse ofício do Centrão. Seu clã e agregados se sentiram em casa.

Virou uma farra. Passaram a pipocar falcatruas por todas as partes. As mais vistosas — e escandalosas — são os astronômicos golpes no Ministério da Saúde, com o agravante de ocorrerem na maior tragédia sanitária da nossa história. A cada pena descoberta pela CPI da Pandemia no Senado descobre-se um galinheiro de corrupção. Alguns foram criados na gestão Bolsonaro, outros herdados e assumidos de administrações passadas — mesma origem do Mensalão e da Lava Jato.

Com a popularidade de Bolsonaro se esvaindo, cada vez com mais apetite seus parceiros no governo tentam faturar em nacos do poder que ajudem suas carreiras políticas e/ou aumentem seu patrimônio pessoal. E o clã Bolsonaro vai nessa mesma balada. A ilusão que vem de outros tempos, como o delírio de Romero Jucá de dominar tudo, inclusive o STF, segue de vento em popa. Nos bastidores da chamada corte brasiliense, em que pontifica uma matilha sedenta de dinheiro público, é de novo tempo de festa.

Mas na gangorra de sempre, o escracho de hoje pode ser punido amanhã. Bolsonaro realizou o sonho de todos os corruptos das últimas décadas que é por sob suas asas e de sua trupe os órgãos estatais de controle do dinheiro público — o Ministério Público, a Polícia Federal, o Coaf e por aí afora. Fez assim uma espécie de aliança tácita com as mais tradicionais forças políticas, inclusive PSDB e PT, para que todos escapassem dos escândalos em que foram envolvidos.

Todos agora se proclamam inocentes de denúncias em julgamentos anulados em série, a partir da porteira aberta para o ex-presidente Lula, sem que as provas fossem apreciadas. Os políticos e os poderosos no Brasil sempre tiveram bons caminhos para a impunidade. O Mensalão e, principalmente, a Lava Jato foram exceções históricas. Balançaram o establishment político e econômico. O troco, quem diria, veio pela mão de Bolsonaro em suas barganhas para livrar seu clã. Jucá virou vidente.

Ao mesmo tempo em que abria a porteira para a corrupção, Bolsonaro iludiu seus seguidores com a cascata de que estava preparando um golpe militar para acabar com a roubalheira em Brasília. Até tentou por essa carta na mesa no 7 de setembro — avançou o sinal, ficou com medo de ser destituído, e pediu arrego, na tal cartinha inspirada por Michel Temer. O que menos importa é como estão se remoendo os desiludidos com o suposto golpe bolsonarista.

Mais relevante de que esse recuo de Bolsonaro seja ou não para valer é o que o motivou. Não há menor dúvida que, no seu desespero pessoal e político, se pudesse Bolsonaro daria o tal golpe. Sua aposta nas manifestações em Brasília e em São Paulo não deram o resultado que esperava. Não houve motim em nenhum quartel das Forças Armadas e nem das policias militares em todo o país. Ele sentiu o tranco. O que ainda tinha de apoio nas elites política e econômica ameaçou pular fora. Os militares simplesmente ignoraram os apelos dos fanáticos bolsonaristas.

Ninguém se iluda que a cartinha de Michel Temer entrou com dificuldade goela abaixo de Bolsonaro. Por mais que insinue que houve um acordo secreto com o ministro Alexandre de Moraes, isso soa falso até para as emas do Palácio da Alvorada. A disfarçada rendição prosseguiu na entrevista à revista Veja, em que jura ser zero a chance de melar as eleições, não só pelo conteúdo, mas também pelo fato de depois de tanta turbulência ele tentar se explicar em um veículo da tão criticada mídia tradicional.

Nessa confusa espécie de mea-culpa, nessa segunda-feira (27), na solenidade no Palácio do Planalto para comemorar os 1000 dias de seu governo, Bolsonaro ensaiou outro pedido desculpa para quem usou e abusou em seu blefe de golpe militar: “As Forças Armadas estão aqui. Elas estão ao meu comando, sim, ao meu comando. Se eu der uma ordem absurda, elas vão cumprir? Não. Nem a mim e nem a governo nenhum”.

A intensa pregação golpista e as recentes juras de amor à democracia, além de blefes, soam como uma tentativa de Bolsonaro de conseguir uma saída para si e seu clã dos imbróglios que se meteram na esfera cível e criminal. É mais desespero que valentia.

A conferir.

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FARSA CINEMATOGRÁFICA DO DELEGADO

Rogério Pagnan, Daniel Mariani, Folha de S.Paulo

Delegado Da Cunha pagava até R$ 14 mil mensais a equipe de filmagem, diz investigação

SÃO PAULO O delegado Carlos Alberto da Cunha, 43, o Da Cunha, manteve por cerca de um ano e seis meses uma estrutura particular para filmar operações e divulgar vídeos na internet que, conforme investigação da Corregedoria, teve custo mensal de até R$ 14 mil. O salário médio dele na polícia tem sido de R$ 10.470 líquidos.

Os membros da equipe de filmagem não pertencem às forças de segurança do estado, mas ainda assim alguns deles dirigiram viaturas, tomaram depoimentos em ocorrências, usaram roupas semelhantes à de policiais e ostentaram armas nas redes sociais. Além disso, usaram unidades policiais como estúdio para edição de vídeos do delegado.

As informações estão no relatório de indiciamento de Da Cunha sob a suspeita de crime de peculato, documento em poder da Justiça e do Ministério Público de São Paulo.

O policial é suspeito de usar a estrutura da polícia para atrair “seguidores, visando prestígio pessoal e vantagem econômica em sobreposição aos interesses do Estado”. Também é suspeito de simular prisões para gravar vídeos.

Procurado pela Folha, o delegado disse nesta terça-feira (28) que a reportagem deturpa os fatos e veicula mentiras com o objetivo de prejudicar a imagem dele.

A investigação sobre a equipe particular do delegado, que é uma celebridade na internet (tem mais de 3,6 milhões de inscritos no YouTube), teve início após a polícia receber denúncia anônima de um suposto ex-colaborador.

O delator encaminhou um documento com uma série de dicas de irregularidades a serem investigadas pela Corregedoria, além de fotos com a atuação de parte dessa equipe.

A maioria das imagens envolve dois funcionários de Da Cunha: Gabriel Yoshi Siqueira Correia, conhecido como Gafanhoto, e Cristiano Pereira Novaes, também chamado de Cabelo. Nenhum dos dois é formalmente investigado no inquérito que apura suspeita de peculato.

As fotos mostram Correia dentro de viaturas, ostentando armas (entre elas um fuzil usado também por Da Cunha) e tomando depoimento em uma ocorrência policial. Um uma das imagens, está com o pé sobre a mesa da delegacia, enquanto verifica o conteúdo do celular.

Novaes está em menos imagens. Ele aparece dirigindo uma viatura da Polícia Civil, o que é proibido. Policiais ouvidos na investigação confirmam que Novaes conduzia o veículo.

Os policiais também afirmaram que era comum Da Cunha levar em viaturas oficiais os três funcionários particulares responsáveis por gravar vídeos de operações.

As irregularidades podem configurar, segundo policiais ouvidos pela Folha, usurpação de função pública e violação de sigilo funcional. Além disso, reforçam a hipótese de crime de peculato, já que Da Cunha estaria usando a estrutura da Polícia Civil para fins particulares.

Os dois funcionários citados foram ouvidos pela Corregedoria e confirmaram a ligação com Da Cunha.

Gabriel Correia disse que foi contratado pelo delegado no início de 2019 para cuidar de redes sociais. Disse que acompanhava operações policiais, filmava as ações com o celular de Da Cunha e, depois, fazia as edições na própria unidade policial.

Disse que ganhava R$ 1.000 mensais para realizar esses serviços, prestados até meados de 2020. Afirmou também que, de vez em quando, era-lhe solicitado "o preenchimento da qualificação das partes envolvidas”.

Cristiano Novaes, por sua vez, disse que conheceu Da Cunha quando era motolink da TV Bandeirantes e Record. Passou a trabalhar com ele em 2018, também fazendo edições de vídeos para o YouTube. Ele admitiu que chegou dirigir a viatura uma vez.

Disse que continua trabalhando com o policial e ganha R$ 2.000 mensais.

“O declarante passou a exercer as funções de assistente pessoal do delegado Da Cunha, sendo seu motorista particular, bem como ainda realizando edições de vídeos e gravações feitas pela equipe do delegado, composta por James e Gabriel”, diz trecho do depoimento.

O terceiro integrante citado por Novaes é o cineasta James Jay Mass Salinas que, segundo disse, passou a prestar serviços ao delegado por R$ 1.500 ao dia. Ele afirmou que, inicialmente, filmava uma vez por mês as operações policiais, mas, depois, “chegou a efetuar quatro gravações em um mês”.

Os valores chegavam, assim, a R$ 6.000 mensais. Ele deixou a equipe em maio deste ano.

Por fim, os policiais da Corregedoria ouviram um quarto integrante da equipe, Alexandre Moreno, que não participava dos trabalhos de campo. Segundo ele, como sócio da empresa de marketing digital, prestou serviços para Da Cunha desde o início do ano passado, na administração das redes sociais.

Ainda segundo Moreno, ele ajuda na divulgação de vídeos de operações principalmente no Instagram e no Facebook, "que eram gravados, produzidos e editados pelo cineasta James”. Disse que em novembro de 2020, com fim da empresa, passou a trabalhar diretamente com Da Cunha. Tem um salário de R$ 6.000.

À Folha, Moreno disse que deixou de trabalhar com o delegado. Também disse era apenas funcionário da empresa que trabalhava com marketing digital, e não sócio, como diz o documento da polícia.

Somando os valores mencionados pelos membros da equipe particular, Da Cunha chegou a desembolsar até R$ 14 mil ao mês para filmar e divulgar as operações policiais.

De acordo com o portal da Transparência do governo de São Paulo, o delegado teve nesse mesmo período (janeiro de 2020 a julho de 2021) um salário líquido mensal de R$ 10.470,61, em média –incluindo todos os benefícios, como 13º e adicional de férias.

Da Cunha foi afastado do cargo em julho deste ano, após uma série de investigações da polícia. Na sequência, pediu afastamento por dois anos sem salários e fliou-se ao MDB. Diz querer ser candidato a govenador de São Paulo.

A polícia de São Paulo apura, agora, a origem dos recursos do delegado para pagamento dessa equipe privada, já que o salário dele seria insuficiente. Segundo a investigação, Da Cunha gasta ainda cerca de R$ 9.000 mensais com aluguel e condomínio do apartamento em que mora.

Da Cunha também é alvo de inquérito do Ministério Público que apura possível enriquecimento ilícito. Para os promotores, o uso da estrutura estatal para proveito pessoal pode configurar improbidade administrativa. O delegado nega enriquecimento ilícito e já disse que até o IPVA está atrasado.

O delegado diz que não monetizava o conteúdo da internet até abril de 2021. Diz que tinha um bico de palestra sobre segurança de condomínios para empresa privada, da qual era sócio.

A polícia também investiga se o valor pago aos membros da equipe de filmagem era mesmo o que foi declarado por eles. Gabriel Correia, por exemplo, que afirmou receber R$ 1.000 mensais, tem Audi A3.

Em resposta enviada à Folha, o delegado Da Cunha disse que a reportagem utiliza informações sigilosas e que buscam prejudicar a imagem dele.

"Como de costume, a matéria que será veiculada se vale de depoimentos prestados em inquérito que corre em segredo de justiça, bem como novamente deturpa os fatos com o único intuito de continuar a prejudicar a minha imagem."

O delegado também afirma que busca medidas judiciais contra a Folha. "As informações veiculadas na matéria são mentiras e de forma alguma condizem com a realidade. Já estamos tomando as medidas judiciais cabíveis quanto ao acesso indevido da Folha de S.Paulo aos autos."

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O REINO DA MENTIRA

Gaudêncio Torquato, Blog do Noblat, Metrópoles

Há 44 anos, o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., falecido no dia 27 de junho de 2009, dando vazão ao sentimento da sociedade brasileira, foi convidado para ler a Carta aos Brasileiros69. O País abria as portas da redemocratização. Hoje, o Bra­sil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência, é responsável pela pior gestão da pandemia de coronavírus 19 do planeta, e faz um vergonhoso discurso na abertura da ONU, privilégio que, historicamente, cabe ao Brasil desde 1947.

Em quatro décadas, o País eliminou o chumbo que cobria os muros de suas instituições sociais e políticas, resgatou o ideário liber­tário que inspira as democracias, instalou as bases de um moderno sistema produtivo e, apesar de esforços de idealistas que lutam para pôr um pouco de ordem na casa, não alcançou o estágio de Nação próspera, justa e solidária. O país faz vergonha ao mundo. O baú do retrocesso continua lotado. Te­mos uma estrutura política caótica, incapaz de promover as reformas fundamentais para acender a chama ética, e um governo que prometeu acabar com a corrupção, amarrado às mais intricadas cordas da velha política, usando a extraordinária força de verbas e cargos para cooptar legisladores e partidos, principalmente do Centrão, transformando-se, ele próprio em muralha que barra os caminhos da mudança.

Não por acaso, anos depois o professor Goffredo confessava ter vontade de ler uma segunda carta, desta feita para conclamar pela reforma política e por uma democracia participativa, em que os cida­dãos votem em ideários, não em fulanos, beltranos e sicranos. O velho mestre das Arcadas, que formou uma geração de advogados, tentava resistir à Lei de Gresham, pela qual o dinheiro falso expulsa a moeda boa – princípio que, na política, aponta a vitória da mediocridade so­bre a virtude.

No Brasil, especialmente, os freios do atraso impedem os avanços. Vivemos com a sensação de que há imensa distância entre as locomotivas econômica e política, a primeira abrindo fronteiras, a segunda fechando porteiras. Olhe-se para os Poderes Executivo e Legislativo. Parecem carcaças do passado, fincadas sobre as estacas do patrimonialismo, da competitividade e do fisiologismo. Em seus cor­redores, o poder da barganha suplanta o poder das ideias.

Em setembro de 1993, na segunda Carta aos Brasileiros, o mestre Goffredo escolheria como núcleo a reforma política, eixo da democracia participativa com que sonha. Mas falta disposição aos congressistas para fazê-la. Em 2002, Lula da Silva também leu sua Carta aos Brasileiros, onde pregava uma nova prática política e a instalação de uma base moral. Nada disso foi cumprido. O país continuou a ser um deserto de ideias.

Sem uma base eleitoral forte, os entes partidários caíram na indigência, po­luindo o ambiente de miasmas. Até hoje, os eleitores esperam que as grandes questões nacionais recebam diagnósticos apropriados e propostas de solução para nosso pedaço de chão. Infelizmente, o voto continua a ser dado a oportunistas, operadores de promessas, poucos com ideários claros e correspondentes aos anseios sociais.

A utopia nacional resvala pelo terreno da desilusão. Nesses tempos da CPI da Covid, o Reino da Mentira, descrito pelo senador Rui Barbosa, nos idos de 1919, volta à ordem do dia: “Mentira por tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu. Nos inquéritos. Nas pro­messas. Nos projetos. Nas reformas. Nos progressos. Nas convicções. Nas transmutações. Nas soluções. Nos homens, nos atos, nas coisas. No rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Nas res­ponsabilidades. Nos desmentidos”.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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O DUELO SOBRE AS FAKE NEWS

Hélio Beltrão, Folha de S.Paulo

Após a rejeição pelo Congresso e STF da MP (medida provisória) que regularia o uso das redes sociais, o governo insiste e envia ao Congresso o PL (projeto de lei) 3.227, com conteúdo similar.

O texto visa impedir que as redes excluam conteúdo ou cancelem usuários sem “justa causa”. A definição de justa causa do PL abarca expressões ou atos que a legislação brasileira não protege (incitação de atos de violência, discriminação, disseminação de vírus).

A ideia central do PL é que toda e qualquer exclusão sem justa causa passa a ser ilegal. A intenção de proteger a liberdade de expressão é nobre, mas a solução prevista é problemática e pode limitar a expressão ao desincentivar o uso das redes.

As redes sociais funcionam como plataformas para a expressão de seus usuários, que as utilizam gratuitamente em troca da permissão de uso de seus dados. Elas estabelecem termos de uso que restringem certas expressões que a seu juízo sejam prejudiciais a seu modelo de negócio. Por exemplo, o Facebook bloqueia discursos hostis e odiosos pois “criam um ambiente de intimidação e exclusão”.

Outras redes possuem política similar. Seu modelo de negócios, que depende do crescimento de sua base de usuários, presumidamente se beneficia de um ambiente mais amigável.

O PL 3.227, ao impedir que as redes sociais apliquem seus termos de uso (supostamente em nome da liberdade de expressão), (a) interfere indevidamente na liberdade contratual entre a rede social e o usuário e (b) desmantela os modelos de negócio das redes.

O governo, caso o texto prospere, poderá aplicar multas de até 10% do faturamento e suspender a atividade da rede, quando esta remover conteúdo conforme seus termos de uso. A história demonstra que o aumento do controle estatal sobre as redes terá efeitos deletérios no debate público.

Me parece razoável que a sociedade salvaguarde direitos constitucionais caso determinada rede cresça demasiadamente e venha a funcionar menos como um clube e mais como a única e global praça pública de debates. Mas o ambiente aberto e de livre competição na internet não tem permitido a monopolização.

O Orkut, pioneiro em redes, desapareceu. O Facebook já perdeu boa parte do seu encanto. O Instagram é ameaçado pelo TikTok. E em geral a livre circulação de opiniões e debates tem migrado para o Whatsapp, que não tem moderação e funciona como a internet livre.

Pior que o PL 3.227, apenas o PL 2.630, já aprovado no Senado e em análise na Câmara. Tema desta coluna no ano passado, o projeto propõe coleta massiva de dados e induz a censura privada. A intenção é coibir as fake news.

O termo fake news é vago e suscetível a aplicação arbitrária e discriminatória. O jornalista Merval Pereira admitiu na rádio CBN em 2 de setembro que o conteúdo do documentário da Brasil Paralelo sobre o STF não contém mentiras, mas seria fake news porque "a montagem é muito desfavorável aos ministros". Então fake news é aquilo que incomoda o jornalista?

A lei brasileira coíbe fraude, calúnia, difamação, e injúria, a posteriori, e tem como ponto nevrálgico o direito de resposta. Não coíbe edição, nem curadoria, nem permite a censura prévia.

A sociedade deve calar a tese da Terra plana? Deve proibir a propaganda política auto-interessada? Deve censurar meias-verdades? Suprimir as fake news em vez de combatê-las com argumentos aumentará a polarização e prejudicará o debate público.

Os dois extremos do espectro ideológico querem controlar a expressão na sociedade por motivos eleitoreiros. Lula tem obsessão pelo tema, e o PL 2.630 dos deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tabata Amaral (PSB-SP) é empurrado pela esquerda. Os bolsonaristas contra-atacam com sua própria regulação no PL 3.227. É estatismo por todos os lados!

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A CONSTITUIÇÃO DE PERNAS QUEBRADA

José Sarney, OS DIVERGENTES

Luís Maklouf, que escreveu um dos melhores livros para se entender a Constituição e explicar como ela teve uma vida até agora completamente híbrida e incoerente, começa o seu livro 1988: Segredos da Constituinte dizendo que é difícil e quase impossível contar uma história tantas vezes contada.

Seu livro é um conjunto de depoimentos dos constituintes mais importantes, daqueles que a fizeram, escreveram e receberam a chuva de lobistas e de seus interesses corporativos. Esse fato dá a noção de como foi desorganizado o trabalho da Assembleia e como faltou a ela a capacidade de ter uma visão de conjunto da Constituição.

O livro abre com as declarações do grande Afonso Arinos, um dos maiores pensadores do Brasil, que afirmou: “Nós estamos navegando na bruma, estamos criando nosso próprio caminho no meio da névoa. Não temos aqueles aparelhos que indicam que a névoa está para se dissipar ou que ela pode ser vencida, como os aeronautas. Estamos sendo aeronautas a pé.” Afonso presidira a Comissão de Estudos Constitucionais que Tancredo Neves prometera criar para fazer um anteprojeto de constituição —, repetindo o papel de seu pai na famosa Comissão do Itamaraty, que fez o anteprojeto da Carta de 1934.

Tudo isso pela relutância de Ulysses em aceitar oficialmente o anteprojeto, a que afinal recorreram plagiando em momentos de escuridão. Mas não só grandes nomes, como Afonso Arinos, constataram as dificuldades da ausência de um anteprojeto. Gastone Righi, no momento da partida, constatou: “Somos a figura do navio que zarpa de um porto sem ter plotada sua rota, sem rumo estabelecido e sequer destino escolhido.” (Depoimento a Maklouf.)

Sem ideal nem rumo partiram para discutir do princípio ao fim dos trabalhos o tempo do meu mandato, que era de seis anos e eu, ingenuamente, achando que o efeito seria o mesmo da Constituição de 1946, quando o Presidente Dutra, que tinha um mandato, como o meu, de seis anos, abdicou de um e foi recebido como um gesto de grandeza. O meu gesto de abrir mão de um ano de mandato foi considerado ambição, por uma Constituinte cheia de candidatos à Presidência da República, a começar pelo Presidente Ulysses. E criou-se a maior fake news de nossa História: de que meu mandato era de quatro e eu consegui aumentar para cinco anos!…

Assim, os problemas que vivemos em mais de trinta anos de existência da Constituição decorrem de sua falta de unidade e hibridez, parlamentarista e presidencialista, de seu detalhismo e da ausência de um objetivo comum, um foco de coerência. Perdemos uma oportunidade única: fazer uma nova Carta que assegurasse novos tempos, inovadora e moderna, com o objetivo de ver um grande futuro e não fosse uma lanterna na popa, olhando para o passado.

A consequência é esta Constituição que já ensejou dois processos de impeachment — quase três, pois o de Michel Temer chegou a ser votado na Câmara dos Deputados — e é vista como de pernas quebradas.

José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras (Artigo publicado também no Jornal O Estado do Maranhão)

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segunda-feira, 27 de setembro de 2021

DELÍRIO TROPICAL

Dora Kramer, VEJA

A cada episódio do espetáculo de desmoralização da Presidência da República estrelado por Jair Bolsonaro há dois anos e oito meses, as pessoas se perguntam qual é a razão de o presidente insistir na marcha da própria insensatez. 

Buscam-se variadas motivações: na vocação ao autoritarismo, numa presumida esperteza bem planejada, em algum déficit no recôndito do cérebro presidencial ou mesmo na sinalização para um golpe de Estado

Isoladamente, nenhuma delas satisfaz por ausência de razoabilidade fática na execução dos propósitos quaisquer que sejam eles. O conjunto dessas características sem dúvida presentes nos atos e palavras do presidente, e que por isso justificam as suspeitas, dá notícia de uma personalidade dada a delírios. 

O maior dos produtos da confusão mental de Bolsonaro é a ideia de que nessa toada chegará à reeleição. O que mais se ouve por aí no rol de tentativas de explicar a série de tiros no pé é que ele  fala “para sua bolha”. Assim a maior parte das análises sobre o espantoso discurso na abertura da Assembleia-Geral da ONU qualificou a passagem do presidente por Nova York. 

Não é novo o fato de presidentes brasileiros perderem a chance de falar ao mundo e preferirem se dirigir à província. José Sarney, Luiz Inácio da Silva e Dilma Rousseff já fizeram isso, mas nenhum deles atraiu críticas nem obteve o destaque internacional alcançado pelo atual presidente, até porque o simples envio de “recados” internos não interessam ao mundo. 

Portanto, parece apressado e um tanto equivocado resumir a atuação desastrosa à intenção de fidelizar uma base eleitoral de convertidos, que, inclusive, diminui de tamanho a cada contagem dessa adesão nas pesquisas. Jair Bolsonaro teve o apoio de 55% do eleitorado em 2018. Hoje é aprovado por 22% dos consultados na última apuração do instituto Datafolha, cuja mostra revelou que apenas 11% estão com ele para o que der e vier.

O que, então, poderia pensar o presidente em ganhar com a desastrosa passagem por NYC? E aqui a referência não é apenas ao discurso eivado de mentiras do começo ao fim, todas desmentidas interna e externamente, de A a Z, ponto a ponto. O desastre materializou-se na exibição do manual de estilo ao qual os ministros da Saúde e das Relações Exteriores acrescentaram  alguns tópicos com suas chocantes linguagens de sinais. 

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TRÊS LIÇÕES DA ALEMANHA

Mathias Alencastro, Folha de S.Paulo

Terminou a campanha eleitoral na Alemanha e, pela primeira vez, o partido que sair na frente terá de encontrar pelo menos dois outros aliados para formar o governo. O processo de formação de um novo governo deve se prolongar por alguns meses, mas um cenário de impasse a longo prazo, como nas vizinhas Holanda e Bélgica, parece descartado.

A popularidade de Olaf Scholz, apontado em todas as sondagens como o mais preparado para assumir o cargo, assim como o desejo de alternância depois de 16 anos de governo CDU, confere um ascendente à SPD nas negociações com potenciais aliados. O resultado do pleito também traz ensinamentos para todas as democracias liberais acometidas pela ascensão da extrema direita.

A primeira é a resiliência da centro-esquerda. A SPD defendeu o programa mais progressista das últimas décadas, mas apresentou um candidato sóbrio e pragmático, que foi vice-primeiro-ministro e ministro das Finanças nos últimos anos.

A pandemia, que muitos esperavam ser um prato cheio para os populistas, acabou reforçando as credenciais dos candidatos versados na administração do Estado. Dada como morta depois da debacle do Partido Socialista francês em 2017, a centro-esquerda está voltando a contar na Europa, com governos da Península Ibérica à Escandinávia, passando agora, provavelmente, pela Alemanha.

A segunda é a dificuldade da direita tradicional diante da emergência da extrema direita. A toda-poderosa CDU não conseguiu recuperar o eleitorado perdido para a AfD, que se manteve acima dos 10% e consolidou sua presença em nível regional. Exceção feita ao Reino Unido, onde Boris Johnson conseguiu federar as direitas em torno do brexit, o campo conservador parece irremediavelmente dividido nas democracias liberais.

Muito se fala do drama da renovação da esquerda, mas a origem da crise de governabilidade europeia tem sua origem no outro lado do espectro ideológico.

A terceira dinâmica é a emergência da crise climática como tema de campanha. De acordo com todos os cenários, os Verdes devem se afirmar como a terceira maior força política e regressar ao governo, depois da experiência bem-sucedida dos anos 1998-2005 liderada pelo lendário Joschka Fischer, àquela altura ministro das Relações Exteriores.

Vencedor destacado na população abaixo de 50 anos, o partido está bem posicionado para encabeçar o governo nos próximos dez anos.

Para o Brasil especificamente, o surgimento da SPD e dos Verdes deve reforçar o ativismo internacional nas questões democráticas e ambientais da Alemanha, sempre muito contida nos tempos de Merkel.

Martin Schultz, um dos principais quadros da SPD e forte candidato a assumir uma pasta ministerial em uma eventual coalizão liderada pelo partido, foi até Curitiba para encontrar o ex-presidente Lula na cadeia. Quanto aos delinquentes neonazistas que Bolsonaro recebeu no Alvorada, eles continuarão sendo irrelevantes no futuro Parlamento.

Esses pequenos sinais também devem ser levados em conta na hora de especular sobre a reação da comunidade internacional em caso de contestação do resultado das presidenciais brasileiras em 2022.

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MARCO TEMPORAL

Denis Lerrer Rosenfield, O Estado de S.Paulo

A atual rediscussão sobre o marco temporal de demarcação de terras indígenas sofre de um viés ideológico incontestável que nada tem que ver com uma suposta injustiça originária que estaria sendo, assim, reparada. Tal como está sendo apresentada, é como se estivéssemos diante de um novo conflito entre bolsonarismo e anti-bolsonarismo, atraso versus progresso, quando se trata, na verdade, de uma questão constitucional, que já deveria estar resolvida segundo a Constituição de 1988. O politicamente correto se regozija, trazendo imensa insegurança jurídica ao País. Há, aqui, uma infeliz sobreposição temporal que termina obscurecendo a questão central.

Preliminarmente, observe-se que nossa atual Constituição, em seu artigo 231, estabeleceu claramente o marco temporal como sendo aquele quando de sua promulgação, reconhecendo territórios indígenas às tribos que, no presente, então ocupavam aquelas terras. Não se trata de qualquer ocupação passada segundo uma autoatribuição. Quando do julgamento posterior do caso da Raposa Serra do Sol, em 2009, tal posição foi referendada com um justo acréscimo, a saber, que seriam também reconhecidos como territórios indígenas os que estariam, naquela época, em conflito ou contencioso, o que configuraria um esbulho persistente. A intenção foi a de evitar que expulsões recentes destituindo os indígenas de suas terras dessem origem a um direito. Dito isso, o assunto deveria estar resolvido e pacificado, não fosse o descontentamento dos perdedores, que, desde então, lutam contra a própria Constituição. É a velha história jurídica brasileira: os perdedores abusam de recursos até serem atendidos.

Não é propriamente adequado que o Supremo Tribunal Federal (STF) se debruce sobre uma questão pacificada do ponto de vista jurídico só porque a sua composição mudou e os descontentes se agitam com apoio de um setor importante da mídia. Entra um novo ministro e pretende tudo mudar, como se o mundo devesse ser reinventado, como se os ministros anteriores tivessem julgado sem nenhum conhecimento. É um desrespeito flagrante com os seus antecessores. É a balbúrdia como princípio hermenêutico. O Supremo deveria ser supremo, definitivo em suas decisões, sob pena de deixar de sê-lo tornando-se fonte permanente de conflitos. O princípio não poderia ser nova composição, nova decisão.

Para ter uma ideia mais precisa dos territórios indígenas no País, atente-se para os números: 1) 14,1% do território nacional é constituído por terras indígenas, correspondendo a 119,8 milhões de hectares, concentrados sobretudo nas Regiões Norte e Centro-Oeste; 2) se não houver nenhum marco temporal que imponha um limite, as áreas reivindicadas e em estudos remontariam a outros 117,12 milhões de hectares, o que corresponderia a 27,8% do território nacional, situados principalmente nas Regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, áreas de intensa atividade agrícola e pecuária, além de centros urbanos.

Aliás, se formos seguir à risca a tese dos “direitos originários”, as desapropriações deveriam começar pelas cidades de Salvador e Rio de Janeiro, com os prédios sendo demolidos e os proprietários sendo, segundo a atual regra, expropriados, o que ocorre usualmente no mundo rural. Afinal, foi lá que aportaram primeiro os portugueses! O absurdo deste raciocínio mostra bem ao que pode levar, ao seu extremo, a anulação do marco temporal de demarcação de terras indígenas. 

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população indígena é constituída por 896 mil índios, e 502 mil vivem em territórios indígenas e 315 mil fora deles, boa parte em zonas urbanas. Nestas não há problema fundiário, mas de política social, porque sofrem eles de preconceito e com educação e saúde precárias. Urge que o Estado intervenha, aqui, efetivamente, não ideologizando um problema grave de injustiça. Logo, em torno de 500 mil indígenas estariam reivindicando 27,8% do território nacional. Não há algo errado nisso?

No que diz respeito à zona rural, os conflitos têm se multiplicado, opondo agricultores com posse e/ou títulos de propriedades, outorgados pelo próprio Estado, e grupos de índios que reivindicam o que consideram também como seus direitos. Estaríamos diante de uma oposição de direitos que poderíamos considerar como justos de ambos os lados. Como resolver? A solução seria simples, não fossem os interesses dos que vivem dos conflitos. Muitas ONGs ficariam sem trabalho.

Com efeito, bastaria que, em caso de uma disputa, o Estado constituísse uma reserva indígena no local em questão, comprando terras, a valor de mercado, e indenizando os seus proprietários. Os agricultores teriam os seus direitos preservados e os indígenas, os seus igualmente assegurados. A justiça seria feita pelo atendimento a ambos os direitos. Na situação atual, há verdadeira expropriação, com os empreendedores rurais sendo abandonados à própria sorte.

Não se repara uma injustiça com outra injustiça!

*

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

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MOSTRANDO O DEDO PARA O MUNDO

Artigo de Fernando Gabeira

O jornal alemão Frankfurter Allgemeine disse que o Brasil mostrou o dedo para o mundo.

Era uma alusão à posição negacionista de Bolsonaro, que não apenas recusa a vacina, como quebrou o código de honra da ONU, que esperava um encontro de imunizados. Na verdade, a manchete era uma síntese da atitude de Bolsonaro com a do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que mostrou o dedo para manifestantes contrários ao governo.

A primeira coisa que me ocorreu é que durante muito tempo falamos do brasileiro como um homem cordial. É uma visão idealizada. No entanto jamais poderíamos suspeitar que uma delegação brasileira “mostrasse o dedo para o mundo na ONU”e que isso se transformasse na manchete de um dos principais jornais alemães.

Quando Bolsonaro defendeu a hidroxicloroquina, dizendo que a História e a ciência fariam justiça ao tratamento precoce da Covid-19, lembrei-me de seu esforço no Congresso para aprovar uma pílula contra o câncer, desenvolvida por um pesquisador de São Paulo. Bolsonaro tinha pela fosfoetanolamina a mesma empolgação e é incapaz de se perguntar hoje para quem a ciência e a História deram razão.

Tenho a impressão de que sua confiança na cura mágica cresce com a complexidade do nome do remédio. Certamente se interessou pela proxalutamida.

Dois dias depois do espetáculo de realidade paralela que ofereceu na ONU, Bolsonaro aparece com seis dedos na mão, numa imagem em suas redes sociais. Realmente, falam com os dedos, e essa linguagem foi bem captada dentro da van que levava Marcelo Queiroga. Ele mostrou o dedo médio, numa escolha claramente pornográfica. O chanceler Carlos Alberto França, diplomaticamente, optou pelos dois dedos que simulam uma arma, símbolo permanente do bolsonarismo.

Os seis dedos de Bolsonaro afirmam apenas como ele é mentiroso. Os dedos de Queiroga e do chanceler apontam para a essência da proposta bolsonarista: vulgaridade e violência.

Mas há algo que talvez os jornais estrangeiros não tenham captado. Embora Bolsonaro tenha sido eleito com a maioria dos votos, hoje seu governo é rejeitado por quase 70% da população.

Bolsonaro se orgulha de não ser vacinado. No entanto o Brasil, segundo algumas pesquisas, é o país com mais adesão popular à vacina.

Não vou cair na tentação de reafirmar pura e simplesmente a tese do homem cordial, mas o Brasil, na realidade, não pode ser confundido com o governo. A maioria dos brasileiros, longe de mostrar o dedo para o mundo, estende a mão para a humanidade. Sempre fomos um país solar, e alguns estrangeiros, cativados pela alegria de nossas festas populares, achavam até que a felicidade era um fator associado ao Brasil.

Certamente esgotaria meu espaço discorrer sobre as causas dessa transformação ou mesmo descrever como se gestou o ovo dessa serpente.

O impacto da passagem de Bolsonaro pela ONU me fez lembrar Peter Sellers no filme “Dr. Strangelove”. Bolsonaro falava de vacina, mas uma espécie de força estranha o levava a defender tratamento precoce e a combater passaportes sanitários. Havia um discurso feito para ele, e o braço rebelde que se levantava contra o consenso mundial, o pária que precisa comer pizza no passeio porque não pode entrar no restaurante.

Peter Sellers intepretava um personagem no filme de Stanley Kubrick com essa força contraditória em suas atitudes. De vez em quando, perdia o controle do braço e fazia uma saudação nazista. Se me lembro bem, em determinado momento, ele se levanta da cadeira de rodas e diz: “Mein Führer, posso andar”.

Não quero dizer com isso que Bolsonaro seja nazista. Seria banalizar uma grande tragédia da humanidade.

Seu novo espasmo numa entrevista a extremistas de direita da Alemanha:

—Algumas pessoas com Covid tinham comorbidade. Morreriam de qualquer jeito, dias ou semanas depois.

Mein Führer, consigo andar.

Artigo publicado no jornal O Globo em 27/09/2021

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'SE ENCONTRO NA RUA, SOCO ATÉ SER PRESO', RETUITOU JOSÉ DE ABREU

Tabata Amaral, Folha de S.Paulo

Tabata Amaral - Cientista política, astrofísica e deputada federal por São Paulo. Formada em Harvard, criou o Mapa Educação e é cofundadora do Movimento Acredito.

Quem você quer provocar com esse batom vermelho? Linda, não precisava nem abrir a boca. Mocinha, se inscreve no Big Brother, põe um silicone e tenta algo na TV ou na indústria pornô! Foi para Harvard, mas com certeza foi uma aluna medíocre lá. Adiantou pouco ter estudado em Harvard, informou-se até em astronomia, mas não se educou nem aprendeu a pensar. Você é muito burra, meu Deus, como pode. Meu anjo, cala a boca.

Pega o absorvente e manda para as tuas primas. Isso é carência. Anuncia filiação no mesmo partido do namorado. O amor é lindo e o prefeito fisga ela outra vez. Precisa de homem. Vai lavar a louça. Você é louca, filha?

Seu pai deve ter fugido ao ver a bosta de filha que se tornaria. Com uma filha desse tipo, entendo ele ter se matado. A pessoa sai do lixo, mas o lixo não sai dela. Volta pro esgoto!

Ninguém pode servir a dois senhores. Mocinha bancada por bilionários. Marionete de globalistas. Quem é o sugar daddy dela? Eu comia. Ela é a sugar girl daquele banqueiro lá. Ela gosta de ver outra coisa entrando. Puta, vadia, vagabunda, imbecil. Puta. Puta. Puta.

Depois desses votos contra o trabalhador essa puta ainda vem reclamar. Se eu encontro na rua, soco até ser preso. Se eu vejo essa mocreia na rua, não teria feminista para me segurar de quebrar a cara dela.

Daria uma surra nessa puta ordinária. Quando você vai sair na rua de novo? Horário lugar etc… queria fazer uma visita com meu canivete. Se eu encontro na rua eu dou dez facadas nessa cara de sonsa sua arrombada. Temos que dar a ela o tratamento de beleza mais efetivo do mundo, o taco de baseball na cara, tão eficiente que nem a mãe dela vai reconhecer depois!

Pois é, também não é fácil para mim ter que ouvir e ler tudo isso. E esses são apenas alguns exemplos, transcritos aqui sem modificações, das agressões que recebo diariamente. E não, esses ataques não vieram apenas de milicianos bolsonaristas. Vieram também de militantes de esquerda, filósofos, jornalistas, atores de novela, parlamentares e ministros.

Sei que essas ofensas e ameaças não estão restritas a mim. Todas as mulheres que ousaram se posicionar politicamente já sofreram alguma forma de violência política de gênero. Simone Tebet, Dilma Rousseff, Joice Hasselmann, Manuela D’Avilla, Marina Silva e Talíria Petrone. Marielle Franco.

Jamais seremos um país realmente democrático enquanto a política não for um espaço seguro, física e psicologicamente, para as mulheres. E isso só acontecerá quando tivermos tolerância zero com a intolerância, independentemente de quem seja o alvo ou o agressor. Porque respeito não é reverência, é regra mínima de convivência.

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VEXAME INTERNACIONAL

Almir Pazzianotto, OS DIVERGENTES

No plano internacional o Brasil insiste em permanecer irrelevante. É o sexto entre os maiores países do mundo em extensão e ocupa a quinta posição pelo número de habitantes. Apesar, porém, da área geográfica, do tamanho da população, da capacidade do agronegócio e da riqueza do subsolo, continua pobre e subdesenvolvido. Integra o clube do terceiro mundo.

Sonhamos com a possibilidade de nos tornarmos ricos. Invejamos o desenvolvimento da América, China, Alemanha, Coréia do Sul, Reino Unido, o padrão de vida da Noruega, Suíça, Finlândia, Suécia, Canadá, Japão. Não passamos, contudo, de uma grande Argentina, cujos sonhos de prosperidade foram torpedeados pelo culto ao peronismo.

A Organização das Nações Unidas (ONU) começou a ser projetada pelo presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, no final da segunda guerra mundial (1939-1945). Substituiria a malograda Liga das Nações fundada pelos países vencedores da primeira grande guerra (1914-1918). O objetivo seria evitar a eclosão da terceira grande guerra mediante a criação de assembleia mundial instalada em território neutro, onde as questões de segurança seriam discutidas e resolvidas pelas vias diplomáticas, sem recurso à luta armada. O principal órgão da ONU é o Conselho de Segurança, composto por 15 países membros, dos quais 5 em caráter permanente e 10 eleitos com mandato de 2 anos. São membros permanentes, com direito de veto, os Estados Unidos, Reino Unido, França, China e Rússia, sucessora a União Soviética. O Conselho de Segurança decide sobre a paz e a guerra, a intervenção e a não intervenção em conflitos externos e internos. As decisões que adota obrigam os demais. São agências da ONU a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Programa Alimentar Mundial (PAM), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O Brasil desempenhou papel de destaque entre os 53 países fundadores da ONU. Esteve representado pelo político e embaixador Oswaldo Euclides de Sousa Aranha, ou apenas Oswaldo Aranha (1894-1960). O elegante, culto, experiente e hábil diplomata sul-rio-grandense chefiou a delegação brasileira à I Sessão Especial realizada em abril de 1947, quando recebeu a honrosa incumbência de proferir o discurso de abertura.

Hoje a nossa presença na ONU perdeu importância. A participação nos debates sobre problemas mundiais é nenhuma. No governo Bolsonaro a arte da diplomacia está esquecida. As Forças Armadas existem para uso interno e pacífico. Na melhor das hipóteses, integrarão missões de paz em países pobres vítimas de violência interna ou dilacerados por disputas tribais. Lula e Dilma despertavam curiosidade por fugirem aos padrões normais. Desejavam vê-los. Jair Bolsonaro nem curiosidade atrai. O discurso de 12 minutos proferido no dia 21 foi ignorado. Endereçado aos idólatras do cercadinho, subestimou a qualidade do auditório e perdeu a ocasião para melhorar a imagem do País diante da opinião pública internacional.

Estamos próximos dos 600 mil mortos pela covid. A economia permanece travada. A inflação se aproxima de 10%. O Real é moeda desvalorizada. Os preços da carne, do arroz, do óleo comestível, do gás de cozinha, da gasolina, do diesel, da energia elétrica, sobem de forma descontrolada. Salários e vencimentos, porém, se encontram congelados. O governo legisla para arrecadar. São mais de 15 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados, uma quarta parte da população passa fome. A CPI da pandemia no Senado constata graves casos de corrupção na área da saúde, com o envolvimento direto de servidores públicos de alto escalão, lobistas e empresários. Tornou-se usual a prática da “rachadinha”. O pantanal e o cerrado são queimados. A Amazônia continua sendo devastada. Ouro, pedras preciosas, madeira nobre, são contrabandeados a preços vis para o exterior.

O presidente Jair Bolsonaro, todavia, insiste na postura negacionista. Recusa-se a usar máscara e a ser vacinado.  A perda de confiança do povo em S. Exa. é inegável. Podemos senti-la no ar, entre amigos e conhecidos. Aparentemente abandonou a ideia do golpe de estado. Não se sabe, contudo, até quando.

As eleições se aproximam. O cenário é favorável para político ou política jovem, inteligente, com ideias modernas, capaz de articular alianças em defesa do futuro. São 34 anos de crise. O Brasil e o povo não suportarão mais 4 anos de obscurantismo, obtusidade e abandono. Basta de ignorância e atraso.

Almir Pazzianotto Pinto é Advogado., Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

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RECESSÃO PARTIDÁRIA

Editorial Folha de S.Paulo

Apesar das ameaças de retrocesso aprovadas de afogadilho na Câmara dos Deputados, o Senado assegurou a continuidade do processo que deverá paulatinamente reduzir a quantidade absurda e disfuncional de partidos políticos no Brasil.

A câmara alta derrubou o dispositivo que permitia a volta das coligações partidárias em eleições de vereadores e deputados. Essas associações haviam sido proibidas de ocorrer pela reforma de 2017. A nova regra funcionou pela primeira vez no pleito municipal de 2020 e, graças à intervenção dos senadores, estreará em escrutínios estaduais e federais no ano que vem.

Por meio das coligações, siglas nanicas e de aluguel obtinham assentos nas câmaras legislativas parasitando agremiações maiores. A partir de 2022, a legenda que não conseguir acumular por conta própria o número mínimo de votos para conquistar uma vaga correrá alto risco de ficar sem representação.

Além da obrigatoriedade de concorrer sozinhas nas disputas proporcionais, as agremiações no ano que vem estarão sujeitas a uma cláusula de desempenho mais exigente para acessarem o generoso financiamento público e também a propaganda gratuita em rádio e TV.

Estarão privados dessas vantagens os partidos que não obtiverem ao menos 2% do total nacional de votos válidos para a Câmara dos Deputados. Essa votação terá de ser distribuída em ao menos nove unidades federativas, com no mínimo 1% dos escrutínios em cada uma delas. Passa no requisito também a sigla que eleger 11 deputados federais, distribuídos em pelo menos 9 unidades da Federação.

Asfixiadas pela falta de financiamento e visibilidade, e pouco capazes de obter vagas com as próprias pernas, agremiações menores tenderão a desaparecer ou ser absorvidas. Após alguns ciclos —a cláusula de desempenho continuará se elevando a cada pleito nesta década—, não será surpresa se restarem menos de 10 partidos na Câmara dos Deputados. Hoje há 24.

Provavelmente com essa perspectiva no horizonte, lideranças do DEM e do PSL articulam uma fusão entre as legendas. As duas agremiações somadas congregam 81 deputados federais (16% da Casa), contra 53 do PT, o segundo maior partido. Movimentaram juntas R$ 320 milhões em fundos públicos de campanha em 2020, contra R$ 201 milhões dos petistas.

A despeito do que aconteça nessa negociação entre siglas à direita, parece inequívoco que o estímulo das regras eleitorais, se mantidas, doravante será o da aglutinação.

O processo prova a eficácia da abordagem gradualista, antítese do que a Câmara e seu presidente tentam impingir ao país nas últimas semanas. Felizmente têm sido contrariados pelos senadores.

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MIL DIAS DE MALDADE

Helena Chagas, OS DIVERGENTES

Foi, desde o primeiro momento, um não-governo. Não só pelo aspecto administrativo, da falta de uma governança lógica, coerente, organizada. Foi, sobretudo, pela ausência de conexão e empatia com a maioria da sociedade brasileira. Desde o primeiro dia, Jair Bolsonaro, embora eleito por 58 milhões governa para um punhado de seguidores fiéis, um grupo de pouco mais de 20% que gosta de armas e de fake news, que não dá a mínima para a democracia e, no campo comportamental, tem ideias que tornam nossas avós modernas.

A maioria da população  brasileira, cerca de 80%, não tem hoje presidente da República. Não naquele sentido de uma liderança  que toma as dores na nação nas horas difíceis, zela (ou ao menos finge que) pelos mais vulneráveis, representa o interesse da maioria e tenta dar exemplos. Não temos nada disso que o brasileiro, de forma certa ou errada, busca num presidente simbolicamente: uma espécie de pai, protetor, líder.

O sujeito exótico que está sentado lá naquele gabinete do terceiro andar do Planalto padece de alguma enfermidade no campo da psiquiatria, aquela falta de empatia que, segundo os especialistas, caracteriza os psicóticos. No popular, pode-se dizer que é um sujeito mau. Não mostra compaixão com a dor e a tristeza de quase 600 mil mortos na pandemia e suas famílias, insiste em tratamento ineficazes –  e numa repulsa à vacina – que já provocaram milhares de mortes e podem causar mais.

Bolsonaro, todo mundo sabe, nunca se comoveu com a pobreza. Está querendo agora turbinar o Bolsa Família por razões unicamente eleitoreiras – e nem se dá ao trabalho de esconder isso.Está se lixando também para a educação, única porta de saída certa para as gerações que nascem na miséria. Além de todo o descalabro que desidratou programas de acesso ao ensino que vão das creches à universidade, o presidente vetou até a banda larga obrigatória para as escolas da rede pública.

Não falamos aqui do Bolsonaro despreparado para governar e do que desafia a democracia com ameaças golpistas, que nos trouxe o maior risco institucional desde a redemocratização do país, há mais de 35 anos. Vamos ficar só no Bolsonaro malvado, o que já basta para alimentar dia-a-dia a infelicidade geral da nação. Foram 1.000 dias de maldades. E ainda faltam 460.

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