sábado, 30 de março de 2024

DITADURA NUNCA MAIS !

Pablo Ortellado, O Globo

Não é aceitável contemporizar quando o assunto é democracia

Amanhã, 31 de março, lembramos o aniversário de 60 anos do golpe militar de 1964. O presidente Lula, temendo reação negativa dos militares, determinou que a data não fosse mencionada pelo Executivo. Em contrapartida, os militares se comprometeram a também não citá-la na “ordem do dia” nos quartéis, numa espécie de acordo tácito entre Forças Armadas e governo civil.

Em entrevista para a RedeTV!, Lula enfatizou que o episódio “faz parte do passado” e que é preciso “tocar o país pra frente”. Repetiu o argumento de que a maioria dos oficiais militares era criança ou não tinha nascido em 1964. Além disso, lembrou que, atualmente, devido aos inquéritos do 8 de Janeiro, “em nenhum momento da História os militares foram punidos como estão sendo punidos agora”.

Seja pelo conhecido caráter pragmático e conciliador do presidente, seja porque calcula que não é sensato esticar a corda com os militares, passaremos o aniversário de 60 anos do golpe militar sob um vergonhoso pacto de esquecimento.

O pragmatismo e o caráter conciliador de Lula são excelentes virtudes que, em geral, o têm auxiliado a forjar os acordos necessários para avançar seu programa político. Mas, embora a capacidade de acomodação e mediação seja geralmente virtude, em alguns poucos pontos essenciais torna-se um problema. Este é um desses casos. Não é aceitável contemporizar quando o assunto é democracia. E não é apenas nas celebrações do golpe de Estado de 1964 que Lula contemporiza.

A ambivalência com que ele trata ditaduras e regimes autoritários é um traço preocupante de sua política externa. Seus posicionamentos ambíguos — quando não explicitamente transigentes — com os traços autoritários dos regimes na Rússia, na Nicarágua e na Venezuela são conhecidos. Fazem com que a direita brasileira tenha sérias dúvidas sobre seu compromisso democrático — e a direita, nesse caso, tem um ponto.

Tivemos, porém, novidades alvissareiras na última semana. Lula, pela primeira vez, criticou as limitações à democracia na Venezuela depois que o regime de Maduro impediu a inscrição da candidata opositora Corina Yoris nas eleições presidenciais de julho. Com a mediação do Brasil e outros países, a Venezuela tinha se comprometido em outubro passado, em Barbados, a garantir eleições presidenciais livres e justas em troca da suspensão do embargo econômico pelos Estados Unidos.

Embora o embargo tenha sido suspenso, a Venezuela não cumpriu sua parte, criando sucessivos obstáculos para a oposição. O governo venezuelano considerou ilegais as prévias que a oposição organizou e que levaram à indicação da parlamentar María Corina Machado como candidata a presidente. Em seguida, a Suprema Corte, controlada pelo governo, decretou a inelegibilidade de María Corina alegando delitos financeiros durante sua atividade parlamentar. Pelo menos seis auxiliares seus foram presos (outros oito se refugiaram na Embaixada da Argentina).

Em seguida, a oposição indicou uma candidata substituta, também chamada Corina (Yoris), uma respeitada professora universitária de filosofia, de 80 anos. Mas, ao tentar fazer o registro da candidatura no sistema eleitoral, a senha dada pelas autoridades venezuelanas simplesmente não funcionou.

O indeferimento da candidatura de Corina Yoris demonstrou finalmente que o governo venezuelano não tem a menor disposição de aceitar que um candidato sério da oposição concorra. Foi esse último passo que levou o governo Lula a rever a sua posição histórica de não criticar publicamente a Venezuela.

O Itamaraty soltou uma nota considerando “preocupante” a situação no país, e Lula, em entrevista ao lado do presidente francês Emmanuel Macron, considerou a situação “grave”. A nota do Itamaraty poderia ter sido mais dura, mas é claramente uma mudança de orientação que precisa ser celebrada.

Quem sabe essa importante mudança em relação à Venezuela seja a antessala de um movimento mais amplo de Lula reafirmando clara e inequivocamente valores democráticos. Se Lula mudou sua postura histórica com relação à Venezuela, tem tempo, até amanhã, de mudar sua equivocada determinação de esquecer o aniversário do golpe de 1964. Não conseguiremos educar nossos jovens para a democracia sem uma avaliação crítica do regime autoritário que o Brasil viveu por 21 anos. Ditadura nunca mais!

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sexta-feira, 29 de março de 2024

CASO MARIELLE ABRE A JANELA PARA O FUTURO

Artigo de Fernando Gabeira

A elucidação do assassinato de Marielle Franco cria uma oportunidade para o Rio e, por meio dela, uma experiência importante para todo o País. É possível abalar o edifício viciado da segurança pública, desfazendo os elos entre polícia, milícia e estrutura política.

Aliás, o próprio assassinato é um exemplo emblemático, pois envolveu, na linha de frente, um deputado, um conselheiro do Tribunal de Contas e o chefe da polícia.

Há bastante tempo se amadureceu a ideia de que sozinho, dadas as características da trama criminosa, o Rio de Janeiro não conseguiria resolver o problema. Era preciso uma ajuda de fora, como de fato aconteceu com o caso Marielle. O ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann é um defensor dessa tese. Mas, numa entrevista após a elucidação do crime, alinhou as dificuldades que o governo federal tem para cumprir um papel de liderança neste campo, não só no Rio, como em outros Estados.

O primeiro grande problema é falta de previsão constitucional para essa tarefa. Não há nada que obrigue o governo federal a cuidar da segurança pública. O segundo grande obstáculo são as verbas orçamentárias destinadas principalmente aos Estados. Finalmente, o número de efetivos policiais nas mãos do governo federal é muito pequeno diante das eventuais demandas estaduais de apoio.

Esses limites, por outro lado, acabam agravando a crise no Rio, e o próprio Jungmann lembrou como o Estado estava naturalizando a ausência de uma autoridade policial de respeito. Citou o caso dos médicos recentemente assassinados na Barra da Tijuca. Eles estavam tomando uma cerveja depois de um dia de congresso e foram fuzilados por criminosos que os confundiram com milicianos rivais. O assassinato foi punido, alguns dias depois, pelo próprio crime organizado. E tudo foi visto com normalidade, como, aliás, são vistas as ações dessa natureza em muitas comunidades ocupadas pelo tráfico ou pela milícia.

O entrelaçamento entre o crime e a política não é difícil de compreender. Mais da metade do território urbano é ocupada por grupos armados, que controlam a entrada e a saída de candidatos durante as eleições. O crime organizado tem influência sobre o eleitorado e consegue, com isso, eleger aqueles que o protegem. Não há uma verdadeira democracia, porque muitos candidatos não podem se comunicar diretamente com o povo.

Esse processo contamina também as eleições majoritárias. Muitos candidatos se aliam aos milicianos para se tornarem competitivos. Aliás, os próprios governadores eleitos no Rio acabam passando pela prisão.

Atualmente, a situação se complicou a tal ponto que o Estado do Rio de Janeiro é talvez o único do Brasil onde o secretário de Segurança é indicado pelos deputados. A influência política começa pelo topo e se espalha pela base da pirâmide.

A situação já foi descrita com a expressão septicemia, na qual todo o organismo institucional é contaminado, inclusive, em certa medida, o Judiciário, em tese o órgão controlador.

Como sair dessa? O crime organizado ganhou uma dimensão nacional e até internacional, como é o caso na Amazônia.

No curto prazo, o horizonte é promissor no Rio de Janeiro, porque o assassino de Marielle confessou mais seis crimes e eles também serão elucidados. Pode ser que isso tenha repercussão no próprio mercado de matadores profissionais, constituído pelo jogo do bicho e por milícias.

Um trabalho mais amplo dependerá, certamente, de uma força-tarefa. Recentemente, uma série intitulada Nova York Contra a Máfia mostra como o FBI conseguiu alterar radicalmente o sistema criminoso na cidade. Medellín é outro exemplo de melhoria numa situação terrível, dominada por Pablo Escobar e os famosos matadores, os sicários.

O Brasil coloca problemas especiais porque a crise se alastrou por outros Estados, como Bahia e Ceará, e também pela imensidão da Amazônia, onde o garimpo ilegal e o tráfico de drogas se deslocam com facilidade pelo ar e pelos rios.

O governo federal tem a escolha de dar esta contribuição importante mas ainda limitada no Rio ou formular um trabalho mais amplo.

Se a escolha for por ações limitadas a certas áreas, a sobrevivência dos Yanomamis em Roraima, por exemplo, é outro desafio muito complicado, sobretudo pelos efetivos e recursos materiais que demanda numa vasta área, com os rios, fontes de proteína, contaminados pelo mercúrio.

De qualquer forma, o Ministério da Justiça, que é o responsável pelo tema, pode desempenhar um papel essencial em desatar estes nós e criar uma nova relação entre Brasília e os Estados neste campo.

Apesar de toda dificuldade, o êxito seria um marco em toda a história da redemocratização e poderia representar uma grande novidade também na série de governos de centro-esquerda no Brasil, sempre acossados por um perspectiva de direita, sedutora em termos de compreensão imediata, mas sem compromisso com o Estado de Direito.

Também não é uma tarefa para o governo realizar solitariamente. Ela tem uma dimensão parlamentar e social que pode atenuar o seu fardo.

Artigo publicado no Estadão em 29/03/2024

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quinta-feira, 28 de março de 2024

UM JOVEM ALIENADO DE 1964

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

Como a tortura do irmão, o desemprego pós-golpe e o enquadramento na LSN fizeram o presidente Lula migrar, da torcida pelo sucesso dos militares, há 60 anos, para o engajamento na abertura política

Em 1978, Luís Eulálio de Bueno Vidigal, presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Autopeças, foi até o comandante do II Exército, Dilermando Gomes Monteiro, para falar sobre a greve dos metalúrgicos. O presidente do sindicato dos peões em São Bernardo, que caíra nas graças do empresariado três anos antes ao se eleger por 98% dos votos quebrando uma tradição comunista, não deixou por menos.

“Peguei o telefone, liguei para o Dilermando e disse - eu também quero conversar. Aí eu fui lá falar com ele, porque ele tinha ouvido a versão do empresariado e eu fui mostrar a versão dos trabalhadores. Ele me tratou bem, foram quase três horas de conversa. Foi uma conversa muito interessante para mim, muito interessante”, disse o atual presidente da República a Denise Paraná (“Lula, o filho do Brasil”, editora da Fundação Perseu Abramo, 2002), 15 anos depois daquela greve.

O general havia sido mandado para São Paulo depois que o então comandante, Ednardo D’Ávila Melo, instado por Ernesto Geisel a controlar mais de perto a atuação do aparelho de repressão do DOI-Codi (Centro de Operações para a Defesa Interna do Departamento de Operações Internas), permitiu que, dois meses depois da morte do jornalista Vladimir Herzog, o operário Manoel Fiel Filho também fosse morto nas dependências do II Exército.

Dilermando foi o primeiro general com quem, aos 33 anos, Luiz Inácio da Silva, ainda sem o Lula do registro eleitoral, teve contato. O comandante havia sido incumbido pelo Alto Comando do Exército de preparar um relatório sobre as reivindicações dos grevistas. As mudanças no sindicalismo do ABC passaram a ser acompanhadas de perto por Geisel desde que o então governador, Paulo Egydio Martins, compareceu à posse do jovem sindicalista.

No seu livro de memórias (“Paulo Egydio conta”, Imprensa Oficial, 2007), o ex-governador conta o telefonema que recebeu de Geisel no dia seguinte à posse: “Paulo, o que deu na sua cabeça de ir à posse de um operário no Sindicato dos Metalúrgicos?”. Dadas as explicações, Geisel retrucou dizendo não saber que o novo dirigente havia derrotado os comunistas do sindicato, ao que Paulo Egydio respondeu: “Então peça para o pessoal da sua informação se atualizar um pouco mais a respeito do que está lhe entregando”. Foi isso que Dilermando fez ao longo de três horas com Lula.

Até então, os únicos militares com quem tinha lidado eram aqueles que o barraram no portão do Comando do II Exército, no Ibirapuera, onde fora em busca de seu irmão depois de interromper sua primeira viagem internacional. Lula estava no Japão, a convite de sindicatos locais, quando recebeu um telefonema dando conta da prisão de Frei Chico, que tinha ligações com o Partido Comunista.

Lula não os conhecia, mas o inverso não era verdadeiro. Em “Ditadura acabada” (Intrínseca, 2016), o quinto volume de sua coleção sobre o regime militar, Elio Gaspari cita, a partir dos arquivos do criador do Serviço Nacional de Informações, Golbery do Couto e Silva, o que o SNI achava de Lula: “Projetado do obscurantismo para o ‘vedetismo’ jornalístico”, ele era manipulado por “pessoas extrassindicais”. O depoimento de Frei Chico a Denise Paraná o confirma. Foi torturado dois dias no DOI-Codi porque dois oficiais do Exército queriam arrancar dele as ligações, inexistentes, de Lula com o “Partidão”.

Com aquela notícia, caiu a ficha de Lula. Jovem alienado da periferia de São Paulo, que hoje estaria ao alcance do ideário bolsonarista, Lula tinha 18 anos em março de 1964 e concluíra o curso de torneiro mecânico do Senai, onde também fazia refeições e jogava futebol. Deixara a fábrica de parafusos Marte, também no Ipiranga, para trabalhar na Metalúrgica Independência, no mesmo bairro. Chegava lá depois de percorrer, de bicicleta, os 10 quilômetros que separavam sua casa, na Vila São José, bairro de São Caetano do Sul, na divisa com São Paulo. Morava com quatro irmãos, um primo e a mãe numa casa de dois cômodos. E ganhava pouco mais do que um salário mínimo.

Em 1993, depois de já ter disputado, pela primeira vez, a Presidência da República, falou a Denise Paraná sobre o que passava por sua cabeça quando aconteceu o golpe: “Não tinha raiva dos patrões, nem tinha sonho de ser patrão. Só queria ser um bom profissional”. Lula sonhava em ser metalúrgico desde que morava na Vila Carioca, no Ipiranga, ao lado da fábrica de carros Vemag e chupava o chiclete que os amigos iam jogar fora. Idealizava os metalúrgicos da fábrica que usavam um macacão azul, tinham condução, refeitório, roupa pra trabalhar, cesta de Natal e recebiam o pagamento num envelope. A mulher do metalúrgico sempre tinha dinheiro pra ir à feira e voltava com sacola de abacaxi, mamão, melancia e laranja.

Era isso que queria pra vida dele. Por isso, quando Frei Chico, três anos mais velho, começou a convidá-lo para ir ao sindicato, ele recusou. Preferia jogar bola e ver novela. Num diálogo reproduzido por Fernando Morais (“Lula”, vol. 1, Cia das Letras, 2021), Lula recusou o convite do irmão para conhecer o sindicato: “Ali só tem ladrão (...) já vi naqueles cartazes de terroristas procurados pela polícia que muitos deles são metidos em sindicatos”.

Era a cabeça de quem chegou a ter orgulho quando os militares tomaram o poder: “Quando veio o golpe, eu não tinha a menor noção do significado daquilo. Tinha 18, 19 anos, e o que a gente ouvia, na meia hora de almoço da fábrica, era um pessoal muito otimista, porque ‘o Exército ia resolver o problema’, mesmo sem saber precisamente o que era ‘o problema’. O que eu sei é que a credibilidade das Forças Armadas entre os trabalhadores era impressionante”, contou Lula a Morais.

A desilusão viria um ano depois quando ficou desempregado, saía de casa às 6h da manhã, andava até 15 quilômetros sem comer e fumando guimbas de cigarros jogadas no chão, voltava de mãos abanando e pés inchados pra casa e ainda era chamado de vagabundo pelo irmão. Quando pegava um jornal, já não ia direto para a página de esportes, atrás de notícias do Corinthians, mas, sim, dos classificados de empregos. A rotina durou oito meses.

Reincorporado ao mercado de trabalho, começou a considerar a entrada no sindicato. A despeito das advertências dos patrões de sua primeira mulher, Maria de Lurdes, de que poderia arrumar confusão com a polícia, entrou no sindicato em 1969. Naquele ano, as grandes indústrias do ABC estabeleceram termos de cooperação com a comunidade de informações para a espionagem das ações dos trabalhadores nas fábricas. Enquanto isso, Lula recrutava colegas para entrar no sindicato dizendo que teriam colônia de férias, dentista e médico. E não que o sindicato era um órgão de defesa dos direitos dos trabalhadores. “Eu era muito limitado”, disse Lula a Denise Paraná.

A deterioração da conjuntura econômica nos estertores da ditadura logo começou a expandir seu horizonte. Na primeira grande greve do ABC, os helicópteros do II Exército faziam rasante sobre o palanque de Lula com soldados armados de metralhadoras apontando para baixo. De lá, conta Paulo Egydio Martins, Lula se comunicava com o advogado do sindicato, Almir Pazzianoto, que estava na casa do ex-governador de São Paulo. Este lhe assegurava, sem ter qualquer garantia dos militares, que eles não metralhariam o palanque.

Foi na greve de 1980, porém, que o caldo entornou. Com João Figueiredo no poder, a linha dura recobrou fôlego. Para o II Exército, foi designado o ex-chefe do Centro de Informações do Exército Milton Tavares de Souza. O comandante via no ABC uma célula do comunismo internacional. Decretada a ilegalidade da greve, Lula foi preso e enquadrado na Lei de Segurança Nacional. No interrogatório, Lula seria testemunha da divisão que marcava o último dos governos militares. Golbery havia dito a Elio Gaspari que o governo estava disposto a “quebrar a espinha dorsal” do sindicalismo, mas o comandante do II Exército estava certo de que Golbery se comunicava com Lula e tentou, sem sucesso, buscar esta confissão na prisão do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo.

A abertura distanciou os militares da política. Dos militantes que ajudaram a construir o PT, o único a se aproximar de Lula depois de ter passado pela luta armada foi o ex-presidente do partido José Genoino, que lutou no Araguaia. Dilma Rousseff foi a segunda. José Dirceu, Franklin Martins e Luiz Gushiken eram de grupos da ultraesquerda, mas não da luta armada. Durante suas campanhas presidenciais, era o atual presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, quem fazia a ponte, mais por ser filho de general (Oswaldo Muniz Oliva) do que por conhecimento de causa. Foi Mercadante quem organizou o processo de escolha dos comandantes das Forças Armadas em 2003.

O presidente da República que hoje silencia sobre os 60 anos do golpe militar é o mesmo que demitiu seu primeiro ministro da Defesa, José Viegas, no final de 2004. Diplomata de carreira, Viegas cobrou de Lula a demissão do então comandante do Exército, general Francisco Roberto Albuquerque, depois de nota da Força sobre a divulgação de fotos de um homem nu e esquelético, atribuídas ao jornalista Vladimir Herzog antes de ser morto no DOI-Codi de São Paulo.

Nesta nota, o Exército dizia que “as medidas tomadas pelas forças legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo”. Lula arrancou de Albuquerque uma segunda nota, recuando do teor da primeira, e o manteve no cargo. O mesmo não aconteceu com Viegas, que deixou a Esplanada com uma carta em que dizia que já era hora para que “os representantes desse pensamento atrasado saiam de cena”. O golpismo bolsonarista mostrou que estão aí até hoje.

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quarta-feira, 27 de março de 2024

A TRAIÇÃO DE BOLSONARO E O 31 DE MARÇO

Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo

Cabe ao ministro Moraes decidir onde o ex-presidente vai comemorar a data que se aproxima

O general Antonio Carlos de Andrada Serpa produziu em 1996 uma carta aos colegas militares que hoje está esquecida em Brasília. Jair Bolsonaro, que não é homem de letras, deveria ao menos ler o documento do general. Assim como o ex-presidente, Serpa era oficial da Arma de Artilharia. Mas, diferentemente do ex-mandatário, ele esteve na guerra – comandou uma companhia de obuses de 105 mm, na campanha da Itália, participando da campanha vitoriosa, conforme contava seu amigo, o general Ruy Leal Campello.

Na carta, Serpa reclamava que a versão dos “vencidos em 1964” se estabelecera como verdade; ninguém dava ouvido aos vencedores. Mas, ao mesmo tempo, defendia a pacificação e a concórdia nacional. E concluía seu documento lembrando o exemplo de Caxias.

“Quando solicitado a comemorar a vitória sobre os farrapos, em 1845, (Caxias) respondeu: ‘Não, antes rezemos um Te Deum pelas almas dos imperiais e farroupilhas, pois eram brasileiros’.” Para Serpa, reconhecer “o idealismo equivocado dos terroristas e os excessos da repressão será um convite à verdadeira Anistia e Justiça”. O general dizia que, para “seus colegas de hoje, é o espírito de Caxias que deve prevalecer, pois essa é a tradição do Exército”. Foi para essa tradição que Bolsonaro virou as costas ao determinar que o Ministério da Defesa, em 2019, voltasse a comemorar o 31 de março, data que marca uma “vitória de seu Exército” contra nacionais, contra brasileiros.

Não se comemora uma vitória contra brasileiros. Serpa apoiara a abertura de Ernesto Geisel, inclusive a decisão de afastar do comando do 2.º Exército, em 1976, o general Ednardo D’Ávila Mello, após as mortes de um militar, um jornalista e um operário nas dependências do DOI-Codi. Todos investigados por ligações com o PCB.

Serpa dizia que Geisel puniu os abusos ao demitir o comandante – segundo ele, “traído por maus auxiliares” – em razão do “princípio militar de que o chefe é responsável por tudo o que fizer ou deixar de fazer (C 101-5, Estado-Maior e Ordens)”. O mesmo vale para Bolsonaro.

Não adianta culpar Mauro Cid pelas falsificações de cartões de vacinação ou pela venda de joias. Não adianta dizer que assessores lhe propuseram um golpe, travestido da falsa legalidade de um estado de sítio ou de defesa. Um chefe militar jamais delega sua missão. Nem se isenta de suas responsabilidades.

É por se furtar a elas que Geisel concluiu sobre Bolsonaro: “É um mau militar”. Quem procura à sorrelfa a Embaixada da Hungria parece saber que tem contas a acertar com a Justiça. Cabe agora ao ministro Alexandre de Moraes decidir onde e como Bolsonaro vai comemorar o próximo 31 de março.

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CENSURADA MOSTRA DE CINEMA LGBTQIA+

Diogo Bachega, Folha de S.Paulo

Prefeito de Rio do Sul, em Santa Catarina, censura mostra de cinema LGBTQIA+

OUTRO LADO: José Thomé fala de princípios cristãos e familiares e nega preconceito; evento considera decisão do político ilegal

SÃO PAULO O prefeito José Thomé (PSD), da cidade de Rio do Sul, em Santa Cantarina, censurou uma mostra de cinema LGBTQIA+ que aconteceria nesta quarta e quinta-feira na fundação cultural municial.

O evento é organizado pelo festival Transforma de cinema LGBTQIA+, criado pela produtora Bapho Cultural em parceria com a Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade, a ADEH.

Em seu Instagram, Thomé justificou a proibição a partir do que entende como os valores familiares defendidos pelo cristianismo.

"Não é uma questão de preconceito nem de ponto de vista político ou partidário. É uma questão de respeito aos princípios cristãos, àquilo que está escrito na Bíblia e aos princípios da família, como o pai de dois filhos menores de idade, que poderiam inclusive participar dessa apresentação, porque a classificação é livre", afirmou.

O prefeito comentou sua decisão em entrevista à rádio loccal Mirador. "Não vou aceitar utilizar espaço público municipal para esse tipo de evento. Enquanto eu for prefeito desta cidade, isso jamais vai acontecer. E quero deixar muito claro que não sou bolsonarista, direita radical, nada disso. Isso nem me interessa. Mas eu sou cristão. Sou pai de família."

Rodrigo Daniel Pedrozo, superintendente da fundação cultural de Rio do Sul, confirmou que a casa não receberá mais a mostra, mas não comentou a decisão do Executivo.

A organização do festival Transforma disse em nota que considera a decisão de Thomé ilegal. "Reiteramos que em nenhuma dessas produções as premissas de moralidade e integridade são desrespeitadas. Muito pelo contrário, elas retratam com grande respeito a pluralidade e as vivências da comunidade LGBTQIAPN+."

Thomas Dadam, produtor executivo e um dos idealizadores do festival, disse que, ao menos por enquanto, o festival planeja suspender as atividades na cidade.

"Vamos estudar junto à Fundação Catarinense de Cultura de que forma a gente pode proceder diante deste episódio de censura, até porque a passagem da mostra por Rio do Sul e a oficina de produção cultural LGBTQIAPN+, que seria a nossa contrapartida social do projeto, precisam acontecer."

Em nota, a Fundação Catarinense de Cultura afirmou que o apoio à mostra é resultado da vitória em um edital. "O projeto mencionado no vídeo foi contemplado por meio do Prêmio Catarinense de Cinema 2022, que é um edital previsto em lei. O resultado é publicado a partir das notas dadas por uma comissão avaliadora, formada por pareceristas residentes fora de Santa Catarina, contratados também por edital. Portanto, a FCC não influencia no resultado final da premiação."

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JAIR RENAN VIRA RÉU

Reynaldo Turollo Jr, g1— Brasília

Justiça do DF torna Jair Renan Bolsonaro réu por lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e uso de documento falso

Segundo Ministério Público, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro e outras cinco pessoas fraudaram empréstimos bancários e criaram esquema para ocultar os recursos obtidos ilegalmente. A defesa de Jair Renan disse que ele foi 'vítima de um golpe'.

A Justiça do Distrito Federal recebeu uma denúncia apresentada pelo Ministério Público e tornou réus Jair Renan Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, e outras cinco pessoas acusadas de praticar os crimes de falsidade ideológica, uso de documento falso e lavagem de dinheiro.

A decisão da 5ª Vara Criminal é de segunda-feira (25).

A partir da intimação dos réus, eles terão 10 dias para apresentar sua defesa por escrito. A Justiça considerou que estão presentes na denúncia "os requisitos necessários para dar início à persecução penal em juízo".

A defesa de Jair Renan disse que ele foi "vítima de um golpe" (leia mais abaixo).

A ação penal decorre de uma investigação da Polícia Civil do DF, que indiciou Jair Renan em fevereiro deste ano, como revelou o g1 à época.

No âmbito dessa investigação, ele chegou a ser alvo de uma operação de busca e apreensão, em agosto do ano passado.

A denúncia do Ministério Público acusa o filho do ex-presidente e outros réus, incluindo o seu ex-instrutor de tiros Maciel Alves de Carvalho, de forjar uma declaração de faturamento de uma empresa de Jair Renan, a RB Eventos e Mídia, com o objetivo de dar lastro a empréstimos bancários que chegaram a R$ 291 mil, entre 2022 e 2023.

O valor não foi pago e o banco cobrou Jair Renan judicialmente. Em fevereiro deste ano, a Justiça determinou que ele pagasse ao banco a dívida, que estava em R$ 360 mil.

O grupo de Jair Renan teria falsificado um documento que atestava falsamente que a empresa dele havia faturado R$ 4,6 milhões no período de um ano, o que configurou, segundo o Ministério Público, o crime de falsidade ideológica.

Ainda de acordo com o MP, esse documento com dados falsos foi apresentado ao banco para a abertura de uma conta, usada posteriormente para a obtenção de três empréstimos, configurando o crime de uso de documento falso.

'Laranja'

O MP afirmou também que, "no período compreendido entre novembro de 2020 e julho de 2023", Jair Renan, Maciel Alves e outros acusados "ocultaram ou dissimularam a natureza, origem, movimentação ou propriedade de bens, direitos e valores de origem criminosa, proveniente, direta ou indiretamente, da prática de crimes de falsidade ideológica, estelionato e falsificação de documentos públicos e particulares".

Os réus teriam criado um "laranja", uma pessoa que não existe chamada Antônio Amâncio Alves Mandarrari, para ocultar valores obtidos de forma ilegal, incluindo os recursos provenientes dos supostos empréstimos fraudulentos. Essa pessoa fictícia "abriu" empresas para movimentar o dinheiro.

"No segundo empréstimo fraudulento, realizado no dia 8 de março de 2023, no valor de R$ 250.669,65, ainda sob responsabilidade legal do denunciado Jair Renan, quase R$ 60 mil foram usados para pagamento de própria fatura de cartão de crédito da pessoa jurídica RB Eventos e Mídia [empresa de Jair Renan]. E, no dia 13 de abril de 2023, é realizado um crédito de R$ 18.700 para a empresa 'fantasma' Mandarrari Clínica de Estética", afirmou o MP.

Maciel já tinha processos criminais anteriormente.

O que diz a defesa

O advogado de Maciel Alves, Pedrinho Villard, afirmou em nota que "acredita na inocência de Maciel e provará no curso processual".

Já o advogado de Jair Renan, Admar Gonzaga, disse que o cliente "foi vítima de um golpe montado por pessoa, que apenas depois se soube ser conhecida pela polícia e pela Justiça." A defesa, no entanto, não citou nomes.

Acrescentou que "tudo ficará esclarecido no curso do processo, no qual a defesa poderá apresentar provas e fundamentos para o total esclarecimento do golpe contra ele aplicado."

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O FASCISMO MUDOU, MAS NÃO ESTÁ MORTO

Martin Wolf*, Valor Econômico

O que se vê hoje é um autoritarismo com características fascistas

Estamos assistindo à volta do fascismo? Será que Donald Trump, para usar o exemplo contemporâneo mais importante, é um fascista? E a francesa Marine Le Pen? Ou Viktor Orbán, da Hungria? A resposta depende do que se entende por “fascismo”. Porque o que presenciamos hoje não é apenas autoritarismo. É um autoritarismo com características fascistas.

Precisamos começar com duas distinções. A primeira é entre o nazismo e o fascismo. Como o falecido Umberto Eco, humanista e escritor, observou em um ensaio sobre “O Fascismo Eterno”, publicado na “New York Review of Books” em 1995, o “Mein Kampf de Hitler é um manifesto de um programa político completo”. No poder, o nazismo foi, tal como o stalinismo, “totalitário”: ele controlava tudo. O fascismo de Mussolini era diferente. Nas palavras de Eco, “Mussolini não tinha uma filosofia: tinha apenas retórica... O fascismo era um totalitarismo confuso, uma colagem de ideias filosóficas e políticas diferentes, um emaranhado de contradições”. Trump é igualmente “confuso”.

A segunda distinção é entre o passado e hoje. Os fascismos dos anos 1920 e 1930 surgiram da Primeira Guerra Mundial. Eram naturalmente militaristas tanto nos meios como nos objetivos. Além disso, naquela época a organização centralizada era necessária para que as ordens fossem difundidas. Hoje em dia, as redes sociais farão grande parte desse trabalho.

Portanto, o fascismo de hoje é diferente daquele do passado. Mas isso não significa que a noção seja desprovida de sentido. No seu ensaio, Eco descreve uma série de características do “Ur-Fascismo - ou Fascismo Eterno”.

Uma característica é o culto à tradição. Os fascistas veneram o passado. O corolário é que eles rejeitam o moderno. “O Iluminismo, a Era da Razão, é visto como o início da depravação moderna. Neste sentido, o Fascismo Eterno pode ser definido como irracionalismo”, escreve Eco.

Outra característica é o culto da ação pela ação, da qual decorre outra: a hostilidade à crítica analítica. E segue-se daí que o “Ur-Fascismo... busca o consenso com a exploração e a exacerbação do medo natural da diferença... Assim, o Fascismo Eterno é racista por definição”.

Outro aspecto é que “o Fascismo Eterno tem sua origem na frustração individual ou social. É por isso que uma das características mais típicas do fascismo histórico era seu atrativo para uma classe média frustrada”.

O Fascismo Eterno une os seguidores que recruta nas fileiras da classe média insatisfeita por meio do nacionalismo. Esses seguidores, diz Eco, “precisam sentir-se humilhados pela riqueza ostentosa e pela força dos seus inimigos”. Além do mais, para o Fascismo Eterno “não há luta pela vida, pelo contrário, a vida é vivida para a luta”.

Em seguida, para Eco, está o fato de que o Fascismo Eterno defende um elitismo popular. “Cada cidadão está entre as melhores pessoas do mundo”, escreve ele em seu ensaio. E mais: “Todos são educados para se tornarem heróis”.

Para o Fascismo Eterno, “o Povo é concebido como uma... entidade monolítica que expressa a Vontade Comum”, acrescenta Eco. “Já que não há como um grande número de seres humanos terem uma vontade comum, o Líder se coloca como seu intérprete”.

No populismo de direita de hoje nota-se o culto ao passado e às tradições, a hostilidade à crítica, o medo das diferenças e o racismo, as origens na frustração social, o nacionalismo, a crença fervorosa em conspirações e a visão de que o “povo” é uma elite

A origem do machismo característico do Fascismo Eterno é que “o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais”. Aqui está implícito tanto o desdém pelas mulheres como a intolerância e a condenação de hábitos sexuais fora do padrão.

Por fim, o “Fascismo Eterno fala a Novilíngua” - ele mente de maneira sistemática. Como Hannah Arendt observou em uma entrevista à “New York Review of Books” em 1978: “Se todo mundo sempre mente para você, a consequência não é que você acredita nas mentiras, mas sim que ninguém acredita mais em nada”. Os seguidores acreditam no líder simplesmente porque ele veste o manto sagrado da liderança.

Esta é uma lista fascinante. Se olhamos para o populismo de direita de hoje, notamos precisamente os cultos ao passado e à tradição, a hostilidade a qualquer forma de crítica, o medo das diferenças e o racismo, as origens na frustração social, o nacionalismo e a crença fervorosa em conspirações, a visão de que o “povo” é uma elite, o papel do líder em dizer a seus seguidores o que é verdade, a vontade de poder e o machismo.

Ainda este mês, Trump descreveu os imigrantes como “animais”, ameaçou um “banho de sangue” se não ganhar as eleições e enalteceu os insurrecionistas de 6 de janeiro de 2021 como “patriotas incríveis”. Sabemos que ele e seus seguidores pretendem encher a burocracia e o Judiciário com pessoas leais a ele e criticam o sistema judicial por responsabilizá-lo por seu atos: afinal de contas, ele está acima da lei. Não menos importante, ele transformou o Partido Republicano em um partido de sua propriedade.

Sim, os movimentos de hoje também são diferentes dos movimentos dos anos 1920 e 1930. Trump não glorifica a guerra, a não ser as guerras econômicas e comerciais. Mas ele glorifica Putin, a quem chamou de “gênio” por conta de sua guerra contra a Ucrânia. Os políticos europeus com raízes no passado fascista também são diferentes entre si. No entanto, eles compartilham, sim, muitas características do Fascismo Eterno, em especial o tradicionalismo, o nacionalismo e o racismo, mas não têm outras, em particular a glorificação da violência.

O fascismo da Alemanha ou da Itália dos anos 1920 e 1930 não existe hoje, exceto, talvez, na Rússia. Mas o mesmo poderia ser dito de outras tradições. O conservadorismo não é o que era há um século, e o mesmo vale para o liberalismo e o socialismo. As ideias e propostas concretas das tradições políticas são alteradas com a sociedade, a economia e a tecnologia. Isso não é nenhuma surpresa. Mas essas tradições ainda têm um núcleo comum de atitudes em relação à história, à política e à sociedade. Isto também é verdade para o fascismo. A história não se repete. Mas ela rima. Está rimando agora. Não seja complacente. É perigoso dar uma volta com o fascismo. (Tradução de Lilian Carmona)

*Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT.

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A BANALIZAÇÃO DA DESCONFIANÇA

Roberto DaMatta, O Globo

O sistema deseja e precisa de justiça, mas, ao mesmo tempo, relaciona a obediência ao ‘bom mocismo’

Temos uma extraordinária capacidade de banalizar a corrupção e a fraude, que admitimos como males, em paralelo com a esperteza como ato de sobrevivência e, talvez o mais venenoso: um ato de malandragem e realismo político! Disso resulta um relativismo moral insuportável, expresso no sábio conselho ou projeto segundo o qual o “levar vantagem em tudo” é programa permanente.

Vale fraudar um fraudador para impedir outro fraudador. O resultado desse realismo político particularista é o rebaixamento de ideais e programas, inibidos por dissidências pessoais. É uma mostra da velha oposição, até hoje mal resolvida, entre “Estado e governo”. Entre uma instituição identificada com valores nacionais e uma engrenagem administrativa marcada por interesses particulares e datados, passageiros. Essa tendência explica a perene tentação do golpe e o consequente protocolo legal destinado a anular punições.

Movido pela escolha “política” e malandra de não escolher, ou melhor, de relativizar escolhas, o sistema deseja e precisa de justiça, mas, ao mesmo tempo, relaciona a obediência ao “bom mocismo”, ao “bom menino que não faz xixi na cama”, ao “caxias” e, em muitas ocasiões, à mais pura e cega subordinação. E, quando ocorrem falcatruas na esfera da política vista como campo com pelo menos três lados, então a desconfiança está estabelecida.

A desconfiança é mortal numa democracia. Mortal porque a vida igualitária é árdua e depende de um compromisso sério com a impessoalidade para preservar a honradez dos elos pessoais. A passagem e a integração da casa com a rua são, no meu entender, críticas para a maturidade da igualdade democrática no Brasil. É preciso abrir a casa-grande para libertar a senzala.

As fraudes são praticadas pelo supremo magistrado da nação. Roubar tem consequências imediatas, enquanto “manipular” ou “maquiar” um orçamento estadual ou federal requer uma processualística reveladora de um sistema aristocrático embutido numa democracia republicana sofredora dessas ambiguidades e desconfianças.

Como os pecados, os delitos e as fraudes são, repito, graduados. Alguns são escandalosos; outros, gigantescos e sistematicamente lidos como meras espertezas. Como oportunidades que só um panaca deixaria passar sem aplicar sua “ética de malandragem”, sacralizada por Pedro Malasartes e elaborada por Macunaíma. Por exemplo: os presentes das Arábias dados ao chefe de Estado que, malandra e inocentemente, os embolsou com ajuda de seus secretários-asseclas. Não foi malícia ou crime, foi um trivial passo adiante exaltado por injustas perseguições.

O povo fica dividido quando o cidadão comum descobre que o supremo mandatário da nação esqueceu a pátria ao se recusar a dar o exemplo vacinando-se para conter uma pandemia e usou os seus recursos de poder para fraudar um certificado de vacinação para si próprio e a filha em palácio. Um pedaço entende que isso é “normal” para quem não deve entrar em fila; e um outro pede simplesmente a guilhotina. No fundo, o que está em jogo é uma reprimida igualdade em todo lugar e para todo mundo.

Uma coisa que desde criança me perturba e revolta é ver carros oficiais com batedores, espantando o povo-pedestre, que abre alas para não correr o risco de ser atropelado por sua própria culpa. Se havia batedores, e era uma autoridade, por que não saiu da frente? A sirene e os batedores são o “sabe com quem está falando?” dos que, eleitos por nós como servidores, apropriam-se dos cargos e invertem a cartilha democrática transformando o que é público em algo particular.

Bolsonaro banalizou a desconfiança. Fez quase tudo pelo avesso ou erraticamente. Como povo, estamos familiarizados com o populismo, com o messianismo, com o utopismo e com a malandragem que faz a esperta mediação entre as leis que devem valer para todos e suas dobras que as transformam em privilégios para quem manda ou tem um elo com o mandão. Mas ficamos atônitos com o gosto pela desconfiança que resulta quando legitimamos elos pessoais, esquecendo princípios que devem valer para todos.

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FECHADOS COM BRAZÃO

Bernardo Mello Franco, O Globo

Fechados com Brazão: Castro e Paes bajularam e deram cargos a irmãos presos pela PF

Mesmo após escândalos e prisão por corrupção, família continuou em alta na política do Rio

Às vésperas do primeiro turno de 2022, o governador Cláudio Castro participou de um comício na Zona Oeste do Rio. Com as mangas arregaçadas, pediu votos para reeleger dois irmãos: o deputado federal Chiquinho Brazão e o deputado estadual Pedro Brazão. “Jacarepaguá e o Rio têm representantes legítimos, e esses são a minha querida família Brazão”, discursou.

Em agosto passado, o prefeito Eduardo Paes foi a outro ato na região. À vontade, fez piadas e mostrou intimidade com o clã. “Quem melhor representa Jacarepaguá, quem mais briga, é a família Brazão. Uma salva de palmas para essas feras aqui”, ordenou. A claque obedeceu, e ele lançou o herdeiro Kaio Brazão, de 22 anos, para vereador. “A tradição não pode parar”, gracejou.

No domingo, a Polícia Federal prendeu Chiquinho e Domingos Brazão, acusados de mandar matar a vereadora Marielle Franco. O patriarca, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, sempre teve o nome citado nas investigações. Nunca deixou de ser bajulado pela elite política do Rio, como mostram as mesuras do prefeito e do governador.

O clã frequenta as páginas policiais há mais de duas décadas. Já se envolveu em escândalos de corrupção, adulteração de combustíveis, roubo de veículos, sonegação fiscal e extorsão. Em 2008, Domingos e Chiquinho foram citados no relatório da CPI das Milícias. Passados 16 anos, ninguém pode alegar que os apoiou sem saber com quem estava se metendo.

Domingos exibiu sua força ao ser eleito pela Assembleia Legislativa para o cargo vitalício no TCE, em 2015. Em votação aberta, foi chamado de “aplicado”, “trabalhador”, “dedicado”, “amigo”, “grande chefe de família” e “homem de fé”. Dos 66 presentes, 61 o apoiaram, incluindo Flávio Bolsonaro e os deputados do PT. Só a bancada do PSOL, futuro partido de Marielle, opôs-se à nomeação.

O conselheiro foi em cana na Operação Quinto do Ouro, mas continuou fechado com os donos do poder fluminense. Num estado em que o crime anda de mãos dadas com a política, o relatório da PF lista exemplos de seu “grau elevado de ingerência” no governo Castro. Na gestão Paes, Chiquinho foi secretário de Ação Comunitária até o mês passado.

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LIRA LAVA AS MÃOS NA PRISÃO DE CHIQUINHO BRAZÃO

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

PSol, PCdoB e PT, os partidos que mais se empenharam na CCJ para acolher a decisão de Moraes, sozinhos, não têm força suficiente para influenciar a pauta da Câmara

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) adiou a decisão sobre a manutenção da prisão do deputado Chiquinho Brazão, o que gerou indignação de parlamentares do PSol, partido de Marielle Franco, e de outras legendas de esquerda, como o PT, mas não teve nenhum questionamento por parte do Centrão, com exceção do deputado Artur Maia (União-BA). A expectativa de que haveria um acordo para acelerar o processo, de parte de alguns deputados, foi frustrada pela manobra feita pelo deputado Gilson Marques (Novo-SC), que pediu “vista coletiva” do parecer do deputado Darci de Matos (PSD-SC), relator do caso, que defendeu a manutenção da prisão. Apoiaram o pedido o PL e o PR.

No início da sessão, Arthur Maia e a presidente da CCJ, Carol de Toni (PL-SC), discutiram sobre o regimento. O deputado disse que o União Brasil não pediria vista e cobrou celeridade no processo de votação. A parlamentar esclareceu que não houve acordo entre os líderes de bancada e que o pedido de vista é regimental. “Há um clamor da imprensa de que aconteça uma deliberação ainda hoje”, ponderou Maia, sem sucesso.

O relator Darci de Matos havia encampado a tese do ministro Alexandre de Moraes, do STF, de que a prisão preventiva do deputado foi decretada por atos de obstrução à Justiça, os quais, segundo a Corte, continuavam a ser praticados “até os dias atuais”. Gilson Marques, ao pedir vista, alegou que o relatório da Polícia Federal, que tem 479 páginas, e a decisão de Moraes, com 41 páginas, não estavam no sistema para consulta da CCJ. Roberto Duarte (Republicanos-AC) também pediu vista do ofício, com argumento de que a decisão não poderia ser tomada de afogadilho.

Na sessão, por videoconferência, Chiquinho Brazão disse que os debates na Câmara Municipal do Rio de Janeiro não podem ser usados como motivo para ligá-lo ao assassinato de Marielle. “Eu estava ali lutando para aprovar o projeto de lei que regulamentava, em um período de um ano, os condomínios irregulares”, disse. Gelada, Carol de Toni permaneceu impassível durante a sessão, como se nada estivesse ocorrendo de anormal.

A ameaça que fez de suspender os trabalhos se houvesse tumulto funcionou, ainda que parlamentares do PSol e do PL se digladiassem no plenário. Segundo ela, tentou-se um acordo para evitar o pedido de vista, mas não houve consenso. “Se um deputado pedir vista, será atendido”, explicou. Era jogo combinado com a bancada da bala: “Fico pasmo com essa pressa, com esse afogadilho”, disse Marques, ao pedir vista. Inutilmente, Sâmia Bomfim (PSol-SP) reagiu: “Pressa? Pressa? Faz seis anos desse crime bárbaro”.

Decantação

O adiamento pelo prazo de duas sessões do plenário da Câmara representará 10 dias. Como não haverá sessões na próxima semana, o assunto ficará para depois da Páscoa. O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) ainda solicitou ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que submetesse o parecer de Darci de Matos ao plenário da Casa, sem esperar a CCJ decidir, como aconteceu com outros parlamentares. Foi o caso de Daniel Silveira (PL-RJ), que também foi preso por ordem do Supremo.

Lira argumentou que os casos anteriores, inclusive o de Silveira, ocorreram durante o recesso. Disse que tanto o pedido de vista coletivo quanto o adiamento da decisão sobre o assunto de sua parte para depois da Páscoa são regimentais e eram previsíveis. O calendário de sessões da Câmara havia sido estabelecido antes da prisão de Brazão, no domingo passado. Sua decisão provocou outro tumulto, deputados do PSol e do PL bateram boca em plenário.

Na prática, Lira pretende deixar o assunto decantar, e não tomará nenhuma decisão sem apoio da maioria dos líderes de bancada. O que vai determinar o prazo e a própria decisão de Lira é a reação da opinião pública, que tende a se desmobilizar durante a Semana Santa. Como a indefinição também não implica soltura imediata de Brazão, Lira lavou as mãos.

Chiquinho Brazão foi expulso do União Brasil e está preso desde o último domingo, assim como o irmão Domingos Brazão e o ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro Rivaldo Barbosa. A decisão de Moraes foi confirmada, na segunda-feira, pela Primeira Turma do STF. Chiquinho Brazão é acusado de ser um dos mandantes do assassinato de Marielle e do motorista dela, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018, no centro do Rio. Na época, ele era vereador na capital fluminense.

Na comissão, o advogado de Brazão, Kleber Lopes, deu uma pista de qual será a sua linha de defesa. Segundo ele, a prisão contraria a previsão constitucional segundo a qual um deputado só pode ser preso em flagrante delito por crime inafiançável. Um de seus argumentos será de que Brazão não pode ser punido pela Câmara por fatos anteriores ao exercício do mandato de deputado federal.

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O APODRECIMENTO DO ESTADO

Elio Gaspari, O Globo

Desvendada a trama do assassinato de Marielle Franco, resulta que nela não havia um só bandido desorganizado, daqueles que assaltam, roubam casas ou celulares. Um era chefe da Polícia Civil do Rio; outro, conselheiro do Tribunal de Contas; seu irmão, deputado federal; o pistoleiro e seu motorista, ex-PMs. Essa casta não rouba carros, alguns usam veículos oficiais.

Pior: Marielle foi assassinada porque atrapalhava os negócios de grilagem de terras e as milícias dos irmãos Brazão. Novamente, os bandidos que mataram Marielle relacionavam-se com o crime que age nas frestas da ausência do Estado, quer na barafunda fundiária, quer na exploração da falta de segurança pública.

Se existisse um sindicato do crime desorganizado, ele protestaria diante da concorrência desleal praticada pelos doutores e pelos policiais. Esse mesmo sindicato defenderia a classe contra a expansão de suas atividades criminosas.

Se tudo isso fosse pouco, Marielle foi executada três semanas depois da presepada da intervenção militar na segurança do Rio, e o crime foi planejado pelo chefe da Polícia Civil do Rio, nomeado pelos generais que poriam ordem na casa.

Inicialmente, pensou-se que o atentado era uma resposta dos criminosos convencionais demarcando o domínio do território. (O signatário caiu nessa.) Ilusão democrática. Não havia bandidos avulsos no lance. Só bandidos articulados no aparelho estatal. Gente que defende seu mercado estimulando a repressão aos PPPPs (pretos, pardos e pobres da periferia). Nela, as polícias matam pelo país afora, dizendo que são “suspeitos”.

Faz tempo, o assaltante Lúcio Flávio Vilar Lírio enunciou sua lei:

— Polícia é polícia, bandido é bandido.

Ela nunca foi respeitada, mas a morte de Marielle mostrou que o apodrecimento do Estado foi além. Ao longo de seis anos, a engrenagem da segurança pública foi sabotada para proteger os criminosos.

Foi a entrada da Polícia Federal no caso que interrompeu a putrefação. Vale lembrar que um policial federal alertou os generais sobre a periculosidade do delegado colocado à frente da polícia do Rio. Não foi ouvido. Naqueles dias, um general foi a um quartel da PM, e a tropa não lhe deu imediata continência. Não desconfiaram de nada. Achava-se que muita coisa se resolveria se fosse criado o instituto das autorizações para invasão de domicílios a partir da suspeita contra ruas. Pura demofobia.

De forma esparsa, a metástase do Estado fluminense repete-se em muitos outros. Até hoje, a reação do poder público tem oscilado entre a benevolência e as presepadas.

A crise da segurança pública não será resolvida por balas de prata, mas a Polícia Federal está aí, mostrando que, bem ou mal, resolve alguns casos que lhe chegam.

No início do século XX, os Estados Unidos tinham crime organizado, polícia corrupta e Justiça venal. Criado o Federal Bureau of Investigation, o jogo virou. Seu diretor era um sujeito detestável, mas criou o FBI.

É palpite, mas se a execução de Marielle tivesse capitulado um crime federal, a quadrilha que planejou e executou o crime não teria o atrevimento de embaçar a investigação por seis anos. O respeito à autonomia constitucional dos estados serviu apenas para proteger bandidos encastelados no aparelho do Estado.

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terça-feira, 26 de março de 2024

O CRIME REDUZ A DEMOCRACIA

Míriam Leitão, O Globo

Revelações da PF sobre o caso Marielle mostram que houve no Rio uma simbiose entre o crime e a estrutura do próprio Estado

É de democracia que se trata no caso da morte de Marielle Franco. Desde o começo. Os que mataram a vereadora, crime no qual morreu também o motorista Anderson Gomes, estavam atingindo um mandato, uma representante que se dedicava a uma agenda ampla de defesa dos moradores do Rio. A operação contra os suspeitos de serem mandantes joga luz sobre o risco democrático que se vive no Rio, pela promiscuidade entre o crime, a política e a polícia. Marielle era uma vereadora em início de primeiro mandato, sem conexões com o poder local, nascida em área de periferia, e mesmo assim, foi vista como um obstáculo à expropriação de terra pública, que seria grilada para depois, em muitos casos, ser o caminho para explorar os pobres sem casa.

O crime é de uma torpeza sem limites, e além disso, essa etapa que está sendo revelada dos irmãos Brazão mostra um pouco do que tem sido o Rio. Sempre se disse que organizações criminosas, traficantes e milicianos, dominam parte do território. Mas a realidade é ainda pior. Houve uma simbiose entre o crime e a estrutura do próprio Estado. Nesta etapa da investigação, o que a Polícia Federal apurou é que um deputado federal, Chiquinho Brazão, um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, Domingos Brazão, exerciam suas funções públicas em defesa dos seus interesses criminosos. Não seriam apenas corrompidos pelo crime, seriam o próprio crime. Para fechar esse verdadeiro cerco à democracia, os indícios são de envolvimento do ex-chefe da Polícia Civil e ex-chefe da Delegacia de Homicídios, Rivaldo Barbosa. O investigador encobrindo o crime.

Por mais espantoso que pareça a atuação dos irmãos Brazão, já havia inúmeros indícios da vinculação deles com o crime, desde a CPI das Milícias. A procuradora- geral Raquel Dodge chegou a pedir a denúncia de Domingos Brazão. Os Brazão eram um caso de impunidade, mas não de surpresa. E por mais espantoso que pareça um deputado e um conselheiro contratando matadores de aluguel para executar uma vereadora, eles não são os únicos. Há mais deles exercendo mandatos ou cargos públicos.

A especulação imobiliária da milícia aproveita-se das falhas da política habitacional para os pobres. Muzema, só para citar um exemplo, favela recente na Zona Oeste, é uma área que foi toda “incorporada” pelos milicianos. Eles vendem, financiam, projetam, constroem os prédios. Os pobres do Rio, que pagam aluguéis caros em favelas como a Rocinha, juntam todas as suas economias para dar entradas nos “financiamentos” e vão morar em prédios que não têm qualquer segurança, podem cair por falha de engenharia, ou por algum deslizamento. E seu dinheiro pode simplesmente ser perdido caso os bandidos resolvam por alguma razão retomar o imóvel. É assim que funciona.

Portanto, quando o inquérito diz que os Brazão achavam que Marielle estava atrapalhando seus planos imobiliários, era isso: ela estava colocando o seu mandato contra as ambições espúrias de quem queria grilar terra pública e explorar os compradores. Marielle corretamente estava querendo as mesmas áreas para habitação popular. Era o exercício democrático do seu papel de vereadora. Pagou com a vida. Com o brutal assassinato eles quiseram demonstrar que qualquer um que atravesse seus interesses pode ter o mesmo fim.

O Mapa dos Grupos Armados do Rio — que foi lançado pelo Instituto Fogo Cruzado e Geni, da Universidade Federal Fluminense, em 2022 —mostrou que as milícias aumentaram 400% a área sob seu domínio nos últimos 16 anos. O do tráfico, no período, cresceu 131%. O crescimento da milícia foi mais acelerado a partir de 2018. E o Rio está há seis anos sem política de segurança.

Cecília Oliveira, do Instituto Fogo Cruzado, disse que muito poderia ter sido evitado se houvesse atenção ao relatório da CPI das Milícias.

—Foram listados lá vereadores, deputados, pessoas lotadas nas prefeituras, câmaras, secretarias do Estado e do município. O relatório é uma espécie de inventário do crime do estado, sobre o qual praticamente nada foi feito. Há dezenas de recomendações para o Ministério Público, governos do estado e federal. Todos sabem quem são, como e com a ajuda de quem eles trabalham — diz a especialista.

Que democracia é essa em que uma parlamentar é morta por exercer seu mandato e em que o crime ocupa o próprio Estado? Para além das mortes trágicas, esse crime ilumina também a perda de qualidade e de consistência da democracia brasileira.

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segunda-feira, 25 de março de 2024

BOLSONARO FUJÃO

Do The New York Times, Folha de S.Paulo

Bolsonaro passa 2 dias em embaixada após ter passaporte retido pela PF; veja vídeo

Imagens de câmera de segurança mostra chegada do ex-presidente ao local; episódio será investigado

RIO DE JANEIRO, BRASÍLIA e NOVA YORK | THE NEW YORK TIMES A Polícia Federal brasileira confiscou o passaporte do ex-presidente Jair Bolsonaro em 8 de fevereiro e prendeu dois de seus ex-assessores sob acusações de que teriam tramado um golpe após o mandatário perder a eleição presidencial de 2022.

Quatro dias depois, Bolsonaro estava na entrada da embaixada húngara no Brasil, em Brasília, aguardando para entrar, de acordo com imagens das câmeras de segurança da embaixada, obtidas pelo The New York Times.

O ex-presidente aparentemente permaneceu no local nos dois dias seguintes, conforme mostraram as imagens, acompanhado por dois seguranças e atendido pelo embaixador húngaro e membros da equipe. Bolsonaro, alvo de várias investigações criminais, não pode ser preso em uma embaixada estrangeira que o acolhe, pois elas são legalmente proibidas de acesso pelas autoridades nacionais.

A estadia na embaixada sugere que o ex-mandatário estava buscando aproveitar sua amizade com um líder de extrema-direita, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, em uma tentativa de escapar do sistema judiciário brasileiro enquanto enfrenta investigações criminais em casa.

O Times analisou três dias de imagens de quatro câmeras na embaixada húngara, mostrando que Bolsonaro chegou no fim do dia em 12 de fevereiro e saiu na tarde de 14 de fevereiro. No intervalo, ele permaneceu principalmente fora de vista.

A reportagem verificou as gravações comparando-as com imagens da embaixada, incluindo imagens de satélite que mostravam o carro em que Bolsonaro chegou estacionado no local em 13 de fevereiro.

Um oficial da embaixada, que falou sob condição de anonimato para discutir assuntos internos, confirmou o plano de hospedar Bolsonaro.

Após a publicação deste artigo, Bolsonaro confirmou sua estadia na representação húngara. "Não vou negar que estive na embaixada", disse ele ao Metrópoles, um veículo de notícias brasileiro, na segunda-feira. "Tenho um círculo de amigos com alguns líderes mundiais. Eles estão preocupados."

A embaixada húngara não respondeu a um pedido de comentário.

Bolsonaro e Orbán têm boa relação há anos, encontrando terreno comum como dois dos principais líderes de extrema-direita em nações democráticas.

Bolsonaro chamou Orbán de "irmão" durante uma visita à Hungria em 2022. Mais tarde naquele ano, o ministro das Relações Exteriores húngaro perguntou a um oficial do governo Bolsonaro se a Hungria poderia fazer algo para ajudar na reeleição do então presidente, segundo relatório do governo brasileiro.

Em dezembro deste ano, ambos se encontraram em Buenos Aires na posse do novo presidente de direita da Argentina, Javier Milei. Lá, Orbán chamou Bolsonaro de "herói".

O ex-presidente brasileiro enfrenta investigações criminais cada vez mais profundas no Brasil. Nos 15 meses desde que deixou o cargo, sua casa foi revistada, seu celular e passaporte confiscados, e vários de seus aliados e ex-assessores foram presos.

Os casos em que Bolsonaro está envolvido contém uma variedade de acusações, incluindo que ele participou de planos para vender joias que recebeu como presentes do Estado enquanto era presidente e que falsificou seus registros de vacinação contra a Covid-19 para poder viajar aos Estados Unidos.

A Polícia Federal brasileira indiciou o ex-presidente no caso envolvendo os cartões falsos de vacinação, mas a Promotoria ainda não se manifestou.

Nas acusações mais graves, a corporação disse que Bolsonaro conspirou com vários de seus principais ministros e assessores para tentar se manter no poder após ser derrotado na eleição. A polícia prendeu alguns de seus principais aliados em 8 de fevereiro e fez buscas nas casas de outros.

Horas depois, Orbán postou uma mensagem de encorajamento para Bolsonaro, chamando-o de "um patriota honesto" e dizendo para ele "continuar lutando".

Em 12 de fevereiro, quatro dias depois, Bolsonaro postou um vídeo convocando seus apoiadores para um comício em São Paulo naquele mês. "Quero me defender de todas essas acusações", disse ele no vídeo. "Até lá, se Deus quiser."

Mais tarde naquele dia, ele foi para a embaixada húngara. Às 21h34, um carro preto apareceu na missão oficial. Um homem saiu, aparentemente batendo palmas para chamar a atenção de alguém. Três minutos depois, o embaixador húngaro no Brasil, Miklós Halmai, abriu o portão do local e indicou onde estacionar.

No dia seguinte, às 7h26, Halmai saiu da área residencial e digitou em seu telefone. Meia hora depois, o embaixador e outro homem levaram uma cafeteira para a área residencial.

Durante o resto do dia, a equipe húngara circulou pelos terrenos da embaixada, incluindo pais com uma criança. No início da noite, Bolsonaro passeou pelo estacionamento da embaixada com um de seus seguranças.

Duas vezes, os seguranças de Bolsonaro saíram. Por volta do almoço, um guarda retornou com o que parecia ser uma pizza. Às 20h38, um dos agentes voltou para o estacionamento da embaixada com outro homem no banco de trás. Carregando uma bolsa, ele entrou na área residencial, onde o ex-presidente parecia estar hospedado. O homem saiu 38 minutos depois.

Enquanto o carro partia, um homem parecido com Bolsonaro saiu da área residencial para observar.

Em 14 de fevereiro, os diplomatas húngaros entraram em contato com os membros de sua equipe, que estavam programados para voltar ao trabalho no dia seguinte, dizendo-lhes para ficarem em casa pelo resto da semana, de acordo com um oficial da embaixada. Eles não explicaram o motivo, disse o servidor.

Naquele dia, Bolsonaro foi visto pela primeira vez nas imagens das câmeras de segurança às 16h14, quando ele e seus dois seguranças saíram da área residencial carregando duas mochilas e foram diretamente para o carro. Halmai os seguiu. O embaixador assistiu ao carro sair e acenou.

Uma possível prisão de Bolsonaro tem provocado ampla especulação de que ele possa tentar fugir da Justiça. Dois de seus filhos solicitaram passaportes italianos, levando o ministro das Relações Exteriores do país a negar publicamente que Bolsonaro, com ascendência italiana, também tenha buscado cidadania.

Na noite anterior à sua saída do cargo, o ex-presidente voou para a Flórida e ficou por três meses. Um de seus apoiadores mais proeminentes, o comentarista de extrema-direita Allan dos Santos, conseguiu evitar a prisão no Brasil sob acusações de que ameaçou juízes federais por buscar asilo político nos Estados Unidos.

Duas semanas após a saída de Bolsonaro da embaixada —não está claro por que ele saiu— ele realizou o comício planejado em São Paulo. Observadores independentes estimaram que 185.000 apoiadores compareceram. No comício, o político repetiu a ideia de que era vítima de perseguição política.

Ele e seus advogados argumentaram que o Supremo Tribunal do Brasil abusou de seu poder, interferiu nas eleições de 2022 e agora está tentando prendê-lo e a seus aliados. Eles recentemente apontaram para gravações de um ex-assessor de Bolsonaro, cujas confissões se tornaram fundamentais para as investigações, alegando que os investigadores têm uma narrativa predefinida de culpa do ex-chefe do Executivo.

Nas semanas seguintes, os problemas legais de Bolsonaro pioraram. O Supremo Tribunal do país divulgou documentos mostrando que os líderes do Exército e da Força Aérea Brasileira disseram à polícia que, após perder as eleições de 2022, Bolsonaro apresentou a eles um plano para reverter os resultados.

Os líderes militares disseram à polícia que se recusaram e alertaram o ex-presidente de que poderiam prendê-lo se ele tentasse fazê-lo.

Bolsonaro disse neste mês que não está preocupado em ser preso. "Eu poderia muito bem estar em outro país, mas decidi voltar aqui a todo custo", disse ele em um evento político. "Não tenho medo."

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

Jack Nicas , Leonardo Coelho , Paulo Montoryn e Christoph Koettl

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GANCHO PESADO

Letícia Marques e Raphael Zarko, ge — Rio de Janeiro

Gabigol, do Flamengo, pega dois anos de suspensão por tentativa de fraude em antidoping; pena vai até 2025

Pena começa a contar a partir da coleta, no ano passado, e termina em 8 de abril de 2025. Cabe recurso à Corte Arbitral do Esporte (CAS). Jogador participou do julgamento nesta segunda

Gabigol foi suspenso por dois anos por fraude do exame antidoping. O julgamento, que teve início na semana passada, foi concluído nesta segunda-feira pelo Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD), em sessão que durou pouco mais de duas horas.

Por previsão do regulamento antidopagem (leia mais abaixo), a pena começou a valer a partir de 8 de abril de 2023, quando foi realizada a coleta de exames no CT do clube, ainda que o jogador estivesse em atividade no último ano. Portanto, ele está impedido de jogar até abril de 2025. Cabe recurso.

O julgamento foi apertado, com o placar de 5 a 4 a favor da punição do atacante.

Com dois anos de gancho - a punição poderia chegar a quatro anos -, Gabigol pode jogar em abril de 2025 - ou seja, não em abril de 2026. A vice-presidente do Tribunal de Justiça Antidopagem, Selma Melo, explicou que o código estabelece o seguinte no inciso II do artigo 163 - o artigo que trata do início do período de suspensão:

"na hipótese de atrasos substanciais no procedimento de gestão de resultados e, quando demonstrado pelo atleta ou outra pessoa que não deu causa a tais atrasos, a ABCD ou o TJD-AD, conforme o caso, poderá estabelecer o início do período de suspensão:

I – na data de coleta da amostra;"

(Trechos extraídos do Código Brasileiro Antidopagem)

+ Entenda atitudes de Gabigol que foram consideradas tentativa de fraude no antidoping

O que significa: houve "atraso substancial" entre a coleta em abril de 2023 e a denúncia no fim do ano passado. Gabigol foi acusado por infração ao artigo 122 do Código Brasileiro Antidopagem, que se refere a "fraude ou tentativa de fraude de qualquer parte do processo de controle". O código prevê suspensão de até quatro anos em caso de condenação. Mas o jogador pegou dois anos por previsão de redução de pena em casos de "comprovação de circunstâncias excepcionais".

A defesa contou com o testemunho bioquímico LC Cameron, que foi chamado para discutir métodos e técnicas de detecção de exame antidoping. Ele foi questionado pelos advogados que representam Gabigol, pela Procuradoria do tribunal e pelos auditores. No depoimento, Cameron informou que, principalmente do ponto de vista do resultado da coleta, não haveria transgressão.

Recurso no CAS

O jogador foi representado pela equipe do advogado Bichara Neto, que defendeu Paolo Guerrero na suspensão por doping nos tribunais da Fifa em 2017. O vice-presidente geral e jurídico do clube, Rodrigo Dunshee, também participou da sessão em defesa do atacante, que vai recorrer com auxílio do Flamengo (leia nota abaixo) à Corte Arbitral do Esporte, na Suíça, um tribunal da Fifa.

A denúncia foi feita no fim de dezembro. A defesa do jogador foi enviada no dia 26 de janeiro, dentro do prazo, e contou com imagens da câmera de segurança do Ninho do Urubu para tentar corroborar a versão do atleta.

No último dia 20, foi realizada durante cinco horas, de forma online, a primeira sessão do julgamento no Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD). Gabigol prestou depoimento por videoconferência, assim como outras sete testemunhas.

Na ocasião, o tribunal resolveu encerrar a sessão e dar continuidade nesta segunda, também de forma remota. Gabigol novamente participou da sessão nesta tarde. Um dos pontos de defesa do jogador diz que o atacante fez o exame de sangue, considerado mais efetivo.

Veja a nota oficial do Flamengo

"O Clube de Regatas do Flamengo, tomando conhecimento do resultado do julgamento do seu atleta Gabriel Barbosa, no sentido de aplicação de pena de suspensão de 2 anos, até abril de 2025, por 5 votos pela condenação e 4 pela absolvição, vem a público dizer que recebeu com surpresa a referida decisão e que auxiliará o atleta na apresentação de recurso à Corte Arbitral do Esporte (CAS), uma vez que entende que não houve qualquer tipo de fraude, nem mesmo tentativa, a justificar a punição aplicada."

Entenda o caso

Gabigol foi acusado de dificultar a realização do antidoping. Mesmo que tenha feito o exame e testado negativo, segundo o artigo, a atitude relatada pelos oficiais de coleta se encaixa como "fraude ou tentativa de fraude de qualquer parte do processo de controle" e, por isso, o atacante respondeu pelo artigo 122 do Código Brasileiro Antidopagem.

Um dos relatos da denúncia diz respeito à demora do atacante para a realização do exame e o não cumprimento das instruções. À exceção de Gabigol, os jogadores do Flamengo fizeram o exame antes do treino das 10h. O caso aconteceu no dia 8 de abril de 2023 no Ninho do Urubu.

De acordo com os responsáveis pelo exame, o jogador não se dirigiu a eles antes do treino, depois da atividade os ignorou e foi almoçar, tratou a equipe com desrespeito, não seguiu os procedimentos indicados, pegou o vaso coletor sem avisar a ninguém, irritou-se ao ver que o oficial o acompanhou até o banheiro para a coleta e, ao fim, entregou o vaso aberto, contrariando orientação recebida.

O processo conhecido como doping surpresa é realizado pela Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) e costuma ocorrer sem aviso prévio nos centros de treinamentos. Gabigol recebeu a primeira notificação sobre a tentativa de fraude no dia 30 de maio. Posteriormente, o vice geral e jurídico do Flamengo, Rodrigo Dunshee, fez a primeira defesa do jogador. Na sequência, o clube contratou o advogado Bichara Neto para defender o jogador.

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CONDENADO POR ESTUPRO

Do g1

Daniel Alves deixa prisão após pagamento de fiança

Tribunal de Barcelona aceitou pedido da defesa para que ex-jogador aguarde em liberdade a decisão final. Alves recorreu da sentença que recebeu em fevereiro pelo crime de agressão sexual.

Depois de quase 15 meses preso e de pagar uma fiança de 1 milhão de euros, o ex-jogador Daniel Alves, condenado por ter estuprado uma mulher em uma boate na Espanha, deixou a prisão nesta segunda-feira (25) respaldado por uma autorização de liberdade provisória.

Acompanhado de sua mãe, de sua advogada e de um amigo, Alves saiu nesta manhã da prisão de Brians 2, parte de um complexo prisional a 40 quilômetros de Barcelona. O brasileiro estava no local desde janeiro de 2023, quando foi preso preventivamente enquanto o caso era investigado.

Nesse período, o ex-jogador teve negados quatro pedidos para aguardar em liberdade. Na semana passada, no entanto, a Justiça espanhola aceitou conceder liberdade provisória.

O ex-jogador pagou, também nesta segunda, a fiança de 1 milhão de euros (cerca de R$ 5,4 milhões) estipulada pela Justiça. Após verificar o pagamento e recolher os dois passaportes do ex-jogador (o brasileiro e o espanhol), a Audiência Provincial de Barcelona, responsável pelo caso, decretou a liberdade do brasileiro.

Na última quarta-feira (20), os juízes da Audiência de Barcelona -- a corte mais alta da cidade -- aceitaram, por maioria, deixar Alves em liberdade enquanto a defesa aguarda a sentença definitiva. Sua defesa recorreu da condenação.

No sábado (23), o Ministério Público de Barcelona recorreu dessa decisão e pediu para que Alves volte à prisão. A Audiência de Barcelona ainda vai analisar o pedido da promotoria.

Em fevereiro, Alves foi condenado a quatro anos e meio de prisão pelo crime de agressão sexual -- ele foi acusado de estuprar uma mulher em uma boate em Barcelona. A defesa, no entanto, recorreu da sentença e, na sequência, pediu para que o brasileiro aguardasse a deliberação final em liberdade.

Ao deixar a prisão, o brasileiro entrou no carro no qual sua mãe e sua advogada haviam ido à prisão. O jogador tem uma residência em um bairro nobre de Barcelona. Até a última atualização desta reportagem, a defesa de Alves não informou para onde ele iria.

O brasileiro poderia ter saído na quinta e na sexta, mas nas duas ocasiões não fez o pagamento da fiança.

Condições para a liberdade

A sentença que garantiu a liberdade provisória sob fiança também determinou que Daniel Alves:

É obrigado a manter uma distância de pelo menos 1 quilômetro da residência da vítima, de seu local de trabalho ou de qualquer outro lugar frequentado por ela -- a jovem é de Barcelona e também vive na capital catalã;

Também não pode tentar se comunicar com a denunciante através de nenhum meio;

Não pode deixar a Espanha;

Deve comparecer semanalmente ao Tribunal de Barcelona ou quantas vezes lhe for solicitado.

"O tribunal delibera, por maioria e com voto individual: 'Acordar a prisão provisória de Daniel Alves, que pode ser evitada mediante o pagamento de uma fiança de 1.000.000 euros e, se o pagamento for verificado, e acordada a sua libertação provisória, ou retirada de ambos os passaportes, espanhol e brasileiro, a proibição de sair do território nacional, e a obrigação de comparecer semanalmente a este Tribunal Provincial, bem como quantas vezes for convocada pela Autoridade Judiciária", disse a sentença.

O brasileiro comprou a residência na capital catalã quando jogava pelo Barcelona. Sua esposa, a modelo espanhola Joana Sanz, vive atualmente na residência, segundo a imprensa espanhola.

A mãe de Daniel Alves, Maria Lucia Alves, celebrou a sentença nas redes sociais e disse que "a vitória chegou".

Ela também é alvo de um processo que corre na Justiça espanhola por ter divulgado supostas imagens da vítima -- desde o início do caso, a juíza responsável proibiu que a identidade da denunciante fosse divulgada por qualquer meio.

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BRASIL E RANKING DE FELICIDADE MUNDIAL

Artigo de Fernando Gabeira

Um ranking da felicidade mundial andou circulando na semana passada. O Brasil aparece no 44º lugar. Os escandinavos figuram, como sempre, na dianteira.

Sou cético diante do conceito de felicidade permanente. Concordo com o poeta Vinícius de Moraes e a vejo como uma gota de orvalho que oscila e cai como uma lágrima de amor.

Trabalho mais com o conceito de segurança, ou mesmo de aversão ao risco. A social-democracia o interpretou bem e ganhou mentes e corações.

Para que se declarem felizes, as pessoas precisam de um sistema público de saúde eficaz. A saúde, para mim, é o fundamento da sensação de felicidade, assim como o bom passe é um fundamento para uma boa partida de futebol.

O Brasil, com sua imensidão e complexidade, tem um sistema público de saúde respeitável. Durante a pandemia, mesmo quem não o usa levantava cartazes com os dizeres “Viva o SUS”.

Conheço casais de idosos que se mudaram para o interior por causa de hospitais públicos satisfatórios em algumas cidades médias brasileiras.

Uma família amiga tem um dos seus internado num hospital público no Ceará. Caso difícil, uma semana de UTI. Se não houvesse assistência gratuita, seu ente querido estaria morto.

Nem tudo é tranquilo. O Fantástico mostrou uma senhora rastejando pelas escadas, pois não pode se mover normalmente por falta de uma prótese. Espera há dez anos. Num hospital federal do Rio há um depósito de próteses novas abandonadas.

A combinação de crime organizado e manipulação política criou um estado agudo de crise nos hospitais federais do Rio. É algo antigo. Gustavo Bebianno, no governo Bolsonaro, denunciou a presença de milícias. Wilson Witzel chegou a anunciar que denunciaria os esquemas no Congresso. Segundo o Ministério da Saúde, houve casos de boa administração no Hospital da Lagoa. Logo, em tese, o problema é solucionável.

Torço para que o governo corra em busca da solução. A tarefa de garantir saúde no Brasil é muito cara. Surgem novas doenças, novas operações. Na semana passada, um brasileiro em Boston liderou o transplante de um rim de porco num homem. Uma pequena revolução.

É preciso muito dinheiro. E, sem uma administração primorosa, nem com muito dinheiro alcançaremos o objetivo.

Não vejo a saúde isoladamente. O caso dos ianomâmis, para os quais o país não acha uma saída, depende muito do contexto. É preciso retirar mineradores e despoluir os rios, as grandes fontes de proteína na Amazônia. Com a água contaminada e sem o que comer, não vejo possibilidade de melhorar o nível, sobretudo entre as crianças.

O ranking mundial de felicidade coloca o Afeganistão dos talibãs como último colocado. Mas, sem água, comida e com hospitais em chamas, bombardeados por Israel, creio que os palestinos encarnam, neste momento, a mais trágica condição humana.

Governos costumam pensar no aumento de consumo para satisfazer seus eleitores. Esquecem que a saúde é um caminho real. Escrevi sobre ela, como se fôssemos apenas um corpo físico. Mas, nos últimos anos, é evidente para todos que os problemas de saúde mental também são muito importantes.

Até determinado momento, eram considerados muito secundários. Ocupar-se deles parecia uma frivolidade diante da gravidade do câncer, das doenças cardíacas.

Lembro-me de que o Butão foi o primeiro país do mundo a considerar a felicidade como critério de avaliação mais importante do que o crescimento do PIB. Mas, de novo, contornarei essa discussão para me fixar apenas na saúde. É um pouco ilusório pensar que governos resolvem a felicidade individual. O que as pessoas dizem na rua é isto:

— Saúde e paz, o resto a gente corre atrás.

O que me leva também a uma intuição nada científica de que o governo obteria sua recompensa se chegasse a um sistema de saúde eficaz e a uma política bem-sucedida de segurança pública.

Os recados da rua não são dogmas, mas às vezes ajudam.

Artigo publicado no jornal O Globo em 25/04/2024

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