Do
O GLOBO
Por que temos tanto ódio? Especialistas apontam raízes da
atual ira nacional
Afinal, o que houve com a imagem do brasileiro pacífico e
cordial?
RIO — O texto de apresentação da exposição que começará a
percorrer o Brasil nas próximas semanas é taxativo: “Se você aprendeu na escola
que este é um país pacífico e conciliador, nas próximas páginas vai
desaprender.” Foram as palavras escolhidas pela historiadora Angela Alonso
(USP) para sintetizar a mostra “Conflitos; fotografia e violência política no
Brasil 1889-1964”.
Convidadas pelo Instituto Moreira Salles (IMS), Alonso e as
também historiadoras Heloisa Murgel Starling (UFMG) e Angela Castro Gomes
(UNI-RIO) chamam a atenção para um sentimento que o Brasil não tem conseguindo
disfarçar: o ódio. A imagem do brasileiro como um povo pacato e cordial,
vendida e comprada durante décadas, está na berlinda. Segundo especialistas, já
fomos mais afáveis, mas nas últimas décadas a hostilidade assumiu um papel
banal em nosso cotidiano. Um exemplo tão tolo quanto verdadeiro: o atual mascote
da seleção de futebol é um pássaro que teria tudo para ser pacífico, mas ganhou
popularidade justamente por seu semblante enfezado, pronto para a briga: o
Canarinho Pistola.
Após passar por Rio e São Paulo, a mostra do IMS foi
compactada num Caminhão Museu e visitará vários estados levando imagens que
chocam e levam a refletir sobre a origem de nossa ira e sua face atual.
— O que vejo de novo hoje é que essa violência está
disseminada na sociedade como uma prática banal. Conflito e repressão sempre
existiram, mas hoje é algo vazio, sem pensamento e sem propósito — afirma
Heloísa Starling.
A culpa é do outro
Alguns exemplos recentes expõem o fenômeno. O massacre de 10
pessoas na escola Raul Brasil, em Suzano (SP); a ação de um guarda civil de
Ouro Preto, durante a Páscoa, que pisoteou um tapete de serragem em homenagem à
vereadora Marielle Franco (vereadora do Rio assassinada em 2018); ameaças em
universidades cariocas contra mulheres e gays, entre outros.
— Vejo reações ressentidas de pessoas que se sentem vítimas
— diz Heloísa Starling. — E quando as pessoas se sentem vítimas e culpam os
outros, surge a intolerância.
A esta altura de sua análise sobre o atual contexto social
brasileiro, a historiadora cita o personagem que dá título a um conto e um
livro de Rubem Fonseca, “O cobrador” (1979): um homem ressentido que anda pela
vida cobrando o que considera que a sociedade lhe deve.
Dentro dessa lógica captada pelo escritor carioca há 40
anos, o outro passa a ser visto como um inimigo em função de um pensamento
binário — o certo e o errado, o bom e o mau. Nos últimos anos, técnicas para
lidar justamente com esta matriz de pensamento têm se tornado mais conhecidas
no Brasil, entre elas a da Comunicação Não Violenta (CNV), criada pelo
psicólogo americano Marshall Rosenberg.
Dois de seus principais promotores no país são Sandra
Caselato e Yuri Haasz, que nos próximos dias realizarão um grande seminário
sobre o assunto, com mais de 120 pessoas de diferentes países. Segundo contou
Sandra, a demanda por cursos de CNV tem crescido de forma expressiva.
— Uma das metas da CNV é mudar o paradigma do ganha-perde
para um ganha-ganha. A ideia é tornar a vida melhor para todos e não somente
para alguns. As pessoas precisam se conectar mais, é preciso transformar as
relações, todo o sistema — diz Sandra Caselato.
Sandra e Yuri têm trabalhado em diferentes setores, entre
eles no Judiciário, para tentar aproximar posições e criar ambientes de maior
empatia. Para ambos, “se for mantido o paradigma do certo e o errado ficará
aberta a porta que legitima a violência em nossa sociedade”.
A imposição de uma lógica binária, o sim ou o não, também é
vista como parte essencial da problemática do ódio e da consequente violência
no Brasil pelo filósofo Eduardo Jardim. Basicamente, salienta ele, “porque não
deixa opção de saída”.
— Um lado sempre vê o outro como inimigo, principalmente no
contexto político, e disso nada sai — assegura Jardim.
Antagonismo e admiração
O desafio de conviver com outro que é diferente é um dos
elementos centrais do livro “Correspondência” (Editora PUC), que revela cartas
entre o escritor Mário de Andrade (1893-1945) e o pensador católico Alceu
Amoroso Lima (1893-1983)trocadas durante anos, até meados da década de 1940.
Jardim participou recentemente de um debate sobre o livro e destacou como,
neste caso, duas figuras totalmente antagônicas conseguiram preservar a amizade
e o respeito mútuo. Em carta de dezembro de 1943, Mario de Andrade diz ao
amigo: “quaisquer que sejam os motivos de nossas recíprocas incompreensões,
qualquer que seja a variedade de nossos caminhos, quero dizer-lhe quanto bem
lhe quero desde os tempos remotos do seu primeiro livro, o quanto admiro a
gravidade, a importância, a originalidade e a força de sua obra”.
— Já fomos muito mais tolerantes, e este livro é prova disso
— defende o filósofo. — Este ódio e esta intolerância não levarão a nada, temos
de ir além disso e aceitar o convívio das diferenças.
Seu amigo e colega Renato Lessa, professor associado da
PUC-Rio e pesquisador associado à Universidade Sorbonne, de Paris, diz nunca
ter visto “este ódio na política brasileira” e responsabiliza, em grande
medida, autoridades extremistas que “disseminam este ódio ao resto da
sociedade”.
— Muitas pessoas ouvem certos estímulos e resolvem passar ao
ato, sentem que agora podem, que a violência foi liberalizada — observa Lessa.
A violência e o ódio na política não são novos, admite
Heloísa. E faz um alerta:
— Esta violência que estamos vendo hoje é perigosa porque
indica que a política, que é pluralismo, está morrendo. A sociedade não está
praticando valores democráticos.