domingo, 31 de dezembro de 2023

O ANO EM QUE O MERCADO FALHOU

Míriam Leitão, O Globo

Números de 2023 foram melhores do que os previstos e ainda tiveram outras surpresas positivas

O que marca 2023 é o fracasso das projeções econômicas. Até economistas do mercado financeiro estão olhando com desconfiança para os próprios modelos. O ano terminou com números muito melhores do que os previstos. Houve também erro na sequência de eventos projetados para a economia.

Comparando-se os dados das duas pontas, o país iria crescer pouco mais de 0,5%, e cresceu 3%, iria ter uma inflação de 6% e ela termina em torno de 4%. Não cumpriria a meta e ela foi cumprida. Houve um momento do ano em que os analistas diziam que só haveria queda da inflação de serviços se houvesse forte aumento do desemprego. A inflação de serviços caiu com aumento do emprego.

O que mais cresceu no Caged foram vagas formais no setor de serviços e a Pnad Contínua mostrou que o desemprego até novembro foi o menor para o período desde 2014, com mais de cem milhões de brasileiros empregados, um recorde.

No começo do ano já se sabia que o país teria uma supersafra, portanto era possível prever um crescimento maior do que a mediana do Focus, de 0,7%. É verdade que o crescimento de 2023 foi concentrado no setor do agronegócio e ficou restrito aos primeiros dois trimestres. O fim do ano foi de economia estagnada. Mesmo assim, crescer 3% com juros altos não é um desempenho trivial.

Uma das surpresas de 2023 foi o saldo comercial que pulou de US$ 62 bilhões para perto de US$ 100 bilhões, injetando dólares na economia, o que foi importante para manter o câmbio estável, mesmo no período em que a entrada de capital estrangeiro era fraca. O real teve valorização durante o ano, derrotando também as projeções do mercado financeiro e ajudando a inflação no seu processo de convergência para a meta.

Dois personagens são centrais para o sucesso da economia em 2023. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Haddad contrariou as apostas iniciais de que o governo Lula seria de descontrole fiscal.

Prometeu em suas primeiras entrevistas, inclusive em uma que me concedeu, que o déficit não seria o projetado de R$ 230 bilhões, ou 2,3% do PIB e que suas prioridades seriam a aprovação de um arcabouço fiscal e da Reforma Tributária. Terminou o ano com um déficit mais alto do que gostaria, mas em um ponto percentual do PIB abaixo do previsto, ou seja, 1,3%. E aprovou no Congresso tanto o arcabouço, quanto a Reforma Tributária, o que parecia improvável.

Campos Neto foi criticado por manter os juros altos demais por muito tempo. As indicações da desinflação já estavam dadas, e o Copom mantinha os juros inalterados. Mas o fato incontestável é que Campos Neto não terá que escrever a carta explicando o descumprimento da meta, como teve que fazer nos últimos dois anos. A meta está cumprida.

Além disso, ele atravessou com sucesso o teste de estresse do Banco Central autônomo, que foi a mudança de governo. Na entrevista que me concedeu, definiu como “tempo de aprendizado” o período em que esteve sob ataque direto do novo governo.

Nada foi fácil para o ministro Fernando Haddad, mas ele terminou o ano com uma coleção notável de sucessos. Venceu as batalhas internas do governo e do partido e as que travou no Congresso. Contudo, no pacote do dia 28 de dezembro, pode ter contratado um fracasso. A MP misturou três assuntos, um deles bem tóxico, e foi divulgada em momento impróprio.

Haddad tem razão em combater as perdas de arrecadação, e tem sido resiliente no enfrentamento de interesses localizados. Mas o fato é que o governo perdeu completamente a batalha na desoneração dos 17 setores. O Congresso aprovou, o governo vetou, o Congresso derrubou o veto com uma larga margem de votos. Baixar uma MP dizendo o contrário do que decidiu o Congresso no mesmo dia da promulgação da desoneração deixou-o isolado politicamente.

Para além da economia, o governo também teve vitórias. O país que era pária voltou ao mundo. E se sentou, entre outras mesas, naquela que conduz as negociações globais do clima. Chegou com dados positivos para mostrar, de queda do desmatamento na Amazônia.

Em outras áreas, o Brasil se reconectou com princípios civilizatórios como defesa da vacina, combate ao armamentismo, combate ao garimpo ilegal e, o mais importante, defesa da democracia atacada no 8 de janeiro. Muita promessa não foi cumprida, mas o balanço geral do ano é positivo. Feliz Ano Novo.

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FELIZ 2024 !

Caros leitores, amigos, mais um ano termina. 2023 foi um ano de muitas conquistas e recordes para o blog Sou Chocolate e Não Desisto, resultado de muito trabalho nestes 18 anos de existência. 

A cada ano, ganhamos mais repercussão na internet, entre blogs e sites que reproduzem nossas postagens. Nas redes sociais como Facebook, X (Twitter) e Instagram, o blog tem se destacado.

A todos leitores, amigos, muito obrigado! Desejo um Ano Novo de realizações, saúde, muito amor, paz e esperança. Feliz 2024!. Abraço, Valerio Sobral.

Em 2023 vem novidades aí nos 19 anos do Sou Chocolate e Não Desisto.

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sábado, 30 de dezembro de 2023

AS PREVISÕES MUDAM. AINDA BEM

Carlos Alberto Sardenberg, O Globo

No início deste ano, o clima mundial era de inflação alta, com juros subindo, situação nada propícia para o crescimento

O presidente Lula manifesta especial satisfação em atacar ou zombar do mercado financeiro, quando este erra previsões. Neste ano ofereceu boas oportunidades.

Em janeiro, o mercado esperava, para o ano, inflação de 5,36% e crescimento do PIB de 0,78%. Sobre a inflação, ainda não temos os números finais, mas deverá ficar na casa dos 4,5%. No caso do PIB, o desvio será bem maior. Saberemos o resultado lá por abril, mas já se dá como certo, no próprio mercado, que terá crescido em torno de 3%.

Para Lula e Haddad, não há dúvida. O mercado apostava no desastre.

Será?

A questão é saber o que explica os desvios. Para isso, é preciso entender como são feitas as previsões. Elas aparecem semanalmente no site do Banco Central, no Relatório de Mercado, também conhecido como Boletim Focus. Fazem parte do regime de metas de inflação.

O BC recebe do Conselho Monetário Nacional a meta a ser cumprida ano a ano. E trata de alcançá-la fixando a taxa básica de juros, a Selic. Para cima quando a inflação está em ritmo de alta — e inversamente quando cai. Uma questão essencial nesse regime é a credibilidade do BC. O mercado, a sociedade, os meios econômicos e políticos acreditam que o BC alcançará as metas? Por isso o BC tem de saber o que o pessoal de fora está pensando.

O Focus é parte essencial. Bancos, consultorias, departamentos econômicos — algo como 140 instituições participam do sistema. Toda semana, rodam seus modelos e montam cenários para os principais dados macroeconômicos para três anos à frente. O BC recebe isso na sexta-feira, tabula no fim de semana e na segunda, às 8h30, coloca no seu site a tabela com as projeções.

Reparem: isso é feito toda semana, pela simples e boa razão de que a economia muda por fatores variados ao longo do período. Assim, as previsões feitas em janeiro de 2023 estão baseadas em dados conhecidos até aquele momento.

Naquele mês havia dúvidas razoáveis sobre a capacidade (ou vontade) do governo em aplicar algum modelo de ajuste fiscal. Haddad teve de brigar muito, até dentro do seu partido, para aprovar o arcabouço fiscal. Não foi um modelo dos sonhos, mas pelo menos se tinha alguma regra. O ambiente no mercado melhorou com o arcabouço.

Do mesmo modo, no início deste ano, o clima mundial era de inflação alta, com juros subindo, situação nada propícia para o crescimento. Hoje, é quase o contrário. O mundo espera queda de juros em 2024, inclusive e principalmente nos EUA, o que favorece crescimento global. E a China, nossa cliente, não vai tão mal quanto se temia.

Finalmente: se as previsões saíssem de uma bola de cristal vendo futuro imutável, então não seria preciso refazer os prognósticos toda semana, não é mesmo? No início do ano, o Focus dizia que o dólar chegaria hoje a R$ 5,28, pois se entendia que o juro alto nos Estados Unidos valorizaria a moeda americana. Pois ontem o dólar estava em R$ 4,85, refletindo a perspectiva de juros menores.

No Focus desta semana, as previsões para o dólar são: R$ 4,90 para este ano (quase certo); R$ 5,00 em 2024; e R$ 5,05 em 2025. Prestem atenção, o mercado está nos dizendo que, em 31 de dezembro de 2025, o dólar será negociado a R$ 5,05. Qual a chance de cravar? Zero.

Dirão: então para que servem as previsões? Para dizer que os analistas esperam um dólar estável ao longo dos próximos dois anos, isso considerando as condições atuais no país e no mundo.

Tudo considerado, o BC monitora as expectativas e age de acordo. E as expectativas mudam com os fatos e com ações do governo.

Ou pelo que o governo não faz.

O presidente Lula esculachava o presidente do BC, prometia reverter a privatização da Eletrobras e mudar o Marco Legal do Saneamento. O ministro Luiz Marinho dizia que a reforma trabalhista (do governo Temer) era destruidora de empregos e, pois, pretendia mudá-la.

Não conseguiram fazer nada. Segue a Eletrobras, esperam-se mais investimentos privados em saneamento, e o ano vai terminando com recorde de pessoas trabalhando, mais de 100 milhões. E o presidente do BC foi à festa de fim de ano com Lula. Mudou, né?

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2023 FOI RUIM, MAS FOI BOM

Dora Kramaer, Folha de S. Paulo

Entre perdas e ganhos, primeiro ano de Lula 3 termina com saldo positivo

O ano que agora termina foi ruim na avaliação de alguns e bom na opinião de outros. Tudo depende da comparação. Exemplo: os desacertos verbais de Luiz Inácio da Silva ficaram deglutíveis face as vulgaridades do antecessor.

No entanto, apesar da expectativa de um "efeito alívio" duradouro, a avaliação positiva do novo governo oscilou entre a estabilidade e a queda.

As pesquisas indicaram insatisfação com a ausência do presidente devido a prioridade dada à reinserção internacional do Brasil. Também apontaram visão negativa quanto aos problemas na segurança pública.

Na economia houve perdas e ganhos. O saldo foi positivo nas questões relativas ao Congresso. Embora insuficientes para assegurar a meta do déficit zero por meio do aumento da arrecadação, ocorreu crescimento acima do esperado, inflação controlada, balança comercial positiva e reforma tributária aprovada.

Já no campo político nada deu muito certo. A coisa foi aos trancos e barrancos. A ideia do ministro Alexandre Padilha (PT) de que a incorporação de PP e Republicanos lhe daria vida fácil não se concretizou.

Os parlamentares continuaram atuando conforme suas conveniências. Vetos foram derrubados com votos da base formal, medidas provisórias caducaram, decretos e projetos tiveram tramitação recusada.

Na teoria a maioria apoia o Planalto, mas na prática suas altezas só fazem o que lhes interessa: avançam no Orçamento, aumentam exponencialmente o valor do fundo eleitoral e não se constrangem em cortar recursos do PAC. Algo impensável nos dois primeiros governos de Lula.

Tanto que o presidente se voltou a uma inusitada —e eticamente questionável— aliança com o Supremo Tribunal Federal para escapar da armadilha que lhe armou o Parlamento e da qual não apresentou ainda uma forma criativa de se desviar.

O ano que se inicia dirá como o governo resolverá, ou não, esse difícil dilema.

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sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

O DEBATE DA DESIGUALDADE

Fabio Giambiagi, O Globo

Não haverá futuro decente para o Brasil enquanto, politicamente, quem carrega a bandeira do combate à desigualdade continuar com um viés anticapitalista

O documento “Síntese de Indicadores Sociais” (SIS), elaborado pelo IBGE, traz um “raio X” completo do panorama social do país, essencial para o traçado de políticas públicas. Cite-se um caso: a distribuição de renda. Pela última informação disponível, referente a 2022, na tabela do rendimento domiciliar per capita segundo as classes de percentual de rendimento domiciliar per capita, a renda média reportada foi de R$ 1.586, com a renda média do décimo superior da distribuição de renda sendo de R$ 6.448.

Além do IBGE divulgar a renda média do grupo dos percentis de 95% a 100% (R$ 8.995), ele informa a renda do grupo dos percentis 90% a 95%, que era de R$ 3.900. Mais ainda, o IBGE nos diz que a pessoa que se situava exatamente no percentil 90 tinha uma renda de R$ 3.207, de modo que quem recebeu R$ 3.208 se localizava no décimo superior da distribuição.

É difícil convencer uma pessoa de 28 anos, por exemplo, que more sozinha, pague aluguel e dê duro todo dia para poder poupar e juntar dinheiro para se casar, com uma renda mensal de R$ 3.300, que numa escala de 1 a 20, onde o grupo 20 é o dos 5% mais ricos, ela esteja no grupo 19, bem perto do último andar da turma do “andar de cima”, para usar a conhecida figura do jornalista Elio Gaspari.

E, entretanto, essa pessoa, que provavelmente deve se considerar pobre ou, no máximo, “classe média baixa”, pertence, por definição, ao grupo dos 10% mais “ricos”.

Compreensivelmente, confrontada com os dados, ela exclamará: “mas eu não sou rico!”. Neste ponto, é útil introduzir o conceito do que poderíamos denominar de “super-ricos”, cujos dados ajudam a “matar a charada” de como é possível conciliar aquelas informações agregadas com a realidade de quem, mesmo estando entre os 10% de maior renda, está muito longe, de fato, de ser rico, no sentido convencional da palavra.

Registre-se, a propósito, que, pelo dado do IBGE, o indivíduo mais rico (agora sem aspas) do país tinha uma renda mensal de R$ 597 mil, equivalente a 377 vezes a renda média e 3.665 vezes a renda média dos 10% mais pobres.

Um livro essencial para entender essa questão é “Uma história de desigualdade”, de Pedro H. Ferreira de Souza, publicado em 2018 pela editora Hucitec, a partir da tese de doutorado do autor, orientada por Marcelo Medeiros e com uma base de dados diferente da do IBGE.

Ali, com base em informações específicas, é possível desagregar não só os números dos 10% mais ricos incluindo o 1% mais rico, mas também do 0,1% mais rico e, ainda, do 0,01% mais rico do país.

Os últimos dados apresentados detalhadamente no livro se referiam ao ano de 2013, mas em se tratando de questões estruturais, nada indica que, em linhas gerais, essa realidade tenha mudado drasticamente nos dez anos posteriores.

A fotografia que resulta dessa análise é extremamente interessante para o enriquecimento do debate sobre a distribuição de renda no país. A tabela (abaixo), elaborada com a gentil colaboração do autor, que cedeu parte dos dados, traz algumas informações-chave para a compreensão da questão.

Ela indica que os 10% mais ricos tinham 51% da renda do país, sendo que entre eles o 1% mais rico, o 0,1% mais rico e o 0,01% mais rico tinham 23%, 10 % e 5%, respectivamente, da renda.

Não haverá futuro decente para o Brasil enquanto, politicamente, quem carrega a bandeira do combate à desigualdade continuar com um viés anticapitalista e quem defende a bandeira do capitalismo continuar insensível diante de um dos quadros distributivos mais iníquos do mundo.

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quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

LULA 3, ANO 1

Maria Hermínia Tavares*, Folha de S. Paulo

Lula raramente acerta nos improvisos, mas seu governo neste ano é inequivocamente positivo

O presidente Lula raramente acerta nos improvisos. Foram muitos os despropósitos que perpetrou durante o ano, de microfone em punho e nenhum texto a guiá-lo. Governante algum, porém, deve ser avaliado pelo que diz sem pensar, mesmo que se dê à retórica a devida importância política. Melhor olhar para o que realizou, nas circunstâncias dadas.

Isso feito, o resultado do primeiro ano de Lula 3 é inequivocamente positivo. Começando pelo que é fundamental. O teto fiscal desabado foi substituído pelo chamado Novo Arcabouço Fiscal, um conjunto de regras que dão instrumentos para a gestão responsável dos recursos públicos, colocando no horizonte a diminuição do déficit fiscal. A esse avanço seguiu-se a aprovação pelo Congresso de medidas necessárias para assegurar sua viabilidade. E, já com o ano por terminar, deputados e senadores emplacaram a primeira fase da reforma do sistema tributário —na agenda do país há quatro décadas.

Nenhum desses feitos foi trivial. Representaram, cada qual a seu modo, uma vitória sobre ideias enraizadas na esquerda em geral —e no PT em particular—, opostas à noção de equilíbrio fiscal. Implicaram também em enfrentar interesses poderosos de todos quantos, na esfera privada ou no sistema político, fartaram-se de pôr o Estado a serviço de benefícios particularistas, com pencas de vantagens e recursos para alimentar clientelas eleitorais.

Foi ainda uma vitória de um estilo político democrático —encarnado pelo ministro Fernando Haddad—que se assenta no diálogo, no convencimento e na negociação em busca de convergências. Esse, de resto, é o único estilo político capaz de dar frutos para um governo de coalizão tão ampla, a ponto de percorrer o espectro político, da direita à esquerda, e que precisa se entender com um Congresso partidariamente fragmentado e majoritariamente conservador.

O governo foi bem, ainda, no que teve de reconstruir na área social. Aí estão um Bolsa Família vitaminado e mais bem focalizado, aumento real do salário-mínimo, restauração do Minha Casa, Minha Vida, reconstituição dos instrumentos e agências de monitoramento e proteção ambiental, sem esquecer os programas e iniciativas em saúde e educação. A novidade ficou por conta do Desenrola, para aliviar a vida da legião de pequenos devedores.

Com o Plano de Transição Ecológica, da dupla Marina Silva e Haddad, o governo hasteou as promessas de um futuro sustentável e de um papel internacional ativo para o país.

Decerto, nada do que foi feito —ou proposto— é sólido e pode adernar no mar de carências, iniquidades e do atraso que cerca o país. A ver em 2024.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

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quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

2023: O ANO EM QUE A DEMOCRACIA VENCEU

Vera Magalhães, O Globo

O que faltou a Lula foi antever que o 8 de Janeiro não acabaria ali, com as rápidas e exemplares punições da Justiça

Se não tivesse havido nada mais de positivo em 2023, o ano já mereceria figurar nos livros de História como aquele em que a democracia brasileira sobreviveu a uma tentativa de solapá-la por parte do bolsonarismo, o movimento político que governou o país nos quatro anos anteriores e que termina o ano com seu líder, Jair Bolsonaro, inelegível.

Não é pouca coisa, e o fato de termos não só contido o dique do golpismo, como julgado Bolsonaro no mesmo ano em que o 8 de Janeiro aconteceu nos coloca à frente dos Estados Unidos em termos de mecanismos capazes de lidar com as muitas ameaças às instituições que vicejam no mundo tomado pelas novas formas de radicalização política.

É verdade que o governo Lula, os demais Poderes e os partidos políticos não conseguiram executar, ao longo dos 11 meses e pouco desde a intentona golpista, uma agenda de fôlego capaz de fazer com que a polarização que divide quase ao meio a sociedade brasileira arrefecesse.

No oportuno “Biografia do abismo”, os autores Felipe Nunes e Thomas Traumann vão além ao chamar essa divisão de calcificação, dada sua imutabilidade mesmo diante de dados e evidências e dado o descolamento até em relação aos resultados da economia, fator que sempre moveu, como um pêndulo, a avaliação de um governo entre negativa e positiva.

Os indicadores econômicos que Lula entrega depois de um ano são, todos, superiores aos de Bolsonaro, mas ainda assim a avaliação positiva do presidente e de sua gestão ao cabo de um ano é bastante semelhante ao contingente que o elegeu. Foi pequeno o avanço em relação ao eleitorado bolsonarista, e aí não se está falando nem do núcleo duro que aplaudiu tudo que o ex-presidente fez em quatro anos — de oferecer cloroquina para as emas a ameaçar não cumprir ordens do Supremo Tribunal Federal (STF).

Fica, portanto, para um governo que ainda se mostra muito desconectado da nova agenda global e restrito às fórmulas que deram a Lula picos de 80% de popularidade num passado que, vê-se agora, é remoto dada a velocidade das mudanças a tarefa de entender o que aconteceu e de propor novos projetos se quiser amolecer os blocos petrificados.

A despeito do que mostram as pesquisas, há o que celebrar em 2023. Quem assistiu pela TV às cenas de 8 de janeiro não poderia imaginar que a resposta do criticado establishment seria tão rápida, uníssona e eficaz. Basta comparar com a invasão do Capitólio americano, que registrou mortes, ocorreu dois anos antes e até hoje apresenta um histórico de punições mais brando que o nosso.

A atuação da Justiça em todas as etapas em que a democracia foi posta em xeque desde 2020 foi fundamental. O Brasil deve em grande parte ao TSE e ao STF não ter assistido a uma ruptura e ter punido aqueles que tentaram provocá-la.

Lula também teve papel decisivo de segurar o solavanco golpista quando entendeu que precisaria chamar todos, inclusive os governadores oposicionistas, para um compromisso com a República naquele momento.

O que faltou ao presidente foi antever que o 8 de Janeiro não acabaria ali, com as punições rápidas e exemplares da Justiça. Faltou partir da frente ampla da campanha e do pacto civil pós-intentona para tentar quebrar as bases da radicalização política com um novo discurso e uma nova agenda, que não fosse a reprise do que deu certo lá atrás ou a reafirmação de simpatias e crenças — como a defesa da Venezuela como democracia — que simplesmente não encontram aderência na maioria da população brasileira.

A tarefa para 2024 é justamente entender o que precisa mudar. Caso contrário, contrataremos um 2026 com o eleitorado dividido e altamente radicalizado, uma revanche rancorosa de 2022. Tema para a próxima coluna, a última do ano.

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terça-feira, 26 de dezembro de 2023

A COR DO BRASIL E A LONGA TRAVESSIA

Míriam Leitão, O Globo

A maioria negra registrada pelo Censo é mais do que estatística. É o momento em que os números mostram que o país se afasta da negação

Foi a travessia de uma fronteira a que o Brasil cruzou no último Censo ao se reconhecer majoritariamente como pardo e preto. A caminhada veio de longe e parte dela ocorreu em pouco mais de vinte anos. Do ano 2000 para cá aumentou em 42,3% os que se declaram pretos, 11,9% os que se definem como pardos. Juntos formam a maioria dos brasileiros. Sempre foi assim, sempre fomos um país de maioria negra. Mas o pertencimento veio aos poucos e tem um profundo impacto em todos os níveis da vida pessoal, cívica, social e econômica. Quem viu a intensidade desse processo não pode deixar de ter esperanças de um dia o país vencer o racismo em todas as suas formas e perversidades.

Os negros sempre lutaram por reconhecimento e respeito. Das heroicas lutas da escravidão aos primeiros levantes na República. No fim dos anos 1940 e início de 1950, houve o Teatro do Negro, o jornal Quilombo, um rico movimento cultural liderado, entre outros, por Abdias Nascimento. Nos anos 1970, o Movimento Negro foi voz forte contra o racismo e contra a ditadura e, entre as figuras importantes, a lendária Lélia Gonzalez.

A cada passo, contudo, o racismo acabava vencendo e impondo a imagem de um país majoritariamente branco que valorizava apenas as raízes europeias. A ideia era que a miscigenação no Brasil tornara o país diferente dos outros, sem diferenciação pela cor da pele. E que, ao contrário dos Estados Unidos, não havia racismo entre nós.

As cotas vieram contrariar essa tese. Era apenas uma política pública de aumento da inclusão de jovens pobres, pretos e pardos nas universidades públicas, mas o debate ocorrido na época foi acirrado e sacudiu as raízes de um desentendimento profundo sobre o país, sua natureza e seu destino.

Em 2003, já mergulhadas nesse debate aqui no GLOBO, Flávia Oliveira e eu, com a repórter Débora Thomé, fizemos um caderno chamado “A cor do Brasil”. O título era para dizer, vinte anos antes desse reconhecimento que o Censo nos trouxe na semana passada, que o Brasil era em sua maioria preto e pardo. O caderno revisitou o passado do movimento negro encontrando preciosidades nos arquivos do fotógrafo Januário Garcia. Destacou, num texto do maestro Ricardo Prado, a figura histórica do Padre José Maurício, negro, filho de escravizada e mestre capela de Dom João. Débora foi buscar no Jongo a raiz musical do país. O caderno ganhou no exterior o prêmio Jornalismo para a Tolerância, da Federação Internacional de Jornalistas.

Visto daquele ponto, há 20 anos, é possível ter noção de como o Brasil avançou. Em 2006, um manifesto de intelectuais contra as cotas raciais foi assinado por pessoas de destaque em diversas áreas e começava dizendo o seguinte: “o princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre a qual repousa a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção”. Era uma política de reserva de vagas, uma ação afirmativa, num país com vasta e persistente desigualdade racial, mas enfrentou uma reação exagerada como essa de parte da intelectualidade brasileira.

A política de cotas tem sido bem- sucedida para além da inclusão no ensino superior. Foi o início de muitos outros debates, políticas governamentais e ações corporativas para vencer as distâncias sociais, num esforço nacional muito longe ainda do ponto ideal. É preciso persistir.

Em 9 de dezembro de 1948, há 75 anos, o editorial do primeiro número do jornal Quilombo, assinado pelo editor Abdias Nascimento, começava assim: “Nós saímos — vigorosa e altivamente — ao encontro de todos aqueles que acreditam — com ingenuidade ou malícia — que pretendemos criar um problema no país. A discriminação de cor e de raça no Brasil é uma questão de fato. Porém, a luta de Quilombo não é especificamente contra os que negam nossos direitos, senão em especial para fazer lembrar ou conhecer ao próprio negro os seus direitos à vida e à cultura”.

A busca desse conhecimento de direitos é antiga e, de diversas formas, foi interditada. Declarar-se preto ou pardo foi a colheita de um esforço que atravessou gerações, uma luta que viu retrocessos, como em certos momentos do governo passado. O dado divulgado pelo IBGE é mais do que uma estatística. É o momento em que os números registraram a travessia de um país que se afasta da negação e caminha para o seu pertencimento.

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segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

LIÇÕES DE UM ANO VIOLENTO

Artigo de Fernando Gabeira

O ano que acaba foi muito violento. Outros também foram, mas nem tanto. O ataque sangrento do Hamas e as consequências dele assombram os últimos meses de 2023.

Depois de tudo o que vi e li, estupros, execuções covardes, corpos infantis sendo resgatados dos escombros, escolas e hospitais bombardeados, cheguei a escrever que perdi minha fé no ser humano. Ao longo dos dias, ajudado por algumas leituras, concluí que minha fé no ser humano era apenas uma ilusão, o tipo de ilusão que talvez valha a pena manter com a ressalva de que estamos conscientes dela.

Num texto de John Gray sobre os astecas, constato uma nova maneira de ver a violência. Para eles havia um caos subjacente, e a violência do Estado refletia a violência do cosmo e dos deuses. Matavam gente em larga escala, em sacrifícios ritualescos. Foi como se percebessem que não podiam abrir mão da violência e decidiram santificá-la. Segundo Gray, conferiam um lugar central para os impulsos, algo que o pensamento moderno nega.

Os astecas não se chocavam se seus governantes se comportassem com a arbitrariedade de um deus. Para eles, os seres humanos estavam fadados a viver num mundo em que os governantes eram seus inimigos, mas asseguravam um tipo de ordem que, sem eles, não seria possível.

Tudo isso ficou nos tempos remotos. Mas a violência reaparece sempre com nova roupagem. Os guerrilheiros tâmeis no Sri Lanka inventaram o homem-bomba, mais tarde encontrado no Líbano. Era uma violência destinada a construir um novo mundo. Terroristas árabes detonam suas bombas com a esperança de encontrar dezenas de virgens no além.

O pensamento ocidental, segundo Gray, formula saídas ilusórias como a tese de Thomas Hobbes segundo a qual os humanos temem a morte violenta e fazem um contrato para instaurar um governante de poderes ilimitados que exija obediência. Para Gray é uma visão enganadora, porque os humanos em Hobbes são fantasiados para inventar a solução de um problema que não conseguem resolver: conciliar os imperativos da paz com as exigências de suas paixões.

Durante algum tempo cheguei a pensar que a paz era o horizonte da humanidade. Uma ilusão estimulada pelo fato de as grandes potências, nos últimos anos, não fazerem guerra entre si. Mas temem o poder de destruição de um conflito atômico e fazem inúmeras guerras por procuração: armam, treinam aliados, invadem e bombardeiam outros países.

Hoje é dia de refletir sobre o Natal. Mas o Natal não pode ser comemorado em Belém, onde Jesus nasceu. É a guerra. Esse próprio momento de solidariedade e respeito ao próximo que o cristianismo nos oferece pode ser visto de outras maneiras.

No livro “As cruzadas vistas pelos árabes”, Amin Maalouf nos revela a violência cometida pelos cristãos, que degolavam homens, mulheres, crianças e devastavam tudo por onde passavam. Ele diz: tudo leva a crer que, com o conhecimento dessas guerras dos tempos passados, ainda será necessário muito tempo para compreendermos os dramas e os tormentos do mundo de hoje.

Escrevo este artigo no Brasil, onde crianças morrem por balas perdidas, mulheres e gays são assassinados com frequência, há uma polarização política insana que pode resultar em sangue, escrevo, portanto, num lugar em que é preciso tentar entender a violência.

Minha fé na humanidade foi reavaliada neste ano de 2023.

Prefiro considerar as conclusões de Gray:

— Nenhum outro animal busca a satisfação dos próprios desejos, passa a vida no terror da morte, mas se dispõe a morrer para preservar uma imagem de si mesmo; mata a própria espécie em nome de sonhos. Não é a autoconsciência, mas a divisão de si mesmo, que nos torna humanos.

Em meu favor, devo dizer que já intuí isso. Quando Luiz Eduardo Magalhães pediu que votasse na Câmara em nome da bancada de um homem só, na época o PV, respondi:

— Não é fácil, sou apenas um, mas muito dividido.

Artigo publicado no jornal O Globo em 25/12/2023

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FELIZ NATAL !

A todos os amigos, leitores do blog Sou Chocolate e Não Desisto, votos de um Natal de paz, fraternidade, amor e felicidade. Feliz Natal ! Abraço, Valério Sobral.

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domingo, 24 de dezembro de 2023

O TEMPO DA SOLIDARIEDADE

Luiz Sérgio Henriques, O Estado de S. Paulo

O que há de socialismo no mundo, para sair da atual posição defensiva, deve ir além da democracia política. Reelaborar, de modo laico, os valores da solidariedade próprios de todas as religiões

O dito segundo o qual todas as épocas estão a igual distância de Deus muito provavelmente já não nos serve pelo menos desde que se abriu a era atômica. Em linguagem secular, a ser verdade o dito, os tempos valem uns pelos outros, os males são aproximadamente os mesmos, as atribulações humanas essencialmente não se alteram – e beiram o absurdo. A partir de Hiroshima e Nagasaki, no entanto, passamos a carregar um peso infinitamente maior derivado da possibilidade de autodestruição do planeta e da espécie. E, agora, a aceleração vertiginosa inerente à condição pós-moderna, ou hipermoderna, acena para o fato de que a cada dia nos tornamos ainda mais perigosos para nós mesmos. Estaremos, pois, a uma distância maior de Deus.

Este é o vasto contexto no qual as chamadas grandes narrativas entraram em crise irreversível. Não há mais a ilusão de um único pensamento totalizante capaz de apreender, ainda que tendencialmente, o conjunto das determinações da realidade. O marxismo – mesmo tendo sido uma dessas extraordinárias construções totais que buscaram seguir, como sombra incômoda, a mercantilização do mundo – não existe mais como a filosofia insuperável do nosso tempo, na famosa observação de Sartre. E, apesar de ter se afirmado como potente crítica da economia, desde o princípio terá tido a lacuna de uma incompreensão substantiva da política e do Estado. Uma lacuna cheia de consequências, como se sabe.

Por certo, as sociais-democracias clássicas, ainda em vida dos pais fundadores – Karl Marx e Friedrich Engels –, contribuíram para tornar mais complexa a vida política das sociedades em que atuaram, mas àquelas forças de vanguarda faltou a plena consciência do que faziam. Trouxeram os subalternos para a esfera pública, ajudaram a configurar a nova subjetividade de massas e a integrá-la socialmente, mas, ao mesmo tempo, o mito persistente da revolução proletária fazia o papel de uma bola de chumbo atada aos pés.

É que os operários industriais nunca foram a maioria da população, como em algum momento se esperava que fossem. O movimento socialista, no seu todo, revestiu o mundo do trabalho de uma inédita dignidade, mas os operários, como tais, mesmo civilizando com lutas e sacrifícios a sociedade do capital, não podiam ser uma classe dotada de universalidade. E por um motivo simples: classes e partidos são intrinsecamente realidades parciais e não portam em si a redenção humana.

Deixemos de lado o marxismo tornado ideologia de Estado nos países que, entre 1917 e 1989, constituíram o “socialismo real”. Seu valor teórico é irrelevante ou, para falar a verdade, inexistente. Descrevendo uma realidade peculiaríssima, em que católicos e socialistas (comunistas), religiosos e leigos se entenderam e desentenderam por décadas, o filósofo italiano Giuseppe Vacca tem apontado outro déficit da explicação marxista do mundo moderno. No segundo pós-guerra, só e unicamente na tradição da esquerda do seu país é que teria emergido a consciência embrionária, mas explosiva, da subestimação do fenômeno religioso. Esta consciência, presente destacadamente em Palmiro Togliatti, dirigente histórico do Partido Comunista Italiano e protagonista do “diálogo” estimulado pelo Concílio Vaticano 2.º, traria consigo a exigência de uma refundação radical do marxismo, até hoje por fazer.

Ao contrário do que supuseram os pais fundadores, nenhuma reconciliação harmoniosa dos homens, entre si e com a natureza, teria o condão de suprimir não só o comportamento religioso, como também, por óbvio, o limite da existência humana. Este limite, de resto, está na base de tal comportamento e, mais em geral, de toda inquietação humana, filosófica ou não. Em outras palavras, as religiões são uma constante antropológica, não uma forma transitória de alienação; uma objetivação essencial, não um acidente histórico circunscrito às sociedades de classe.

Para Togliatti, a cegueira do marxismo – da maior parte do imenso e contraditório corpus teórico que esta expressão recobre – decorre de uma assimilação apressada do iluminismo do século 18 e do materialismo do século 19, com suas respostas unívocas e, por isso, falsas para o problema do sentido, ou sentidos, da vida. Aqui, as respostas só podem ser múltiplas e diversificadas, desafiando-se naturalmente umas às outras. E a verdade está rigorosamente entre os homens – e com ninguém em particular, seja crente ou não.

Se isso for razoável, então o que há de socialismo no mundo – a social-democracia, o socialismo liberal, o trabalhismo, etc. –, para sair da atual posição defensiva, deve ir além da democracia política (que só os radicais chamam de “burguesa”). Trata-se também de evitar a armadilha estendida pelo “paradigma tecnocrático” – termo de uma recente exortação do papa Francisco para indicar uma democracia sem raízes entre os “de baixo” – e reelaborar, de modo laico, os valores da solidariedade próprios de todas as religiões. Valores cuja vitalidade se acentua ainda mais nesta época do ano, propícia à generosidade e à fraternidade.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil

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sábado, 23 de dezembro de 2023

HERANÇA MALDITA

Cláudio Couto*, Carta Capital

Neste primeiro ano, Lula viu-se obrigado a lidar com as consequências da anormalidade bolsonaresca

O terceiro governo Lula começou sob condições bem diferentes daquelas de sua primeira passagem pela Presidência, entre 2003 e 2010. À época, Lula recebeu de Fernando Henrique Cardoso um país, um governo e uma economia organizados. As relações com o Congresso, o Poder Judiciário e os entes subnacionais se davam tranquilamente, mediadas pela institucionalidade democrática. A política externa andava bem, com o Brasil em posição de destaque no cenário internacional, graças à manutenção das melhores tradições do Itamaraty e à atuante diplomacia presidencial de FHC.

No atinente às políticas públicas, programas governamentais haviam avançado nos últimos anos, dando seguimento ao esperado aprimoramento incremental que permite consolidar e corrigir rotas – algo possível em Estados política e administrativamente estáveis. Assim, Lula pôde aprimorar e aprofundar programas iniciados pelo antecessor, como o Bolsa Escola, convertido em Bolsa Família, ou o Fundef, transformado em Fundeb.

Sob Bolsonaro, o presidencialismo de coalizão converteu-se em um presidencialismo de abdicação.

Por isso, as menções lulistas a uma “herança maldita”, deixada pelo tucano, eram peça de retórica da competição partidária entre PT e PSDB, não descrição acurada do que se passava. As administrações petistas puderam avançar a partir de base consistente que, a despeito de divergências programáticas, permitiu ao novo governo implementar sua própria agenda, modificando prioridades e estabelecendo novos rumos, sem ter, contudo, a preocupação de apagar incêndios ou construir do zero as fundações da governabilidade.

Resumindo: em 2003, sucedendo a um governo normal, Lula deu início a outro governo normal.

A situação herdada de Jair Bolsonaro é, no entanto, completamente distinta. Em 2023, teve início um governo normal operando num contexto político e institucional transformado pela anormalidade bolsonaresca. Lula recebeu uma administração pública devastada e um Congresso empoderado e muito mais à direita do que em qualquer momento posterior ao fim da ditadura. O Brasil estava isolado internacionalmente, transformado em pária pela política externa lunática de Ernesto Araújo e pela boçalidade diplomática do então presidente. O suposto mago das finanças, Paulo Guedes, deixou como herança um imenso passivo fiscal e uma população empobrecida, duas coisas a serem corrigidas por um governo que, diferentemente do que acabava, enfrentaria o preconceito ideológico de agentes do mercado financeiro.

Não bastassem tais devastações, a sociedade se via mergulhada numa polarização assimétrica e radicalizada. Assimétrica porque opondo uma extrema-direita, o bolsonarismo, a uma esquerda democrática, representada pelo petismo. Até mesmo antigos detratores das gestões petistas foram obrigados a reconhecer isso, mudando sua forma de se referir ao partido, a Lula e a seu governo. Isso ficou especialmente claro no novo tratamento dispensado à gestão petista pelos veículos de mídia. O trauma gerado pela fúria antijornalística do extremismo bolsonaresco, outrora normalizado, produziu notável mudança de abordagem.

Nesse contexto, a primeira tarefa do novo governo seria reconstruir a administração e as políticas públicas, bem como as relações entre os três poderes, com outras nações e com a mídia. Foi exatamente o que se verificou durante o primeiro ano de Lula III. Políticas públicas desmontadas ou desorganizadas foram retomadas: o Bolsa Família, as políticas ambiental, indigenista e cultural, saúde, educação e direitos humanos, a política externa e o PAC, para ficarmos apenas em alguns exemplos. O governo foi com alguma frequência criticado por retomar projetos do passado, como se nada de novo tivesse a apresentar e, assim, apenas requentasse o velho. Há um equívoco nessa crítica. Não se trata de reciclar velharias, numa abordagem saudosista de coisas superadas, mas de eliminar a solução de continuidade que o bolsonarismo impôs a programas que governos normais talvez alterassem, ajustassem ou aprimorassem, mas não descontinuariam. O esperado de qualquer governo normal seria mesmo retomar o desfeito, cuja continuidade é indispensável ao aprimoramento de políticas públicas no longo prazo.

Outra face da reconstrução foi o desmonte do autoritarismo infralegal bolsonarista, que, mediante decretos e portarias, sem passar pelo Congresso, desestruturou ou sufocou financeiramente áreas da burocracia pública (como o meio ambiente, a saúde e a educação), espaços de participação da sociedade civil (como diversos conselhos) e setores regulados dado seu caráter sensível (como o do armamento). Sem que se revissem as normas infralegais, sob responsabilidade direta do Executivo, seria impossível remontar a administração governamental e suas áreas de políticas.

O “orçamento secreto” tomou nova forma e o Congresso continua a definir o destino dos recursos públicos.

A propósito do Congresso, aliás, é na interação com ele que dificuldades de tipo novo e bastante consideráveis surgiram. Desde o primeiro ano do segundo governo de Dilma Rousseff o Legislativo ganhou poder. O primeiro passo nesse empoderamento foi, em 2015, a aprovação da Emenda Constitucional 86, que tornou obrigatória a execução de emendas orçamentárias individuais de deputados e senadores. Com isso, o Executivo perdeu um instrumento de barganha com os parlamentares, importante na composição e disciplinamento de sua base legislativa.

Não foi casual a aprovação dessa mudança constitucional em 2015: uma presidente frágil, inapetente para a relação com o Legislativo (e, por isso mesmo, removida do cargo pouco tempo depois), deixou espaço aberto para o Congresso avançar sobre seus poderes. Bolsonaro, de outra maneira, abriu espaço para novas investidas de mesmo teor.

Se Dilma não tinha apetite ou habilidade para a negociação legislativa, Bolsonaro dela abdicou ao fazer duas coisas: 1 desistir de tentar construir uma coalizão parlamentar e 2 de liderar sua base legislativa. Como verbalizou mais de uma vez, após enviar propostas legislativas ao Congresso, Bolsonaro entendia que sua apreciação era problema apenas dos congressistas, não mais dele. Ora, mas o sistema presidencial brasileiro supõe que o chefe de governo assuma o papel de principal articulador político e líder de uma base congressual. Ao se desincumbir dessa responsabilidade, Bolsonaro trocou o presidencialismo de coalizão por um presidencialismo de abdicação.

Consequentemente, era previsível que o Congresso avançasse sobre o novo espaço de poder desocupado, como de fato aconteceu. Tomou forma um governo congressual, com os presidentes das duas casas do Legislativo, em especial o da Câmara, assumindo o papel de principais coordenadores e líderes do processo decisório, mais do que só definir a pauta das casas que chefiavam.

Uma consequência foi a Emenda Constitucional 100, de 2019, criando a obrigatoriedade também da execução de emendas orçamentárias das bancadas estaduais – reduzindo ainda mais a margem de negociação do Executivo. Outro efeito, na sequência, foi a hipertrofia das emendas do relator do orçamento (RP9), aumentando o controle parlamentar sobre os gastos, originando o famigerado “orçamento secreto”, que mesmo declarado inconstitucional pelo Supremo, não desapareceu, assumindo formato dissimulado com as emendas de despesas discricionárias do Executivo (RP2). Na prática, os congressistas – em especial o presidente da Câmara – seguiram a definir onde o Executivo deveria alocar o dinheiro, sem necessariamente enquadrar tais dispêndios em prioridades de uma agenda governamental estruturada de políticas públicas. É com a institucionalização desse tipo de relação Executivo-Legislativo que Lula tem de governar em seu terceiro mandato.

Não bastasse a mudança estrutural resultante das alterações institucionais, as eleições de 2022 produziram a legislatura mais direitista desde 1986, complicando o trabalho de um presidente de esquerda. Os partidos de adesão que compõem o Centrão mudaram de composição nos últimos anos, em especial durante o quadriê­nio bolsonarista. Parte considerável de suas bancadas tornou-se ideologicamente mais rígida, abandonando o tradicional adesismo, que hipotecava apoio aos governos como contrapartida do acesso a cargos e verbas. Isso obriga o governo a dispor desses recursos sabendo que contará com o apoio de apenas parte das bancadas, numa lógica de redução de danos.

Em contrapartida, Lula restabeleceu uma relação respeitosa e republicana com governadores e com o Poder Judiciário.

O contexto, portanto, é de muita dificuldade para Lula nas relações com o Congresso, devendo seguir inalterado durante todo o mandato. Mesmo assim houve importantes sucessos legislativos, como a adoção do novo marco fiscal e a reforma tributária, conquistas devidas principalmente à habilidade política, antes pouco notada, do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Não menos importante, deve-se destacar uma atuação mais respeitosa e cooperativa com os governos subnacionais e o Poder Judiciário. Submetidos a constante estresse institucional durante o quadriênio anterior, passaram a ter no Executivo Federal um interlocutor, sobretudo após a intentona de 8 de janeiro. Assim, ao menos até a próxima eleição presidencial, temos de volta a normalidade, ainda que em tempos difíceis.

*Cientista Político na FGV-EAESP

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

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MACHADO & OUTROS MACHOS

Eduardo Affonso, O Globo

Num país ainda mais racista que hoje, o maior escritor brasileiro se impôs à elite literária (branca) pela originalidade, humor, elegância

Machado de Assis tomou um gancho da Fuvest, fundação que organiza o vestibular da USP. Sua obra estará fora das “leituras obrigatórias”, de 2026 até 2029. Não que se tenha descoberto plágio nas reminiscências além-túmulo do elitista (e escravocrata) Brás Cubas ou misoginia tóxica nas dúvidas conjugais do sorumbático Bentinho. O maior escritor brasileiro padece de defeito pior — o mesmo de Guimarães Rosa, Gregório de Matos, Carlos Drummond: é homem.

Pode-se argumentar que ele esteve em praticamente todos os exames até agora, e é preciso abrir espaço para outros autores. Mas convém não esquecer que muita gente só leu os clássicos porque “caíam na prova”. E que foram eles que nos deram referências da boa literatura.

Machado entrou para o cânone não pelos privilégios advindos dos seus cromossomos XY, mas por sua genialidade. Num país ainda mais racista do que hoje, se impôs à elite literária (branca) pela originalidade, humor, elegância. Numa época muito mais machista, criou personagens femininas que passavam longe dos modelos de então.

Supondo que o surto identitário que acometeu a Fuvest seja parte de uma pandemia, veremos as universidades abrindo mão de Borges na Argentina, García Márquez na Colômbia, Shakespeare na Inglaterra, Dante na Itália, Joyce na Irlanda, Camões em Portugal, Victor Hugo na França? Afinal, eram todos machos.

Se a moléstia for contagiosa, a História do Brasil terá de ser contada sem Pero Vaz de Caminha, Anchieta, Zumbi, Tiradentes, Pedro I e II, Mauá, Nabuco, Bonifácio, Deodoro, Vargas, JK, FHC, Lula. No campo das ciências, o estrago será ainda pior.

Sabemos que a lista da Fuvest é só uma relação de livros que o candidato a uma vaga na melhor universidade país precisa ler — e comprovar que entendeu. Ficar fora não implica deixar o panteão dos mestres da língua. Porém nunca antes o critério de exclusão ou inclusão tinha sido extraliterário. É isso que assusta.

Neste século, em 14 ocasiões a lista foi exclusivamente masculina. Clarice Lispector apareceu quatro vezes; Helena Morley, três; Ruth Guimarães e Cecília Meireles, uma. Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiroz e Sophia de Mello Breyner Andresen, agora lembradas, já eram escritoras consagradas. Seus livros podem não ter entrado antes por qualquer outro motivo, menos “por terem sido escritos por mulheres” (como afirmou o diretor executivo da Fuvest).

Em carta aberta, mais de cem professores criticaram a “lista de ruptura”, mas por privilegiar a autoria feminina deixando de lado outros parâmetros, como orientação sexual ou origem étnica: “A adoção de um único critério para a escolha dos livros desconsidera a especificidade da literatura, com risco de corroborar os novos tempos utilitaristas de desvalorização das linguagens artísticas e, sobretudo, o foco na figura do/a autor/a ou nas camadas mais superficiais do texto”. (Se houver uma questão sobre o que quiseram dizer com isso, os estudantes estão lascados.)

Mas há esperança. Quando vier o triênio só de autores pretos, talvez Machado volte, com Cruz e Souza e Lima Barreto. No dos autores com sobrepeso, teremos Antônio Maria e Pedro Nava. No dos LGBTQIAPN+, Mário de Andrade e Caio Fernando Abreu. E depois — quem sabe? — a Fuvest retome a avaliação de livros apenas por seus méritos literários.

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A FORÇA MORAL DO PERDÃO

Pablo Ortellado, O Globo

Que tal aproveitar o encontro de Natal e resgatar o espírito cristão?

Nossas famílias estão dilaceradas por disputas pessoais e divergências políticas. Que tal aproveitar o encontro de Natal e resgatar o espírito cristão?

Sempre me surpreendo como a mensagem cristã mais basilar, de amor ao próximo e perdão aos inimigos, pode ser soterrada e obliterada no discurso de alguns pregadores por cobranças prepotentes. O cristianismo do nosso dia a dia está muito mais preocupado em policiar e condenar condutas —sobretudo as sexuais —do que em compreender, amar e perdoar.

Isso, para mim, é o avesso da mensagem cristã. Tendemos a ser duros com quem nos ofende e complacentes com nossos erros. O amor aos inimigos e o perdão às ofensas exigem atuar em sentido contrário: evitar julgar o próximo e ser mais severo com nossos próprios equívocos.

Jesus não escondeu a essência de sua mensagem. Disse para perdoar não apenas sete vezes, como já não conseguia o impaciente Pedro, mas 70 vezes sete. Disse para fazermos o bem a quem nos odeia e que se alguém nos ferir a face ofereçamos a outra. Disse para não respondermos ao mal com o mal e nem a ofensa com ofensa. A mensagem dos evangelhos é muito clara: devemos perdoar, compreender e não responder o mal com o mal. É uma exigência moral elevada, difícil de sustentar, mas é um norte que deveríamos nos esforçar por perseguir.

O perdão é uma força moral pujante. Desorganiza e reorienta as relações viciadas. Muitas vezes estamos presos em ciclos de ódio em nossas relações pessoais —e na política também. Vivemos respondendo com cotoveladas às cotoveladas que recebemos, num ciclo longo de ofensa e resposta, cuja origem se perde no tempo. Cada lado acha que há uma ofensa primordial justificando as respostas, assim o ciclo se sustenta envolvendo os dois lados numa espiral crescente que faz mal a todos. Sempre que respondemos ao mal com o mal, aumentamos a quantidade de mal no mundo. O perdão interrompe unilateralmente esse ciclo. Não quer nada em troca, não pede reciprocidade, não exige reparação ou desculpas. É um ato de generosidade, uma grandeza d’alma que, pela força moral, desconcerta e reorganiza a relação entre as partes. O perdão cura. E o perdão transforma.

Quem já perdoou ou recebeu perdão, o perdão genuíno, sabe como ele desarranja, depois reorganiza, recupera. Quem conhece a história da independência da Índia ou do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos sabe como o princípio de não responder ao mal com o mal pode ser revolucionário —pode desfazer estruturas que toneladas de bombas seriam incapazes de demolir.

Quando era mais jovem, não conseguia compreender a mensagem cristã. Acreditava que o cristianismo celebrava a apatia e cultivava a submissão. Esses preceitos me pareciam simplesmente execráveis. Eu odiava aquela mensagem e não conseguia entender seu apelo.

Só muito tempo depois pude perceber que, onde achava que havia celebração da apatia, havia na verdade um compromisso moral inabalável, uma firmeza de caráter a toda prova. Onde enxergava submissão, opressão e humilhação vergonhosa, havia na verdade grandeza, generosidade e altivez. Às vezes a pressa da juventude nos faz surdos e só com a paciência do tempo aprendemos a escutar.

Feliz Natal!

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BLASFÊMIAS CONSERVADORAS

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Oposição radical a aborto, jogo e drogas revela inconsistências do pensamento conservador

Lula e Paulo Gonet se identificam na oposição ao aborto; o Congresso ficou a um triz de não regulamentar os cassinos online, o que teria significado abrir mão de arrecadação para países menos moralistas; até o STF, aí mais por razões pragmáticas, preferiu adiar sine die o julgamento que descriminalizaria o uso de drogas.

Eu entenderia a posição dos conservadores se existissem iniciativas para tornar aborto, jogo e drogas obrigatórios para todos. Mas esse está longe de ser o caso. Quem é contra essas atividades sempre será livre para não praticá-las. Uma outra situação em que eu compreenderia a atitude conservadora é se a descriminalização/regularização trouxesse claros efeitos antissociais adicionais. Não me parece que seja o caso.

Se as mulheres forem livres para decidir quando terão filhos, a sociedade ficará mais e não menos organizada. No caso dos cassinos online, a posição da bancada da Bíblia é comicamente burra. Já é possível jogar de quase qualquer ponto do território nacional e sem violar leis, bastando acessar sites lotados no exterior. A recusa em regulamentar essas apostas apenas faz com que outros países se apropriem dos impostos gerados pelos jogos feitos aqui.

A questão das drogas é mais complexa. É óbvio que um maior consumo de drogas geraria mais ônus sociais. Mas a experiência de vários países que descriminalizaram/legalizaram mostra que a mudança de paradigma não provocou uma explosão de consumo. Na maioria deles, o álcool, que a sociedade tolera sem maiores dramas de consciência, continua sendo um problema maior que outras substâncias.

Há, por fim, as objeções religiosas. Não sou teólogo, mas elas me parecem quase blasfemas. Se existe um Deus e ele é onipotente e radicalmente contra aborto, jogos e drogas, não necessita de ajuda humana para punir aqueles que considera faltosos. Apenas imaginar que precise já deve configurar algum tipo de pecado.

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O BRASIL EMPACOU

Alvaro Costa e Silva, Folha de S. Paulo

A divisão da sociedade que marcou as eleições continua a mesma

Ao se aproximar a virada do ano, com o rastro de novos tempos, o otimismo se torna galopante e supera o pessimismo. Sete em cada dez brasileiros esperam um 2024 melhor que 2023, segundo o Datafolha. Ao tomar conhecimento da pesquisa, na hora me veio à cabeça a frase de Carlos Heitor Cony, um pessimista da linha Machado de Assis: "O otimista é basicamente um sujeito mal-informado".

Mas os panglossianos têm certa razão. Há sinais de que as coisas podem ou estão melhorando. Na área da saúde, 2023 termina com notícia surpreendentemente boa: a reversão da tendência de queda na vacinação. Oito imunizantes recomendados para o calendário infantil apresentaram aumento nas coberturas. Viva o Zé Gotinha!

Na política não se pode dizer o mesmo. A divisão da sociedade que marcou as eleições continua imutável. Um livro recém-lançado —"Biografia do Abismo", de Felipe Nunes e Thomas Traumann— revela o tamanho de nosso buraco civilizatório. São amizades desfeitas, relações familiares cortadas, cancelamentos nas redes, boicotes a artistas, a filmes e até a chocolates e perus de Natal. O espírito das festas passa longe.

O Datafolha mostrou que nove em cada dez eleitores afirmam não se arrepender do voto no segundo turno. O índice daqueles que se declaram petistas convictos é de 30%, enquanto os bolsonaristas da mesma extração são 25%. Apesar da tentativa do governo de reconstruir o cenário político e dos escândalos envolvendo o ex-presidente, o país está empacado na discórdia.

Entre tapas e celulares, o Congresso faz o quer para pilhar mais e mais dinheiro. A relação de Lula com Arthur Lira é frágil. Para não dizer que é, por forças das circunstâncias, subserviente. Aprovou a reforma tributária, mas levou um cascudo com a derrubada do veto ao marco temporal das terras indígenas. De novo, o STF será chamado a entrar em cena e, de novo, será atacado. Um moto-contínuo.

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sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

UM ANO TRÁGICO E AS CONTAS DE CHEGAR

Artigo de Fernando Gabeira

Na política, o ano de 2023 foi marcado por dois acontecimentos, aqui e lá fora: o 8 de janeiro em Brasília e o 7 de outubro em Israel. Ambos implicam consequências e não acabam em dezembro, como tantos procedimentos regulares do ano. Mas na economia, embora sem a grande repercussão dos fatos políticos, votou-se a reforma tributária, outro fato que vai transcender ao ano de 2023, inclusive porque só para regulamentá-la o Congresso dedicará grande parte de 2024.

Os observadores coincidem sobre o fato de que a reforma tributária vai alavancar a economia, favorecendo um processo de crescimento. Embora não tenha sido uma reforma ideal, a verdade é que essa é uma avaliação unânime.

Uma vez liberados obstáculos para a economia crescer, a grande pergunta é: crescer para onde? O objetivo é apenas um crescimento quantitativo ou é necessário responder aos desafios da época? Nessa reposta está incluída a transição energética. Ela está contida em planos do governo, é o tema central das intervenções de Haddad no exterior, mas ainda um pouco desconhecida. Tenho a impressão de que o governo não se preparou ainda para divulgá-la e a própria imprensa não se preparou, com editorial especial, para cobri-la.

A transição energética, uma das mais gigantescas tarefas das mudanças climáticas, deveria ser um objetivo nacional, atraindo o maior número possível de apoio popular, uma vez que não é um fenômeno que acontece nas alturas, mas vai afetar também o nosso cotidiano.

Um exemplo bem simples: a regulamentação sobre geladeiras muda no ano que vem. O objetivo é de torná-las mais econômicas em termos de energia. As empresas reagem à nova regulamentação afirmando que os preços vão subir. É provável que subam mesmo. Mas seria um grande avanço se o debate se desse em torno do quadro geral que pudesse mostrar que a redução de emissões, em termos estratégicos, é mais econômica que os efeitos catastróficos das mudanças climáticas.

Organismos internacionais estão pronto para financiar a adaptação aos novos tempos. Possivelmente, São Paulo será o destinatário da parte substancial dessa ajuda. De novo, grandes projetos de adaptação demandam mudanças de hábitos, inclusive a própria preparação popular para eventos extremos. Na verdade, grande parte do Caribe, constantemente fustigado por furacões, já está preparada para enfrentar tempestades, inclusive com cartilhas que indicam o papel de cada um.

O grosso do trabalho do governo no Congresso foi dedicado a financiar seus gastos. Dentro de alguns limites, Haddad conseguiu aprovar novas fontes de financiamento e tornou possível, ao menos em tese, a possibilidade do déficit zero. O conjunto de vitórias, é claro, foi conseguido a partir de concessões no texto dos projetos e também na concessão de emendas e cargos. É o habitual do Congresso.

Não foi um ano invicto. A desoneração da folha de pagamentos das empresas foi prolongada. É o tipo de decisão que envolveu Congresso, empresários e sindicatos. O governo ficou isolado e perdeu com a queda do veto de Lula.

A dimensão do balanço econômico não se limita à economia. Há uma discussão política interna sobre déficit zero. Grande parte dos aliados de Haddad não aceita a proposta pois acha que, sobretudo num ano eleitoral, é preciso gastar sem considerar tanto o equilíbrio das contas.

Não há ideia, ainda, do que seria feito com o dinheiro para abrir o caminho das urnas. Se for para atingir eleitores em 2024, teria de ser algo rápido, quase fulminante, algo incompatível com obras de longo alcance. A verdade é que, entrando ligeiramente na seara política, é possível afirmar que o dinheiro mesmo para as eleições será cavado no Orçamento. Tudo indica que serão destinados R$ 5 bilhões para as eleições municipais. O mesmo valor gasto nas eleições presidenciais.

É muito dinheiro. As eleições brasileiras sempre foram muito caras, mesmo quando financiadas pela iniciativa privada. Há dinheiro de sobra e isso foi muito negativo para o processo político, já que a falta de imaginação não foi sentida. Houvesse capacidade de criar, as campanhas seriam muito mais baratas.

Os dois grandes fatos políticos do ano não cabem num artigo. O 8 de Janeiro representou prisões e condenações de até 17 anos de prisão para os invasores. Mas, até agora, ficou nisso. Foram punidas com grande severidade pessoas que, em caso de golpe de Estado, continuariam anônimas e sem poder, como antes. A corda rompeu pesadamente para o lado mais fraco.

O 7 de outubro não parou no horror do ataque do Hamas. Ele se desdobrou numa invasão da Faixa de Gaza por Israel, que bombardeou a região, inclusive sem alvos definidos. Crianças, mulheres e velhos são a maioria entre os 18 mil mortos contabilizados pelas autoridades de saúde palestinas. Especialistas militares acham que é muito mais. Escolas, estrutura sanitária, equipamentos de saúde e dessalinização, tudo está sendo destruído de forma que a vida em Gaza será impossível para os sobreviventes.

Esta guerra foi a que capturou nossas emoções. Há outras: a já antiga guerra na Ucrânia, a no Iêmen, em Burkina Fasso, Sudão, Etiópia. Estas não aparecem na cena porque talvez não suportaríamos ver o mundo na sua crise completa.

Considerando a tragédia global, o Brasil se deu bem, apenas fazendo contas para o ano que começa.

Artigo publicado no Estadão em 22/12/2023

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quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

O ECLIPSE DO ARTISTA

Ruy Castro, Folha de S. Paulo

Os Três Mosqueteiros da bossa nova eram quatro, com Carlinhos Lyra como D'Artagnan

Carlos Lyra, que morreu no sábado último (16), não gostava de ser visto como o quarto maior nome da bossa nova. Nenhum desdouro nisso, sendo os três primeiros, em qualquer ordem, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto. Mas, para ele, não era bem assim —os Três Mosqueteiros eram quatro. E, com seu cartel de canções produzidas entre 1956 e 1965, o D’Artagnan era ele. Afinal, quem poderia superar "Primavera", "Minha Namorada", "Você e Eu", "Influência do Jazz", "Coisa Mais Linda", "Lobo Bobo", "Sabe Você" e tantas mais?

E Carlinhos não se contentava com sua obra excepcional. Reivindicava também o pioneirismo. Em conversas, dizia casualmente que chegara à bossa nova antes de João Gilberto e, no máximo, junto com Tom. E tinha um bom argumento: o 78 rpm de Sylvia Telles com, de um lado, "Foi a Noite", de Tom e Newton Mendonça, e, do outro, "Menino", dele, Carlinhos. Quando esse disco foi gravado, em agosto de 1956, João Gilberto estava perdido em alguma nebulosa no espaço e a parceria de Tom e Vinicius ainda não era pública —o musical que a deslancharia, "Orfeu da Conceição", só estrearia no Municipal no dia 25 de setembro. Para todos os efeitos, Carlinhos, aos 23 anos, chegara mesmo no primeiro pelotão.

Exceto por um senão: "Foi a Noite" e "Menino" não eram ritmicamente bossa nova, mas belos sambas-canção. Tom e Carlinhos só descobriram a bossa nova quando João Gilberto a inventou, em 1957.

Durante os primeiros anos, Carlinhos e Tom seguiram fulgurantes carreiras paralelas. Mas, a partir de 1964, algo mudou. Tom disparou e ficou inalcançável: gravou com Frank Sinatra, compôs "Wave" e "Águas de Março", submeteu-se à ponte aérea Rio-Nova York e lutou por cada semifusa. Carlinhos, por temperamento, eclipsou-se. Seu patrimônio tornou-se o passado.

O talento não o abandonou, mas o mercado sim. Ali ele precisava ter sido D’Artagnan.

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CÁRMEN: A CENSURA É INCONSTITUCIONAL

Míriam Leitão, O Globo

A ministra lamenta ser a única mulher no STF, admite saudade de Rosa Weber, e reflete sobre as decisões dos poderes

A ministra Cármen Lúcia afirmou que a censura é vedada pela Constituição e esclarece que o caso em que o Supremo considerou o veículo de imprensa responsável por crimes de calúnia cometido pelo entrevistado não é o que está sendo interpretado. Ela me disse que o órgão “não é responsável pelo que o entrevistado afirma”. A ministra teme que já esteja havendo autocensura dos jornais e informa que o assunto “será objeto de esclarecimento para se impedir essa interpretação”. Em entrevista que me concedeu, Cármen Lúcia lamenta ser a única mulher no Supremo, admite saudade pessoal de Rosa Weber, afirma que os eventos de 8 de janeiro foram premeditados. Fala de marco temporal e da limitação das decisões monocráticas.

—O “cala a boca já morreu” não morreu. Não morre enquanto não morrer a democracia — disse ela sobre a responsabilidade do órgão de imprensa.

Segundo a ministra, no caso, a acusação feita à vítima era amplamente desmentida e já tinha sido objeto de decisão judicial. O que houve foi um “descompromisso total à honra e à imagem de uma pessoa”.

— Mas se você me entrevista e eu digo algo, não há qualquer responsabilidade do veículo. Você não sabe e nem é responsável pelo que o entrevistado afirma. A não ser que veiculasse algo sabidamente desmentido sem sequer uma nota explicativa. Nem cogitamos o caso de entrevistas ao vivo. É vedada a censura e nós somos a guarda da Constituição. A censura é impossível. Ouvi que os veículos podem estar fazendo autocensura. Não é isso que se quer. Isso vai ser objeto de pormenorização ou de esclarecimento para impedir esse tipo de interpretação. Vou repetir: se alguém cala o próprio eu do outro, não haverá mais comunicação na sociedade. Por isso é que a liberdade de expressão é tão séria e a da imprensa mais ainda. O “cala a boca já morreu” persiste porque persiste a democracia — disse a ministra referindo-se a um famoso voto dela pela liberdade de expressão.

A entrevista foi ao ar ontem na GloboNews, está disponível no Globoplay, e tocou em outros temas relevantes. Ela disse sobre a votação dos senadores limitando o voto monocrático que “o Senado tem todo o direito de votar” e é “amplamente favorável a que o Congresso cumpra o seu papel”, e “pode questionar todos os poderes constituídos”. Lembrou, contudo, que a ministra Rosa Weber já tinha feito alterações com o apoio unânime dos ministros. O caso “vai ser submetido a controle de constitucionalidade. Se for constitucional, se mantém. Se não for, não persiste”.

O mesmo caso para o marco temporal. Perguntei se por projeto de lei é possível mudar a Constituição e o entendimento de ministros do STF sobre a não existência de um marco temporal para a homologação de terras indígenas.

—O Congresso não muda a interpretação do Supremo. Sobrevindo nova legislação, imagino que vá de novo ser submetido ao STF e aí o Supremo verifica. Mas o entendimento firmado há pouquíssimo tempo é o que prevalece para nós: que não haveria razões para desconhecer a realidade indígena de 500 anos que antecederam a definição constitucional. O que foi adotado que é o indigenismo como marca ou critério para que a gente pudesse saber o que era a Terra Indígena protegida constitucionalmente.

A ministra Cármen, única ministra do STF, elogiou as escolhas do presidente Lula, mas vê a falta de representatividade da mulher como uma falha da democracia.

— A democracia se constrói com todos, mulheres e homens. Nenhuma dúvida de que neste momento histórico ter dez homens e uma mulher no STF causa estranhamento. Para mim, o sentimento primeiro é o da amizade com a ministra Rosa Weber, de quem sinto enorme falta do contato direto. Todos os dias praticamente nos falávamos — diz ela, acentuando que faltam mulheres em todos os espaços de poder.

Para Cármen, há evidências de que o 8 de janeiro foi premeditado. Em todos os três poderes, foram destruídas as fotos dos ex-presidentes. No STF jogaram não água, mas substâncias que corroeram os equipamentos de imagem e parte dos arquivos. Queriam destruir a simbologia do poder. Perguntei se o risco à democracia foi superado.

— Acho que foi, mas aprendi em 2023 que a democracia é planta frágil. Precisa ser cuidada permanentemente. O Brasil para mim, hoje já mais velha, não é uma pátria mãe gentil, é quase uma filha com a qual quero ser gentil.

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quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

A DESTRUIÇÃO DE SERGIO MORO

Elio Gaspari, O Globo

O juiz da Lava-Jato encarna o ocaso da operação

Pelo andar da carruagem, o mandato do senador Sergio Moro será cassado por abuso de poder econômico. Na caçamba onde cairá sua cabeça, já está a do ex-deputado federal Deltan Dallagnol. Ambos foram os expoentes da Operação Lava-Jato, a maior iniciativa de combate à corrupção dos últimos cem anos, quiçá 500.

Comandando a Vara Federal de Curitiba, Moro fez de tudo, usou prisões preventivas para forçar confissões, liberou grampos com prazo de validade vencido e disse a advogados de réus que eles “atrapalhavam” seu serviço.

Em 2018, às vésperas do primeiro turno, Moro liberou a delação de Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda de Lula. Logo depois do segundo turno, aceitou o convite de Jair Bolsonaro e tornou-se seu ministro da Justiça.

Com esse prontuário, Moro foi eleito senador com cerca de 2 milhões de votos.

Se seu mandato for cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral do Paraná, será feita justiça, mas é o caso de pensar que tipo de justiça.

O juiz que apareceu em 2004 louvando a Operação Mãos Limpas da Itália meteu-se no mundo de sombras que dizia condenar. Em 2022, foi candidato à Presidência por um partido, depois apareceu como candidato a deputado por São Paulo por outro, pelo qual acabou se elegendo senador.

As 78 páginas da peça em que o Ministério Público pede a cassação de seu mandato são sólidas, porém intrigantes. A argumentação central mostra que ele foi beneficiado por recursos financeiros que lhe deram uma indevida “superexposição”. Cada item está devidamente comprovado. No entanto Sergio Moro elegeu-se pela gigantesca superexposição que obteve antes de ser candidato, valendo-se da estrutura e das verbas que a Viúva concedia ao seu juízo.

As despesas que Moro fez como candidato eram de outro mundo, aquele que mal conhecia e denunciava. Gastou R$ 1.800 do partido para servir café e salgadinhos na cerimônia de filiação ao Podemos e R$ 2.500 para pagar à mestre de cerimônias do evento. Ele, que como juiz manipulou com maestria a imprensa, contratou serviços de um negócio chamado media training. Algumas despesas eram inevitáveis para um candidato, outras mostram que ele foi capturado pelo enxame de colaboradores (todos remunerados) que colhem suas safras nos períodos eleitorais.

O juiz da Lava-Jato deverá ser cassado como senador, por firulas, quando deveria ter sido afastado por atos que praticou na magistratura.

Quando surgiu a Lava-Jato, pensou-se que havia algo de novo no ar, mas tinha razão o Príncipe de Salina do romance “O leopardo”:

— Tudo isso não deveria poder durar; mas vai durar, sempre; o sempre humano, é claro, um século, dois séculos...; e depois será diferente, porém pior.

Olhando para a outra ponta da corrupção nacional, a dos corruptos, vale lembrar que Ademar de Barros, ladravaz da política brasileira, foi condenado por causa da malversação de alguns carros e de uma urna marajoara. Em 1969, enquanto a ditadura dizia que combatia a subversão e a corrupção, uma organização clandestina roubou o cofre da casa de sua namorada. Dentro, acharam cerca de US$ 2,5 milhões (US$ 20 milhões em valores de hoje). A família disse que o cofre estava vazio, e a ditadura fingiu que acreditou.

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TRANSFORMAÇÃO DIGITAL NAS EMPRESAS

Opinião Correio Braziliense

Dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostram que sete em cada 10 empresas brasileiras utilizam ferramentas digitais em seu processo produtivo. Sondagem da Microsoft — Transformação Digital para MPMEs —, aponta que 72% das micro, pequenas e médias empresas afirmam que pretendem investir em tecnologia

Dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostram que sete em cada 10 empresas brasileiras utilizam ferramentas digitais em seu processo produtivo. Outra pesquisa, desta vez da Microsoft — Transformação Digital para MPMEs —, aponta que 72% das micro, pequenas e médias empresas afirmam que pretendem investir em tecnologia nos próximos meses, mas, em contrapartida, apenas 28% contam com isso como prática recorrente.

Embora o processo de digitalização das empresas brasileiras tenha iniciado, ainda não se consolidou como uma estratégia natural de transformação e engatinha em determinados segmentos. Não há dúvidas de que aquele empresário — seja ele proprietário de uma empresa de grande, médio ou pequeno porte — que investiu, analisou dados, detectou problemas, apresentou soluções e criou formas de trabalhar sua marca — enfim, debruçou-se sobre a mudança digital — agora, está bebendo água limpa frente a quem simplesmente deixou o mercado ditar as regras, pensando em seguir a correnteza pela margem do rio.

Questões como não saber por onde começar, dificuldade em definir prioridades, lidar com os antigos processos diante das novidades tecnológicas ou ainda se negar a aceitar que o mundo está em transformação fazem com que o empresariado crie uma espécie de inércia, de um bloqueio mental diante das transformações. Outro obstáculo que se apresenta é a dificuldade de entendimento sobre como mensurar os resultados dos processos digitais, uma vez que as transformações demandam adaptações por parte das empresas, como a modernização de processos, estratégias e soluções.

Soluções essas que podem ser encontradas diante de um dos fenômenos mais debatidos no momento: a inteligência artificial. Para o bem ou para o mal, vide os recentes acontecimentos envolvendo personalidades da mídia como o médico Dráuzio Varella e os apresentadores Luciano Huck e Ana Maria Braga (que aparecem em propagandas forjadas pela IA vendendo produtos), sem dúvida é o grande advento das últimas décadas.

No caso das empresas, a inteligência artificial permite que computadores aprendam e "tomem decisões" com base em dados, favorecendo que as organizações decidam rapidamente sobre as oportunidades de maior prioridade, melhorando a eficiência e automatizando processos ao longo do caminho.

É claro que — como o próprio nome diz: "artificial" — a IA não substitui e nunca substituirá a essência humana, mas ela consegue, de fato, atender às demandas e expectativas desse novo consumidor, ávido por tecnologia. Segundo relatório da Insider Intelligence, até 2026, portanto, daqui a pouco mais de dois anos, 99,6% da geração Z serão usuários regulares da internet.

Ou seja, para que as empresas consigam sanar os anseios desse contingente de potenciais clientes é preciso falar a mesma língua, o "computês", o "internetês" e por aí vai. Fechar os olhos para as inovações nos mais variados campos não é a forma certa de se portar. Mesmo porque, qual é a empresa que vai querer ficar de fora?

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O NATAL DE HADDAD

Vera Magalhães, O Globo

Ministro certamente não receberá toda a lista de presentes do Papai Noel, mas termina o ano com selo de 'bom menino' dado por Lula, pelo mercado e pelas agências de risco

Fernando Haddad certamente não receberá do Papai Noel do Congresso todos os presentes que pôs na sua lista, mas o ministro da Fazenda termina o primeiro ano do governo com um atestado de “bom menino” vindo de onde menos se poderia esperar há 12 meses: o mercado que o via com desconfiança e as agências internacionais de risco.

Enquanto fechava esta coluna, a Medida Provisória 1.185, regalo mais vistoso da sua extensa carta de pedidos aos legisladores, ainda corria certo risco. Um movimento pela derrubada do texto que muda a cobrança de impostos federais sobre projetos que receberam incentivos fiscais era capitaneado por uma das oposicionistas mais eficientes e discretas da era Lula, a ex-ministra da Agricultura de Bolsonaro Tereza Cristina.

O ministro da Fazenda, sua equipe e também os responsáveis pela sempre reativa articulação política do governo tiveram de arregaçar as mangas e trabalhar para evitar mais uma derrota nas votações pré-natalinas. À noite, os riscos de derrota já eram menores que de manhã, mas nada neste ano foi sem emoção para a equipe econômica.

O que nos leva direto a outra lista, aquela das metas de Ano-Novo, outra tradição. O que o titular da Fazenda pode esperar de 2024 depois de ter conseguido não só dobrar a turma da Faria Lima e de Wall Street, mas também convencer o próprio Lula e as duas Casas do Congresso de que o caminho correto para o Brasil encontrar o rumo do crescimento mais robusto com distribuição de renda passava pela austeridade?

Digamos que ele não terá aquele calendário benevolente dos que tentam novas dietas e fazem planos de praticar exercícios físicos regularmente, que se estende por longos 12 meses. Para o petista, a primeira prestação de contas com o pretendido virá já em março, quando acontece a primeira revisão orçamentária.

É nesse momento que todos aqueles que torceram para que Haddad se estropiasse ao longo de 2023 renovarão seus votos. A depender de quão distante ele estiver da meta de déficit zero, o que não faltará é áulico no ouvido de Lula dizendo que já chega de política neoliberal, que o negócio mesmo é gastar (mais) e que disso dependerá sua reeleição.

Para um presidente que comete o ato falho de, no balanço natalino, brincar que, se é verdade que tem sorte, o povo deveria elegê-lo “para sempre”, trata-se de um argumento quase infalível, vamos convir.

Foram muitas as mudanças de postura e, até mais profundas, de visão de política e economia possíveis de detectar em Haddad ao longo deste ano. Dos personagens relevantes da República, sem dúvida, ele descreveu o arco mais interessante de reposicionamento.

É de tirar o chapéu que tenha conseguido driblar todos os que buzinaram no ouvido de Lula (e em praça pública) por um cavalo de pau na economia. Pessoas com gogó, cadeiras importantes e um passado ao lado do presidente.

Também não é menos relevante ter deixado de ser um “comunista perigoso” para virar um “moderado racional” aos olhos dos sempre ansiosos e pouco entendidos de política que fazem preço no Brasil. Dono de um humor ácido, ele deve ter se divertido bastante com essa parte da jornada.

O mais penoso, porque aí envolve lidar com gente mais astuta que ele nos bastidores da política, é justamente o que tem de fazer quase com o peru já no forno: convencer deputados e senadores a pagar suas faturas de que nem Papai Noel dá conta.

Mas parece que até nessa seara, mesmo com derrotas amargas ao longo de 2023, o saldo final será positivo, a depender do destino da MP 1.185. Fruto, em enorme medida, da ajuda de Arthur Lira, que também resolveu escrever para si um 2023 em que foi visto por boa parte do PIB como arauto das boas práticas econômicas, longe da imagem anterior de um líder do baixo clero.

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DEVAGAR COM O ANDOR

Editorial O Estado de S. Paulo

BC acerta ao pedir serenidade, frustrando apostas numa aceleração da queda dos juros

Para quem ainda especulava sobre uma aceleração do ciclo de redução dos juros iniciado em agosto pelo Banco Central (BC), a ata do Comitê de Política Monetária (Copom) deve ter sido um tanto frustrante. O documento detalhando a decisão unânime de baixar a taxa básica de juros (Selic) em 0,5 ponto porcentual – pela quarta vez consecutiva – deixou muito claro que os novos cortes continuarão nessa toada gradual.

Ou seja, ao menos para janeiro e março, os cortes previstos terão a mesma intensidade, o que deve reduzir a Selic dos atuais 11,75% ao ano para 10,75% no primeiro trimestre. Não havendo alterações extraordinárias nos cenários traçados pelo BC, somente ao final do primeiro semestre a taxa de juros deverá retornar ao patamar de um dígito, com 9,75%. Esse é o ritmo lento que a direção do BC estabeleceu – também de forma unânime – como necessário para garantir com firmeza o cumprimento das metas inflacionárias. Não à toa, as palavras “cautela”, “serenidade” e “moderação” se repetem ao longo da ata.

Desde que foi iniciado o afrouxamento da política monetária, há quatro meses, parte do mercado financeiro tem apostado sucessivamente em cortes maiores, de 0,75 ponto porcentual, a cada sinal positivo para a economia no cenário externo ou no doméstico, seja o trâmite favorável a reformas estruturais no Congresso, seja o sinal de arrefecimento da política monetária conduzida pelos bancos centrais dos Estados Unidos, do Reino Unido e da União Europeia. A cada sopro de retomada econômica, novas fichas são depositadas em apostas mais ousadas.

Mas a autoridade monetária confirma, a cada decisão, que é sério seu compromisso com o comedimento. E faz sentido, diante de um cenário doméstico muito incerto, no qual a equipe econômica tem de se equilibrar entre a necessidade de uma política austera e o flerte sistemático do governo com medidas que vão na contramão da responsabilidade fiscal. No exterior, as incertezas permanecem grandes, e ainda acentuadas por conflitos geopolíticos como as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio.

Embora descreva o ambiente externo como “menos adverso”, o Copom ainda considera o cenário volátil. Também reconhece um importante progresso desinflacionário no Brasil, mas adverte que “ainda há um caminho longo a percorrer para a ancoragem das expectativas” e para o retorno da inflação à meta. A lentidão da queda de juros segue o mesmo ritmo desse processo e indica que o BC não abandonará sua política monetária contracionista. É uma questão de bom senso.

Quando relaciona a resiliência do consumo das famílias à queda do investimento, situações que vêm sendo constatadas no monitoramento do Produto Interno Bruto (PIB), os diretores do BC antecipam o risco de inflação de demanda no médio prazo. Ao ponderar que os ganhos reais de rendimento constatados recentemente podem ser temporários, explicita a fragilidade do mercado de trabalho. São fatores que sustentam a tese de desancoragem das expectativas de inflação. E como recomenda a sabedoria popular, cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.

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