Consuelo Dieguez,
PIAUÍ
Pista quente!” O alerta, dado por uma voz feminina,
indicava que a partir daquele momento ninguém poderia entrar na área de tiro,
sob o risco de ser alvejado. A dona da voz, Leticia Catelani – ou Leticia
Catel, como se apresenta nas redes sociais –, posicionada em uma das cabines do
Interarmas, um clube de tiro em São Paulo, fez três disparos com sua Glock
calibre 45, uma pistola leve e compacta, como anuncia o fabricante. Os tiros
foram precisos. Os projéteis perfuraram dois pontos próximos do coração e outro
na altura do estômago do alvo de papelão.
“Matou”, disse o advogado Victor Metta, que acompanhava a
exibição com o investidor Otávio Fakhoury. Satisfeita com a própria destreza,
Catel abriu um sorriso. Colocou a pistola de volta no coldre, preso à sua coxa
direita, alinhou o terninho preto bem cortado, ajeitou os cabelos louros e
aguardou pelos disparos dos companheiros. “Alvo neutralizado”, afirmou, rindo,
ao constatar o bom desempenho dos dois, naquela manhã fria de meados de
outubro.
Miúda e de feições angelicais, Leticia Catel gosta de armas
de fogo. Tem 30 anos, é uma empresária bem-sucedida, proprietária de uma
companhia de médio porte, a Grunn, que importa equipamentos para máquinas
industriais. Abriu a empresa aos 18 anos, com ajuda do pai, Mario Catelani, um
ex-torneiro mecânico de Santo André que é dono de uma indústria de equipamentos
mecânicos em Jundiaí. Em seu currículo, ela diz que é “especialista em mercados
internacionais e negociações comerciais”. Depois de se formar em comércio
exterior na Universidade Paulista (Unip), fez um MBA em gestão empresarial na
Fundação Getulio Vargas e uma pós-graduação no Instituto Mises Brasil. Fala
inglês fluentemente, vira-se no alemão e no espanhol, e diz que arranha um
pouco de mandarim. Nos últimos meses, chamou atenção na internet por causa de
sua intensa atividade nas redes sociais em prol da campanha de Jair Bolsonaro.
Até as manifestações de junho de 2013, Catel não tinha
interesse nenhum pela militância política. Foi no calor dos protestos, quando
esquerda e direita saíram às ruas ao mesmo tempo, que a fagulha foi acesa – e
ela seguiu para a direita. Ajudou a estruturar em São Paulo o então
insignificante Partido Social Liberal, o PSL, e nele atuou como secretária-geral
até pouco tempo atrás. “Bolsonaro era o único candidato que defendia
abertamente os valores da família, mas também criticava a corrupção e a
ineficiência da esquerda”, disse. Catel deixou o cargo no PSL desgastada,
depois de se desentender com Major Olimpio, senador eleito pelo partido, e com
o presidente da sigla, o advogado Gustavo Bebianno, escolhido secretário-geral
da Presidência. Ambos reclamaram da forma como ela trabalhava, sem dar
satisfação às lideranças partidárias.
Quando Catel ainda atuava como secretária-geral, o grupo
liderado por ela inscreveu em apenas três semanas 199 candidatos às eleições
pela legenda de Bolsonaro. “Dávamos lugar para quem tinha ficha limpa e
dizíamos: ‘Agora se matem para fazer mais votos.’ E foi esse sucesso.” Além de
eleger o Major Olimpio, o PSL paulista fez dez deputados federais e quinze
deputados estaduais, dois deles os mais bem votados da história do país. O
carioca Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, reelegeu-se deputado federal
por São Paulo com 1,8 milhão de votos – um recorde. A advogada Janaína
Paschoal, uma das autoras da peça jurídica que embasou o impeachment de Dilma
Rousseff, conquistou a vaga de deputada estadual com 2 milhões de votos – outro
recorde.
A empresária conheceu Metta, de 37 anos, e Fakhoury, 45,
naquelas manifestações de junho. Eles ficaram amigos. Afora o gosto pelo tiro
esportivo, o que os uniu foi uma série de antipatias: ao comunismo, aos
ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ao Partido dos
Trabalhadores e a tudo que está associado à esquerda. Também se aproximaram por
um par de afinidades: o apego às ideias conservadoras na política e nos
costumes, e a crença na superioridade do liberalismo econômico.
A admiração do trio de amigos por Jair Bolsonaro sintetiza
esse rol de paixões. Catel, Metta e Fakhoury compõem o retrato de uma geração
que se orgulha de ser de direita e cultua a organização tradicional da família,
a hierarquia, a ordem e a religiosidade – valores que, acreditam, foram
desprezados pela esquerda, capitaneada no Brasil pelo PT. “Nos anos 60, a
sociedade tinha um viés conservador, e por isso a contracultura, que lutava
contra esse conservadorismo, era de esquerda”, disse Metta. “Nos anos 90, a
esquerda chegou ao poder e virou hegemônica. Não dá para ser cultura e
contracultura ao mesmo tempo. Agora, a contracultura é a direita. Nós somos o
anti-establishment.” A tese teve o apoio de Catel, que prosseguiu: “A direita é
que foi para as ruas para pôr abaixo o sistema podre que estava aí. Fomos nós
que protestamos contra a corrupção e a desordem.”
O sentimento de vitória tinha a ver, naquele momento, com o
resultado do primeiro turno das eleições. Bolsonaro, com 46% dos votos válidos,
aparecia com grandes chances de derrotar o candidato do PT, Fernando Haddad, no
segundo turno. Para os três amigos, era como se Bolsonaro já tivesse ganhado a
eleição e tudo indicasse o advento de uma nova ordem, em que a direita seria a
protagonista, não só no Brasil, mas em todo o planeta. “Estamos diante de um movimento
mundial de resgate dos valores da direita”, entusiasmou-se Fakhoury. “É só ver
o que está acontecendo nos Estados Unidos com Trump, e em vários países
europeus, como Polônia e a Hungria. Os partidos de direita estão ganhando
espaço”, acrescentou Catel, sem se incomodar com o fato de que, tanto o
primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, quanto o polonês, Mateus Morawieck,
ambos de extrema direita e eleitos pelo voto popular, têm corroído por dentro o
sistema democrático com medidas que colocam em risco as liberdades civis e a
independência dos poderes.
Oclube de tiro Interarmas está instalado no bairro
Santa Cecília, num galpão sem janelas, pintado de amarelo claro, nos fundos da
loja de mesmo nome, um comércio de armas. Para entrar, o cliente tem que se
identificar pelo interfone. Dentro da loja, a primeira coisa que se avistava
era uma foto de cerca de 1 metro de Jair Bolsonaro, com o slogan de sua
campanha: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.” Sobre o balcão de vidro,
havia pilhas de adesivos com o rosto e o número do candidato presidencial. Nas
paredes, fotos de militares e recortes de publicações sobre eles. Uma imagem
chamava a atenção: um homem aponta uma arma para a cabeça de uma criança e,
caídas no chão, perto dele, estão duas pessoas mortas. O homem foi identificado
erroneamente como sendo Che Guevara, pois a foto é da guerrilha de El Salvador.
Tanto a loja quanto o clube de tiro pertencem a Mauricio
Rattichieri, de 61 anos, gaúcho de Bagé, descendente de italianos, cuja família
se mudou para São Paulo quando ele era adolescente. Corpulento, com uma longa
barba castanha avermelhada e os cabelos com profundas entradas, ele lembra
um redneck, como é chamado nos Estados Unidos o estereótipo do
homem branco do interior do país que cultiva valores tradicionalistas – foi um
dos tipos sociais que ajudaram a eleger Donald Trump.
Rattichieri aprendeu a atirar ainda criança, na fazenda de
Emilio Garrastazu Médici, o general-presidente do período mais sinistro da
ditadura militar – as duas famílias eram amigas em Bagé. Desde então, nunca
mais abandonou o esporte e não se conforma com fato de a lei brasileira
restringir a posse e o porte de armas ao cidadão comum. “Aqui no Brasil só quem
não precisa de autorização para carregar arma é bandido”, afirmou, ignorando
que a posse e o porte de armas são restringidos em vários países, entre eles
Reino Unido e Japão. Catel, ao seu lado, concordou: “O cidadão de bem não tem
como se defender.” E Fakhoury completou: “Onde tem desigualdade de força, não
há espaço para debate. A única maneira de equalizar é com arma de fogo, senão o
mais fraco será sempre neutralizado.” Os três reproduzem o pensamento de
Bolsonaro como se atuassem num jogral.
Em frente à foto que imaginavam ser de Che Guevara,
Rattichieri emitiu seu parecer sobre o maior símbolo da esquerda revolucionária
latino-americana: era um assassino frio. “Quem matou viado foi Che Guevara, e
esse pessoal de esquerda ostenta as camisetas e bonés com a foto dele sem
qualquer remorso”, afirmou. (A intolerância a homossexuais após a revolução na
ilha permanece um assunto controverso, apesar dos testemunhos de pessoas
perseguidas, como o livro autobiográfico Antes que Anoiteça, do
escritor gay cubano Reinaldo Arenas.) Catel acrescentou: “Depois dizem que é a
direita que é homofóbica.” Metta colocou mais um tijolo no puxadinho retórico:
“O Bolsonaro, que nunca matou ninguém, é quem leva a fama de violento e
homofóbico.” E Fakhoury arrematou: “Se a direita usa camiseta com foto de
Bolsonaro, já é logo achincalhada.”
Parte dos temores de alguns em relação a Bolsonaro se deve à
maneira elogiosa com que ele trata a ditadura militar que vigorou no Brasil por
duas décadas. Metta acredita que os regimes militares na América Latina entre
os anos 60 e 70 foram uma resposta às ações terroristas da esquerda, e não
enxerga ameaça nenhuma na postura do novo presidente. “Esses caras do PT se
apegam ao mito da ditadura a fim de criar na população o temor de que Bolsonaro
fará um governo antidemocrático.” Para ele, se Bolsonaro quisesse promover um
golpe militar, não teria se submetido à eleição. O que tem levado as pessoas a
pedirem intervenção de militares, concluiu, não é a falta de apreço pela
democracia, mas a perda da fé nas instituições. “Mas aqui, no Brasil, as
instituições ainda podem ser salvas.” Catel, por sua vez, argumentou que
Bolsonaro se alinha “com países democráticos, como os Estados Unidos, e não com
as ditaduras, como fez o PT”. E Fakhoury questionou se o Brasil, quando o PT
estava no poder, foi realmente um país democrático. “Se os caras compram
trezentos deputados, estão desmoralizando a democracia”, disse. O jogral sempre
funciona.
Lembrei a todos do mal-estar causado por Bolsonaro durante a
votação do impeachment em 2016, quando ele dedicou seu voto à memória do
coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”, como disse
na ocasião. Era uma saudação aberta a um dos chefes da tortura no período
ditatorial, feita por um parlamentar eleito, dentro do Congresso, numa hora
grave para a democracia brasileira. “O Ustra foi inocentado”, Metta apressou-se
a dizer. “O que fazem com ele é crime de difamação.” (Na verdade, Ustra foi o
primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como torturador, em 2008. Em
2012, foi condenado a pagar uma indenização à família do jornalista Luiz
Merlino, morto em 1971, ação que prescreveu no ano passado. Práticas de tortura
foram comprovadas durante a ditadura, principalmente no QG de Ustra, o
DOI-Codi, em São Paulo.)
Os jovens bolsonaristas não acreditam nisso. “Com certeza
alguém levou uns tapas, mas ter sofrido estupro, acho difícil”, comentou Metta.
Embora se dizendo “totalmente contrária à tortura”, Catel concordou com a
opinião do advogado de que há exagero nos “relatos da esquerda”. E recorreu a
um argumento semelhante ao que Ustra utiliza em seu livro A Verdade
Sufocada, advogando em causa própria. “Pode ser que tenha ocorrido um ou
outro caso, até porque a esquerda estava sendo agressiva. Mas não há como lidar
com bandido com flores”, disse ela. Para a empresária, Bolsonaro só evocou o
nome do coronel durante a votação do impeachment porque outros parlamentares
exaltaram, na mesma ocasião, “os terroristas” Carlos Lamarca e Carlos
Marighella. “Bolsonaro estava fazendo um contraponto e as pessoas ficam
chocadas? Como é isso? Uma sociedade que não tem direita?”, questionou Metta,
sempre o mais incisivo. Para os três amigos, se houve algum excesso no passado,
a situação hoje é muito pior. “Foram 400 mortos em vinte anos de regime
militar, incluindo os mortos do nosso lado. Agora são 70 mil mortes por ano no
Brasil. Isso sim é violência”, pontificou Catel. “Contra fatos não há
argumentos.” Ela comparava o número de vítimas políticas da ditadura – 224
mortos e 210 desaparecidos, segundo a Comissão Nacional da Verdade – com o
índice de mortes violentas no país em 2017 – 63 880, de acordo com o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública 2018.
Antes de o trio deixar a loja de armas, Metta pegou adesivos
com as fotos de Bolsonaro e os colou na camisa. Entregou outros aos companheiros
para que fizessem o mesmo. Depois, ele me disse, jocoso: “Hoje você vai ter uma
experiência completa de direita.”
Por volta de uma da tarde, Catel, Metta e Fakhoury
chegaram para o almoço em um restaurante no bairro do Itaim Bibi. Dirigiram-se
a uma mesa no canto do salão, com os lugares praticamente ocupados por quase
vinte pessoas. O almoço tinha sido organizado pela cirurgiã plástica Ana Helena
Patrus, dona da Clínica Santé – frequentada por gente famosa como Anitta, mas
que já passou por maus momentos, como em 1994, quando uma mulher morreu durante
uma cirurgia. No restaurante estavam jovens de grupos de direita do Nordeste: o
Endireita Fortaleza, o Direita Pernambuco, o Direita Paraibana e o Movimento
Liberta Brasil, do Rio Grande do Norte. O almoço tinha dois objetivos.
Primeiro, agradecer aos jovens nordestinos por sua atuação na campanha de
Bolsonaro na região, o que nem sempre é devidamente reconhecido por seus
correligionários. Foi, por exemplo, o empresário cearense Alex Melo que
idealizou, há dois anos, as recepções ao candidato presidencial nos aeroportos,
que se espalharam pelas capitais do Norte e Nordeste, e depois por todo o país.
No almoço, o grupo também iria combinar as ações no Nordeste na manifestação
nacional em favor de Bolsonaro, em 21 de outubro, uma semana antes do segundo
turno.
O encontro com os jovens dos movimentos nordestinos tinha
sido articulado dias antes no escritório de Fakhoury, num prédio do Itaim.
“Este escritório agora é nosso quartel-general”, afirmou ele, que é o mais
inflamado do grupo. Descendente de libaneses católicos, contou que sua família
deixou o Líbano para escapar da perseguição muçulmana. Embora seja neto de
imigrantes, disse entender a reação em alguns países contra os refugiados. “O
problema é a agressão cultural. Se imigro para outro país, eu tenho que me
encaixar naquela cultura. Mas o padrão hoje não é somar, é impor”, argumentou.
“Se uma cultura aceita estuprar a mulher do outro, a nossa moral não permite.
Chame de crime, de pecado, como quiser. Não é xenofobia. Temos que proteger o
nosso quintal. Temos que fazer checagem na fronteira e pegar a documentação do
cara. Tem que haver triagem.” Catel, que o ouvia com atenção, concordou com a
necessidade de restrições à imigração. “Os muçulmanos tratam a mulher como
escória. Eu não quero uma invasão muçulmana no Brasil.”
Fakhoury prosseguiu, formulando uma teoria de direita sobre
os gêneros sexuais. “A mulher de direita quer ser respeitada, quer escolher o
homem que pode tocá-la”, afirmou. O homem de direita, por sua vez, estaria
pronto para defender suas mulheres de ataques. Ele tentou dar exemplos: na
Europa, “os muçulmanos entram nos bairros, atacam as europeias, e o europeu
fica de fru-fru. Aqui não. Se alguém entrar e atacar vocês, eu vou defender”.
Citei que, no Brasil, os índices de feminicídio são muito elevados. “O que
temos aqui é o homicídio generalizado”, contestou.
A sala de reuniões no escritório de Fakhoury estava lotada
de apoiadores de Bolsonaro, entre eles Filipe Martins, de 31 anos, da Executiva
Nacional do PSL, na qual ocupa o cargo de secretário de Assuntos
Internacionais. Professor de cursos preparatórios para concursos do Itamaraty,
Martins é articulado e sua fala tem um tom equilibrado. Formado em relações
internacionais na Universidade de Brasília, é figura respeitada não apenas pela
ala jovem do partido, como pelos políticos mais rodados. Foi ele quem chamou a
atenção para a necessidade de, na reta final da campanha, o grupo fechar uma
estratégia de suporte à direita do Nordeste, de cujas lideranças se aproximou
ao dar palestras em várias capitais da região.
Na reunião daquela manhã, Martins criticou a cúpula do
partido por ter abandonado a militância do Nordeste. “Fizeram um trabalho
heroico e foram deixados de lado”, disse. Enumerou as qualidades da turma:
“Eles têm uma enorme capilaridade, colocaram diretórios em todas as cidades, e
dispõem, faz muito tempo, de uma militância organizada e proativa para
fiscalizar a votação. Tudo isso com pouquíssimos recursos.” Suas observações
eram diligentemente anotadas por Catel, que todos reconhecem como a pessoa mais
organizada do grupo.
Passaram, então, a discutir formas de fortalecer as
carreatas a fim de neutralizar o favoritismo de Fernando Haddad no Nordeste.
Tiveram a ideia de convidar parlamentares eleitos pelo PSL no Sudeste, como a
jornalista Joice Hasselmann, para participar dos eventos. Fakhoury, que se
prontificou a bancar os custos da viagem dos nordestinos a São Paulo, sugeriu
que convidassem os “Bolsokids”, como se refere aos três filhos de Bolsonaro.
Outro integrante do grupo opinou que muitos políticos dos partidos derrotados
iriam migrar para Bolsonaro e seria bom contatá-los. “Todo mundo vai querer
ficar ao lado do cara que está ganhando”, disse um deles.
A questão da fraude nas eleições, um dos mantras de
Bolsonaro e seus seguidores durante a campanha, dominou a conversa. Fakhoury
era o mais preocupado. Martins tentou tranquilizá-lo: “Isso não tem
plausibilidade. A diferença de votos pró-Bolsonaro é tão grande que não há
fraude que o faça perder a eleição”, disse. O grupo ouviu atento, pois Martins
é visto como um bom analista de pesquisas e tendências políticas. Ele acertou,
por exemplo, o resultado eleitoral em 48 dos cinquenta estados norte-americanos
nas eleições de 2016, que deram a vitória a Donald Trump. Seus críticos,
entretanto, dizem que os acertos são aleatórios, pois ele sempre aposta nos
candidatos da direita. Exagerando na torcida por Marine Le Pen, da extrema
direita francesa, cravou que ela venceria a eleição presidencial de 2017, mas
quem ganhou foi Emmanuel Macron, de centro. Sua torcida enviesada lhe valeu o
apelido de Muralha – o mesmo do ex-goleiro do Flamengo Alan Santana, famoso por
ser sempre vazado quando a bola vinha pelo lado esquerdo.
O grupo passou a discutir formas de garantir maior
visibilidade a Bolsonaro nas redes sociais. Catel propôs vídeos com
celebridades que apoiavam o candidato. Fakhoury foi além: “Acho legal arrumar
um sistema para disparar no WhatsApp e pelo SMS no Nordeste. O PT faz isso”,
disse. “Podíamos disparar mentiras, tipo ‘Haddad é o pai do kit gay’. Mas não
precisa. Vamos é falar a verdade: Haddad foi escorraçado da Prefeitura de São
Paulo. Existem empresas que fazem esse trabalho. Coloca uma maquininha e começa
disparar SMS no Nordeste.” Catel ponderou que isso sairia caro e que o partido
não teria dinheiro para bancar a estratégia. Fakhoury se dirigiu a Martins. “O
que você acha, Filipe?”, perguntou. “Acho que dá sim”, respondeu Martins, sem
muita convicção, alertando, porém, que Bolsonaro havia dito que não queria que
se impulsionassem as redes artificialmente. Ficaram de voltar a discutir o
assunto. Em 18 de outubro do ano passado, uma reportagem da Folha de
S.Paulo revelou que empresas estavam bancando, sem declarar, disparos
de mensagem em massa pelo WhatsApp contra o PT usando a base de usuários do
candidato ou bases adquiridas por agências de maneira ilegal. A doação de
campanha feita por empresas é vedada pela legislação eleitoral.
Durante o almoço com os jovens bolsonaristas do
Nordeste, Mateus Henrique, do Direita Pernambuco, um jovem franzino de 22 anos
e fala rápida, mostrou, às gargalhadas, as fotos das camisetas que tinham sido
confeccionadas para serem vendidas em seu estado. Traziam estampadas frases de
Cid Gomes, senador eleito pelo PDT do Ceará que, durante um ato em Fortaleza em
apoio à candidatura de Haddad, acabou criticando o PT e discutindo com
militantes. “Lula tá preso, babaca” e “Vão perder feio” – lia-se nas camisetas.
A conversa no restaurante estava descontraída. Um dos
bolsonaristas fez elogios à elegância e à juventude de Catel, de Michele Assis,
líder da Direita Paraibana, de 33 anos, e Carla Ly Vale, 35, membro do
Movimento Liberta Brasil do Rio Grande do Norte. Catel abriu um sorriso e
brincou: “A direita faz bem pra pele. Todo mundo com cara de novinho.” Martins,
sentado próximo dela, acrescentou: “Faz bem para a beleza, para a inteligência,
para os neurônios.”
Assis, uma paraibana magra e pequena, de cabelos louros
escorridos e vestido estampado, aproveitou a conversa para criticar as
feministas. “O que elas fazem é ridicularizar a mulher”, disse, em tom de
indignação. “Meu Deus do céu. Não se depilar, não se maquiar, ficar mostrando
os seios. Parecem sujas, parece que não tomam banho. Antes de ir para a
universidade são arrumadinhas. Depois, parecem uns lixos.” A seu lado, Vale
assentia com a cabeça. Pegou a deixa para mencionar uma página no Facebook
chamada “Antes e depois da Federal”, que debocha dos modos das estudantes de
universidades federais. “A menina é toda bonitinha e depois de entrar para a
universidade federal aparece cheia de piercing, tatuagem, usando bermuda,
cabelo colorido, parecendo uma doida.”
Como Catel, Assis começou a se interessar por política em
2013. Até então, não tinha noção do que era ser “de direita”. “Eu só sabia que
a Dilma era terrorista porque ouvia minha mãe falar”, afirmou, referindo-se sem
nenhuma precisão aos tempos em que a ex-presidente atuou numa organização
clandestina de esquerda adepta da luta armada – não consta, porém, que tenha
participado de ações desse tipo. Assis, que é evangélica, prosseguiu, contando
que se aproximou da direita muito mais por causa da defesa dos valores cristãos
do que pela política. “A esquerda queria destruir a família e a religião.”
Quando soube de Bolsonaro, ela se uniu a outros jovens e começou a trabalhar,
em 2016, pela candidatura presidencial do então deputado. Ajudava a espalhar
outdoors e painéis de LED pelas ruas de João Pessoa e atuava nas redes sociais.
“Era uma coisa muito espontânea. Trabalhávamos com doações de 20 a 200 reais.”
A franqueza do candidato também a convenceu: “Ele é transparente, fala na lata
o que precisa ser falado. Não se preocupa com as consequências.”
Entre uma garfada e outra, Vale creditou o crescimento da
direita bolsonarista no Nordeste “ao temor diante do avanço exagerado das
pautas progressistas”. Seu pensamento não diferia muito do de Assis. “Agora
começamos a ter um pouquinho mais de poder e também a ganhar espaço na mídia”,
disse, acrescentando que durante muito tempo todos eles ficaram confinados às
redes sociais, sem que a grande imprensa os percebesse.
O cearense Alex Melo, um homem forte de 46 anos e
sorriso largo, não disfarçava o orgulho de ter concebido as recepções a
Bolsonaro nos aeroportos. Ele contou que muitos grupos de WhatsApp se formaram
na esteira de páginas no Facebook que divulgavam o candidato de forma
bem-humorada, como Bolsonaro Zuero e Turn Down for What, inspirado
num clipe do DJ americano Snake. A marca registrada dessa última página eram
uns óculos pretos rajados de branco, colocados sobre o rosto do candidato cada
vez que ele respondia aos que o desafiavam. A imagem de Bolsonaro com os óculos
vinha sempre acompanhada do bordão “mitou”. O meme viralizou. Foi assim que o
candidato virou “mito”.
No almoço, Mateus Henrique também não escondia sua
satisfação. A perspectiva de vitória de Bolsonaro tinha, para o estudante de
história, um sabor de vingança. Um ano antes, ele estivera entre os que
enfrentaram um grupo de esquerda na Universidade Federal de Pernambuco, a UFPE,
durante a exibição de O Jardim das Aflições, documentário de Josias
Teófilo sobre Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo e da extrema direita
brasileira.
As disputas não se limitaram aos espectadores. Em julho de
2017, oito diretores tinham retirado seus filmes da programação do 21º Cine PE
Festival do Audiovisual em protesto contra a exibição do documentário – o que
acabou lhe dando grande visibilidade na mídia. Por fim, Jardim das
Aflições foi escolhido como o melhor filme do festival, pelo júri e
pelo público.
Foi na UFPE, durante uma exibição em outubro, que a agressão
física tomou o lugar da polêmica nos confrontos sobre o filme. Um grupo de
estudantes antipáticos ao documentário tentou impedir sua exibição, ameaçando
invadir a sala de projeção. “Saiam daqui, fascistas. A universidade não é lugar
de fascistas”, berravam. Os simpatizantes de Olavo de Carvalho, vários deles
trajando camisetas com imagens de Bolsonaro, reagiram – e a briga correu solta,
até que seguranças vieram interrompê-la. “Disseram que não deveríamos ter ido
lá, no reduto da esquerda, passar o filme, que aquilo era provocação”, disse
Henrique. “Mas o que é isso? A universidade deve ser aberta para todo tipo de
pensamento. Não é democrático não deixar o filme ser exibido porque tem viés de
direita. Isso é stalinismo. É coisa de gente autoritária.”
Os protestos de Mateus Henrique emulavam o pensamento
de Olavo de Carvalho. Há mais de duas décadas, primeiro na imprensa, depois em
seus cursos de filosofia online e em pregações nas redes sociais, Carvalho
defende com insistência que existe um pensamento hegemônico de esquerda no
país. Sua concepção do que é esquerda costuma ser bastante elástica. De
Fernando Henrique Cardoso a Lênin, quase todo mundo cabe no guarda-chuva. Uma
de suas obsessões é o conceito de hegemonia, desenvolvido pelo filósofo
marxista italiano, Antonio Gramsci.
Morto aos 46 anos, em 1937, depois de passar dez anos preso
pelos fascistas de seu país e escrever boa parte de sua extensa obra no
cárcere, Gramsci defendeu que o exercício do poder tem uma dimensão coercitiva,
que cabe ao Estado, e uma dimensão, por assim dizer, persuasiva, que cabe não
ao Estado, mas à sociedade civil desenvolver. As escolas, as universidades
(poderíamos dizer hoje “as redes sociais”) são espaços em que se disputa a
hegemonia das ideias, ou da condução mental de uma sociedade em determinado
período histórico. Sem ter hegemonia na sociedade, sem persuasão, é muito mais
difícil se manter no poder recorrendo apenas aos instrumentos coercitivos do
Estado.
Apropriando-se das ideias de Gramsci à sua maneira, Carvalho
denuncia a hegemonia obtida pela esquerda nos fóruns pensantes do país, com
especial obsessão pela USP, e trabalha para que suas próprias ideias ganhem
terreno. Tal projeto já constava do livro OJardim das Aflições, de
1995, cujo subtítulo é “De Epicuro à ressurreição de César: Ensaio sobre o
materialismo e a religião civil”, mas que se dedica também à crítica da
esquerda contemporânea. A ele se seguiu O Imbecil Coletivo –
Atualidades Inculturais Brasileiras, de 1996, uma caudalosa coletânea de
pequenos ensaios, a maioria publicada na imprensa e que transformou o autor num
best seller.
Foi nessa época, a segunda metade dos anos 90, que Carvalho
começou a aparecer com mais frequência nas páginas dos grandes jornais do país.
Publicou na Folha de S.Paulo e em outros veículos e manteve,
entre 2000 e 2005, uma coluna no jornal O Globo, até ser
dispensado. Mudou-se então para Richmond, na Virgínia, onde vive em um casarão
numa área arborizada, ao lado da terceira mulher, Roxane Andrade Souza. Ao
longo dos anos, tornou-se uma espécie de pai espiritual da direita, que começou
a ganhar terreno na esfera da cultura. Nomes como Reinaldo Azevedo, Diogo
Mainardi e Luiz Felipe Pondé se beneficiaram da trilha aberta por Carvalho. Com
Lula no poder desde 2003, havia espaço para o antipetismo raivoso crescer. O
polemismo de direita virou um nicho de mercado no país.
Carvalho passou a ministrar aulas à distância. Em 2006,
criou o programa True Outspeak, que era transmitido pela internet,
do escritório de sua casa. No programa, feito com produção mambembe (o que faz
lembrar, também nesse aspecto, as transmissões ao vivo de Bolsonaro), Carvalho
discutia política, filosofia, atacava a degradação dos costumes e dos valores
morais – e disparava insultos contra marxistas, feministas e “gayzistas”.
Também inventou, em 2009, o Curso Online de Filosofia (COF). Sua fala vem
frequentemente recheada de palavrões e imagens chulas ou escatológicas. A
mistura entre o tom elevado e filosofante e a linguagem baixa, comum nas redes
sociais, conquistou o público jovem.
Alguns exemplos. Certa vez, Olavo de Carvalho reagiu aos
ataques do jornalista Breno Altman, ligado ao PT, que no seu site Opera Mundi o
chamara de “filósofo de bordel”, “degenerado” e “verme”. O ataque se dera em
razão das críticas que Carvalho fizera ao Foro de São Paulo – uma conferência
organizada pelo PT, em 1990, para discutir os rumos da esquerda na América
Latina após o fim da União Soviética – e por ele ter associado o ex-ministro
José Dirceu a Raúl Reys, comandante das Farc, as Forças Armadas Revolucionárias
da Colômbia. Na réplica, Carvalho disse que Altman não podia ser chamado sequer
de carregador de mala de Dirceu – melhor seria “chupador de camisinha usada de
Dirceu”. E acrescentou: “Ele fica debaixo da cama do Dirceu chupando as
camisinhas usadas dele.” Ao fundo, era possível ouvir as risadas de uma mulher,
presumidamente sua esposa.
O sêmen parece uma obsessão. Num artigo contra o movimento
gay escrito para o Jornal do Brasil, em 2007, Carvalho afirma:
“Não posso crer que meu pai teria agido melhor se em vez de depositar seu
esperma no ventre da minha mãe ele o injetasse no conduto retal do vizinho, de
onde o referido líquido iria para a privada na primeira oportunidade.”
Em outra ocasião, falando sobre a baixa qualidade do ensino
nas escolas brasileiras, Carvalho insultou os professores: “Eles querem ganhar
dinheiro para ensinar o teu filho a dar o cu e a chupar a piroca deles.” Disse
que os docentes não mereciam ganhar nada e defendeu o fechamento do MEC. “O
prédio deveria ser derrubado e transformado em estacionamento de cabras.” Numa
terceira apresentação do True Outspeak, discutindo meio ambiente,
atacou defensores da energia de matriz limpa que haviam chamado o petróleo de
combustível fóssil. “Combustível fóssil é o cu da mãe”, filosofou. A despeito
do que diz, Carvalho costuma preservar o tom de voz inalterado e mantém a
aparência de um senhor pacato, o que ajuda a compor a figura do velho sábio.
Boa parte dos grupos que surgiram ou cresceram nas
manifestações contra o governo petista – como o Revoltados On Line, o Vem Pra
Rua, o Acorda Brasil – foi declaradamente influenciada por Carvalho. “Olavo tem
razão” virou um bordão estampado nas camisetas dos manifestantes. Sua
notoriedade galgou um novo patamar depois da publicação do livro O Mínimo
que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota, uma coletânea de textos
publicados na imprensa entre 1997 e 2013, que já ultrapassou os 500 mil
exemplares vendidos. “As pessoas tiravam fotos nas manifestações com o livro
dele e colocavam na internet”, descreveu Filipe Martins, que fez o curso online
de filosofia e é hoje um dos discípulos mais próximos.
Martins não tem dúvida de que Olavo de Carvalho é a figura
central para se entender o crescimento da direita jovem no Brasil. “Ele
diagnosticou o problema lá atrás, com o livro O Imbecil Coletivo”,
disse, referindo-se à obra de 1996. “Depois foi instruindo a juventude por meio
de pequenos textos, imagens e frases de autores conservadores, que postava nas
suas plataformas digitais.” O maior mérito de Carvalho, segundo ele, foi ter
legitimado o pensamento conservador. “Somos um país conservador. A maioria da
nossa sociedade não é afeita à união homoafetiva, ao aborto. Os nossos valores
foram escanteados da grande imprensa por serem considerados incivilizados”, disse
Martins. “O Olavo nos ensinou a não termos vergonha das nossas ideias.”
Conversei com Olavo de Carvalho, via Skype, em 15 de
novembro. Seu computador fica sobre a escrivaninha do escritório de sua casa em
Richmond. É dali que ele fala com os alunos e transmite as aulas do Curso
Online de Filosofia para os seguidores. Ao fundo, vê-se uma estante e um
armário recheados de livros. Com modos cordiais, ele disse não ter dúvida de
que sua influência tinha a ver com a falência do pensamento de esquerda. “Vamos
dizer que era possível até os anos 50 uma pessoa inteligente acreditar que a
análise crítica marxista do capitalismo tinha algum sentido”, afirmou. “Agora
isso não é mais possível. Toda a sustentação dos partidos de esquerda é na base
da mentira, do artifício, do truque sujo, do teatrinho.” Deu um trago no
cigarro (é um fumante compulsivo) e continuou: “É um castelo de cartas. Ou
melhor, desculpe a expressão, é um castelo de peidos. Não há nada ali. É tudo
furado. O primeiro a chegar lá e cutucar, como eu cutuquei, a coisa toda cai.”
Durante quarenta minutos de conversa, repisou seus tópicos
prediletos. O desencanto de parte expressiva dos jovens brasileiros com as
ideias progressistas (que ele chama sempre de esquerdistas) não se explica
apenas pela corrupção e pela crise econômica no país. Diz que está relacionado
a questões morais e de costumes. Iniciou então uma preleção extravagante: “O PT
adotou a estratégia da Escola de Frankfurt para destruir o capitalismo a partir
da nova cultura moral. Essa estratégia defende relações incestuosas entre mãe e
filho como meio de destruir a família. O Haddad está defendendo isso.” Não
consta que a renomada escola que reuniu alguns dos principais filósofos do
século XX, como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, tenha
defendido o incesto. Também não se tem conhecimento de que Haddad tenha feito
qualquer proposta desse tipo. Carvalho, entretanto, insiste que isso ocorreu e
que o assunto foi tratado como fake news pela Folha de
S.Paulo, jornal para o qual escreve de quando em quando. “A Folha
de S.Paulo é uma organização criminosa. Ela só serve pra mentir em
favor do PT”, arrematou.
Seus ataques se estenderam a O Globo, que ele
afirmou ter cortado a sua última coluna, em 2005, porque não aceitava a tese
dele de que a esquerda latino-americana articulava um complô a partir do Foro
de São Paulo. Esse teria sido, segundo ele, o motivo de sua demissão do jornal.
“O que O Globo fez foi a maior fraude jornalística da nossa
história. Enganaram o público para proteger Lula e outros bandidos”, disse.
Carvalho sustenta que existe uma aliança entre o
“frankfurtianismo da esquerda” (nos termos definidos por ele) e os grandes
interesses internacionais, econômicos e corporativos. O raciocínio é tortuoso.
Ao refutar os valores tradicionais – família, religião etc. –, a esquerda
estaria ajudando a transformar a “ganância econômica” no único (ou, ao menos,
no principal) fator de organização da sociedade. “Na sua ignorância, a esquerda
está fazendo o jogo da Fundação Rockfeller, do George Soros, do New
York Times. Estão todos a serviço dos milionários. Quando a economia restar
como único valor, esses milionários vão impor ao mundo um capitalismo
infernal.” Enquanto fala ao mesmo tempo contra a esquerda e contra o
capitalismo e os atores da globalização, Carvalho aproxima sua pauta de
posições nacionalistas – e, para evitar os descaminhos, a única solução é este
conjunto harmônico formado pela religião, a família e a pátria.
As teses de Carvalho não seduziram apenas jovens estudantes:
também chamaram a atenção dos filhos de Jair Bolsonaro, que as sopraram ao pai.
Não à toa, em seu primeiro pronunciamento pela internet após a vitória, na
noite de 28 de outubro, o presidente eleito apareceu em frente a uma mesa sobre
a qual havia um exemplar de O Mínimo que Você Precisa Saber para
Não Ser um Idiota, exposto ao lado da Bíblia, da Constituição brasileira e
de uma biografia de Churchill. O fascínio da família com o intelectual é
tamanho que Flávio, o mais velho dos filhos de Bolsonaro, e Eduardo, o terceiro
do clã, foram até os Estados Unidos para conhecê-lo.
Apesar de ter a estima do presidente, Carvalho não se
considera ideólogo de Bolsonaro. “Eu me considero um amigo da família. Eles
aceitaram duas ou três ideias minhas. Mas não são meus seguidores”,
desconversou. A modéstia não durou muito. “A intenção deles é de que eu seja
[um ideólogo ao alcance dos Bolsonaro], mas não fazem o meu curso.” Fez uma
pausa, tragou o cigarro com gosto, e acrescentou: “Agora, dizer que sou
ideólogo do partido, de uma corrente política, meu Deus do céu… Pegue o exemplo
de Mussolini. O ideólogo dele era o Alfredo Rocco [ministro da Justiça da
Itália entre 1925 e 1932]. O que o Alfredo Rocco fazia? Pegava as ideias do
Mussolini e dava a elas uma forma mais elegante. Eu não faço isso com
Bolsonaro.” Para que não restassem dúvidas, reforçou: “Não estou formulando as
ideias do Bolsonaro. Eu não tenho absolutamente nada a ver com o partido do
Bolsonaro, nem com a campanha do Bolsonaro, nem com coisa nenhuma. Eu já disse
que eu sou apenas um eleitor do Bolsonaro, sou amigo da família, especialmente
do Eduardo e do Flávio.”
Na sua trajetória já longa pelo campo conservador, o
guru do bolsonarismo acabou deixando desafetos pelo caminho. Um deles é Rodrigo
Constantino, a quem a revista Época chamou anos atrás de “novo
trombone da direita brasileira”. Constantino foi blogueiro e colunista da
revista Veja e hoje trabalha para a IstoÉ. A
expressão “esquerda caviar”, que foi criada na França (gauche caviar) e
ele adotou no título de um livro, lhe rendeu certa fama. Formado em economia
pela PUC do Rio de Janeiro, Constantino hoje vive em Miami. Ele acredita que
Olavo de Carvalho perdeu o prumo ao defender “a desmoralização do sistema
inteiro” e pretender reconstruir tudo do zero. “É uma coisa meio jacobina”,
disse ele, por telefone. Citou como exemplo do jacobinismo de Carvalho a sua
reação quando o Movimento Brasil Livre, o MBL, anunciou apoio ao governo de
Michel Temer. “As reformas da previdência e política que o MBL apoiava fazem
parte do ideário liberal, e foram rechaçadas por Carvalho. O comportamento do
MBL era racional. Havia uma preocupação com o país que não existe no discurso
niilista do filósofo”, disse Constantino.
Carvalho, à época, também atacou os membros do MBL por eles
terem se lançado na política institucional, chegando a eleger sete vereadores
em 2016. Ele defendia que a nova direita deveria se concentrar na ocupação de
espaços “nas escolas, na igreja, nas sociedades de amigos”, e não no Estado. À
maneira gramsciana, Carvalho privilegiava a busca de hegemonia no âmbito da
sociedade civil, o que, para Constantino, é um equívoco. “A democracia exige
participação nas formas institucionais de poder”, disse. Nas eleições de 2018,
nove alunos do curso de filosofia de Carvalho se elegeram deputados – e
Constantino não se lembra de ter ouvido Carvalho protestar.
“Está claro que hoje a direita jovem está rachada”, avaliou.
“Existe o MBL, que defende ideias liberais para a economia, e existe essa
direita conservadora apoiadora de Olavo, cujos seguidores foram apelidados, por
ele mesmo, de olavettes.” Constantino apontou o mais flagrante equívoco
político do intelectual: opor-se ao impeachment de Dilma Rousseff. À época,
Carvalho defendeu que o impeachment não passava de “uma manobra para a salvação
da classe política” e a manutenção da esquerda no poder. O resultado das
eleições do ano passado, com a vitória espetacular da direita, desmontou, na
avaliação do economista, a tese estapafúrdia.
Outro que já manteve boas relações com o intelectual, mas
tornou-se um de seus mais vigorosos desafetos, é o jornalista Reinaldo Azevedo.
Divergências a respeito do impeachment de Dilma desencadearam a ruptura, mas
também as teses de Carvalho em defesa da democracia plebiscitária. Na visão do
jornalista, esse modelo político seria idêntico ao que o PT aspirava implantar
no país, copiando o que foi feito na Venezuela por Hugo Chávez e Nicolás
Maduro. Em um artigo na revista Veja, em 2016, Azevedo, cuja verve
é tão demolidora quanto à do adversário, chamou Carvalho de “mascate da
paranoia” e de “Aiatolavo”, em alusão ao líder religioso xiita. A resposta não
demorou. Em entrevista à BBC, Carvalho disse que Azevedo e outros desafetos
queriam ser os representantes primordiais da direita. E reclamou: “O pessoal
comunista nunca mentiu a meu respeito tanto quanto essa turma de direita
emergente.”
Antigos alunos também se decepcionaram com o mestre, como o
ensaísta Martim Vasques da Cunha, doutor em filosofia política pela USP. Ele
contou que, nos anos 90, Carvalho costumava evitar o embate político e sugeria
o estudo e a reclusão. Tudo mudou a partir de 2010. “Ele partiu para uma guerra
cultural.” A banalização do discurso foi a consequência imediata. “Duvido que
esses jovens que hoje o apoiam têm algum conhecimento profundo de filosofia ou
mesmo das obras dele”, avaliou Cunha. “Essa gente é ávida por receber
informações superficiais na rede, revestidas de uma roupagem filosófica. São
leitores de textos básicos de Facebook.”
Embora renegado por alguns ex-discípulos, Carvalho
exerce inquestionável fascínio sobre a juventude de direita. “Esse homem
sozinho mudou o rumo intelectual da nação”, afirmou o advogado Victor Metta, em
seu escritório, um casarão numa rua tranquila no Itaim. “Somos todos olavettes:
eu, a Leticia, o Filipe e o Otávio.” Em junho de 2013, quando as ruas
brasileiras começaram a ferver, Jair Bolsonaro era um político praticamente
desconhecido da maioria da população. Mas os ventos já sopravam na sua direção.
Dias antes das manifestações eclodirem, uma gigantesca marcha de evangélicos
ocupou a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em defesa dos valores
conservadores. Por ter apoiado o pastor Marco Feliciano na discussão sobre
ideologia de gênero nas escolas, Bolsonaro foi o único parlamentar convidado
pelos evangélicos a subir no palanque para falar à multidão. Ele não falou
muito, mas encerrou seu discurso com o bordão militar que costumava usar em
todas as suas preleções: “Brasil acima de tudo.” Então, dando-se conta do
potencial do voto religioso, acrescentou: “Deus acima de todos.” Os slogans
seriam adotados em sua campanha presidencial.
Foi quando Leticia Catel o descobriu. “Eu pensei: ‘Esse
homem vai ser a salvação’”, contou. Decidiu apoiá-lo. Mas havia um impedimento:
ela morava em Jundiaí, e Bolsonaro era deputado pelo Rio de Janeiro. Uma amiga
a alertou de que Eduardo Bolsonaro, escrivão da Polícia Federal em São Paulo,
sairia candidato a deputado federal pelo estado nas eleições de 2014. Catel
mandou uma mensagem a ele, dispondo-se a ajudá-lo na campanha. Acabaram ficando
amigos. Eduardo fez o seu primeiro discurso de campanha na fábrica do pai de
Catel, em Jundiaí. Mario Catelani mandou os operários pararem as máquinas para
ouvir o jovem candidato. “O Eduardo me contou tempos depois que ficou muito
nervoso naquele dia”, ela disse, rindo. “Foi o seu primeiro discurso para uma
plateia expressiva.”
Nessa época, Catel estava engajada na busca de uma saída
para a economia livre das amarras do Estado. “Comecei a trabalhar muito cedo,
junto com meu pai, e vi como o Estado, na verdade, atrapalhava os negócios.”
Também se incomodava com os seus professores de viés marxista e a crítica que
faziam ao capitalismo. “Eu não podia concordar quando diziam que o empresário
era ruim e que o trabalhador era explorado porque eu via o meu pai sempre
ajudando os empregados da empresa dele”, disse. Disposta a encontrar um caminho
que a satisfizesse, matriculou-se em uma pós-graduação no Instituto Mises
Brasil, um think tank sediado em São Paulo que prega o
liberalismo econômico e político, conforme as ideias dos economistas da chamada
Escola Austríaca, cujos representantes centrais são Carl Menger, Ludwig Von
Mises e Friedrich Hayek. “Menos Marx, Mais Mises” era uma das frases que
costumavam aparecer em cartazes nas manifestações da direita, levados
principalmente pela turma do MBL. Era o anúncio de que o pensamento ultraliberal
havia entrado no debate.
O Instituto Mises Brasil ocupa parte de um andar em um
prédio moderno e envidraçado, também no bairro Itaim, em São Paulo. A decoração
do local é despojada e agradável, com mesas de madeira e bancos cobertos por
almofadas coloridas, próximos à ampla vidraça. Foi fundado por Hélio Marcos
Coutinho Beltrão, 51 anos, um homem entusiasmado e sorridente, filho do
ex-ministro Hélio Beltrão, ex-ministro do Planejamento e também da Previdência
e da Desburocratização, durante o regime militar. Coutinho Beltrão é
economista, egresso do mercado financeiro e trabalhou no Banco Garantia, de
Jorge Paulo Lemann, até a instituição, abalada pela crise da Ásia em 1998, ser
vendida para o Credit Suisse First Boston. Ele contou que passou anos tentando
entender as razões de os analistas financeiros não terem detectado a crise de
liquidez que abalou o mercado mundial naquele final de década – e que quase
quebrou o banco em que trabalhava.
Uma tarde, deparou-se com um livro de Hayek, Desestatização do
Dinheiro, que foi para ele uma revelação. Criou em 2007 o Instituto Mises
Brasil, que tem atraído sobretudo os mais jovens. “Eles descobrem o Mises e
ficam maníacos. Querem ler tudo sobre Escola Austríaca, querem fazer parte do
clube que estuda o assunto, tirar foto comigo e com os professores”,
exaltou-se. O instituto foi além do liberalismo. Começou a difundir também o
“libertarianismo”, que se pretende herdeiro direto dos liberais austríacos e
adotou este nome depois que o termo “liberalism” foi vulgarizado nos
Estados Unidos, chegando a ser empregado por alas da esquerda.
Há cerca de dez anos, em uma conversa com Paulo Guedes, o
novo ministro da Economia, este lhe disse que os liberais tinham perdido a
guerra das ideias porque só falavam de teorias econômicas e não apaixonavam
ninguém, ao passo que a esquerda falava de valores que tocavam as pessoas, como
saúde, educação e preconceitos de todo tipo. Coutinho Beltrão explicou a Guedes
que ele estava tentando fazer no Instituto Mises Brasil justamente isso: fundir
o “liberalismo humanista” de Ludwig von Mises com a defesa intransigente da
liberdade individual do movimento libertarista – o que inclui, inclusive,
defender o casamento gay, o porte de armas, a liberação das drogas e até o
direito ao suicídio. “Se você não está causando mal a terceiros, o Estado não
pode se meter na sua vida.” Empolgado, ele me disse que a igualdade é uma
utopia comum aos marxistas e aos libertários, mas que os primeiros buscam esse
ideal recorrendo aos meios errados. “Nós, por nosso lado, temos os meios certos
para chegar à igualdade, que é através da liberdade individual. A Escola
Austríaca, embora liberal, é humanista.”
No começo de 2016, por sugestão de Leticia Catel, Eduardo
Bolsonaro decidiu fazer uma pós-graduação sobre economia liberal no Instituto
Mises Brasil. Ela disse que Eduardo passou então a compartilhar com o pai as
ideias apresentadas nas aulas. “Eu ficava muito feliz ao ver o Jair defendendo
ideias que discutíamos no Mises, tais como menos intervenção estatal, menos
impostos, menos burocracia.” Coutinho Beltrão também reconhece a conversão de
Bolsonaro às pautas liberais, mas evita creditar essa mudança às teses do
Instituto Mises Brasil. “Acho que tem a ver com o fato de entender o que a
sociedade está pedindo. Mas, sem dúvida, o Eduardo deve ter batido muitos papos
com ele.”
Durante sua pós-graduação no Mises Brasil, Catel foi
convidada por Coutinho Beltrão a participar de um grupo do Instituto de
Formação de Líderes, que reúne herdeiros de grandes fortunas. Ali fez contatos
com muitos empresários, embora ela faça questão de dizer, mesmo brincando, que
não pertence ao “clube dos milionários”. Esses contatos seriam preciosos para
aproximar Jair Bolsonaro da elite empresarial paulista.
A essa altura, Catel já estava muito próxima da família
Bolsonaro. Durante a campanha presidencial, organizou eventos, contratou
seguranças e ajudou na logística de deslocamento do candidato. “Se o meu
pessoal estivesse no comando da segurança dele em Juiz de Fora”, disse, “duvido
que teria acontecido tudo aquilo.” “Seu pessoal” é um grupo de ex-policiais
donos de empresas de segurança e que também dão aulas de defesa pessoal e de
Krav Magá, luta utilizada pelo exército israelense e que ela também pratica.
Como conhecia um deputado de origem brasileira no Parlamento italiano, Catel
foi quem ajudou na aproximação de Bolsonaro com o político de extrema direita
italiano Matteo Salvini, atualmente ministro do Interior e um dos primeiros
líderes internacionais a se posicionar a favor do candidato Bolsonaro.
Por causa de sua atuação no comércio exterior, Catel também
tinha contatos com empresários na América Latina. Às vésperas do segundo turno,
ela foi uma das pessoas que participaram da pequena comitiva que seguiu até o
Paraguai em busca do apoio do presidente do país, o conservador Mario Abdo
Benítez, eleito no ano passado. Outra ação de peso em favor de Bolsonaro no
mundo dos negócios veio de Victor Metta. Judeu praticante, ele foi um
importante elo de aproximação do candidato do PSL com parte da comunidade
judaica de São Paulo.
A trama de relações de Catel se ampliou e, conduzida pela
família Bolsonaro, ela se aproximou do grupo de generais do entorno do
ex-capitão. A partir de meados de 2017, esse grupo passou a se reunir em
Brasília para propor ideias para um futuro governo Bolsonaro. Os encontros
ocorriam na casa do general Oswaldo Ferreira, que chegou a ser cotado para o
Ministério da Infraestrutura. Todas as quartas-feiras, um especialista era
convidado para discutir um tema específico. Catel foi chamada para debater
comércio exterior. Filipe Martins participou das conversas sobre política
internacional. E Metta falou sobre direito tributário, sua especialidade. Como
a casa do general Ferreira começou a ficar pequena para o número de participantes,
Catel tomou a iniciativa de alugar, às suas expensas, a sala de um hotel em
Brasília. Por causa dessa aproximação com os militares, ela foi apelidada de
“Leticia Quartel” por seus detratores.
Num final de tarde de outubro, fui com Catel e Martins
até a fábrica do pai dela, em Jundiaí. Ela mesma dirigiu o jipe preto blindado.
A empresária havia sido destituída do cargo de secretária-geral do PSL em 27 de
setembro, por decisão do então presidente nacional do partido, Gustavo
Bebianno, e do presidente do PSL em São Paulo, Major Olimpio – foi este que
comunicou a Catel seu desligamento, via WhatsApp, como costuma ser feita quase
toda a comunicação dos integrantes do PSL.
Ela explicou a decisão dizendo que não foi compreendida em
seu modo de agir. “Eu sou empresária. Gosto de ver as coisas acontecerem, tomo
a frente. Não sou o tipo de pessoa que acha que é preciso fazer uma assembleia
para decidir tudo o que precisa ser feito”, disse. “Talvez esse meu jeito tenha
incomodado algumas pessoas acostumadas a agir de modo antigo e ultrapassado.”
Martins, da executiva nacional do PSL, saiu em sua defesa. “Para mim não mudou
nada. Continuo consultando a Leticia para tudo. Um partido não pode abrir mão
de uma pessoa tão eficiente como ela”, disse. Major Olimpio não vê da mesma
forma. “Ela se postava o tempo todo como coordenadora da campanha do Bolsonaro.
Isso causava uma série de dissabores”, ele disse, enquanto se preparava para
dar entrevista a uma rádio em São Paulo, um dia antes da eleição do primeiro
turno. Ele enumerou suas queixas: “Primeiro, ela não tinha essa autonomia;
segundo, não dava satisfação a ninguém; terceiro, eu sou o presidente do
partido e via por fotos que ela estava cada dia num lugar, dando entrevista,
junto com o general Mourão, sem autorização do partido para fazê-lo.” Major
Olimpio contou que a destituição de Catel fora decidida por Bebianno, mas que
“todos”, ele frisou, “todos dentro do partido concordaram”. Segundo ele, foi
uma decisão unânime da cúpula do PSL.
O desconforto da cúpula do partido com Catel havia se
acentuado com o episódio do esfaqueamento de Bolsonaro, em setembro. Foi ela e
Metta que levaram, no monomotor do escritório do advogado, o médico-cirurgião
Antonio Macedo de São Paulo até Juiz de Fora para examinar o candidato, então
já operado e atendido pelos médicos da Santa Casa de Misericórdia da cidade
mineira. Catel e Metta convenceram Bolsonaro e sua família a transferir o
candidato para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Ocorre que, antes
disso, Bebianno já havia contatado o diretor do Hospital Sírio Libanês, Roberto
Kalil Filho, para que cuidasse do caso. Kalil enviou três médicos de sua equipe
para examinar Bolsonaro. “Nós não podíamos deixar que o Jair fosse levado para
o Sírio Libanês, que atende os políticos do PT”, justificou a empresária – o
hospital já atendeu políticos de vários matizes, de José Serra a José Sarney,
de Dilma Rousseff a Paulo Maluf. A família Bolsonaro concordou com os
argumentos e o candidato foi transportado num jato hospitalar para o Einstein.
Bebianno acabou atropelado pela dupla Catel e Metta.
A fábrica de Mario Catelani fica em um condomínio
arborizado, em Jundiaí. Ele fala baixo e pausado e tem o sotaque carregado do
interior de São Paulo. Sentado em seu escritório, com vista para o enorme
galpão onde fica a área de produção da fábrica, não esconde o orgulho que sente
da filha. “Todos os meus três filhos trabalharam desde cedo. Eles voltavam da
escola e vinham me ajudar no negócio que estava começando.” E elogiou a
independência da filha, que criou sozinha a própria empresa.
Nesse momento, Catel interrompeu a conversa e disse que, por
isso mesmo, sempre criticou os movimentos feministas. “Eu sempre trabalhei com
homens, num setor muito masculino, que é o mecânico, e nunca me senti vítima de
machismo”, falou. “Sempre consegui ser respeitada pela minha competência.”
Aproveitou para fazer novos ataques à esquerda que, segundo ela, fica
“inventando pautas para vitimizar a mulher”. Disse que não se importa de levar
cantada, mas não admite que toquem nela, sem que ela queira. “Agora, se me
cantarem e eu não gostar eu revido, xingo, e pronto. Não faço drama”, afirmou.
No momento, não está namorando. “Não tenho tempo”, justificou. Mario Catelani
olhou para a filha e comentou: “Ela é assim, determinada.” Por isso, ficou
surpreso com a decisão do partido de afastá-la. “Como puderam tirar uma jovem
tão comprometida? Isso me deixou chateado pra caramba.”
Após a vitória de Bolsonaro, Catel, Martins e Metta foram
chamados para participar do grupo de transição, em Brasília. Metta atuou na
equipe de Paulo Guedes. Catel e Martins, no grupo de relações exteriores,
trabalhando próximos ao ministro Ernesto Araújo – que foi sugerido para o
Itamaraty por Olavo de Carvalho. Assim que foi indicado, Martins fez uma
ligação via Skype para Carvalho da qual participaram Araújo e Catel. O
intelectual teve influência também na escolha do ministro da Educação, Ricardo
Vélez Rodríguez, defensor da “escola sem partido”, uma das bandeiras dos
bolsonaristas. Dias depois das duas nomeações, Carvalho escreveu na sua página
no Facebook: “Não trabalho para a direita brasileira. Eu a inventei, porra.”
Martins acompanhou Eduardo Bolsonaro aos Estados Unidos, em
novembro, na visita ao ex-sub-secretário para assuntos políticos de Donald
Trump, Thomas Shannon, uma tentativa de aproximar Bolsonaro do governo
americano. De lá, Martins seguiu com Eduardo para a Colômbia, para uma visita
ao presidente colombiano, o conservador Iván Duque. Metta e Fakhoury, por sua
vez, foram a Israel para a comemoração dos 70 anos do Estado judeu. Os dois,
junto com Martins, apoiam a transferência da embaixada brasileira de
Telaviv para Jerusalém, o que é rechaçado por parte da diplomacia brasileira.
No final de novembro, voltei a falar com Catel, que tinha
entrado numa rotina intensa em Brasília depois da vitória de seu candidato. “O
Jair nasceu para ser presidente. Ele é a minha esperança”, afirmou.
Pragmaticamente, acrescentou: “Muita coisa foi projetada na figura dele. Será
um risco muito grande se ele decepcionar os eleitores. Se não fizer as mudanças
que esperam, as pessoas podem se voltar contra ele. A militância da direita não
é fanática, não é apegada a personagens e sim a valores. Se o Jair errar, ele
perde o apoio. Meu e de todo mundo.”
Consuelo Dieguez, repórter da piauí desde
2007, é autora da coletânea de perfis Bilhões e Lágrimas, da
Companhia das Letras