quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

TÍTULO BÍBLICO

Da Folha de S.Paulo
Num de seus discursos mais famosos, ao menos até virar ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves se apresenta à plateia: não estão diante apenas de uma pastora, mas de “uma advogada” que é também “mestre em educação” e “em direito constitucional e direito da família”.
Títulos acadêmicos, contudo, que a titular na Esplanada de Jair Bolsonaro nunca teve de fato, como a própria disse, por meio da assessoria de imprensa do ministério, após ser questionada pela Folhapor três semanas sobre quais eram as instituições em que ela adquirira os alegados mestrados.
Damares não possui currículo no Lattes, uma plataforma mantida pelo CNPq (conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para agregar trabalhos e títulos de acadêmicos. O pesquisador não é obrigado a estar no Lattes, mas foge à praxe não ter seu nome lá.
Questionada pela reportagem, Damares afirmou que seu título tem a ver com o ensino bíblico. “Diferentemente do mestre secular, que precisa ir a uma universidade para fazer mestrado, nas igrejas cristãs é chamado mestre todo aquele que é dedicado ao ensino bíblico.”
No dia 14 de janeiro, à mesma pergunta, sua assessoria havia dito apenas que “a ministra não tem Lattes”.
A ministra não explicou por que, em palestra que deu numa igreja em Mato Grosso do Sul, em 2013, com o tema “O Cristão Diante de Novos Desafios”, ela especificou então ser mestra em categorias tão específicas quando educação e direito constitucional e da família.
Naquele dia, ela propagou na Primeira Igreja Batista de Campo Grande ideias como a de que uma técnica do Programa Nacional DST/Aids, em 2002, disse que “uma educação diferenciada poderá fazer desabrochar em todo o menino seu lado feminino, e em toda menina seu lado masculino”. Não há nenhum registro fidedigno de que essa frase seja real.
Uma pessoa com trânsito na bancada evangélica no Congresso, para a qual Damares já trabalhou como assessora jurídica, afirmou à Folhaque ela já ostentou o título em outras ocasiões.
Agora, o currículo dela publicado no site da pasta sob sua guarda diz apenas que ela se formou na Faculdade de Direito de São Carlos e em pedagogia pela Faculdade Pio Décimo.
A ministra pinça uma passagem bíblica (Efésios 4:11) para justificar a designação: “E Ele designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres".
“Passei anos da minha vida palestrando para professores/mestres em seminários de escolas bíblicas e ministério infantil”, diz. “Em várias dessas palestras, parafraseei essa passagem, estimulando os professores ali presentes que se lembrassem como nós, como pastores, recebemos o ministério de mestres dentro da perspectiva cristã.”
Bookmark and Share

O CENTRO EXCÊNTRICO DA OPINIÃO PÚBLICA

Eugênio Bucci, O Estado de S.Paulo
“Os retratos dentro das cabeças dos seres humanos, retratos deles mesmo, dos outros, das suas necessidades, propósitos e relacionamentos, são suas opiniões públicas. Aqueles retratos que são adotados por grupos de pessoas, ou por indivíduos agindo em nomes de grupos, são Opinião Pública com letras maiúsculas” Walter Lippmann, em Public Opinion
O jornalista americano Walter Lippmann tinha pouco mais de 30 anos, em 1922, quando seu livro Public Opinion chegou às livrarias dos EUA. Foi um marco. O texto ágil e cristalino – bem “jornalístico”, dizem os acadêmicos – dissolve e dessacraliza a aura que se costuma atribuir a essa figura um tanto pomposa que é a Opinião Pública com letras maiúsculas. É bom de ler até hoje. Um clássico. Lippmann olha para a Opinião Pública e se pergunta: ora, mas que bicho é esse? Logo começa a responder. Em sua descrição, a Opinião Pública se resume a um amontoado de retratos mentais que uma sociedade resolve aceitar como fidedignos. Esses retratos nada mais são do que estereótipos.
Não por acaso, Lippmann dedica-se bastante a dissecar a noção de estereótipo: um conceito compactado que condensa uma opinião na forma de pacote de sentidos simplificado, bem fácil de ser exposto, compartilhado, vendido ou comprado. Segundo Lippmann, toda gente pensa por meio de estereótipos. Sem esses rótulos concentrados que são os estereótipos, nós não conseguiríamos conversar e muito menos fazer política. Há exemplos bem óbvios. Padre pedófilo é um estereótipo. Terrorista islâmico, outro.
São bonitas, porque simples e esclarecedoras, as passagens em que Lippmann discorre sobre o que sejam os estereótipos. “As formas estereotipadas emprestadas ao mundo não procedem apenas da arte, no sentido da pintura, da escultura e da literatura”, ele escreve (e eu traduzo), “mas também de nossos códigos morais, das filosofias sociais e das agitações políticas”. Ou: “A americanização, por exemplo, pelo menos superficialmente, é a substituição dos estereótipos europeus pelos norte-americanos”.
Impossível refutar. Acontece que os estereótipos são mutáveis. Um signo positivo se converte em negativo da noite para o dia. E vice-versa. Yasser Arafat, o líder máximo da Organização para a Libertação da Palestina, era o símbolo do mais pérfido terrorismo internacional.
Depois virou um símbolo da boa vontade mais angelical, mais ou menos como uma pombinha branca. A transmutação deu-se em 1983, por força do acordo de paz que ele firmou com o então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, sob as bênçãos de braços abertos do presidente Bill Clinton, que os recebeu no gramado da Casa Branca.
O mundo é feito de mudanças e os estereótipos, também. Até outro dia as mineradoras eram um selo de progresso. Hoje são sinônimo de catástrofe. Até outro dia Jair Bolsonaro era um militar indisciplinado e boquirroto. Hoje é o fiador das tais “reformas de que o Brasil precisa”, etc.
Os estereótipos são volúveis e ao sabor deles muda a Opinião Pública, essa senhora sem caráter que se compraz em se deixar carregar nos ombros das massas, que ora são infantis, ora temperamentais, ora estúpidas – ou as três coisas ao mesmo tempo.
Vejamos com mais vagar o que vem acontecendo com a Opinião Pública no Brasil. O seu centro de gravidade se deslocou em velocidade vertiginosa. Velhos estereótipos se metamorfosearam. Já se sabia que o governo Bolsonaro representaria uma alteração tectônica nas mentalidades e na cultura política. Melhor dizendo, a reconfiguração ocasionada pelo bolsonarismo, disso todos sabíamos, não se limitaria a arranjos (ou desarranjos) institucionais no âmbito do governo e do Estado, mas teria ainda mais efetividade nos interstícios da vida social. Pois é isso precisamente o que estamos vendo agora. O dado novo é que a amplitude e a densidade dessa alteração tectônica estão acima das expectativas (as boas e as más).
A desinibição com que se passou a falar das armas de fogo como solução para a criminalidade surge como um sintoma. O estereótipo do revólver deixou de significar morte, homicídio, perigo para adquirir um sentido de prevenção, segurança, cujo risco não seria maior que o de um liquidificador. A convicção de que a força resolve os impasses ganha mais e mais adeptos.
Movimentos sociais passam a ser tachados de terroristas. Uma boa sova corrige o garotinho com tendências homossexuais. A patritotice vazia de que o Brasil estaria “acima de tudo” (como a Alemanha esteve no passado) vingou. O bordão de que Deus paira acima do Estado laico pegou.
A violência volta a ser a parteira da história, mesmo que seja uma história antiga. As palavras comunismo e socialismo transmutam-se em sinônimo de corrupção, ineficiência, parasitismo. Os humores odientos das massas ecoam não só pregações fascistas, mas principalmente a verborragia dos facínoras.
Foi assim que o centro da Opinião Pública saiu de centro. Tome a GloboNews como um indicador. Até ontem o canal era bombardeado nas redes sociais por ser “de direita”, por abrigar só porta-vozes do tucanato conservador. Agora recebe ataques maciços por ser uma catedral do politicamente correto e do “marxismo cultural”. Temos aí uma obra colossal e inacreditável dos primeiros cem dias do governo Bolsonaro: transformar a GloboNews num canal de esquerda. Sinal mais clamoroso da mutação da Opinião Pública no Brasil não poderia existir.
Enquanto os velhos expoentes do centro-direita, como Fernando Henrique Cardoso, são expurgados dos banquetes por serem amigos de comunistas, líderes anticomunistas como João Doria começam a se declarar “de centro”. Vai se cumprindo, aos solavancos, o vaticínio do prefeito que dizia que o duelo do futuro seria entre a direita e a extrema direita.
No meio disso, reportagens investigativas serão tratadas como complôs de esquerdistas criminosos. A imprensa livre viverá dias mais difíceis, como já deu para ver. Mas disso trataremos em outra ocasião.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Bookmark and Share

A HISTÓRIA DE LULU

Da ÉPOCA
Desde que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, assumiu uma cadeira no primeiro escalão do governo do presidente Jair Bolsonaro, uma ferida de 15 anos atrás voltou a arder no Xingu. A aldeia Kamayurá, no centro da reserva indígena no norte de Mato Grosso, é o berço de Kajutiti Lulu Kamayurá, de 20 anos. Damares a apresenta como sua filha adotiva. A adoção, porém, nunca foi formalizada legalmente. A condição em que a menina, então com 6 anos de idade, foi retirada da aldeia é motivo de polêmica entre os índios.
Lulu nasceu em 20 de maio de 1998, segundo seu registro. ÉPOCA foi ao Xingu ouvir dos kamayurás a história da menina que foi criada pela avó paterna, Tanumakaru, uma senhora de pele craquelada, cega de um olho. Eles afirmam que Damares levou a menina irregularmente da tribo. Alguns detalhes se perdem na memória dos índios, mas há um fio condutor que une o relato de todos eles. Lulu deixou a aldeia sob pretexto de fazer um tratamento dentário na cidade e nunca mais voltou. Contam que Damares e Márcia Suzuki, amiga e braço direito da ministra, se apresentaram como missionárias na aldeia. Disseram-se preocupadas com a saúde bucal da menina.
“Chorei, e Lulu estava chorando também por deixar a avó. Márcia levou na marra. Disse que ia mandar de volta, que quando entrasse de férias ia mandar aqui. Cadê?” Questionada sobre se sabia, no momento da partida de Lulu, que ela não mais retornaria, foi direta: “Nunca”.
A ministra Damares Alves procurou ÉPOCA quando a reportagem ainda estava no Xingu. Disse que estava “à disposição para responder às perguntas (...) sobre nossas crianças, sobre minha filha e sobre as famílias”. “Não temos nada a esconder. Mas insisto: tratem tudo com o olhar especial para estes povos, para as mães e crianças que sofrem”, afirmou, via WhatsApp.
Em Brasília, no entanto, ela se recusou a dar entrevista e respondeu apenas parcialmente a 14 questionamentos da revista. “Todos os direitos de Lulu Kamayurá foram observados. Nenhuma lei foi violada. A família biológica dela a visita regularmente. Tios, primos e irmãos que saíram com ela da aldeia residem em Brasília. Todos mantêm uma excelente relação afetiva.” Perguntamos por que Damares não devolveu a criança à aldeia após o tratamento. “Lulu Kamayurá já retornou à aldeia. Ela deixou o local com a família e jamais perdeu contato com seus parentes biológicos.” A questão sobre não ter adotado formalmente Lulu foi ignorada.
Leia em ÉPOCA desta semana a reportagem completa sobre a saída de Lulu Kamayurá de sua aldeia no Xingu e a atuação da ministra Damares Alves em comunidades indígenas, a partir do relato de índios que vivem nesses lugares, de famílias atendidas que defendem esse trabalho, da Funai e de documentos de investigações.
Bookmark and Share

LEVADA IRREGULARMENTE

Do Estadão Conteúdo

Índios da aldeia Kamayurá, localizada no centro da reserva indígena do Xingu, no norte do Mato Grosso, afirmaram à revista Época que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, levou Kajutiti Lulu Kamayurá, à época com seis anos, irregularmente da tribo. Damares apresenta Lulu, hoje com 20 anos, como sua filha adotiva, mas a adoção nunca foi formalizada legalmente, conforme a própria ministra já admitiu em entrevista à TV Globo.
Segundo os índios, Lulu deixou a aldeia levada pela amiga e braço direito de Damares, Márcia Suzuki, sob o pretexto de fazer um tratamento dentário na cidade, mas nunca mais voltou. Márcia fundou, junto com Damares, a ONG Atini, cuja bandeira é salvar crianças indígenas do infanticídio. “Márcia veio na Kuarup (festa tradicional em homenagem aos mortos), olhou os dentes todos estragados (de Lulu) e falou que ia levar para tratar”, contou Mapulu, pajé kamayurá e irmã do cacique.
Em resposta a questionamentos da revista, a ministra afirmou que a família biológica da filha adotiva a visita regularmente. Perguntada porque a criança não voltou à aldeia após o tratamento dentário, Damares disse que Lulu retornou ao Xingu para visitas. “Ela deixou o local com a família e jamais perdeu o contato com seus parentes biológicos.” Os índios, por sua vez, dizem que a primeira visita de Lulu só aconteceu há cerca de dois anos. A questão sobre não ter adotado formalmente a menina foi ignorada pela ministra.
Segundo a revista, para estar de acordo com a lei, a adoção de uma criança indígena precisa passar pelo crivo da Justiça Federal e da Justiça comum. A adoção, ou mesmo a guarda ou a tutela, também dependem do aval da Funai. No processo, uma equipe de estudos psicossociais deve analisar se há vínculos entre a criança e o adotante e se a família mais extensa corrobora a adoção. No caso dos indígenas, deve ser ouvida a aldeia.
Os relatos dos índios contam que a mãe biológica da criança não tinha condições de cuidar dela e que Piracumã, o tio da menina, teve a ideia de deixá-la aos cuidados da vó paterna, Tanumakaru. A aldeia, no entanto, sofria com escassez de comida e remédios, e Lulu chegou a ficar desnutrida. À época, chegou a ser levada de avião por servidores que cuidam da saúde dos indígenas na região. Depois se recuperou, mas ficou com a dentição torta pelo uso de mamadeira.
“Chorei, e Lulu estava chorando também por deixar a avó. Márcia levou na marra. Disse que ia mandar de volta, que quando entrasse de férias ia mandar aqui. Cadê?”, disse, em tupi, a avó, hoje quase octogenária. Questionada sobre se sabia, no momento da partida de Lulu, que ela não mais retornaria, respondeu: “Nunca”.
Em diversas ocasiões, a ministra fez críticas aos costumes indígenas. Em 2013, em um culto, Damares disse que além de Lulu ter sido salva do infanticídio e ter sido maltratada pela miséria dos kamayurás, a menina seria escrava do próprio povo.
As acusações de infanticídio e maus-tratos feitas pela ministra são rebatidas pelos kamayurás. “Quem sofreu mesmo, quem ficava acordada fazendo mingau, era a vovó Tanumakaru, não a Damares. Ajudei a buscar leite nessa época”, disse a pajé Mapulu.
Os índios, porém, não negam que sacrificavam crianças no passado. No caso de Lulu, foi Piracumã, o tio da criança, quem insistiu para a mãe não enterrar o bebê. “Antigamente, tinha o costume de enterrar. Hoje, a lei mudou”, completou Mapulu.
Do Estadão Conteúdo
Bookmark and Share

A PROFUNDIDADE DA LAMA

Da PIAUÍ

Os cientistas da Universidade Federal de Juiz de Fora montaram uma força-tarefa para analisar a natureza dos rejeitos da lama de minério da barragem do Feijão, em Brumadinho, pertencente à Vale, que rompeu na sexta-feira, 25 de janeiro. O rompimento despejou 12,7 milhões de metros cúbicos de rejeito na natureza e provocou a morte de 65 pessoas, além de 279 desaparecidos até o final da noite desta segunda-feira. O grupo de cientistas está em contato com pesquisadores do comitê de bacias hidrográficas, que estão em Brumadinho recolhendo amostras de água e sedimentos deixados pelos rejeitos de minério de ferro.

Ainda que a lama pesada fique sedimentada no fundo do rio Paraopeba e não chegue até o rio São Francisco, afirma o geógrafo Miguel Felippe, da UFJF, os danos para a natureza já são devastadores. Felippe explicou que lama de minério possui três camadas: a densa, que fica no fundo dos rios, a mais fina, que boia na superfície, e a química, misturada à água, com alto poder de contaminação. Os cientistas estão pesquisando se a natureza do rejeito de Brumadinho é o mesmo da barragem de Fundão, em Mariana, que rompeu em 2015. Caso seja, a contaminação dos rios – primeiro o Paraopeba e depois, possivelmente, o São Francisco – será semelhante à do rio Doce, para onde vazou o minério daquela barragem. Isso significa que os rios podem ficar impróprios para pesca e uso da água, como ocorre com o Doce.

No caso do rio Doce, segundo Felippe, os principais contaminantes foram ferro, alumínio e manganês. Mas alguns grupos de cientistas encontraram também bário, mercúrio e arsênio. “Se forem comprovados estes contaminantes, haverá mudança química na água dos rios”, alertou Felippe. Já o sedimento mais pesado, que é a lama, tem o efeito de sufocação. Felippe não acredita que isso venha a ocorrer com o São Francisco, já que a lama, por ser em menor quantidade que os 55 milhões vazados em Fundão, tende a se dissipar no caminho. O impacto maior deve ser mesmo no Paraopeba, um dos principais afluentes do São Francisco.

Ainda assim o efeito é dramático para a dinâmica dos rios, que será certamente alterada. “Muda o ambiente fluvial que é criadouro de vida. Acaba com os hábitos dos animais, sejam peixes ou outras espécies”, disse. “As consequências são graves. A transformação do rio é de médio e longo prazos e a sua recuperação não se dá de um dia para o outro.”

Ele alertou para o acúmulo de rejeitos nas margens do rio Paraopeba. Esse material é carregado de ferro e outros contaminantes. A cada chuva, os sedimentos correm para os rios, e agravam a contaminação. Felippe não acha menos preocupante o fato de os rejeitos pesados ficarem retidos no fundo do lago da barragem de Três Marias, sem prosseguirem pelo São Francisco. “Ainda que a lama não passe, os contaminantes atingirão o rio.”

Na tarde de segunda-feira, o Operador Nacional do Sistema Elétrico fechou a barragem de Retiro Baixo, onde espera conter parte dos rejeitos de minério de ferro que descem o Paraopeba. A decisão foi tomada para não comprometer as turbinas da usina. A expectativa era de que a lama não chegasse até a barragem de Três Marias, a 70 quilômetros dali, o que obrigaria o ONS a tirá-la também de operação. Enquanto a de Retiro Baixo gera apenas 20 megawatts, a de Três Marias gera cerca de 300 megawatts. Todo o sistema nacional produz, em conjunto, 109 mil megawatts.

A Cemig, empresa controladora da barragem de Três Marias, embora não acredite na possibilidade de a lama ter força para chegar à usina, está monitorando o movimento dos rejeitos. A assessoria de imprensa da empresa explicou que, se a lama chegar à represa, as comportas teriam que ser abertas para evitar a destruição das turbinas. “Não há muita saída”, explicou o porta-voz da Cemig, Carlos Santiago. “Mesmo porque, se a represa retiver a água, coloca a barragem em risco de estourar.” Afora isso, se a água fosse retida, a vazão do São Francisco ficaria comprometida.

A
Vale afirmou nesta segunda-feira que vai construir um dique em Pará de Minas, a cerca de 75 quilômetros de Brumadinho, ainda antes de Retiro Baixo, para tentar segurar os rejeitos. O objetivo, conforme afirmou em coletiva de imprensa o diretor financeiro da companhia, Luciano Siani, é “reter os coloides, partículas muito grossas [de minério], e permitir a continuidade da captação de água” nas cidades ao longo do leito do Paraopeba. Siani informou também que a empresa vai pagar 100 mil reais para cada família das vítimas, a título de auxílio, enquanto não se discute como será feita a indenização.

Durante a tarde desta terça-feira, a equipe de cientistas da Universidade Federal de Juiz de Fora tentava entender o que significa a proposta da Vale de colocar o dique – uma “membrana”, como definiu Siani – para conter a passagem dos rejeitos e evitar que a lama chegue até o São Francisco. “O que Samarco fez, à época do rompimento daquela estrutura, em Mariana, foi construir um dique no rio Santarem. Isto é impossível de ser feito no Paraopeba, por ser um rio muito maior”, afirmou Miguel Felippe, “Mas as informações divulgadas pela Vale até aqui são insuficientes para uma avaliação mais precisa.” A piauí pediu à assessoria de imprensa da Vale que detalhasse a técnica da membrana. A empresa não respondeu até a publicação desta reportagem.

Outra alternativa tentada pela Samarco em 2015, para evitar que a lama chegasse até o mar do Espírito Santo, foi colocar barreiras esféricas usadas para a contenção de vazamentos de petróleo no mar. Não funcionou. O óleo tem uma viscosidade diferente da lama. É possível que o combustível grude nessas barreiras, em forma de bolas, mas a lama passou por elas sem ser detida.

Integrante da força-tarefa de cientistas no rompimento de Fundão, Felippe contou que ele tentou argumentar com os técnicos da empresa que instalavam os balões, a Ocean Pact, contratada pela Samarco, Vale e BHP, de que a técnica não funcionaria para a lama. “Quase me enxotaram de lá”, contou. “Evidentemente, a técnica não funcionou”, disse. Aquela, segundo ele, foi uma tentativa das três empresas de dar uma justificativa à Justiça que ameaçava multá-las caso não conseguissem deter os rejeitos. A lama não foi contida, e menos de 6% das multas ambientais foram pagas.

De qualquer forma, explicou o cientista, ainda que seja eficaz uma membrana para conter resíduos físicos, ela não é capaz de reter os contaminantes misturados à água. Isso significa que tanto o Paraopeba quanto o São Francisco serão contaminados por substâncias tóxicas contidas na lama.

O geógrafo Luiz Jardim, da Universidade do Estado do Rio Janeiro, usou de uma imagem dramática para explicar o que aconteceria caso a lama chegasse espessa à barragem de Três Marias, que fica no início do rio São Francisco. “Seria uma escolha de Sofia. Decidir como matar o São Francisco. Ou por sufocamento, permitindo que as comportas fossem abertas, arrastando a lama para o rio, ou pela retenção da água.” O rio Paraopeba é um dos principais afluentes do São Francisco e impedir que a água seguisse seu curso reduziria sua vazão.

As ações da Vale desabaram, na segunda-feira, dia 28, no Brasil e na bolsa de Nova York, e a companhia perdeu 72 bilhões de reais de seu valor de mercado. Os maiores controladores da Vale são os fundos de pensão das empresas estatais – Previ, Petros e Funcef – e o BNDES, com cerca de 27% das ações com direito a voto, sendo seus maiores acionistas, e a Bradespar, braço de participação do Bradesco, e a japonesa Mitsui, com cerca de 11% das ações com direito a voto. Embora a empresa tenha sido privatizada em 1997, o Estado brasileiro continua como seu maior acionista.

Até o acidente da barragem de Fundão, em Mariana, a Vale fazia parte do Índice de Sustentabilidade Empresarial, o ISE, da B3 (que é a fusão da Bolsa de Valores de São Paulo e da BM&F). Neste índice, são negociadas as ações das trinta empresas com maior liquidez no mercado, isto é, as mais atraentes para os investidores, por serem empresas comprometidas com a sustentabilidade. Com a procura cada vez maior dos investidores por ações de empresas que respeitam o meio ambiente, pertencer ao ISE é um atestado de qualidade que ajuda na valorização da companhia. Durante três anos, a Vale ficou de fora do ISE, e voltou a fazer parte do seleto grupo este ano. A pergunta do mercado é se ela será novamente retirada. Este seria mais um baque para a Vale que, nos últimos dois anos, fez pesados investimentos em comunicação para tentar recuperar a sua imagem, prejudicada com o rompimento da barragem da Samarco, em 2015, controlada por ela e pela anglo-australiana BHP Billiton, o que foi considerado o maior desastre ambiental brasileiro e o maior desse tipo na mineração mundial.
Bookmark and Share

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Do O GLOBO
Depois de serem condenadas por veicular agressões a religiões de origem africana, a TV Record e a Record News firmaram acordo encerrando um embate judicial que já se prolongava por 15 anos. Com o trato assinado no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), a Record News terá de dar direito de resposta em quatro programas de televisão com duração de 20 minutos cada. Três programas serão educativos sobre as religiões afro-brasileiras - como umbanda e candomblé - e um terá conteúdo documental sobre a própria Ação Civil Pública que levou à condenação. As transmissões deverão priorizar conteúdos informativos e culturais que abordem aspectos como origem, tradições, organização, rituais e outros elementos.

Segundo o compromisso entre as partes, a TV Record não terá que veicular os vídeos em sua programação, uma exigência que constava antes na condenação feita em 2018 pelo TRF3. A duração dos programas também foi reduzida: antes deveriam ter uma hora. A ação, instaurada em 2004, é de autoria do Ministério Público Federal, junto ao Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Itecab) e ao Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert).

O acordo especifica que o Itecab e o Ceert serão responsáveis pela concepção e produção dos programas. A emissora de televisão terá de arcar com todos os gastos. Os vídeos deverão ser aprovados pelos canais do Grupo Record e serão transmitidos três vezes. O Grupo também terá de pagar R$ 300 mil de indenização para o Itecab e o mesmo valor à Ceert, totalizando um prejuízo de R$ 600 mil.

A condenação tinha sido confirmada por unanimidade pela 6ª Turma do TRF3 em abril de 2018. Segundo o texto original, deveriam ser transmitidos oito programas tanto na Record News quanto na Record TV. O desembargador Nery Júnior, vice-presidente do TRF3, enviou o recurso do caso para o desembargador Paulo Fontes, coordenador do Gabinete de Conciliação do TRF-3, onde foi homologado o acordo.

"Racismo institucional"

Os ataques às religiões de matriz africana foram proferidos no programa "Mistérios" e no quadro "Sessão de Descarrego", transmitidos pelas duas emissoras, que veiculam programas da Igreja Universal do Reino de Deus. Conforme demonstrou a ação, os programas promoveram a demonização das religiões de matriz africana, valendo-se de diversas agressões a seus símbolos e ritos.

O MPF demonstrou que os programas se tratavam de "intolerância religiosa em pleno espaço público televisivo contra as religiões afro-brasileiras". Defendeu ainda que a liberdade de religião não pode "servir de instrumento para 'acobertar' condutas ilegais". Durante o julgamento, em 2018, o procurador Walter Rothenburg afirmou que esse foi um episódio de "racismo institucional praticado por meio de comunicação social", e enfatizou a importância da tolerância religiosa para a democracia.
Bookmark and Share

JUVENTUDE BOLSONARISTA

Consuelo Dieguez, PIAUÍ

Pista quente!” O alerta, dado por uma voz feminina, indicava que a partir daquele momento ninguém poderia entrar na área de tiro, sob o risco de ser alvejado. A dona da voz, Leticia Catelani – ou Leticia Catel, como se apresenta nas redes sociais –, posicionada em uma das cabines do Interarmas, um clube de tiro em São Paulo, fez três disparos com sua Glock calibre 45, uma pistola leve e compacta, como anuncia o fabricante. Os tiros foram precisos. Os projéteis perfuraram dois pontos próximos do coração e outro na altura do estômago do alvo de papelão.
“Matou”, disse o advogado Victor Metta, que acompanhava a exibição com o investidor Otávio Fakhoury. Satisfeita com a própria destreza, Catel abriu um sorriso. Colocou a pistola de volta no coldre, preso à sua coxa direita, alinhou o terninho preto bem cortado, ajeitou os cabelos louros e aguardou pelos disparos dos companheiros. “Alvo neutralizado”, afirmou, rindo, ao constatar o bom desempenho dos dois, naquela manhã fria de meados de outubro.
Miúda e de feições angelicais, Leticia Catel gosta de armas de fogo. Tem 30 anos, é uma empresária bem-sucedida, proprietária de uma companhia de médio porte, a Grunn, que importa equipamentos para máquinas industriais. Abriu a empresa aos 18 anos, com ajuda do pai, Mario Catelani, um ex-torneiro mecânico de Santo André que é dono de uma indústria de equipamentos mecânicos em Jundiaí. Em seu currículo, ela diz que é “especialista em mercados internacionais e negociações comerciais”. Depois de se formar em comércio exterior na Universidade Paulista (Unip), fez um MBA em gestão empresarial na Fundação Getulio Vargas e uma pós-graduação no Instituto Mises Brasil. Fala inglês fluentemente, vira-se no alemão e no espanhol, e diz que arranha um pouco de mandarim. Nos últimos meses, chamou atenção na internet por causa de sua intensa atividade nas redes sociais em prol da campanha de Jair Bolsonaro.
Até as manifestações de junho de 2013, Catel não tinha interesse nenhum pela militância política. Foi no calor dos protestos, quando esquerda e direita saíram às ruas ao mesmo tempo, que a fagulha foi acesa – e ela seguiu para a direita. Ajudou a estruturar em São Paulo o então insignificante Partido Social Liberal, o PSL, e nele atuou como secretária-geral até pouco tempo atrás. “Bolsonaro era o único candidato que defendia abertamente os valores da família, mas também criticava a corrupção e a ineficiência da esquerda”, disse. Catel deixou o cargo no PSL desgastada, depois de se desentender com Major Olimpio, senador eleito pelo partido, e com o presidente da sigla, o advogado Gustavo Bebianno, escolhido secretário-geral da Presidência. Ambos reclamaram da forma como ela trabalhava, sem dar satisfação às lideranças partidárias.
Quando Catel ainda atuava como secretária-geral, o grupo liderado por ela inscreveu em apenas três semanas 199 candidatos às eleições pela legenda de Bolsonaro. “Dávamos lugar para quem tinha ficha limpa e dizíamos: ‘Agora se matem para fazer mais votos.’ E foi esse sucesso.” Além de eleger o Major Olimpio, o PSL paulista fez dez deputados federais e quinze deputados estaduais, dois deles os mais bem votados da história do país. O carioca Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, reelegeu-se deputado federal por São Paulo com 1,8 milhão de votos – um recorde. A advogada Janaína Paschoal, uma das autoras da peça jurídica que embasou o impeachment de Dilma Rousseff, conquistou a vaga de deputada estadual com 2 milhões de votos – outro recorde.
A empresária conheceu Metta, de 37 anos, e Fakhoury, 45, naquelas manifestações de junho. Eles ficaram amigos. Afora o gosto pelo tiro esportivo, o que os uniu foi uma série de antipatias: ao comunismo, aos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ao Partido dos Trabalhadores e a tudo que está associado à esquerda. Também se aproximaram por um par de afinidades: o apego às ideias conservadoras na política e nos costumes, e a crença na superioridade do liberalismo econômico.
A admiração do trio de amigos por Jair Bolsonaro sintetiza esse rol de paixões. Catel, Metta e Fakhoury compõem o retrato de uma geração que se orgulha de ser de direita e cultua a organização tradicional da família, a hierarquia, a ordem e a religiosidade – valores que, acreditam, foram desprezados pela esquerda, capitaneada no Brasil pelo PT. “Nos anos 60, a sociedade tinha um viés conservador, e por isso a contracultura, que lutava contra esse conservadorismo, era de esquerda”, disse Metta. “Nos anos 90, a esquerda chegou ao poder e virou hegemônica. Não dá para ser cultura e contracultura ao mesmo tempo. Agora, a contracultura é a direita. Nós somos o anti-establishment.” A tese teve o apoio de Catel, que prosseguiu: “A direita é que foi para as ruas para pôr abaixo o sistema podre que estava aí. Fomos nós que protestamos contra a corrupção e a desordem.”
O sentimento de vitória tinha a ver, naquele momento, com o resultado do primeiro turno das eleições. Bolsonaro, com 46% dos votos válidos, aparecia com grandes chances de derrotar o candidato do PT, Fernando Haddad, no segundo turno. Para os três amigos, era como se Bolsonaro já tivesse ganhado a eleição e tudo indicasse o advento de uma nova ordem, em que a direita seria a protagonista, não só no Brasil, mas em todo o planeta. “Estamos diante de um movimento mundial de resgate dos valores da direita”, entusiasmou-se Fakhoury. “É só ver o que está acontecendo nos Estados Unidos com Trump, e em vários países europeus, como Polônia e a Hungria. Os partidos de direita estão ganhando espaço”, acrescentou Catel, sem se incomodar com o fato de que, tanto o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, quanto o polonês, Mateus Morawieck, ambos de extrema direita e eleitos pelo voto popular, têm corroído por dentro o sistema democrático com medidas que colocam em risco as liberdades civis e a independência dos poderes.
Oclube de tiro Interarmas está instalado no bairro Santa Cecília, num galpão sem janelas, pintado de amarelo claro, nos fundos da loja de mesmo nome, um comércio de armas. Para entrar, o cliente tem que se identificar pelo interfone. Dentro da loja, a primeira coisa que se avistava era uma foto de cerca de 1 metro de Jair Bolsonaro, com o slogan de sua campanha: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.” Sobre o balcão de vidro, havia pilhas de adesivos com o rosto e o número do candidato presidencial. Nas paredes, fotos de militares e recortes de publicações sobre eles. Uma imagem chamava a atenção: um homem aponta uma arma para a cabeça de uma criança e, caídas no chão, perto dele, estão duas pessoas mortas. O homem foi identificado erroneamente como sendo Che Guevara, pois a foto é da guerrilha de El Salvador.
Tanto a loja quanto o clube de tiro pertencem a Mauricio Rattichieri, de 61 anos, gaúcho de Bagé, descendente de italianos, cuja família se mudou para São Paulo quando ele era adolescente. Corpulento, com uma longa barba castanha avermelhada e os cabelos com profundas entradas, ele lembra um redneck, como é chamado nos Estados Unidos o estereótipo do homem branco do interior do país que cultiva valores tradicionalistas – foi um dos tipos sociais que ajudaram a eleger Donald Trump.
Rattichieri aprendeu a atirar ainda criança, na fazenda de Emilio Garrastazu Médici, o general-presidente do período mais sinistro da ditadura militar – as duas famílias eram amigas em Bagé. Desde então, nunca mais abandonou o esporte e não se conforma com fato de a lei brasileira restringir a posse e o porte de armas ao cidadão comum. “Aqui no Brasil só quem não precisa de autorização para carregar arma é bandido”, afirmou, ignorando que a posse e o porte de armas são restringidos em vários países, entre eles Reino Unido e Japão. Catel, ao seu lado, concordou: “O cidadão de bem não tem como se defender.” E Fakhoury completou: “Onde tem desigualdade de força, não há espaço para debate. A única maneira de equalizar é com arma de fogo, senão o mais fraco será sempre neutralizado.” Os três reproduzem o pensamento de Bolsonaro como se atuassem num jogral.
Em frente à foto que imaginavam ser de Che Guevara, Rattichieri emitiu seu parecer sobre o maior símbolo da esquerda revolucionária latino-americana: era um assassino frio. “Quem matou viado foi Che Guevara, e esse pessoal de esquerda ostenta as camisetas e bonés com a foto dele sem qualquer remorso”, afirmou. (A intolerância a homossexuais após a revolução na ilha permanece um assunto controverso, apesar dos testemunhos de pessoas perseguidas, como o livro autobiográfico Antes que Anoiteça, do escritor gay cubano Reinaldo Arenas.) Catel acrescentou: “Depois dizem que é a direita que é homofóbica.” Metta colocou mais um tijolo no puxadinho retórico: “O Bolsonaro, que nunca matou ninguém, é quem leva a fama de violento e homofóbico.” E Fakhoury arrematou: “Se a direita usa camiseta com foto de Bolsonaro, já é logo achincalhada.”
Parte dos temores de alguns em relação a Bolsonaro se deve à maneira elogiosa com que ele trata a ditadura militar que vigorou no Brasil por duas décadas. Metta acredita que os regimes militares na América Latina entre os anos 60 e 70 foram uma resposta às ações terroristas da esquerda, e não enxerga ameaça nenhuma na postura do novo presidente. “Esses caras do PT se apegam ao mito da ditadura a fim de criar na população o temor de que Bolsonaro fará um governo antidemocrático.” Para ele, se Bolsonaro quisesse promover um golpe militar, não teria se submetido à eleição. O que tem levado as pessoas a pedirem intervenção de militares, concluiu, não é a falta de apreço pela democracia, mas a perda da fé nas instituições. “Mas aqui, no Brasil, as instituições ainda podem ser salvas.” Catel, por sua vez, argumentou que Bolsonaro se alinha “com países democráticos, como os Estados Unidos, e não com as ditaduras, como fez o PT”. E Fakhoury questionou se o Brasil, quando o PT estava no poder, foi realmente um país democrático. “Se os caras compram trezentos deputados, estão desmoralizando a democracia”, disse. O jogral sempre funciona.
Lembrei a todos do mal-estar causado por Bolsonaro durante a votação do impeachment em 2016, quando ele dedicou seu voto à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”, como disse na ocasião. Era uma saudação aberta a um dos chefes da tortura no período ditatorial, feita por um parlamentar eleito, dentro do Congresso, numa hora grave para a democracia brasileira. “O Ustra foi inocentado”, Metta apressou-se a dizer. “O que fazem com ele é crime de difamação.” (Na verdade, Ustra foi o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como torturador, em 2008. Em 2012, foi condenado a pagar uma indenização à família do jornalista Luiz Merlino, morto em 1971, ação que prescreveu no ano passado. Práticas de tortura foram comprovadas durante a ditadura, principalmente no QG de Ustra, o DOI-Codi, em São Paulo.)
Os jovens bolsonaristas não acreditam nisso. “Com certeza alguém levou uns tapas, mas ter sofrido estupro, acho difícil”, comentou Metta. Embora se dizendo “totalmente contrária à tortura”, Catel concordou com a opinião do advogado de que há exagero nos “relatos da esquerda”. E recorreu a um argumento semelhante ao que Ustra utiliza em seu livro A Verdade Sufocada, advogando em causa própria. “Pode ser que tenha ocorrido um ou outro caso, até porque a esquerda estava sendo agressiva. Mas não há como lidar com bandido com flores”, disse ela. Para a empresária, Bolsonaro só evocou o nome do coronel durante a votação do impeachment porque outros parlamentares exaltaram, na mesma ocasião, “os terroristas” Carlos Lamarca e Carlos Marighella. “Bolsonaro estava fazendo um contraponto e as pessoas ficam chocadas? Como é isso? Uma sociedade que não tem direita?”, questionou Metta, sempre o mais incisivo. Para os três amigos, se houve algum excesso no passado, a situação hoje é muito pior. “Foram 400 mortos em vinte anos de regime militar, incluindo os mortos do nosso lado. Agora são 70 mil mortes por ano no Brasil. Isso sim é violência”, pontificou Catel. “Contra fatos não há argumentos.” Ela comparava o número de vítimas políticas da ditadura – 224 mortos e 210 desaparecidos, segundo a Comissão Nacional da Verdade – com o índice de mortes violentas no país em 2017 – 63 880, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018.
Antes de o trio deixar a loja de armas, Metta pegou adesivos com as fotos de Bolsonaro e os colou na camisa. Entregou outros aos companheiros para que fizessem o mesmo. Depois, ele me disse, jocoso: “Hoje você vai ter uma experiência completa de direita.” 
Por volta de uma da tarde, Catel, Metta e Fakhoury chegaram para o almoço em um restaurante no bairro do Itaim Bibi. Dirigiram-se a uma mesa no canto do salão, com os lugares praticamente ocupados por quase vinte pessoas. O almoço tinha sido organizado pela cirurgiã plástica Ana Helena Patrus, dona da Clínica Santé – frequentada por gente famosa como Anitta, mas que já passou por maus momentos, como em 1994, quando uma mulher morreu durante uma cirurgia. No restaurante estavam jovens de grupos de direita do Nordeste: o Endireita Fortaleza, o Direita Pernambuco, o Direita Paraibana e o Movimento Liberta Brasil, do Rio Grande do Norte. O almoço tinha dois objetivos. Primeiro, agradecer aos jovens nordestinos por sua atuação na campanha de Bolsonaro na região, o que nem sempre é devidamente reconhecido por seus correligionários. Foi, por exemplo, o empresário cearense Alex Melo que idealizou, há dois anos, as recepções ao candidato presidencial nos aeroportos, que se espalharam pelas capitais do Norte e Nordeste, e depois por todo o país. No almoço, o grupo também iria combinar as ações no Nordeste na manifestação nacional em favor de Bolsonaro, em 21 de outubro, uma semana antes do segundo turno.
O encontro com os jovens dos movimentos nordestinos tinha sido articulado dias antes no escritório de Fakhoury, num prédio do Itaim. “Este escritório agora é nosso quartel-general”, afirmou ele, que é o mais inflamado do grupo. Descendente de libaneses católicos, contou que sua família deixou o Líbano para escapar da perseguição muçulmana. Embora seja neto de imigrantes, disse entender a reação em alguns países contra os refugiados. “O problema é a agressão cultural. Se imigro para outro país, eu tenho que me encaixar naquela cultura. Mas o padrão hoje não é somar, é impor”, argumentou. “Se uma cultura aceita estuprar a mulher do outro, a nossa moral não permite. Chame de crime, de pecado, como quiser. Não é xenofobia. Temos que proteger o nosso quintal. Temos que fazer checagem na fronteira e pegar a documentação do cara. Tem que haver triagem.” Catel, que o ouvia com atenção, concordou com a necessidade de restrições à imigração. “Os muçulmanos tratam a mulher como escória. Eu não quero uma invasão muçulmana no Brasil.”
Fakhoury prosseguiu, formulando uma teoria de direita sobre os gêneros sexuais. “A mulher de direita quer ser respeitada, quer escolher o homem que pode tocá-la”, afirmou. O homem de direita, por sua vez, estaria pronto para defender suas mulheres de ataques. Ele tentou dar exemplos: na Europa, “os muçulmanos entram nos bairros, atacam as europeias, e o europeu fica de fru-fru. Aqui não. Se alguém entrar e atacar vocês, eu vou defender”. Citei que, no Brasil, os índices de feminicídio são muito elevados. “O que temos aqui é o homicídio generalizado”, contestou.
A sala de reuniões no escritório de Fakhoury estava lotada de apoiadores de Bolsonaro, entre eles Filipe Martins, de 31 anos, da Executiva Nacional do PSL, na qual ocupa o cargo de secretário de Assuntos Internacionais. Professor de cursos preparatórios para concursos do Itamaraty, Martins é articulado e sua fala tem um tom equilibrado. Formado em relações internacionais na Universidade de Brasília, é figura respeitada não apenas pela ala jovem do partido, como pelos políticos mais rodados. Foi ele quem chamou a atenção para a necessidade de, na reta final da campanha, o grupo fechar uma estratégia de suporte à direita do Nordeste, de cujas lideranças se aproximou ao dar palestras em várias capitais da região.
Na reunião daquela manhã, Martins criticou a cúpula do partido por ter abandonado a militância do Nordeste. “Fizeram um trabalho heroico e foram deixados de lado”, disse. Enumerou as qualidades da turma: “Eles têm uma enorme capilaridade, colocaram diretórios em todas as cidades, e dispõem, faz muito tempo, de uma militância organizada e proativa para fiscalizar a votação. Tudo isso com pouquíssimos recursos.” Suas observações eram diligentemente anotadas por Catel, que todos reconhecem como a pessoa mais organizada do grupo.
Passaram, então, a discutir formas de fortalecer as carreatas a fim de neutralizar o favoritismo de Fernando Haddad no Nordeste. Tiveram a ideia de convidar parlamentares eleitos pelo PSL no Sudeste, como a jornalista Joice Hasselmann, para participar dos eventos. Fakhoury, que se prontificou a bancar os custos da viagem dos nordestinos a São Paulo, sugeriu que convidassem os “Bolsokids”, como se refere aos três filhos de Bolsonaro. Outro integrante do grupo opinou que muitos políticos dos partidos derrotados iriam migrar para Bolsonaro e seria bom contatá-los. “Todo mundo vai querer ficar ao lado do cara que está ganhando”, disse um deles.
A questão da fraude nas eleições, um dos mantras de Bolsonaro e seus seguidores durante a campanha, dominou a conversa. Fakhoury era o mais preocupado. Martins tentou tranquilizá-lo: “Isso não tem plausibilidade. A diferença de votos pró-Bolsonaro é tão grande que não há fraude que o faça perder a eleição”, disse. O grupo ouviu atento, pois Martins é visto como um bom analista de pesquisas e tendências políticas. Ele acertou, por exemplo, o resultado eleitoral em 48 dos cinquenta estados norte-americanos nas eleições de 2016, que deram a vitória a Donald Trump. Seus críticos, entretanto, dizem que os acertos são aleatórios, pois ele sempre aposta nos candidatos da direita. Exagerando na torcida por Marine Le Pen, da extrema direita francesa, cravou que ela venceria a eleição presidencial de 2017, mas quem ganhou foi Emmanuel Macron, de centro. Sua torcida enviesada lhe valeu o apelido de Muralha – o mesmo do ex-goleiro do Flamengo Alan Santana, famoso por ser sempre vazado quando a bola vinha pelo lado esquerdo.
O grupo passou a discutir formas de garantir maior visibilidade a Bolsonaro nas redes sociais. Catel propôs vídeos com celebridades que apoiavam o candidato. Fakhoury foi além: “Acho legal arrumar um sistema para disparar no WhatsApp e pelo SMS no Nordeste. O PT faz isso”, disse. “Podíamos disparar mentiras, tipo ‘Haddad é o pai do kit gay’. Mas não precisa. Vamos é falar a verdade: Haddad foi escorraçado da Prefeitura de São Paulo. Existem empresas que fazem esse trabalho. Coloca uma maquininha e começa disparar SMS no Nordeste.” Catel ponderou que isso sairia caro e que o partido não teria dinheiro para bancar a estratégia. Fakhoury se dirigiu a Martins. “O que você acha, Filipe?”, perguntou. “Acho que dá sim”, respondeu Martins, sem muita convicção, alertando, porém, que Bolsonaro havia dito que não queria que se impulsionassem as redes artificialmente. Ficaram de voltar a discutir o assunto. Em 18 de outubro do ano passado, uma reportagem da Folha de S.Paulo revelou que empresas estavam bancando, sem declarar, disparos de mensagem em massa pelo WhatsApp contra o PT usando a base de usuários do candidato ou bases adquiridas por agências de maneira ilegal. A doação de campanha feita por empresas é vedada pela legislação eleitoral.
Durante o almoço com os jovens bolsonaristas do Nordeste, Mateus Henrique, do Direita Pernambuco, um jovem franzino de 22 anos e fala rápida, mostrou, às gargalhadas, as fotos das camisetas que tinham sido confeccionadas para serem vendidas em seu estado. Traziam estampadas frases de Cid Gomes, senador eleito pelo PDT do Ceará que, durante um ato em Fortaleza em apoio à candidatura de Haddad, acabou criticando o PT e discutindo com militantes. “Lula tá preso, babaca” e “Vão perder feio” – lia-se nas camisetas.
A conversa no restaurante estava descontraída. Um dos bolsonaristas fez elogios à elegância e à juventude de Catel, de Michele Assis, líder da Direita Paraibana, de 33 anos, e Carla Ly Vale, 35, membro do Movimento Liberta Brasil do Rio Grande do Norte. Catel abriu um sorriso e brincou: “A direita faz bem pra pele. Todo mundo com cara de novinho.” Martins, sentado próximo dela, acrescentou: “Faz bem para a beleza, para a inteligência, para os neurônios.”
Assis, uma paraibana magra e pequena, de cabelos louros escorridos e vestido estampado, aproveitou a conversa para criticar as feministas. “O que elas fazem é ridicularizar a mulher”, disse, em tom de indignação. “Meu Deus do céu. Não se depilar, não se maquiar, ficar mostrando os seios. Parecem sujas, parece que não tomam banho. Antes de ir para a universidade são arrumadinhas. Depois, parecem uns lixos.” A seu lado, Vale assentia com a cabeça. Pegou a deixa para mencionar uma página no Facebook chamada “Antes e depois da Federal”, que debocha dos modos das estudantes de universidades federais. “A menina é toda bonitinha e depois de entrar para a universidade federal aparece cheia de piercing, tatuagem, usando bermuda, cabelo colorido, parecendo uma doida.”
Como Catel, Assis começou a se interessar por política em 2013. Até então, não tinha noção do que era ser “de direita”. “Eu só sabia que a Dilma era terrorista porque ouvia minha mãe falar”, afirmou, referindo-se sem nenhuma precisão aos tempos em que a ex-presidente atuou numa organização clandestina de esquerda adepta da luta armada – não consta, porém, que tenha participado de ações desse tipo. Assis, que é evangélica, prosseguiu, contando que se aproximou da direita muito mais por causa da defesa dos valores cristãos do que pela política. “A esquerda queria destruir a família e a religião.” Quando soube de Bolsonaro, ela se uniu a outros jovens e começou a trabalhar, em 2016, pela candidatura presidencial do então deputado. Ajudava a espalhar outdoors e painéis de LED pelas ruas de João Pessoa e atuava nas redes sociais. “Era uma coisa muito espontânea. Trabalhávamos com doações de 20 a 200 reais.” A franqueza do candidato também a convenceu: “Ele é transparente, fala na lata o que precisa ser falado. Não se preocupa com as consequências.”
Entre uma garfada e outra, Vale creditou o crescimento da direita bolsonarista no Nordeste “ao temor diante do avanço exagerado das pautas progressistas”. Seu pensamento não diferia muito do de Assis. “Agora começamos a ter um pouquinho mais de poder e também a ganhar espaço na mídia”, disse, acrescentando que durante muito tempo todos eles ficaram confinados às redes sociais, sem que a grande imprensa os percebesse.
cearense Alex Melo, um homem forte de 46 anos e sorriso largo, não disfarçava o orgulho de ter concebido as recepções a Bolsonaro nos aeroportos. Ele contou que muitos grupos de WhatsApp se formaram na esteira de páginas no Facebook que divulgavam o candidato de forma bem-humorada, como Bolsonaro Zuero e Turn Down for What, inspirado num clipe do DJ americano Snake. A marca registrada dessa última página eram uns óculos pretos rajados de branco, colocados sobre o rosto do candidato cada vez que ele respondia aos que o desafiavam. A imagem de Bolsonaro com os óculos vinha sempre acompanhada do bordão “mitou”. O meme viralizou. Foi assim que o candidato virou “mito”.
No almoço, Mateus Henrique também não escondia sua satisfação. A perspectiva de vitória de Bolsonaro tinha, para o estudante de história, um sabor de vingança. Um ano antes, ele estivera entre os que enfrentaram um grupo de esquerda na Universidade Federal de Pernambuco, a UFPE, durante a exibição de O Jardim das Aflições, documentário de Josias Teófilo sobre Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo e da extrema direita brasileira.
As disputas não se limitaram aos espectadores. Em julho de 2017, oito diretores tinham retirado seus filmes da programação do 21º Cine PE Festival do Audiovisual em protesto contra a exibição do documentário – o que acabou lhe dando grande visibilidade na mídia. Por fim, Jardim das Aflições foi escolhido como o melhor filme do festival, pelo júri e pelo público.
Foi na UFPE, durante uma exibição em outubro, que a agressão física tomou o lugar da polêmica nos confrontos sobre o filme. Um grupo de estudantes antipáticos ao documentário tentou impedir sua exibição, ameaçando invadir a sala de projeção. “Saiam daqui, fascistas. A universidade não é lugar de fascistas”, berravam. Os simpatizantes de Olavo de Carvalho, vários deles trajando camisetas com imagens de Bolsonaro, reagiram – e a briga correu solta, até que seguranças vieram interrompê-la. “Disseram que não deveríamos ter ido lá, no reduto da esquerda, passar o filme, que aquilo era provocação”, disse Henrique. “Mas o que é isso? A universidade deve ser aberta para todo tipo de pensamento. Não é democrático não deixar o filme ser exibido porque tem viés de direita. Isso é stalinismo. É coisa de gente autoritária.”
Os protestos de Mateus Henrique emulavam o pensamento de Olavo de Carvalho. Há mais de duas décadas, primeiro na imprensa, depois em seus cursos de filosofia online e em pregações nas redes sociais, Carvalho defende com insistência que existe um pensamento hegemônico de esquerda no país. Sua concepção do que é esquerda costuma ser bastante elástica. De Fernando Henrique Cardoso a Lênin, quase todo mundo cabe no guarda-chuva. Uma de suas obsessões é o conceito de hegemonia, desenvolvido pelo filósofo marxista italiano, Antonio Gramsci.
Morto aos 46 anos, em 1937, depois de passar dez anos preso pelos fascistas de seu país e escrever boa parte de sua extensa obra no cárcere, Gramsci defendeu que o exercício do poder tem uma dimensão coercitiva, que cabe ao Estado, e uma dimensão, por assim dizer, persuasiva, que cabe não ao Estado, mas à sociedade civil desenvolver. As escolas, as universidades (poderíamos dizer hoje “as redes sociais”) são espaços em que se disputa a hegemonia das ideias, ou da condução mental de uma sociedade em determinado período histórico. Sem ter hegemonia na sociedade, sem persuasão, é muito mais difícil se manter no poder recorrendo apenas aos instrumentos coercitivos do Estado.
Apropriando-se das ideias de Gramsci à sua maneira, Carvalho denuncia a hegemonia obtida pela esquerda nos fóruns pensantes do país, com especial obsessão pela USP, e trabalha para que suas próprias ideias ganhem terreno. Tal projeto já constava do livro OJardim das Aflições, de 1995, cujo subtítulo é “De Epicuro à ressurreição de César: Ensaio sobre o materialismo e a religião civil”, mas que se dedica também à crítica da esquerda contemporânea. A ele se seguiu O Imbecil Coletivo – Atualidades Inculturais Brasileiras, de 1996, uma caudalosa coletânea de pequenos ensaios, a maioria publicada na imprensa e que transformou o autor num best seller.  
Foi nessa época, a segunda metade dos anos 90, que Carvalho começou a aparecer com mais frequência nas páginas dos grandes jornais do país. Publicou na Folha de S.Paulo e em outros veículos e manteve, entre 2000 e 2005, uma coluna no jornal O Globo, até ser dispensado. Mudou-se então para Richmond, na Virgínia, onde vive em um casarão numa área arborizada, ao lado da terceira mulher, Roxane Andrade Souza. Ao longo dos anos, tornou-se uma espécie de pai espiritual da direita, que começou a ganhar terreno na esfera da cultura. Nomes como Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi e Luiz Felipe Pondé se beneficiaram da trilha aberta por Carvalho. Com Lula no poder desde 2003, havia espaço para o antipetismo raivoso crescer. O polemismo de direita virou um nicho de mercado no país.
Carvalho passou a ministrar aulas à distância. Em 2006, criou o programa True Outspeak, que era transmitido pela internet, do escritório de sua casa. No programa, feito com produção mambembe (o que faz lembrar, também nesse aspecto, as transmissões ao vivo de Bolsonaro), Carvalho discutia política, filosofia, atacava a degradação dos costumes e dos valores morais – e disparava insultos contra marxistas, feministas e “gayzistas”. Também inventou, em 2009, o Curso Online de Filosofia (COF). Sua fala vem frequentemente recheada de palavrões e imagens chulas ou escatológicas. A mistura entre o tom elevado e filosofante e a linguagem baixa, comum nas redes sociais, conquistou o público jovem.
Alguns exemplos. Certa vez, Olavo de Carvalho reagiu aos ataques do jornalista Breno Altman, ligado ao PT, que no seu site Opera Mundi o chamara de “filósofo de bordel”, “degenerado” e “verme”. O ataque se dera em razão das críticas que Carvalho fizera ao Foro de São Paulo – uma conferência organizada pelo PT, em 1990, para discutir os rumos da esquerda na América Latina após o fim da União Soviética – e por ele ter associado o ex-ministro José Dirceu a Raúl Reys, comandante das Farc, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Na réplica, Carvalho disse que Altman não podia ser chamado sequer de carregador de mala de Dirceu – melhor seria “chupador de camisinha usada de Dirceu”. E acrescentou: “Ele fica debaixo da cama do Dirceu chupando as camisinhas usadas dele.” Ao fundo, era possível ouvir as risadas de uma mulher, presumidamente sua esposa.
O sêmen parece uma obsessão. Num artigo contra o movimento gay escrito para o Jornal do Brasil, em 2007, Carvalho afirma: “Não posso crer que meu pai teria agido melhor se em vez de depositar seu esperma no ventre da minha mãe ele o injetasse no conduto retal do vizinho, de onde o referido líquido iria para a privada na primeira oportunidade.”
Em outra ocasião, falando sobre a baixa qualidade do ensino nas escolas brasileiras, Carvalho insultou os professores: “Eles querem ganhar dinheiro para ensinar o teu filho a dar o cu e a chupar a piroca deles.” Disse que os docentes não mereciam ganhar nada e defendeu o fechamento do MEC. “O prédio deveria ser derrubado e transformado em estacionamento de cabras.” Numa terceira apresentação do True Outspeak, discutindo meio ambiente, atacou defensores da energia de matriz limpa que haviam chamado o petróleo de combustível fóssil. “Combustível fóssil é o cu da mãe”, filosofou. A despeito do que diz, Carvalho costuma preservar o tom de voz inalterado e mantém a aparência de um senhor pacato, o que ajuda a compor a figura do velho sábio.
Boa parte dos grupos que surgiram ou cresceram nas manifestações contra o governo petista – como o Revoltados On Line, o Vem Pra Rua, o Acorda Brasil – foi declaradamente influenciada por Carvalho. “Olavo tem razão” virou um bordão estampado nas camisetas dos manifestantes. Sua notoriedade galgou um novo patamar depois da publicação do livro O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota, uma coletânea de textos publicados na imprensa entre 1997 e 2013, que já ultrapassou os 500 mil exemplares vendidos. “As pessoas tiravam fotos nas manifestações com o livro dele e colocavam na internet”, descreveu Filipe Martins, que fez o curso online de filosofia e é hoje um dos discípulos mais próximos.
Martins não tem dúvida de que Olavo de Carvalho é a figura central para se entender o crescimento da direita jovem no Brasil. “Ele diagnosticou o problema lá atrás, com o livro O Imbecil Coletivo”, disse, referindo-se à obra de 1996. “Depois foi instruindo a juventude por meio de pequenos textos, imagens e frases de autores conservadores, que postava nas suas plataformas digitais.” O maior mérito de Carvalho, segundo ele, foi ter legitimado o pensamento conservador. “Somos um país conservador. A maioria da nossa sociedade não é afeita à união homoafetiva, ao aborto. Os nossos valores foram escanteados da grande imprensa por serem considerados incivilizados”, disse Martins. “O Olavo nos ensinou a não termos vergonha das nossas ideias.”
Conversei com Olavo de Carvalho, via Skype, em 15 de novembro. Seu computador fica sobre a escrivaninha do escritório de sua casa em Richmond. É dali que ele fala com os alunos e transmite as aulas do Curso Online de Filosofia para os seguidores. Ao fundo, vê-se uma estante e um armário recheados de livros. Com modos cordiais, ele disse não ter dúvida de que sua influência tinha a ver com a falência do pensamento de esquerda. “Vamos dizer que era possível até os anos 50 uma pessoa inteligente acreditar que a análise crítica marxista do capitalismo tinha algum sentido”, afirmou. “Agora isso não é mais possível. Toda a sustentação dos partidos de esquerda é na base da mentira, do artifício, do truque sujo, do teatrinho.” Deu um trago no cigarro (é um fumante compulsivo) e continuou: “É um castelo de cartas. Ou melhor, desculpe a expressão, é um castelo de peidos. Não há nada ali. É tudo furado. O primeiro a chegar lá e cutucar, como eu cutuquei, a coisa toda cai.”
Durante quarenta minutos de conversa, repisou seus tópicos prediletos. O desencanto de parte expressiva dos jovens brasileiros com as ideias progressistas (que ele chama sempre de esquerdistas) não se explica apenas pela corrupção e pela crise econômica no país. Diz que está relacionado a questões morais e de costumes. Iniciou então uma preleção extravagante: “O PT adotou a estratégia da Escola de Frankfurt para destruir o capitalismo a partir da nova cultura moral. Essa estratégia defende relações incestuosas entre mãe e filho como meio de destruir a família. O Haddad está defendendo isso.” Não consta que a renomada escola que reuniu alguns dos principais filósofos do século XX, como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, tenha defendido o incesto. Também não se tem conhecimento de que Haddad tenha feito qualquer proposta desse tipo. Carvalho, entretanto, insiste que isso ocorreu e que o assunto foi tratado como fake news pela Folha de S.Paulo, jornal para o qual escreve de quando em quando. “A Folha de S.Paulo é uma organização criminosa. Ela só serve pra mentir em favor do PT”, arrematou.
Seus ataques se estenderam a O Globo, que ele afirmou ter cortado a sua última coluna, em 2005, porque não aceitava a tese dele de que a esquerda latino-americana articulava um complô a partir do Foro de São Paulo. Esse teria sido, segundo ele, o motivo de sua demissão do jornal. “O que O Globo fez foi a maior fraude jornalística da nossa história. Enganaram o público para proteger Lula e outros bandidos”, disse.
Carvalho sustenta que existe uma aliança entre o “frankfurtianismo da esquerda” (nos termos definidos por ele) e os grandes interesses internacionais, econômicos e corporativos. O raciocínio é tortuoso. Ao refutar os valores tradicionais – família, religião etc. –, a esquerda estaria ajudando a transformar a “ganância econômica” no único (ou, ao menos, no principal) fator de organização da sociedade. “Na sua ignorância, a esquerda está fazendo o jogo da Fundação Rockfeller, do George Soros, do New York Times. Estão todos a serviço dos milionários. Quando a economia restar como único valor, esses milionários vão impor ao mundo um capitalismo infernal.” Enquanto fala ao mesmo tempo contra a esquerda e contra o capitalismo e os atores da globalização, Carvalho aproxima sua pauta de posições nacionalistas – e, para evitar os descaminhos, a única solução é este conjunto harmônico formado pela religião, a família e a pátria.
As teses de Carvalho não seduziram apenas jovens estudantes: também chamaram a atenção dos filhos de Jair Bolsonaro, que as sopraram ao pai. Não à toa, em seu primeiro pronunciamento pela internet após a vitória, na noite de 28 de outubro, o presidente eleito apareceu em frente a uma mesa sobre a qual havia um exemplar de O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota, exposto ao lado da Bíblia, da Constituição brasileira e de uma biografia de Churchill. O fascínio da família com o intelectual é tamanho que Flávio, o mais velho dos filhos de Bolsonaro, e Eduardo, o terceiro do clã, foram até os Estados Unidos para conhecê-lo.
Apesar de ter a estima do presidente, Carvalho não se considera ideólogo de Bolsonaro. “Eu me considero um amigo da família. Eles aceitaram duas ou três ideias minhas. Mas não são meus seguidores”, desconversou. A modéstia não durou muito. “A intenção deles é de que eu seja [um ideólogo ao alcance dos Bolsonaro], mas não fazem o meu curso.” Fez uma pausa, tragou o cigarro com gosto, e acrescentou: “Agora, dizer que sou ideólogo do partido, de uma corrente política, meu Deus do céu… Pegue o exemplo de Mussolini. O ideólogo dele era o Alfredo Rocco [ministro da Justiça da Itália entre 1925 e 1932]. O que o Alfredo Rocco fazia? Pegava as ideias do Mussolini e dava a elas uma forma mais elegante. Eu não faço isso com Bolsonaro.” Para que não restassem dúvidas, reforçou: “Não estou formulando as ideias do Bolsonaro. Eu não tenho absolutamente nada a ver com o partido do Bolsonaro, nem com a campanha do Bolsonaro, nem com coisa nenhuma. Eu já disse que eu sou apenas um eleitor do Bolsonaro, sou amigo da família, especialmente do Eduardo e do Flávio.”
Na sua trajetória já longa pelo campo conservador, o guru do bolsonarismo acabou deixando desafetos pelo caminho. Um deles é Rodrigo Constantino, a quem a revista Época chamou anos atrás de “novo trombone da direita brasileira”. Constantino foi blogueiro e colunista da revista Veja e hoje trabalha para a IstoÉ. A expressão “esquerda caviar”, que foi criada na França (gauche caviar) e ele adotou no título de um livro, lhe rendeu certa fama. Formado em economia pela PUC do Rio de Janeiro, Constantino hoje vive em Miami. Ele acredita que Olavo de Carvalho perdeu o prumo ao defender “a desmoralização do sistema inteiro” e pretender reconstruir tudo do zero. “É uma coisa meio jacobina”, disse ele, por telefone. Citou como exemplo do jacobinismo de Carvalho a sua reação quando o Movimento Brasil Livre, o MBL, anunciou apoio ao governo de Michel Temer. “As reformas da previdência e política que o MBL apoiava fazem parte do ideário liberal, e foram rechaçadas por Carvalho. O comportamento do MBL era racional. Havia uma preocupação com o país que não existe no discurso niilista do filósofo”, disse Constantino.
Carvalho, à época, também atacou os membros do MBL por eles terem se lançado na política institucional, chegando a eleger sete vereadores em 2016. Ele defendia que a nova direita deveria se concentrar na ocupação de espaços “nas escolas, na igreja, nas sociedades de amigos”, e não no Estado. À maneira gramsciana, Carvalho privilegiava a busca de hegemonia no âmbito da sociedade civil, o que, para Constantino, é um equívoco. “A democracia exige participação nas formas institucionais de poder”, disse. Nas eleições de 2018, nove alunos do curso de filosofia de Carvalho se elegeram deputados – e Constantino não se lembra de ter ouvido Carvalho protestar.
“Está claro que hoje a direita jovem está rachada”, avaliou. “Existe o MBL, que defende ideias liberais para a economia, e existe essa direita conservadora apoiadora de Olavo, cujos seguidores foram apelidados, por ele mesmo, de olavettes.” Constantino apontou o mais flagrante equívoco político do intelectual: opor-se ao impeachment de Dilma Rousseff. À época, Carvalho defendeu que o impeachment não passava de “uma manobra para a salvação da classe política” e a manutenção da esquerda no poder. O resultado das eleições do ano passado, com a vitória espetacular da direita, desmontou, na avaliação do economista, a tese estapafúrdia.
Outro que já manteve boas relações com o intelectual, mas tornou-se um de seus mais vigorosos desafetos, é o jornalista Reinaldo Azevedo. Divergências a respeito do impeachment de Dilma desencadearam a ruptura, mas também as teses de Carvalho em defesa da democracia plebiscitária. Na visão do jornalista, esse modelo político seria idêntico ao que o PT aspirava implantar no país, copiando o que foi feito na Venezuela por Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Em um artigo na revista Veja, em 2016, Azevedo, cuja verve é tão demolidora quanto à do adversário, chamou Carvalho de “mascate da paranoia” e de “Aiatolavo”, em alusão ao líder religioso xiita. A resposta não demorou. Em entrevista à BBC, Carvalho disse que Azevedo e outros desafetos queriam ser os representantes primordiais da direita. E reclamou: “O pessoal comunista nunca mentiu a meu respeito tanto quanto essa turma de direita emergente.”
Antigos alunos também se decepcionaram com o mestre, como o ensaísta Martim Vasques da Cunha, doutor em filosofia política pela USP. Ele contou que, nos anos 90, Carvalho costumava evitar o embate político e sugeria o estudo e a reclusão. Tudo mudou a partir de 2010. “Ele partiu para uma guerra cultural.” A banalização do discurso foi a consequência imediata. “Duvido que esses jovens que hoje o apoiam têm algum conhecimento profundo de filosofia ou mesmo das obras dele”, avaliou Cunha. “Essa gente é ávida por receber informações superficiais na rede, revestidas de uma roupagem filosófica. São leitores de textos básicos de Facebook.”​
Embora renegado por alguns ex-discípulos, Carvalho exerce inquestionável fascínio sobre a juventude de direita. “Esse homem sozinho mudou o rumo intelectual da nação”, afirmou o advogado Victor Metta, em seu escritório, um casarão numa rua tranquila no Itaim. “Somos todos olavettes: eu, a Leticia, o Filipe e o Otávio.” Em junho de 2013, quando as ruas brasileiras começaram a ferver, Jair Bolsonaro era um político praticamente desconhecido da maioria da população. Mas os ventos já sopravam na sua direção. Dias antes das manifestações eclodirem, uma gigantesca marcha de evangélicos ocupou a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em defesa dos valores conservadores. Por ter apoiado o pastor Marco Feliciano na discussão sobre ideologia de gênero nas escolas, Bolsonaro foi o único parlamentar convidado pelos evangélicos a subir no palanque para falar à multidão. Ele não falou muito, mas encerrou seu discurso com o bordão militar que costumava usar em todas as suas preleções: “Brasil acima de tudo.” Então, dando-se conta do potencial do voto religioso, acrescentou: “Deus acima de todos.” Os slogans seriam adotados em sua campanha presidencial.
Foi quando Leticia Catel o descobriu. “Eu pensei: ‘Esse homem vai ser a salvação’”, contou. Decidiu apoiá-lo. Mas havia um impedimento: ela morava em Jundiaí, e Bolsonaro era deputado pelo Rio de Janeiro. Uma amiga a alertou de que Eduardo Bolsonaro, escrivão da Polícia Federal em São Paulo, sairia candidato a deputado federal pelo estado nas eleições de 2014. Catel mandou uma mensagem a ele, dispondo-se a ajudá-lo na campanha. Acabaram ficando amigos. Eduardo fez o seu primeiro discurso de campanha na fábrica do pai de Catel, em Jundiaí. Mario Catelani mandou os operários pararem as máquinas para ouvir o jovem candidato. “O Eduardo me contou tempos depois que ficou muito nervoso naquele dia”, ela disse, rindo. “Foi o seu primeiro discurso para uma plateia expressiva.”
Nessa época, Catel estava engajada na busca de uma saída para a economia livre das amarras do Estado. “Comecei a trabalhar muito cedo, junto com meu pai, e vi como o Estado, na verdade, atrapalhava os negócios.” Também se incomodava com os seus professores de viés marxista e a crítica que faziam ao capitalismo. “Eu não podia concordar quando diziam que o empresário era ruim e que o trabalhador era explorado porque eu via o meu pai sempre ajudando os empregados da empresa dele”, disse. Disposta a encontrar um caminho que a satisfizesse, matriculou-se em uma pós-graduação no Instituto Mises Brasil, um think tank sediado em São Paulo que prega o liberalismo econômico e político, conforme as ideias dos economistas da chamada Escola Austríaca, cujos representantes centrais são Carl Menger, Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek. “Menos Marx, Mais Mises” era uma das frases que costumavam aparecer em cartazes nas manifestações da direita, levados principalmente pela turma do MBL. Era o anúncio de que o pensamento ultraliberal havia entrado no debate.
O Instituto Mises Brasil ocupa parte de um andar em um prédio moderno e envidraçado, também no bairro Itaim, em São Paulo. A decoração do local é despojada e agradável, com mesas de madeira e bancos cobertos por almofadas coloridas, próximos à ampla vidraça. Foi fundado por Hélio Marcos Coutinho Beltrão, 51 anos, um homem entusiasmado e sorridente, filho do ex-ministro Hélio Beltrão, ex-ministro do Planejamento e também da Previdência e da Desburocratização, durante o regime militar. Coutinho Beltrão é economista, egresso do mercado financeiro e trabalhou no Banco Garantia, de Jorge Paulo Lemann, até a instituição, abalada pela crise da Ásia em 1998, ser vendida para o Credit Suisse First Boston. Ele contou que passou anos tentando entender as razões de os analistas financeiros não terem detectado a crise de liquidez que abalou o mercado mundial naquele final de década – e que quase quebrou o banco em que trabalhava.
Uma tarde, deparou-se com um livro de Hayek, Desestatização do Dinheiro, que foi para ele uma revelação. Criou em 2007 o Instituto Mises Brasil, que tem atraído sobretudo os mais jovens. “Eles descobrem o Mises e ficam maníacos. Querem ler tudo sobre Escola Austríaca, querem fazer parte do clube que estuda o assunto, tirar foto comigo e com os professores”, exaltou-se. O instituto foi além do liberalismo. Começou a difundir também o “libertarianismo”, que se pretende herdeiro direto dos liberais austríacos e adotou este nome depois que o termo “liberalism” foi vulgarizado nos Estados Unidos, chegando a ser empregado por alas da esquerda.
Há cerca de dez anos, em uma conversa com Paulo Guedes, o novo ministro da Economia, este lhe disse que os liberais tinham perdido a guerra das ideias porque só falavam de teorias econômicas e não apaixonavam ninguém, ao passo que a esquerda falava de valores que tocavam as pessoas, como saúde, educação e preconceitos de todo tipo. Coutinho Beltrão explicou a Guedes que ele estava tentando fazer no Instituto Mises Brasil justamente isso: fundir o “liberalismo humanista” de Ludwig von Mises com a defesa intransigente da liberdade individual do movimento libertarista – o que inclui, inclusive, defender o casamento gay, o porte de armas, a liberação das drogas e até o direito ao suicídio. “Se você não está causando mal a terceiros, o Estado não pode se meter na sua vida.” Empolgado, ele me disse que a igualdade é uma utopia comum aos marxistas e aos libertários, mas que os primeiros buscam esse ideal recorrendo aos meios errados. “Nós, por nosso lado, temos os meios certos para chegar à igualdade, que é através da liberdade individual. A Escola Austríaca, embora liberal, é humanista.”
No começo de 2016, por sugestão de Leticia Catel, Eduardo Bolsonaro decidiu fazer uma pós-graduação sobre economia liberal no Instituto Mises Brasil. Ela disse que Eduardo passou então a compartilhar com o pai as ideias apresentadas nas aulas. “Eu ficava muito feliz ao ver o Jair defendendo ideias que discutíamos no Mises, tais como menos intervenção estatal, menos impostos, menos burocracia.” Coutinho Beltrão também reconhece a conversão de Bolsonaro às pautas liberais, mas evita creditar essa mudança às teses do Instituto Mises Brasil. “Acho que tem a ver com o fato de entender o que a sociedade está pedindo. Mas, sem dúvida, o Eduardo deve ter batido muitos papos com ele.”
Durante sua pós-graduação no Mises Brasil, Catel foi convidada por Coutinho Beltrão a participar de um grupo do Instituto de Formação de Líderes, que reúne herdeiros de grandes fortunas. Ali fez contatos com muitos empresários, embora ela faça questão de dizer, mesmo brincando, que não pertence ao “clube dos milionários”. Esses contatos seriam preciosos para aproximar Jair Bolsonaro da elite empresarial paulista.
A essa altura, Catel já estava muito próxima da família Bolsonaro. Durante a campanha presidencial, organizou eventos, contratou seguranças e ajudou na logística de deslocamento do candidato. “Se o meu pessoal estivesse no comando da segurança dele em Juiz de Fora”, disse, “duvido que teria acontecido tudo aquilo.” “Seu pessoal” é um grupo de ex-policiais donos de empresas de segurança e que também dão aulas de defesa pessoal e de Krav Magá, luta utilizada pelo exército israelense e que ela também pratica. Como conhecia um deputado de origem brasileira no Parlamento italiano, Catel foi quem ajudou na aproximação de Bolsonaro com o político de extrema direita italiano Matteo Salvini, atualmente ministro do Interior e um dos primeiros líderes internacionais a se posicionar a favor do candidato Bolsonaro.
Por causa de sua atuação no comércio exterior, Catel também tinha contatos com empresários na América Latina. Às vésperas do segundo turno, ela foi uma das pessoas que participaram da pequena comitiva que seguiu até o Paraguai em busca do apoio do presidente do país, o conservador Mario Abdo Benítez, eleito no ano passado. Outra ação de peso em favor de Bolsonaro no mundo dos negócios veio de Victor Metta. Judeu praticante, ele foi um importante elo de aproximação do candidato do PSL com parte da comunidade judaica de São Paulo.
A trama de relações de Catel se ampliou e, conduzida pela família Bolsonaro, ela se aproximou do grupo de generais do entorno do ex-capitão. A partir de meados de 2017, esse grupo passou a se reunir em Brasília para propor ideias para um futuro governo Bolsonaro. Os encontros ocorriam na casa do general Oswaldo Ferreira, que chegou a ser cotado para o Ministério da Infraestrutura. Todas as quartas-feiras, um especialista era convidado para discutir um tema específico. Catel foi chamada para debater comércio exterior. Filipe Martins participou das conversas sobre política internacional. E Metta falou sobre direito tributário, sua especialidade. Como a casa do general Ferreira começou a ficar pequena para o número de participantes, Catel tomou a iniciativa de alugar, às suas expensas, a sala de um hotel em Brasília. Por causa dessa aproximação com os militares, ela foi apelidada de “Leticia Quartel” por seus detratores.
Num final de tarde de outubro, fui com Catel e Martins até a fábrica do pai dela, em Jundiaí. Ela mesma dirigiu o jipe preto blindado. A empresária havia sido destituída do cargo de secretária-geral do PSL em 27 de setembro, por decisão do então presidente nacional do partido, Gustavo Bebianno, e do presidente do PSL em São Paulo, Major Olimpio – foi este que comunicou a Catel seu desligamento, via WhatsApp, como costuma ser feita quase toda a comunicação dos integrantes do PSL.
Ela explicou a decisão dizendo que não foi compreendida em seu modo de agir. “Eu sou empresária. Gosto de ver as coisas acontecerem, tomo a frente. Não sou o tipo de pessoa que acha que é preciso fazer uma assembleia para decidir tudo o que precisa ser feito”, disse. “Talvez esse meu jeito tenha incomodado algumas pessoas acostumadas a agir de modo antigo e ultrapassado.” Martins, da executiva nacional do PSL, saiu em sua defesa. “Para mim não mudou nada. Continuo consultando a Leticia para tudo. Um partido não pode abrir mão de uma pessoa tão eficiente como ela”, disse. Major Olimpio não vê da mesma forma. “Ela se postava o tempo todo como coordenadora da campanha do Bolsonaro. Isso causava uma série de dissabores”, ele disse, enquanto se preparava para dar entrevista a uma rádio em São Paulo, um dia antes da eleição do primeiro turno. Ele enumerou suas queixas: “Primeiro, ela não tinha essa autonomia; segundo, não dava satisfação a ninguém; terceiro, eu sou o presidente do partido e via por fotos que ela estava cada dia num lugar, dando entrevista, junto com o general Mourão, sem autorização do partido para fazê-lo.” Major Olimpio contou que a destituição de Catel fora decidida por Bebianno, mas que “todos”, ele frisou, “todos dentro do partido concordaram”. Segundo ele, foi uma decisão unânime da cúpula do PSL.
O desconforto da cúpula do partido com Catel havia se acentuado com o episódio do esfaqueamento de Bolsonaro, em setembro. Foi ela e Metta que levaram, no monomotor do escritório do advogado, o médico-cirurgião Antonio Macedo de São Paulo até Juiz de Fora para examinar o candidato, então já operado e atendido pelos médicos da Santa Casa de Misericórdia da cidade mineira. Catel e Metta convenceram Bolsonaro e sua família a transferir o candidato para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Ocorre que, antes disso, Bebianno já havia contatado o diretor do Hospital Sírio Libanês, Roberto Kalil Filho, para que cuidasse do caso. Kalil enviou três médicos de sua equipe para examinar Bolsonaro. “Nós não podíamos deixar que o Jair fosse levado para o Sírio Libanês, que atende os políticos do PT”, justificou a empresária – o hospital já atendeu políticos de vários matizes, de José Serra a José Sarney, de Dilma Rousseff a Paulo Maluf. A família Bolsonaro concordou com os argumentos e o candidato foi transportado num jato hospitalar para o Einstein. Bebianno acabou atropelado pela dupla Catel e Metta.
A fábrica de Mario Catelani fica em um condomínio arborizado, em Jundiaí. Ele fala baixo e pausado e tem o sotaque carregado do interior de São Paulo. Sentado em seu escritório, com vista para o enorme galpão onde fica a área de produção da fábrica, não esconde o orgulho que sente da filha. “Todos os meus três filhos trabalharam desde cedo. Eles voltavam da escola e vinham me ajudar no negócio que estava começando.” E elogiou a independência da filha, que criou sozinha a própria empresa.
Nesse momento, Catel interrompeu a conversa e disse que, por isso mesmo, sempre criticou os movimentos feministas. “Eu sempre trabalhei com homens, num setor muito masculino, que é o mecânico, e nunca me senti vítima de machismo”, falou. “Sempre consegui ser respeitada pela minha competência.” Aproveitou para fazer novos ataques à esquerda que, segundo ela, fica “inventando pautas para vitimizar a mulher”. Disse que não se importa de levar cantada, mas não admite que toquem nela, sem que ela queira. “Agora, se me cantarem e eu não gostar eu revido, xingo, e pronto. Não faço drama”, afirmou. No momento, não está namorando. “Não tenho tempo”, justificou. Mario Catelani olhou para a filha e comentou: “Ela é assim, determinada.” Por isso, ficou surpreso com a decisão do partido de afastá-la. “Como puderam tirar uma jovem tão comprometida? Isso me deixou chateado pra caramba.”
Após a vitória de Bolsonaro, Catel, Martins e Metta foram chamados para participar do grupo de transição, em Brasília. Metta atuou na equipe de Paulo Guedes. Catel e Martins, no grupo de relações exteriores, trabalhando próximos ao ministro Ernesto Araújo – que foi sugerido para o Itamaraty por Olavo de Carvalho. Assim que foi indicado, Martins fez uma ligação via Skype para Carvalho da qual participaram Araújo e Catel. O intelectual teve influência também na escolha do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, defensor da “escola sem partido”, uma das bandeiras dos bolsonaristas. Dias depois das duas nomeações, Carvalho escreveu na sua página no Facebook: “Não trabalho para a direita brasileira. Eu a inventei, porra.”
Martins acompanhou Eduardo Bolsonaro aos Estados Unidos, em novembro, na visita ao ex-sub-secretário para assuntos políticos de Donald Trump, Thomas Shannon, uma tentativa de aproximar Bolsonaro do governo americano. De lá, Martins seguiu com Eduardo para a Colômbia, para uma visita ao presidente colombiano, o conservador Iván Duque. Metta e Fakhoury, por sua vez, foram a Israel para a comemoração dos 70 anos do Estado judeu. Os dois, junto com Martins, apoiam a transferência da  embaixada brasileira de Telaviv para Jerusalém, o que é rechaçado por parte da diplomacia brasileira.
No final de novembro, voltei a falar com Catel, que tinha entrado numa rotina intensa em Brasília depois da vitória de seu candidato. “O Jair nasceu para ser presidente. Ele é a minha esperança”, afirmou. Pragmaticamente, acrescentou: “Muita coisa foi projetada na figura dele. Será um risco muito grande se ele decepcionar os eleitores. Se não fizer as mudanças que esperam, as pessoas podem se voltar contra ele. A militância da direita não é fanática, não é apegada a personagens e sim a valores. Se o Jair errar, ele perde o apoio. Meu e de todo mundo.”
Consuelo Dieguez, repórter da piauí desde 2007, é autora da coletânea de perfis Bilhões e Lágrimas, da Companhia das Letras
Bookmark and Share

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

O ESTADO CONTRA A TRANSPARÊNCIA

Da Folha de S.Paulo

Jair Bolsonaro chegou à Presidência prometendo uma nova era de transparência administrativa. Instalado no governo, deixou para seu vice o abacaxi de assinar um decreto que reduz essa transparência.

É fácil criticar o presidente pela incongruência entre o prometido e o efetivado. E ele merece as reprimendas que recebeu. Receio, porém, que o problema seja mais geral. Desconfio até que alguém ponha algo na água servida no Planalto que torna seus consumidores refratários à publicidade governamental.

Fernando Henrique Cardoso, cujas credenciais democráticas são mais puro-sangue que as de Bolsonaro, assinou, no finalzinho de sua administração, um decreto ainda pior, que criava a figura do sigilo eterno (o segredo poderia ser renovado indefinidamente). Seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, manteve a disposição fernandina, apesar dos apelos em contrário.

A coisa só mudou com Dilma Rousseff, sob cuja gestão foi aprovada e regulamentada a Lei de Acesso à Informação (nº 12.527/11), que cria mecanismos para que qualquer pessoa requisite e obtenha quaisquer documentos que não estejam sob sigilo. Foi uma bola dentro de Dilma e devemos reconhecer isso. É pena que o compromisso com a transparência exibido aí não a tenha impedido de manipular dados econômicos para assegurar a reeleição.

Não precisamos chegar ao extremo de militar pelo fim dos segredos. Um mundo de transparência total seria um inferno. O que seriam da amizade e do amor se não pudéssemos contar com a discrição de amigos e amantes? A própria sociedade não funcionaria direito sem sigilos médico, bancário, de fonte etc.

Essas, contudo, são relações que dizem primordialmente respeito a pessoas agindo na esfera privada. Quando se trata de documentos oficiais, a lógica, exceto por poucos e excepcionalíssimos casos, deve ser a da publicidade. Não dá para privar um povo da matéria-prima com a qual ele escreve a própria história.
Bookmark and Share

SERGIO BOLSONARO

José Padilha, Folha de S.Paulo

O governo Bolsonaro já começou carimbado por suspeitas gravíssimas de corrupção. Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo Rio de Janeiro, está para lá de enrolado com as movimentações atípicas nas contas de seu ex-assessor e na sua própria conta.

Não precisamos de Sherlock Holmes, ou de Capitão Nascimento, ou mesmo do deputado Fraga para concluir o óbvio: ninguém movimenta recursos de maneira tão anormal quanto Flávio Bolsonaro e seu ex-assessor. Depósitos em dinheiro, feitos um seguidinho do outro, dia após dia… Se o cara não tem algo sério a esconder, no caso a famosa prática de receber parte do salário de funcionários da Alerj, podemos dizer que se esforçou muito para parecer culpado.

Aliás, o senador continua se esforçando para parecer culpado nas entrevistas que concede para tentar explicar o que parece ser inexplicável, e faz o mesmo em sua atuação no âmbito jurídico.

Seu pai, o presidente eleito para salvar os brasileiros da corrupção (real) de PT/PMDB, já o jogou do convés do barco: “Se errou, vai ter que pagar”. Presidente, ao que tudo indica, vai ter que pagar. Muito provavelmente por corrupção e desvio de verbas públicas, além de possível associação com milicianos. E não se esqueça: teve um capilé que foi parar na conta da primeira-dama…

O que me leva ao título deste artigo: Sergio Moro, o novo e poderoso ministro da Justiça, ungido pela eficiente luta contra a corrupção empreendida no âmbito da Operação Lava Jato, vai ficar assistindo a tudo isso sem fazer ou falar nada?

Queira ou não queira, ao aceitar o convite de Jair Bolsonaro para trabalhar no Ministério da Justiça, Sergio Moro avalizou implicitamente o governo Bolsonaro. Deu a este governo um carimbo de ética e de luta contra a corrupção. E, ao fazê-lo, colocou a sua biografia em jogo.

Lembro a Sergio Moro a famosa história do grande economista liberal Eugênio Gudin (1886-1986), que, apesar de ter controlado a crise econômica resultante da instabilidade política durante a transição do governo Vargas para o de Juscelino Kubitschek, pediu o boné assim que percebeu que o governo de Juscelino não seria orientado por visão liberal do controle dos gastos públicos.

Ou seja, não flexibilizou as suas convicções pessoais sobre a economia para se ater ao poder. (Espero o mesmo de meu amigo Paulo Guedes!) Pois bem: Sergio Moro vai flexibilizar as suas posições éticas para ficar em um governo que já nasce maculado?

Posto o problema está. Restam ao ministro três formas de lidar com ele: primeiro, pode calar e consentir. Segundo, pode pedir o boné. E, por fim, pode atuar decisivamente em favor de suas convicções éticas, colocando todo o aparato policial e jurídico que tem a sua disposição para investigar o senador Flávio Bolsonaro, dando um sinal claro para a sociedade de que, enquanto ministro, vai trabalhar pela justiça, doa a quem doer.

Em seu primeiro artigo como jornalista, Eugênio Gudin escreveu criticamente sobre a política de investimentos, conhecida como “50 anos em 5”, do então presidente JK. Consta que Gudin dizia o seguinte acerca das gastanças de Juscelino em Brasília: “O Juscelino era um bom rapaz, bem intencionado, mas muito playboy. Ele criou uma capital que não produz nada”. Sergio Moro criou um capital moral, e os brasileiros apostaram nele. Resta ver se este capital vai produzir algo de concreto.

Se não produzir nada, não chamarei o ministro Sergio de playboy, que isso ele não é. Mas, se o ministro Moro capitular em suas convicções éticas quando essas se aproximam dos Bolsonaros, corre o risco de ficar conhecido pela alcunha de Sergio Bolsomoro.

*José Padilha, Cineasta, diretor dos filmes “Tropa de Elite” (2007), “Tropa de Elite 2” (2010) e “RoboCop” (2014)
Bookmark and Share