“Os retratos dentro das cabeças dos seres humanos, retratos
deles mesmo, dos outros, das suas necessidades, propósitos e relacionamentos,
são suas opiniões públicas. Aqueles retratos que são adotados por grupos de
pessoas, ou por indivíduos agindo em nomes de grupos, são Opinião Pública com
letras maiúsculas” Walter Lippmann, em Public Opinion
O jornalista americano Walter Lippmann tinha pouco mais de
30 anos, em 1922, quando seu livro Public Opinion chegou às livrarias dos EUA.
Foi um marco. O texto ágil e cristalino – bem “jornalístico”, dizem os
acadêmicos – dissolve e dessacraliza a aura que se costuma atribuir a essa
figura um tanto pomposa que é a Opinião Pública com letras maiúsculas. É bom de
ler até hoje. Um clássico. Lippmann olha para a Opinião Pública e se pergunta:
ora, mas que bicho é esse? Logo começa a responder. Em sua descrição, a Opinião
Pública se resume a um amontoado de retratos mentais que uma sociedade resolve
aceitar como fidedignos. Esses retratos nada mais são do que estereótipos.
Não por acaso, Lippmann dedica-se bastante a dissecar a
noção de estereótipo: um conceito compactado que condensa uma opinião na forma
de pacote de sentidos simplificado, bem fácil de ser exposto, compartilhado,
vendido ou comprado. Segundo Lippmann, toda gente pensa por meio de
estereótipos. Sem esses rótulos concentrados que são os estereótipos, nós não
conseguiríamos conversar e muito menos fazer política. Há exemplos bem óbvios.
Padre pedófilo é um estereótipo. Terrorista islâmico, outro.
São bonitas, porque simples e esclarecedoras, as passagens
em que Lippmann discorre sobre o que sejam os estereótipos. “As formas
estereotipadas emprestadas ao mundo não procedem apenas da arte, no sentido da
pintura, da escultura e da literatura”, ele escreve (e eu traduzo), “mas também
de nossos códigos morais, das filosofias sociais e das agitações políticas”.
Ou: “A americanização, por exemplo, pelo menos superficialmente, é a substituição
dos estereótipos europeus pelos norte-americanos”.
Impossível refutar. Acontece que os estereótipos são
mutáveis. Um signo positivo se converte em negativo da noite para o dia. E
vice-versa. Yasser Arafat, o líder máximo da Organização para a Libertação da
Palestina, era o símbolo do mais pérfido terrorismo internacional.
Depois virou um símbolo da boa vontade mais angelical, mais ou menos como uma pombinha branca. A transmutação deu-se em 1983, por força do acordo de paz que ele firmou com o então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, sob as bênçãos de braços abertos do presidente Bill Clinton, que os recebeu no gramado da Casa Branca.
Depois virou um símbolo da boa vontade mais angelical, mais ou menos como uma pombinha branca. A transmutação deu-se em 1983, por força do acordo de paz que ele firmou com o então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, sob as bênçãos de braços abertos do presidente Bill Clinton, que os recebeu no gramado da Casa Branca.
O mundo é feito de mudanças e os estereótipos, também. Até
outro dia as mineradoras eram um selo de progresso. Hoje são sinônimo de
catástrofe. Até outro dia Jair Bolsonaro era um militar indisciplinado e
boquirroto. Hoje é o fiador das tais “reformas de que o Brasil precisa”, etc.
Os estereótipos são volúveis e ao sabor deles muda a Opinião
Pública, essa senhora sem caráter que se compraz em se deixar carregar nos
ombros das massas, que ora são infantis, ora temperamentais, ora estúpidas – ou
as três coisas ao mesmo tempo.
Vejamos com mais vagar o que vem acontecendo com a Opinião
Pública no Brasil. O seu centro de gravidade se deslocou em velocidade
vertiginosa. Velhos estereótipos se metamorfosearam. Já se sabia que o governo
Bolsonaro representaria uma alteração tectônica nas mentalidades e na cultura
política. Melhor dizendo, a reconfiguração ocasionada pelo bolsonarismo, disso
todos sabíamos, não se limitaria a arranjos (ou desarranjos) institucionais no
âmbito do governo e do Estado, mas teria ainda mais efetividade nos
interstícios da vida social. Pois é isso precisamente o que estamos vendo
agora. O dado novo é que a amplitude e a densidade dessa alteração tectônica
estão acima das expectativas (as boas e as más).
A desinibição com que se passou a falar das armas de fogo
como solução para a criminalidade surge como um sintoma. O estereótipo do
revólver deixou de significar morte, homicídio, perigo para adquirir um sentido
de prevenção, segurança, cujo risco não seria maior que o de um liquidificador.
A convicção de que a força resolve os impasses ganha mais e mais adeptos.
Movimentos sociais passam a ser tachados de terroristas. Uma
boa sova corrige o garotinho com tendências homossexuais. A patritotice vazia
de que o Brasil estaria “acima de tudo” (como a Alemanha esteve no passado)
vingou. O bordão de que Deus paira acima do Estado laico pegou.
A violência volta a ser a parteira da história, mesmo que
seja uma história antiga. As palavras comunismo e socialismo transmutam-se em
sinônimo de corrupção, ineficiência, parasitismo. Os humores odientos das
massas ecoam não só pregações fascistas, mas principalmente a verborragia dos
facínoras.
Foi assim que o centro da Opinião Pública saiu de centro.
Tome a GloboNews como um indicador. Até ontem o canal era bombardeado nas redes
sociais por ser “de direita”, por abrigar só porta-vozes do tucanato
conservador. Agora recebe ataques maciços por ser uma catedral do politicamente
correto e do “marxismo cultural”. Temos aí uma obra colossal e inacreditável
dos primeiros cem dias do governo Bolsonaro: transformar a GloboNews num canal
de esquerda. Sinal mais clamoroso da mutação da Opinião Pública no Brasil não
poderia existir.
Enquanto os velhos expoentes do centro-direita, como
Fernando Henrique Cardoso, são expurgados dos banquetes por serem amigos de
comunistas, líderes anticomunistas como João Doria começam a se declarar “de
centro”. Vai se cumprindo, aos solavancos, o vaticínio do prefeito que dizia
que o duelo do futuro seria entre a direita e a extrema direita.
No meio disso, reportagens investigativas serão tratadas
como complôs de esquerdistas criminosos. A imprensa livre viverá dias mais
difíceis, como já deu para ver. Mas disso trataremos em outra ocasião.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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