quarta-feira, 31 de agosto de 2022

O INSTRUMENTO

Allan de Abreu, PIAUÍ

A bolsonarização da Polícia Rodoviária Federal

Silvinei Vasques, um homem baixo, corpulento e falante, tinha reações contraditórias naquele domingo. Às vezes, estava eufórico. Outras vezes, irritado. Sua empolgação vinha do resultado da operação da tropa de elite da Polícia Rodoviária Federal (PRF), a corporação que dirige desde abril de 2021. Naquela manhã de outubro do ano passado, os policiais haviam acabado de matar todos os 26 homens que planejavam um assalto a uma agência do Banco do Brasil em Varginha, no Sul de Minas Gerais. Não sobrou um único criminoso vivo, e os policiais saíram sem um arranhão. Mas, de vez em quando, ele ficava irritado ao lembrar que a Polícia Federal, algumas semanas antes, tomara a decisão de não ter qualquer participação direta naquela operação – e, pior ainda, fez o que pôde para evitá-la justamente por suspeitar que acabaria numa chacina. Movido pelos dois sentimentos contraditórios, Vasques telefonou, ainda na parte da manhã, para o presidente Jair Bolsonaro.

Sua intenção era comemorar o resultado da operação, pois sabia que Bolsonaro ficaria feliz com a morte dos 26 homens, e também reclamar do comportamento da Polícia Federal. Além da recusa em participar da ação, a PF tentou neutralizar a ação dos policiais rodoviários ao comunicar à Polícia Militar de Varginha que um bando de criminosos estava prestes a assaltar um banco. Sem saber que os policiais rodoviários preparavam uma emboscada contra o grupo, a direção da PM local tentou afugentar os assaltantes despachando todos os seus veículos para a rua, em patrulhamento ostensivo. “A PF queria fazer um trabalho legítimo, investigando e prendendo toda a quadrilha. Mas desde o começo da investigação ficou claro que a PRF não queria agir na legalidade”, diz um policial federal envolvido no caso, que pede o anonimato para evitar retaliações do governo. Vasques achou que o comportamento da PF era inadmissível e queria que Bolsonaro soubesse disso.

Naquela manhã, o presidente estava em Roma para a reunião do G20, o grupo que reúne os países com as maiores economias do mundo. Sem conseguir alcançar Bolsonaro, Vasques ligou então para o ministro da Justiça, Anderson Torres, cuja pasta cuida tanto da PF quanto da PRF. Depois de ouvir as reclamações, Torres acionou o delegado Luís Flávio Zampronha, que na época integrava a direção da PF, e lhe pediu que cobrasse explicações do superintendente da corporação em Minas Gerais, Marcelo Sálvio Rezende Vieira. Zampronha cumpriu a ordem. “Por que a PF não quis ajudar?”, perguntou ele, em telefonema a Marcelo Vieira. “Calma aí que essa história ainda vai dar merda”, respondeu Vieira, de acordo com o relato obtido pela piauí por dois policiais próximos de ambos.

Assim que saiu a notícia da chacina em Varginha, dois filhos de Bolsonaro correram às redes sociais para exaltar a ação. “Apreensão de fuzis, munições, granadas, explosivos e, após confronto, 25 criminosos tiveram a conversa antecipada com o Capiroto”, escreveu o senador Flávio Bolsonaro no Facebook. “Parabéns aos nossos policiais pelo brilhante trabalho. Todos estão bem.” O deputado Eduardo Bolsonaro também fez festa no Twitter. “Nenhum policial morto. Parabéns PRF e PM-MG”, escreveu e, em seguida, fez a provocação de praxe. “Fiquem tranquilos, só vagabundos reclamarão. #GrandeDia.” Vasques, o diretor da PRF, só conseguiu falar com o presidente – pessoalmente – na tarde de 8 de novembro, quando a comitiva presidencial já estava de volta a Brasília. Não se sabe como Bolsonaro reagiu ao saber da recusa da PF em ajudar na operação.

A reação de Bolsonaro e filhos à matança em Varginha é ao mesmo tempo previsível e reveladora. Previsível porque a família é sabidamente entusiasta da violência policial e costuma celebrar chacinas como a que ocorreu na cidade mineira. A mais recente, festejada pelo presidente, ocorreu em maio passado, na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, na qual morreram pelo menos 23 pessoas. Mas o aplauso à operação em Varginha também revela o papel singular que a Polícia Rodoviária Federal passou a representar no governo de Bolsonaro. De todas as forças policiais do Estado, incluindo as polícias militares, a PRF tem sido a mais maleável às intenções do presidente de colocar uma força armada a serviço de seus interesses e, se for o caso, acima da lei. “A PRF não se constrange em ser bolsonarista porque não há uma cultura organizacional de resistência às ingerências políticas”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma ONG que estuda o assunto e busca dar transparência aos dados sobre violência e políticas de segurança.

Desde os primeiros meses do mandato, o presidente Bolsonaro prestigiou a Polícia Rodoviária Federal e tentou ampliar seu leque de atuação. Em outubro de 2019, o então ministro Sergio Moro, da Justiça, assinou portaria autorizando a PRF a auxiliar “as demais instituições de segurança pública na prevenção e no enfrentamento ao crime”. A portaria dava à corporação poderes de investigar e cumprir mandado judicial – ações típicas de polícias judiciárias (como a Polícia Federal e as polícias civis) e não de polícias ostensivas, como a PRF. Pela primeira vez na história, a PRF assumia funções então típicas da PF, abrindo um contencioso entre as duas forças policiais. “Há nítidos sinais de que a corporação quer ir além da prevenção e repressão criminal nas rodovias federais, transformando-se numa polícia com maior abrangência territorial”, escreveu o sociólogo Luis Flávio Sapori, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública, da PUC Minas, em artigo para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.  

Incomodada com essa ampliação dos poderes da PRF, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal pedindo a suspensão da portaria. O ministro Dias Toffoli, do STF, acatou o pedido, sob o argumento de que novas atribuições da PRF só poderiam ser criadas por meio de lei, mas acabou vencido pelo plenário. A portaria continuou em vigor. No entanto, pressionado por agentes da PF, o então ministro da Justiça, André Mendonça, sucessor de Moro, acabou anulando a portaria em janeiro de 2021. Mas manteve a possibilidade de os policiais rodoviários participarem de operações em conjunto com outras polícias ou com o Ministério Público – uma prerrogativa raramente oferecida às forças de patrulhamento rodoviário em outros países.

Enquanto ampliava os poderes da PRF, o governo se empenhou em fortalecer a corporação. Entre 2019 e 2021, o órgão recebeu 704 milhões de reais em investimentos, o que representa 54% a mais do que havia recebido no triênio anterior. Em 2022, os irmãos Flávio e Eduardo Bolsonaro mandaram 3,6 milhões de reais para a PRF por meio do orçamento secreto. Desde 2020, a corporação fechou quinze contratos para a blindagem de veículos, no valor total de 39,9 milhões de reais, todos com a Combat Armor Defense do Brasil, cujo dono é próximo do deputado Eduardo Bolsonaro. Além disso, seu efetivo cresceu no atual governo. Passou de 9,9 mil policiais para 12,2 mil. Ao mesmo tempo em que ganhava mais dinheiro e mais poderes, a PRF foi estimulada a se afastar cada vez mais de sua missão original – e enfraqueceu a vigilância dos 75 mil km de rodovias federais. Bolsonaro pressionou a PRF a deixar de punir o transporte de armas pessoais e estimulou a corporação a amolecer o tratamento contra infrações cometidas por caminhoneiros, sua base eleitoral.

Em agosto de 2019, Bolsonaro chegou a mandar tirar todos os radares das rodovias federais para acabar com “a indústria das ‘multagens’ eletrônicas”. Em quatro meses, o número de mortos nas estradas aumentou 15%. A Justiça derrubou a decisão e os radares foram acionados de novo, mas o controle nunca voltou a ser o mesmo. Em 2019, a fiscalização com radares móveis somou 42 mil horas. No ano passado, segundo levantamento do portal UOL, não chegou a 20 mil. Até na Via Dutra, a rodovia mais movimentada do país, que liga Rio de Janeiro e São Paulo, dois postos de fiscalização foram fechados: um em Itatiaia, outro próximo à Serra das Araras. Como resultado, as mortes nas rodovias federais pararam de diminuir. No ano passado, foram 5 381 óbitos, 1,7% a mais do que no ano anterior. (A PRF diz que isso aconteceu por causa do aumento no fluxo de veículos nas rodovias federais no “período pós-pandemia”, mas a explicação não combina com o calendário: 2021 foi o ano mais duro da Covid.)

Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas, ONG que trabalha para reduzir os acidentes, resume a situação: “No atual governo, a Polícia Rodoviária tornou-se um instrumento político nas mãos do presidente. Negligenciaram a fiscalização do trânsito para assumir outras funções fora das rodovias.” De fato, no processo de bolsonarização, a PRF expandiu suas ações longe das estradas. De 2019 até o mês de junho passado, policiais rodoviários prenderam 1 226 pessoas em municípios onde não há nenhuma estrada federal. Também se tornou, durante o governo Bolsonaro, uma polícia que mata cada vez mais. Em 2019, foram quatro mortes. Em 2020, subiram para dezesseis. No ano passado, chegaram a 35. Neste ano, só até junho, já estão em 38.

Com mais dinheiro e o respaldo político do presidente, a PRF está virando uma polícia comum, com o agravante de que suas ações são fiscalizadas com pouco rigor pela corregedoria do órgão, o que acaba por estimular seus agentes a atuarem à sombra da lei. Durante seis semanas, a piauí reconstituiu a matança de Varginha com base em documentos, laudos e entrevistas com quatro autoridades envolvidas direta ou indiretamente no caso – todas falaram sob anonimato para evitar retaliação dos próprios policiais rodoviários e do governo. A conclusão inevitável é que a chacina de Varginha foi um festival de ilegalidades.

Em setembro de 2021, semanas após um grande assalto a bancos em Araçatuba, no interior paulista, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal começaram a seguir os passos de Ítallo Dias Alves, um jovem de 25 anos, morador de Uberaba, em Minas Gerais. Não havia indício de que estivesse envolvido no assalto em Araçatuba, mas Alves era suspeito de ser um dos líderes do “novo cangaço”, como são chamadas as quadrilhas de criminosos que invadem cidades do interior, em geral à noite ou de madrugada, assumem o controle do lugar e roubam grandes quantidades de dinheiro dos bancos.

Os policiais instalaram um rastreador no carro de Alves (medida que prescinde de mandado judicial) e começaram a acompanhar seus passos. O rastreador é um aparelho, instalado embaixo do veículo, que informa à polícia a sua localização em tempo real. Tudo corria dentro da lei, até que a PRF resolveu executar uma ação ilegal: simulou uma abordagem rotineira na beira da estrada, parou o carro de Alves, pediu seu celular e, sem que o suspeito percebesse, instalou no aparelho um aplicativo chamado “Bruno Espião”, que clona todas as ações do aparelho-alvo em um segundo celular, incluindo as conversas por aplicativo. O software foi criado por um jovem mineiro para que os pais controlassem a rotina dos filhos, com o consentimento destes, mas a PRF tem usado a ferramenta para interceptar conversas de terceiros, o que só pode ser feito com aval da Justiça.

Como a PRF não tinha ordem judicial para clonar o celular do suspeito, a PF sentiu cheiro de queimado e decidiu abandonar a investigação. A determinação foi dada pela direção da corporação em Minas Gerais, incluindo o superintendente, Marcelo Vieira. “O objetivo da Polícia Federal era instaurar um inquérito formal, reunir provas contra a quadrilha, solicitar mandados de prisão e só então deflagrar a operação, colocando todos na cadeia. É assim que funciona. Quando percebemos que a Polícia Rodoviária queria matar todo mundo sem investigar nada, pulamos fora”, diz um policial federal que acompanhou o caso de perto.

Com o rastreador (legal) e o Bruno Espião (ilegal), os policiais rodoviários descobriram que uma quadrilha planejava fazer um assalto a banco em Varginha na madrugada de 1º de novembro do ano passado, uma segunda-feira. Também descobriram que os criminosos se dividiam em duas chácaras, ambas próximas a Varginha, mas não conseguiam saber a localização exata. Por isso, na tarde de sábado, dia 30 de outubro, segundo as informações prestadas à Polícia Federal por uma testemunha que participou do planejamento do assalto, mas não estava nas chácaras no dia da chacina, uma equipe da PRF abordou Alves e o caminhoneiro Francinaldo Araújo da Silva em um posto de combustível de Muzambinho, cidade a 140 km de Varginha. Ali, constataram que o caminhão tinha um fundo falso sob a carroceria, que seria usado para esconder a quadrilha na fuga depois do assalto. Segundo a PF, a dupla foi pressionada – não se sabe com que métodos – a revelar a localização das chácaras e quantos assaltantes havia em cada uma delas.

Os criminosos alugaram os dois sítios nas extremidades Sul e Norte de Varginha, a 12 km uma da outra, ainda de acordo com aquela mesma testemunha. A primeira chácara abrigou dezoito homens (um deles era o caseiro que, segundo familiares, tinha uma deficiência mental e não integrava a quadrilha) e o armamento: vinte fuzis e seis pistolas, que só seriam desembalados no domingo, horas antes do assalto. A missão desse grupo era revidar a ação policial, a começar pelo batalhão da PM cuja sede fica a apenas 2 km da chácara. A segunda casa foi ocupada por oito homens com 40 kg de explosivos que dinamitariam os cofres da agência do Banco do Brasil, no Centro da cidade, de onde os criminosos esperavam roubar 65 milhões de reais.

À noite, 28 policiais rodoviários – lotados no Comando de Operações Especiais (COE) e no Grupo de Resposta Rápida (GRR), subordinado ao próprio COE – rumaram em direção a Varginha. Chegando lá, já na madrugada, juntaram-se ao grupo 22 policiais militares do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), vindo de Belo Horizonte. Foi nesse meio-tempo que o superintendente da PF, Marcelo Vieira, avisou a PM de Varginha do assalto iminente. As viaturas da PM começaram então a circular pela cidade, numa tentativa de dissuadir os criminosos. Poucas horas depois, no entanto, o comando da PM em Belo Horizonte mandou um recado determinando que as viaturas voltassem aos quartéis, deixando o caminho livre para a PRF e o Bope. Começava a se desenhar a chacina.

A primeira invasão se deu na chácara onde estavam o armamento e os dezoito homens (dezessete criminosos e o caseiro). Os 28 policiais rodoviários entraram pela frente do imóvel, um sobrado cercado por um muro de finas placas de cimento, e os 22 membros do Bope cercaram os fundos da chácara, que dava para um pequeno riacho. A partir desse ponto, como sempre acontece nas ações policiais que acabam em matança generalizada, a versão dos policiais rodoviários não faz sentido. Em depoimento à PF e à sindicância da própria PRF, disseram que, assim que pularam o portão principal, um dos criminosos começou a atirar do primeiro andar do sobrado, motivando “intenso tiroteio”. No fim, morreram todos os dezoito ocupantes da casa – três deles com mais de dez tiros – e os policiais não tiveram um único ferimento.

Para essa versão fazer sentido, todos os dezoito homens deveriam estar na chácara, incluindo Alves e o caminhoneiro Silva. Por isso, os policiais disseram à PF e à corregedoria da PRF que ambos estavam no imóvel quando houve a suposta troca de tiros, e que encontraram o caminhão abandonado no posto de combustível. O que intriga os investigadores é que o caminhão, vital para a fuga da quadrilha, estivesse abandonado faltando poucas horas para o roubo. No inquérito instaurado pela PF para apurar o caso (como envolve policiais rodoviários federais, a investigação do crime é de competência federal), os policiais obtiveram apenas fragmentos das imagens das câmeras de segurança do posto, que não mostram a abordagem dos policiais à dupla. O dono do posto alegou problemas técnicos no equipamento.

Para os agentes federais envolvidos na investigação, o saldo da operação é a maior das ilegalidades: os criminosos foram executados, incluindo Alves e o caminhoneiro. Segundo a única testemunha que sobreviveu porque não estava em nenhuma das chácaras, quando o primeiro sítio foi invadido, às cinco da madrugada, os criminosos estavam dormindo, já que haviam promovido um churrasco na noite anterior. Quase todos os corpos tinham álcool no sangue, segundo laudos do Instituto Médico Legal (IML). O ferimento de um dos cadáveres aponta que a bala atravessou o braço direito e entrou na maçã direita do rosto – indicativo claro, segundo peritos ouvidos pela piauí, de que tentou se proteger com o braço no momento em que levou o tiro no rosto.

Com a eliminação de todos na primeira chácara, oito policiais rodoviários e quatro PMs foram até a segunda propriedade. Ali, segundo disseram em depoimento, a cena repetiu-se de mesmíssimo modo e com um desfecho idêntico: foram recebidos a tiros, revidaram e mataram todos sem sofrer um arranhão. No entanto, segundo a testemunha, nenhuma das oito vítimas da segunda chácara estava armada, já que o imóvel é cercado por vizinhos e qualquer descuido poderia resultar em alguma denúncia à polícia. Para os investigadores, há poucas dúvidas de que houve uma segunda chacina.

Embora os 25 criminosos mais o caseiro estivessem mortos (alguns sem um pedaço do cérebro), às 6h30 todos foram levados na caçamba de uma caminhonete da PRF, amontoados, para o Hospital Bom Pastor e uma outra unidade de pronto atendimento da cidade. Em depoimento à PF, médicos e enfermeiros disseram que os policiais estavam exaltados, “exigindo que o atendimento fosse realizado o mais rápido possível”. Quando um médico perguntou se todos estavam mortos, um dos policiais respondeu rispidamente: “Você é o médico, você é que vai dizer.” Para a Polícia Federal, foi mais uma ilegalidade. Em vez de urgência para prestar socorro, a correria foi apenas para alterar a cena do crime e dificultar a investigação da chacina.

APolícia Federal instaurou inquérito contra todos os cinquenta policiais rodoviários e militares para apurar o crime de homicídio. No fim de julho, a PF aguardava o laudo de perícia do Instituto Nacional de Criminalística (INC) que, a partir de poças de sangue e vestígios de DNA encontrados nas duas chácaras, pretende reconstituir em imagens 3d o que de fato aconteceu naquele início de manhã de 31 de outubro em Varginha. Mas, em junho, o INC foi pressionado pelo Palácio do Planalto e pelo Ministério da Justiça a adiar a conclusão do laudo para depois das eleições de outubro a fim de não causar dano à campanha do presidente Bolsonaro. Procurados, nem o INC, nem o superintendente da PF em Minas, Marcelo Vieira, quiseram se manifestar.

A PRF, por sua vez, abriu uma sindicância, ouviu os policiais envolvidos e deu-se por satisfeita, isentando todos de qualquer infração. “Não se vislumbra qualquer irregularidade praticada, em tese, pelos policiais rodoviários federais que atuaram na operação”, diz a conclusão da investigação interna. Dos 28 policiais rodoviários que participaram da matança em Varginha, quatro foram promovidos a cargos de chefia depois do episódio. Um deles, Felipo Jesus Medeiros, tornou-se superintendente da corporação em Roraima.

A piauí pediu um posicionamento da PRF em relação às incongruências da versão dos seus policiais no episódio de Varginha. Em uma resposta curta, a corporação negou o uso do aplicativo Bruno Espião e disse ter adotado “todos os procedimentos e análises preliminares possíveis e pertinentes acerca desses fatos e condutas, não tendo sido identificado nenhum indício de irregularidade acerca dos acontecimentos”. A Polícia Militar, por sua vez, disse que o caso foi “devidamente apurado” pela própria corporação, mas não informou as conclusões da investigação. (Os 22 PMs têm se negado a depor à PF, sob o argumento de que o caso é de competência da Justiça Militar.) A defesa dos policiais rodoviários envolvidos não se pronunciou.

Diante de casos de violência brutal, a PRF parece hoje uma sombra da força que surgiu em 1928 com o nome singelo de Polícia de Estradas e que, na década de 1960, já batizada de Patrulha Rodoviária Federal, ganhou popularidade entre a garotada com o seriado Vigilante Rodoviário, exibido na TV Tupi, em que o inspetor Carlos e seu cão Lobo combatiam o crime nas estradas a bordo de um Simca Chambord ou uma Harley-Davidson. Naquela época, a PRF era apenas uma guarda armada. Ao flagrar algum crime na estrada, detinha o infrator e o levava até a delegacia.

Na Constituição de 1988, a corporação ganhou o nome de Polícia Rodoviária Federal e passou a integrar o sistema de segurança pública brasileiro, já com poderes para investigar por conta própria crimes relacionados ao sistema viário. Dois anos depois, deixou de ser subordinada ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (dner) e ficou debaixo do guarda-chuva do Ministério da Justiça, ao lado da Polícia Federal, inaugurando aí a rixa que se arrasta até hoje. Os delegados da PF chamam os policiais rodoviários, jocosamente, de “patrulheiros”, para lembrá-los dos tempos em que eram apenas guardas armados na beira da pista, um tipo de policiamento tido como inferior.

Nas duas primeiras décadas deste século, a PRF envolveu-se em dois escândalos. Em um deles, soube-se que policiais rodoviários recebiam propina no Rio de Janeiro para permitir a circulação de caminhões-tanque com combustível adulterado. Em outro, por meio da CPI dos Grampos, na Câmara dos Deputados, soube-se que a PRF vinha fazendo interceptações telefônicas ilegais, a pedido da Polícia Federal e do Ministério Público. Mas, mesmo assim, a corporação ganhou espaço. Conseguiu aprovar uma lei exigindo curso superior para quem fizesse concurso na corporação, melhorou sua política salarial e montou um lobby no Congresso para buscar mais verba. No governo Bolsonaro, seu primeiro diretor–geral foi Adriano Furtado, próximo do então ministro da Justiça Sergio Moro. Furtado deixou o cargo em 2020 depois de cometer uma falha capital, na visão de Bolsonaro: lamentou publicamente a morte de um policial rodoviário causada pela Covid. O presidente não gostou e, para o seu lugar, escalou Eduardo Aggio de Sá, na época assessor da Secretaria–Geral da Presidência da República.

Com Aggio de Sá, a PRF tentou ampliar os laços com o governo. Os policiais rodoviários passaram a ser presença obrigatória nas motociatas de Bolsonaro, nas quais a PRF ignora abertamente uma infração recorrente do presidente, a de não usar capacete. Mas não conseguiu avançar o quanto desejava. Tentou atuar diretamente em investigações policiais, nos moldes daquela portaria de Sergio Moro, buscou estender seus braços aos portos e aeroportos e propôs à Força Aérea Brasileira (FAB) participar de operações ligadas ao transporte de cocaína em aeronaves. Não teve sucesso e, em abril de 2021, ao divulgar que a PRF fizera uma investigação que, na verdade, fora realizada pela PF, Aggio de Sá acabou demitido.

Assim, chegou a vez do policial rodoviário Silvinei Vasques, indicado para o cargo por Flávio Bolsonaro. Nascido no interior do Paraná mas criado em Santa Catarina, Vasques, de 47 anos, segundo dos quatro filhos homens de um motorista e uma dona de casa, é dono de uma biografia profissional pouco recomendável para um agente da lei. Em 1997, com apenas dois anos de carreira na PRF, Vasques e outros quinze policiais rodoviários foram acusados de pedir propina para permitir que uma empresa de guincho atuasse nas rodovias federais da região de Joinville, em Santa Catarina. Quem não se submetia à chantagem ilegal era impedido de trabalhar na região. Segundo consta no inquérito, Vasques ameaçou matar um deles “com um tiro na testa”, pois “nada tinha a perder”. Ao investigar o caso, a Polícia Federal descobriu depósitos suspeitos nas contas bancárias dos policiais, incluindo Vasques. A investigação, porém, se arrastou por oito anos, o Ministério Público Federal só denunciou os policiais em 2009 e, dois anos depois, o Tribunal Regional Federal (TRF) determinou que o crime estava prescrito.

Em 2000, Vasques espancou o frentista de um posto de combustível no interior de Goiás com socos no abdome e nas costas, depois que o funcionário se recusou a lavar um dos cinco veículos da PRF no posto. A ação criminal por lesão corporal e abuso de autoridade também acabou prescrita. A vítima ganhou o direito a uma indenização de 71 mil reais do governo federal e, desde 2017, a Advocacia-Geral da União cobra de Vasques o ressarcimento do valor. O policial já foi condenado em primeira instância, mas recorreu ao TRF. O caso fez com que a corregedoria da PRF e o Ministério da Justiça pedissem a expulsão de Vasques da corporação. Mas a investigação demorou para ser concluída e, mais uma vez, a punição prescreveu.

É esse o policial que comanda a PRF e que, ao longo de sua carreira na corporação, respondeu a oito sindicâncias internas. Quem quiser saber detalhes de cada uma delas só terá acesso aos dados no ano de 2121, pois o governo federal, para proteger o policial, decretou sigilo de cem anos sobre os processos. A decisão do governo foi tomada quando o portal Metrópoles, com base na Lei de Acesso à Informação, pediu para conhecer o conteúdo das sindicâncias.

Enquanto enfrentava acusações e condenações, Vasques sempre esteve atento à política, embora não à ideologia. Licenciou-se da corporação entre 2007 e 2009 para ser secretário de Transportes, de Administração, de Segurança e Defesa Social da Prefeitura de São José, na Região Metropolitana de Florianópolis. Já foi filiado ao pl e foi próximo da petista Ideli Salvatti, ex-ministra-chefe das Relações Institucionais, a quem ofereceu mimos como voar no helicóptero da PRF para participar de compromissos oficiais, segundo revelou o jornal Correio Braziliense em 2013. Um ano depois, com a ajuda de Salvatti, Vasques conseguiu levar a Universidade Corporativa da Polícia Rodoviária Federal (UniPRF) para Florianópolis. A academia foi instalada no campus de uma antiga universidade, alugado por 295 mil mensais.

Em 2019, guiado pela mudança de poder, pediu para assumir o comando da PRF no Rio de Janeiro, onde aproveitou para estreitar laços com o bolsonarismo. Por causa do seu passado na corporação, a nomeação teve resistência da Casa Civil, responsável por analisar o currículo de servidores em cargos de direção, e só foi efetivada em abril daquele ano. Empossado, aproximou–se do então governador Wilson Witzel, hoje desafeto da família Bolsonaro, do então prefeito do Rio, Marcelo Crivella, hoje no ostracismo político, e de Flávio Bolsonaro, a quem oferecia segurança, prestada por uma equipe de policiais rodoviários, sempre que o parlamentar estava no Rio. Em pouco tempo, caiu nas graças do clã Bolsonaro e foi recompensado com a direção-geral da PRF, por indicação de Flávio.

Uma vez no comando da corporação, Silvinei Vaques cumpriu à risca a cartilha bolsonarista – no acessório e no principal. Quando o deputado Eduardo Bolsonaro ficou irritado com a abordagem de policiais rodoviários a um motorista que levava uma arma no carro no interior paulista, Vasques correu para mudar o modo como a PRF fazia a fiscalização. Quando o ex-ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, hoje candidato bolsonarista ao governo de São Paulo, reclamou das multas aos motoristas de caminhões com traseira elevada, Vasques foi acionado – e, segundo o próprio Freitas contou num grupo de WhatsApp, combinou “com o diretor-geral da PRF que montaremos um grupo de trabalho para fazer um ‘revogaço’ de normas”.

Mas Vasques é impetuoso também no principal da cartilha bolsonarista. Sua gestão tem sido marcada pelo investimento em inteligência da PRF, com a compra de softwares de rastreamento, identificação e interceptação de números de aparelhos celulares. É um mau sinal. A PRF é uma polícia ostensiva, e não judiciária, como a Polícia Federal, a quem cabe investigar crimes. Por isso, é estranho seu interesse em investigações sigilosas, muitas delas com equipamentos invasivos, cujo uso só é possível com autorização judicial. “Não há controle nem transparência sobre a atividade de inteligência policial no Brasil, o que aumenta o risco de que esses equipamentos sejam utilizados com fins políticos, violando uma série de garantias fundamentais”, alerta Gabriel de Carvalho Sampaio, da Conectas Direitos Humanos, uma ONG na qual ele coordena um programa de combate à violência institucional.

O incremento em inteligência começou pouco antes do governo de Bolsonaro. Em março de 2018, ainda sob Michel Temer, a superintendência da PRF em Goiás contratou a TechBiz Forense Digital, que representa no Brasil a empresa israelense Cellebrite, conhecida por desenvolver programas de espionagem. Entre os produtos adquiridos por 791 mil reais, conforme o contrato obtido pela piauí, está um software que extrai conteúdo armazenado em nuvem (UFED Cloud Analyzer), algo que só pode ser feito com aval da Justiça. Procurada pela revista para explicar a compra do software, a PRF informou que usa a ferramenta para “prestar apoio técnico, mediante expressa autorização judicial, às polícias judiciárias e ao Ministério Público”. A piauí quis saber se alguma vez, de 2018 para cá, a Justiça autorizou a PRF a extrair conteúdo das nuvens. A corporação disse que não pode revelar essa informação, pois “o inquérito policial é sigiloso por natureza e, como a PRF atua em apoio, as informações sobre eles devem ser fornecidas pela autoridade policial responsável”.

Em dezembro, um mês antes do começo do governo Bolsonaro, a Superintendência Regional da PRF no Rio de Janeiro usou 5 milhões de reais para contratar a Cognyte Brasil, subsidiária da empresa homônima, também israelense, para o “monitoramento de redes sociais”, o que, em tese, dispensa medidas judiciais. A PRF diz que precisa monitorar as redes para investigar delitos ligados direta ou indiretamente a rodovias, como tráfico de armas, narcotráfico e roubo de veículos. (Meses depois, já como superintendente no Rio, Vasques assinou convênio com o Ministério Público do estado para “viabilizar o intercâmbio de dados e informações”. Inclui–se, aí, informações de inteligência.)

Foi no governo Bolsonaro, no entanto, que o setor de inteligência da PRF ganhou impulso. Tanto que, em fevereiro passado, a Conectas pediu ao Ministério Público Federal que investigue uma plataforma chamada Córtex. Pouco conhecida, essa plataforma reúne mais de 160 bases de dados de pessoas físicas e de empresas, como números de CPF, endereços, telefones e rendimentos, inclusive o monitoramento de placas de veículos por câmeras da PRF. Formalmente criada em 2021, a Córtex é gerenciada por um órgão do Ministério da Justiça, cujo nome é Secretaria de Operações Integradas (Seopi). A Seopi também é pouco conhecida, mas ganhou notoriedade quando o repórter Rubens Valente revelou no portal UOL que o órgão havia produzido um dossiê com informações sobre policiais antifascistas. O dossiê fora feito logo depois que os policiais lançaram um manifesto contra a “neutralização dos movimentos populares” e a favor de uma “aliança popular antifascismo”.

Em setembro do ano passado, cinco meses depois de assumir a direção-geral, Vasques fechou novo contrato com a Cognyte pelo mesmo valor de 5 milhões de reais para “migração do sistema Verint Web Intelligence”. De acordo com o contrato obtido pela piauí com base na Lei de Acesso à Informação, entre as “atividades de inteligência” do sistema está “coletar dados nos aplicativos de trocas de mensagem WhatsApp e Telegram, de forma não intrusiva”. O contrato diz que a PRF precisa do software para cumprir dois objetivos: ficar no encalço de organizações criminosas, cujos integrantes usam as plataformas, e dos movimentos sociais, cujas mobilizações de rua podem “afetar a livre circulação nas rodovias federais”.

O software é semelhante ao Cellebrite, que organiza as informações que aparecem nos aplicativos de mensagem, como conversas, áudios e vídeos. O problema é que, para obter tais informações, é preciso introduzir um aplicativo espião no celular do investigado, o que só pode ser feito com autorização da Justiça. Por isso, o Ministério Público Federal considera o contrato da PRF ilegal. “Não se trata de investigação com o objetivo de instaurar um inquérito policial, mas de atividade de inteligência, de coleta e análise de informações, algo que pode ou não se tornar um inquérito”, diz um procurador especializado no assunto, que pede o anonimato para não se indispor com as polícias. “E quebrar sigilo sem ordem judicial no trabalho de inteligência é crime.” Indagada sobre esse aspecto, a PRF disse apenas que “por não ser intrusiva, [a tecnologia] está em conformidade com a legislação pátria”. Um dos proprietários da representante brasileira da Cognyte, Lincoln Egydio Lopes, não quis se manifestar, alegando sigilo contratual.

Sete meses depois da chacina de Varginha, as tropas de elite da PRF voltaram suas atenções para a Vila Cruzeiro, uma comunidade carioca ocupada pela facção criminosa Comando Vermelho (CV). Oficialmente, a chacina que resultou da operação, com a morte de pelo menos 23 pessoas, foi comandada pelo Bope. No mesmo dia, a entrevista à imprensa para falar da matança na Vila Cruzeiro foi conduzida pelo secretário da Polícia Militar, Luiz Henrique Marinho Pires, e, para todos os efeitos, a PRF teve uma participação lateral. Só que foi o contrário. O Bope atuou como coadjuvante e quem comandou a operação foi a própria PRF. “A tropa de elite da Polícia Rodoviária foi protagonista o tempo todo. O Bope só assumiu a bronca porque a legislação impede essa liderança da PRF”, disse à piauí uma fonte que participou da operação policial.

A liderança da PRF afronta o Ministério da Justiça que, em janeiro de 2021, determinou que a corporação poderia apenas “prestar apoio logístico” a outras polícias nesse tipo de operação. Nos primeiros dias de maio, a Polícia Federal soube que havia líderes do CV do Pará escondidos na Vila Cruzeiro, entre eles Marlon da Silva Costa, o Déo, suspeito de participar de ataques a policiais paraenses. Embora o caso não tivesse qualquer conexão com as rodovias federais, a PRF foi informada da suspeita e acionou, novamente, o GRR e o COE, cujo chefe, Alexandre Carlos de Souza e Silva, encarregou-se de coordenar a operação na Vila Cruzeiro, com aval do diretor Vasques.

Na noite de 23 de maio, uma segunda-feira, a PRF acompanhou, não se sabe como, uma reunião de integrantes do CV na Vila Cruzeiro na qual ficou decidido que, entre o fim da madrugada e o início da manhã do dia seguinte, o grupo seria reforçado com outros integrantes do CV do vizinho Complexo do Alemão e tentaria tomar duas comunidades da facção rival Terceiro Comando Puro (TCP): Timbau, no Complexo da Maré, e São Carlos, no Estácio.

Como sabiam que, para chegar ao Complexo do Alemão, os criminosos passariam por um pequeno morro coberto de mata nos arredores, 41 policiais do GRR e do COE (dos quais cinco haviam participado da chacina em Varginha), posicionaram-se ali na madrugada do dia 24, com o apoio de dez caminhonetes blindadas. Outros quarenta policiais do Bope estavam na retaguarda. Quando os criminosos do CV entraram na mata, por volta das 4h30, os policiais rodoviários começaram a atirar com seus fuzis M-15 e 7.62. No total, os policiais fizeram 1,4 mil disparos.

Depois de uma manhã inteira de tiroteio, a operação resultou na segunda mais letal da história do Rio. Entre os 23 mortos, havia cinco foragidos da Justiça e uma moradora da comunidade da Chatuba, que morreu atingida por uma bala perdida. Do lado da polícia, houve um perito da Polícia Civil ferido sem gravidade. De novo, há suspeitas de execução. Segundo o laudo do IML, ao qual piauí teve acesso, um dos corpos levou um tiro na nuca. A exemplo do que ocorreu em Varginha, boa parte dos cadáveres foi levada ao Hospital Getúlio Vargas, na Penha.

Ainda naquela terça-feira, dia 24, Bolsonaro elogiou a operação no Twitter. “Parabéns aos guerreiros do Bope e da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que neutralizaram pelo menos vinte marginais ligados ao narcotráfico em confronto, após serem atacados a tiros durante operação contra líderes de facção criminosa”, escreveu, acrescentando em seguida: “A ação contou com apoio da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal.” Na entrevista, o comandante do Bope, Uirá do Nascimento Ferreira, fez questão de responsabilizar o STF pelo fato de criminosos de outros estados se refugiarem no Rio. Isso porque em 2020, em razão da pandemia e da multiplicação de chacinas promovidas pelas forças policiais, o STF restringiu as operações policiais no estado.

O Ministério Público Federal abriu investigação sobre o caso. “Não cabe à PRF fazer uma operação policial em um local longe de estradas federais, como é o caso da Vila Cruzeiro”, afirmou à piauí o procurador Eduardo Santos de Oliveira Benones. Em 8 de junho, a pedido de Benones, a Justiça Federal, em decisão liminar, proibiu a participação da PRF em operações policiais fora das rodovias. Para a juíza Frana Elizabeth Mendes, a PRF tem a reponsabilidade de fazer o patrulhamento ostensivo, fiscalizar e controlar as rodovias federais, “não havendo nenhuma norma que atribua ao aludido órgão o exercício de atividades de polícia judiciária e administrativa fora dos limites estabelecidos na Constituição Federal, quais sejam e repita-se, nas rodovias federais”. A liminar seria cassada dias depois pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Até o fim de julho, a investigação do MPF sobre as mortes não havia sido concluída. Ao contrário do que ocorreu em Varginha, o Instituto Nacional de Criminalística não foi acionado pela Polícia Civil para periciar o local do crime e reconstituir o suposto confronto. Procurado, o delegado Alexandre Herdy Barros Silva, titular da Delegacia de Homicídios da Capital, não quis se pronunciar.

Um dia depois da chacina no Rio de Janeiro, às onze da manhã do dia 25, Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, foi parado por uma equipe de policiais rodoviários porque dirigia uma moto sem capacete na rodovia BR-101, em Umbaúba, no interior de Sergipe. Era a mesma infração que Bolsonaro comete nas suas motociatas diante dos olhos dos homens da PRF. Santos foi revistado, espirraram gás de pimenta no seu rosto, aplicaram um “mata-leão”, jogaram o rapaz na traseira de uma viatura, atiraram uma bomba de gás lacrimogêneo e fecharam a porta. Santos, que fazia tratamento psiquiátrico, morreu em pouco mais de um minuto, no que ficou conhecido como “câmara de gás” da PRF. Em nota divulgada no mesmo dia, a corporação disse que usou “instrumentos de menor potencial ofensivo” para conter Santos e que “o abordado veio a passar mal” na viatura “durante o deslocamento” até a delegacia, sendo “socorrido de imediato”.

Era uma nota inteiramente mentirosa – e mentirosa diante dos olhos do país inteiro, que viu as imagens gravadas por testemunhas. Mesmo assim, a PRF levou quatro dias para mudar o discurso por completo. Em nova nota à imprensa, sem pedir desculpas pelo que dissera antes, afirmou que assistia “com indignação os fatos ocorridos” em Sergipe e que “não compactua” com as medidas adotadas na abordagem, nem com “qualquer afronta aos direitos humanos”. O presidente Bolsonaro levou cinco dias para falar do episódio – e sem qualquer indignação. “Não podemos generalizar tudo o que acontece no nosso Brasil. A PRF faz um trabalho excepcional para todos nós. A Justiça vai decidir esse caso. Tenho certeza que será feita a justiça e todos nós queremos isso aí. Sem exageros e sem pressa por parte da mídia que sempre tem lado, o lado da bandidagem.”

O inquérito da Polícia Federal que investiga o caso não havia sido concluído até o fechamento desta edição da piauí. Os três policiais rodoviários envolvidos na morte por asfixia de Santos também são alvo de uma sindicância da PRF. Recentemente, em reunião com integrantes da 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, responsável pelo controle externo das polícias, o diretor-geral Silvinei Vasques prometeu suspender temporariamente as ações das tropas de elite da PRF, mas sem se comprometer com prazos. (No dia 21 de julho, a PRF emprestou oito caminhonetes blindadas para a PM numa ação no Complexo do Alemão, que terminou em outra chacina: dezoito mortos, entre eles uma moradora que estava dentro do seu carro. Dessa vez, a corporação não participou diretamente do confronto.) Com a bênção de Vasques, Alexandre Silva, o policial rodoviário que coordenou a operação na Vila Cruzeiro e, sozinho, deu 63 tiros naquela manhã, virou superintendente da PRF no Rio de Janeiro em 23 de junho, na véspera do aniversário de um mês da matança. Dias depois, recebeu do Bope o diploma informal de “soldado cruel”, tradicionalmente dado a policiais com dedo leve no gatilho. Procurado pela piauí, ele não quis se pronunciar.

Allan de Abreu - Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)

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DEBATE, RINGUE OU PICADEIRO ?

Cristina Serra, Folha de S.Paulo

A temporada de debates com os candidatos a presidente mal começou e já produziu um dos momentos mais infames da história das campanhas eleitorais no Brasil. Inadmissível a brutalidade com que Bolsonaro reagiu a uma pergunta da jornalista Vera Magalhães sobre vacinas.

Como esse é um dos flancos de maior vulnerabilidade do candidato, ele se descontrolou e mostrou quem verdadeiramente é: um depredador da imprensa, da democracia e dos direitos das mulheres, além de mentiroso serial.

Diante da violência verbal do presidente (também contra a senadora Simone Tebet, do MDB), foi perturbadora a falta de reação do pool de empresas jornalísticas, anfitriãs do encontro televisivo. Bolsonaro deveria ter sido repreendido imediatamente. Mas o roteiro seguiu inalterado, a não ser pela solidariedade à jornalista por parte de alguns candidatos.

Ataques contra jornalistas não podem ser naturalizados. Este foi em rede nacional, ao vivo e a cores, com milhões de brasileiros assistindo. Bolsonaro será convidado para os próximos debates sob o risco de repetir sua verborragia de espelunca e exibir sua personalidade primitiva? Não importa o quanto minta e agrida?

Desde que surgiram, nos EUA, nos anos 1960, debates na TV ganharam a fama de serem decisivos em eleições. É assunto bastante controverso, sobretudo na era digital. No Brasil, tem sido muito difícil definir um formato que traga contribuição substantiva ao eleitor, até porque os próprios candidatos se comportam mal, como no debate da Band.

Ignoraram temas propostos pelos jornalistas e fizeram perguntas aos adversários sem o menor interesse em saber o que pensam. Queriam apenas despejar frases feitas e promessas, muitas delas irrealizáveis, para editar e postar em rede social. Há regras demais e concorrentes em excesso. O conteúdo se perde. Sobram os escorregões, como no caso da fúria de Bolsonaro. O que estamos, como mídia, oferecendo ao eleitor: debate, ringue ou picadeiro?

Cristina Serra

Paraense, jornalista e escritora. É autora de "Tragédia em Mariana - a história do maior desastre ambiental do Brasil". Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense

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MARCA HISTÓRICA

Danielle Brant, Renato Machado, Carolina Moraes, Folha de S.Paulo

Mulheres fazem história com recorde de candidatas à Presidência, mas enfrentam desafios

BRASÍLIA As eleições de 2022 terão participação feminina recorde na disputa pelo Palácio do Planalto, embora as chapas exclusivamente masculinas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com Geraldo Alckmin (PSB), e do atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), com Walter Braga Netto (PL) sejam, por ora, as favoritas.

No primeiro debate presidencial, realizado na noite de domingo (28), a senadora Simone Tebet (MDB), que tem como vice a também senadora Mara Gabrilli (PSDB), foi a mais bem avaliada entre os participantes, de acordo com pesquisa Datafolha realizada com eleitores indecisos. O tema central do evento se tornou o respeito e políticas para as mulheres, depois de Bolsonaro atacar a jornalista Vera Magalhães.

Tanto Tebet e Gabrilli, que transitam por um espectro mais conservador, quanto as esquerdistas Vera Lúcia e Raquel Tremembé, do PSTU, buscam o que seria uma inédita vitória de uma chapa 100% feminina.

As eleições de outubro marcam também o maior número na história brasileira de candidatas ao Planalto: quatro, cifra que sobe para oito com as vices —além de Gabrilli e Tremembé, há Ana Paula Matos, que disputa o pleito com Ciro Gomes (PDT), e Samara Martins, vice na chapa de Léo Péricles (UP).

Haveria ainda uma nona candidata, Fátima Pérola Neggra, que disputaria a Vice-Presidência pelo Pros. O partido, porém, trocou de comando e indicou apoio a Lula. A Justiça Eleitoral ainda dará a palavra final.

Em suas trajetórias, as postulantes relatam desafios, ceticismo e, em alguns casos, fogo amigo.

CONHEÇA AS CANDIDATAS

Vera Lúcia (PSTU), candidata a presidente

Raquel Tremembé (PSTU), candidata a vice

Simone Tebet (MDB), candidata a presidente

Mara Gabrilli (PSDB), candidata a vice

Soraya Thronicke (União Brasil), candidata a presidente

Sofia Manzano (PCB), candidata a presidente

Ana Paula Matos (PDT), candidata a vice

Samara Martins (UP), candidata a vice

VERA LÚCIA (PSTU), CANDIDATA A PRESIDENTE

Militante do PSTU há quase 30 anos, Vera Lúcia, 54, disputou a eleição de 2018 em chapa 100% negra e nordestina –seu vice era o professor Hertz Dias. Ambos receberam 55.762 votos (0,05%).

Nascida em Inajá (PE), é costureira de sapatos e formada em ciências sociais. Em 2004, fundou a Central Sindical e Popular. Antes de entrar no PSTU, militou no PT. Ela critica a possibilidade de o ex-partido voltar ao poder e contesta a chapa de Tebet, a quem chama de defensora dos interesses ruralistas.

"Como pode uma mulher dessas corresponder a necessidades que são nossas? Somos vítimas inclusive da exploração e da opressão da classe que ela representa." Vera Lúcia defende a legalização do aborto.

RAQUEL TREMEMBÉ (PSTU), CANDIDATA A VICE

A pedagoga Raquel, ou Kunã Yporã, nasceu em Vargem Grande (MA). Ela pertence ao povo tremembé, da aldeia de São José de Ribamar, território que, afirma, é afetado por grilagem de terra e exploração ilegal.

Ativista do movimento indígena, Raquel, 39, integra a Articulação da Teia e Povos de Comunidades Tradicionais do Maranhão e a Secretaria Executiva Nacional da Central Sindical e Popular (CSP)-Conlutas.

A vice de Vera Lúcia cita como preocupação a mortalidade infantil e obstétrica, em especial entre indígenas. "Existem questões sanitárias indígenas, mal tem estrutura física. Quando tem um profissional, não é capacitado para essas especificidades. Temos uma diversidade de mais de 274 línguas."

SIMONE TEBET (MDB), CANDIDATA A PRESIDENTE

Tebet, 52, vem de uma família ligada à política. Seu pai, Ramez Tebet, ocupou diversos cargos públicos e foi presidente do Senado. Advogada e professora, foi prefeita, deputada estadual, vice-governadora de MS e senadora, posição na qual se tornou mais conhecida devido às participações na CPI da Covid.

Enfrentou resistência interna, com alas do MDB apoiando outros candidatos e trabalhando para miná-la. Tebet foi líder da bancada feminina do Senado, mas enfrenta questionamentos por sua posição contrária ao aborto. Defende apenas as possibilidades de interrupção de gravidez previstas hoje na legislação.

Uma de suas promessas é montar um ministério com o mesmo número de homens e mulheres.

MARA GABRILLI (PSDB), CANDIDATA A VICE

Gabrilli, 54, tem a vida pública ligada a uma tragédia pessoal: um acidente em 1994 a deixou tetraplégica. Publicitária de formação, tornou-se militante da defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Gabrilli foi secretária municipal, deputada federal e agora está na metade do mandato de senadora.

A princípio, Tasso Jereissati (PSDB-CE) era o favorito para o posto de vice na chapa, mas ele acabou recusando. "Aceitei a missão porque uma chapa com duas mulheres, uma delas com deficiência, tem muita representatividade e demonstra a transformação que queremos para o país", disse Gabrilli.

Em relação ao aborto, a senadora mantém posição semelhante à de sua companheira na disputa pelo Planalto, mas defende uma discussão com olhar também sob o aspecto da saúde pública.

SORAYA THRONICKE (UNIÃO BRASIL), CANDIDATA A PRESIDENTE

Soraya, 49, foi a última candidata a entrar na corrida presidencial. Ela era cotada para ser vice na chapa de Luciano Bivar, mas acabou se tornando o nome da União Brasil após a desistência do dirigente do partido.

Advogada de formação, pertence à onda de políticos que surgiu nos protestos contra a então presidente Dilma Rousseff (PT). Aderiu ao bolsonarismo e acabou eleita senadora por Mato Grosso do Sul.

Agora, concorrendo contra Bolsonaro, afirma que vai manter os mesmos valores conservadores nos costumes e liberais na economia, além da bandeira anticorrupção.

"Nós, mulheres, temos grandes exemplos para nos inspirar e o apoio da grande maioria dos homens conscientes quanto à importância de dividir o espaço com o público feminino para equilibrar o jogo."

Soraya é contra o aborto e alterações na legislação sobre o tema.

SOFIA MANZANO (PCB), CANDIDATA A PRESIDENTE

Filha de pais que estudaram na USP (Universidade de São Paulo) no final dos anos 1960, durante a ditadura militar, a paulistana Sofia Manzano foi criada em um sítio em Santa Isabel (SP) frequentado por ativistas que criticavam o regime de exceção e o capitalismo.

Sofia, 51, não é uma estreante em eleições. Em 2014, ela, que milita no PCB há mais de três décadas, foi vice do correligionário Mauro Iasi no pleito presidencial —a chapa recebeu 52.405 votos (0,05%).

A economista afirma que, com exceção dela e de Vera Lúcia, "as outras candidatas estão muito mais se aproveitando do fato de serem mulheres do que pautando a luta feminista nas eleições".

Sofia defende a legalização do aborto pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

ANA PAULA MATOS (PDT), CANDIDATA A VICE

Nascida em Salvador (BA), a vice de Ciro é conhecida pelo trabalho social e pela devoção à Irmã Dulce, primeira santa brasileira. "Aos 7, servia na igreja. Meu pai era médico, e eu ajudava a entregar remédios e a organizar filas", diz. Em 2020, tornou-se vice de Bruno Reis (União Brasil) na Prefeitura de Salvador.

O programa da chapa propõe medidas para a criação e o respeito a leis que facilitem a inserção feminina no mercado de trabalho e prevê programas de microcrédito específico para mulheres.

Sobre aborto, Ana Paula, 44, diz ser a favor da vida e avalia já haver legislação adequada para o tema. Defende, porém, discussões sobre acesso às políticas públicas de planejamento familiar.

SAMARA MARTINS (UP), CANDIDATA A VICE

Nascida em Minas Gerais e moradora de Natal (RN), Samara começou sua militância no movimento secundarista. A candidata de 35 anos foi diretora de mulheres da UNE (União Nacional dos Estudantes) e concorreu como vereadora por Natal nas eleições de 2020, mas não se elegeu. Ela também é vice-presidente nacional do Unidade Popular e atua em movimentos feministas e de luta por moradia.

"A gente tem debatido a extrema importância do protagonismo das mulheres na política e nos espaços de decisões porque, na prática, são elas que mais sentem as mazelas que a gente denuncia", afirma ela.

A vice de Léo Péricles diz ser central para a candidatura pensar principalmente nas mulheres negras. O programa de governo da chapa defende a descriminalização e a legalização do aborto e fala em acabar com a discriminação e a exploração sexual de mulheres.

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CIRO MENOSPREZA FAVELADOS

Da Folha de S.Paulo

'É um comício para gente preparada. Imagina explicar na favela?', diz Ciro a empresários

O ex-ministro Ciro Gomes (PDT), candidato à Presidência, afirmou nesta quarta-feira (31) ser um "serviço pesado" explicar seu diagnóstico e propostas para a economia do país para moradores de favelas.

A declaração ocorreu durante palestra a empresários na Firjan (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro). Ele fez um comentário após ser parabenizado pela fala de cerca de 45 minutos.

"Na verdade é um comício, né? Um comício para gente preparada. Você imagina eu explicar isso na favela? É um serviço pesado", disse ele.

A campanha de Ciro tem sido voltada justamente para o eleitorado mais pobre, ao propor uma renda mínima de R$ 1.000, maior do que os adversários, a taxação de grandes fortunas e a lei antiganância, para limitar a cobrança de juros em empréstimos.

A aproximação dos mais pobres foi definida como prioridade pelo marqueteiro João Santana, que determinou que a primeira agenda de campanha fosse na periferia de São Paulo. No dia 16, Ciro chegou antes das 8h ao bairro de Guaianases, no extremo leste e um dos locais mais pobres da cidade.

Na agenda, entre pedidos de desculpas por interromper o trânsito no bairro, ele falou sobre seu programa de transferência de renda batizado de Eduardo Suplicy, um dos quadros mais tradicionais do PT em São Paulo, o que incomodou alas petistas. Ciro também anunciou projeto de financiar smartphones em 36 vezes e ampliação de redes wi-fi gratuitas na periferia.

Antes da fala na Firjan, o candidato participou de uma caminhada na rua do Saara, mercado popular do Rio de Janeiro. Ciro estava ao lado do ex-prefeito de Niterói Rodrigo Neves (PDT), candidato ao governo estadual.

Pesquisa Datafolha divulgada na quinta-feira (18) mostra que Ciro mantém 7% —distante de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 47%, e do atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), com 32%. Trata-se do mesmo percentual registrado pelo pedetista no levantamento divulgado no fim de maio.

No Twitter, Ciro afirmou que dizer que ele menosprezou moradores da favela é "muita má-fé".

"Fiz uma palestra na Firjan sobre temas extremamente técnicos —capazes de serem entendidos por poucos— e concluí com uma autocrítica por usar linguagem tão técnica. Daí a dizer que menosprezei moradores das favelas é muita ma-fé", escreveu.

"Aos fatos: a um diretor da Firjan que chamou a palestra de "aula", respondi, brincando, que era "um comício". E completei: "imagine explicar na favela, seria pesado". Usei o termo "gente preparada" no sentido técnico, nunca como menosprezo à sabedoria popular. Que amo e respeito."

O presidenciável também culpou apoiadores de Bolsonaro e Lula por espalhar o que, segundo ele, seria fake news.

"Isso não se dá por acaso. Com medo do nosso crescimento, as máquinas do ódio do petismo e do bolsonarismo destamparam suas usinas de agressões, fake news e manipulações. Assista ao vídeo e tire suas próprias conclusões."

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LADY DI, 25 ANOS SEM A PRINCESA DO POVO

Danika Kirka, Associated Press, via g1

Como a morte de Diana, há 25 anos, chocou o mundo e mudou a realeza britânica

Acima de tudo, houve choque. Essa é a palavra que muitas pessoas usam quando se lembram da morte da Princesa Diana em um acidente de carro, em Paris, há exatos 25 anos.

A mulher que o mundo viu se transformar de uma tímida professora de creche em uma celebridade glamourosa que consolava pacientes com Aids e fez campanha para a remoção de minas terrestres, estava morta aos 36 anos.

"Acho que precisamos nos lembrar que ela era provavelmente a mulher mais conhecida no mundo de língua inglesa, além da própria Rainha Elizabeth II'', aponta o historiador Ed Owens.

"Dada essa enorme personalidade de celebridade que ela desenvolveu, ter isso extinto da noite para o dia, com sua morte em circunstâncias tão trágicas, em uma idade tão jovem, acho que realmente veio como um choque maciço para muitas pessoas", acrescenta.

Foi esse choque que consolidou o legado de Diana como a mulher que trouxe mudanças duradouras à família real britânica, ajudando a preencher a lacuna entre séculos de tradição e uma nova nação multicultural na era da internet.

Primeiro, houve a tristeza do grande público que foi até a casa da princesa no Palácio de Kensington para lamentar a perda. Só isso forçou a realeza a reconhecer que o toque de pessoa comum de Diana tinha se conectado com a população de maneiras que ainda não havia acontecido com a Casa de Windsor.

Essas lições desde então inspiraram outros membros da realeza, incluindo os filhos de Diana, os príncipes William e Harry, a serem mais informais e acessíveis. Um exemplo foi o show que foi a peça central do Jubileu de Platina de Junho celebrando os 70 anos da rainha no trono.

Havia bandas de rock e cantores de ópera, dançarinos e lasers pintando quadros de cães corgi no céu. Mas os maiores aplausos foram para a própria Elizabeth, que apareceu em um curta-metragem para compartilhar um pote de chá com o Paddington Bear, um tesouro nacional dos britânicos. Ela então resolveu um mistério de longa data e revelou o que está dentro de sua famosa bolsa preta: um sanduíche de marmelada — apenas para emergências.

Não era óbvio que Diana seria uma rebelde real quando se casou com o Príncipe Charles.

Membro da família aristocrática Spencer, Diana era conhecida pelos babados, saias elegantes e um cabelo loiro meio de menino quando começou a namorar o futuro rei. Depois de deixar a escola aos 16 anos, ela passou um tempo em um colégio nos Alpes Suíços e trabalhou como babá e professora pré-escolar enquanto morava em Londres.

Mas ela floresceu, tornando-se um ícone de estilo internacional no momento em que caminhou pelo corredor da Catedral de São Paulo, em Londres, envolta em rendas e seguida por um véu de 7,6 metros em 29 de julho de 1981.

A partir desse momento, repórteres e fotógrafos passaram a seguir Diana onde quer que ela fosse. Ela odiava a intrusão, mas rapidamente aprendeu que a mídia também era uma ferramenta que poderia usar para chamar a atenção para uma causa e para mudar as percepções do público.

Esse impacto foi visto mais claramente quando a princesa abriu a primeira ala especializada do Reino Unido para pacientes com Aids em 9 de abril de 1987.

Tais cerimônias de corte de fita fazem parte dos deveres reais. Mas Diana percebeu que havia mais em jogo. Ela estendeu a mão e pegou as mãos de um jovem paciente, demonstrando que o vírus não podia ser transmitido pelo toque. O momento, capturado por fotos e espalhado pelo mundo todo, ajudou a combater o medo, a desinformação e o estigma em torno da epidemia do HIV.

Uma década depois, Diana estava ainda mais experiente na mídia.

Sete meses antes de morrer, ela vestiu uma viseira protetora e um colete à prova de balas e caminhou por um campo minado em Angola para promover o trabalho do Halo Trust, um grupo dedicado a remover minas de antigas zonas de guerra. Quando ela percebeu que alguns fotógrafos não conseguiram a foto, ela se virou e fez de novo.

As imagens chamaram a atenção internacional para a campanha para livrar o mundo dos explosivos que se escondem no subsolo muito depois do fim das guerras. Hoje, um tratado que proíbe minas terrestres está assinado por 164 países.

Mas essa plataforma pública teve um preço.

Seu casamento se desintegrou, com Diana culpando a ligação contínua de Charles com a amante de longa data, Camilla Parker Bowles. A princesa também lutou contra a bulimia e reconheceu tentativas de suicídio, de acordo com "Diana: Sua Verdadeira História — Em Suas Próprias Palavras", publicada em 1992 com base nas fitas que Diana enviou ao autor Andrew Morton.

"Quando comecei minha vida pública, há 12 anos, entendi que a mídia poderia estar interessada no que fiz'', Diana disse em 1993. “Mas eu não estava ciente de como essa atenção se tornaria esmagadora. Nem até que ponto isso afetaria meus deveres públicos e minha vida pessoal, de uma maneira que ficou difícil de suportar."

No final, isso contribuiu para a morte dela.

Em 30 de agosto de 1997, um grupo de paparazzi acampou do lado de fora do Hotel Ritz, em Paris, na esperança de tirar fotos de Diana e do namorado Dodi Fayed, e perseguiu seu carro até o túnel Pont de l'Alma, onde o motorista perdeu o controle e bateu.

Diana morreu em 31 de agosto de 1997.

O mundo lamentou atordoado. Buquês de flores, muitos incluindo notas pessoais, cobriam o terreno do lado de fora do Palácio de Kensington, onde ela morava. Cidadãos chorando ocupavam as ruas fora da Abadia de Westminster durante seu funeral.

A reação do público contrastou com a da família real, que foi criticada por não aparecer rapidamente em público e se recusar a baixar a bandeira do Palácio de Buckingham a meio-mastro.

O luto levou a uma reavaliação profunda de postura entre os membros da Casa de Windsor. Eles começaram a entender melhor por que a morte de Diana havia provocado um espetáculo tão avassalador, disse Sally Bedell Smith, historiadora e autora de "Diana em Busca de Si mesma".

"Acho que seu legado foi algo que a rainha em sua sabedoria usou como inspiração nos primeiros anos após sua morte'', disse Smith sobre grupos focais e estudos que a monarquia usou para compreender o apelo de Diana.

"A rainha era mais propensa a interagir com as pessoas e acho que você vê a informalidade ampliada agora, particularmente com William e Kate", disse a historiadora.

William e sua esposa, Kate, por exemplo, fizeram da melhoria dos serviços de saúde mental um objetivo primário, chegando ao ponto de discutir publicamente suas próprias lutas. Harry também é um campeão para veteranos militares feridos.

A reabilitação da reputação de Charles teve que esperar até que a raiva pública por causa do seu tratamento com Diana começou a desaparecer. Isso está bem encaminhado, ajudado por seu casamento em 2005 com Camilla, que suavizou sua imagem. A rainha no início deste ano disse que esperava que Camilla se tornasse rainha consorte quando Carlos ascender ao trono, tentando curar velhas feridas.

Mas há lições para a monarquia aprender enquanto luta com as consequências do escândalo sobre as ligações do Príncipe Andrew com o pedófilo condenado Jeffrey Epstein. Além disso, há a decisão de Harry e sua esposa, Meghan, de desistir dos deveres reais para viver no sul da Califórnia.

Meghan, uma ex-atriz americana mestiça que cresceu em Los Angeles, disse que se sentia constrangida pela vida no palácio e que um membro da família real até perguntou sobre a possível cor da pele de seu primeiro filho antes dele nascer.

“Este episódio mostra que a realeza ainda não aprendeu totalmente a lição de Diana”, disse Owens, autor de "The Family Firm: Monarchy, Mass Media and the British Public 1932-1953."

"Mais uma vez, não foi criado espaço suficiente'', disse Owens sobre Meghan.

Diana teve suas próprias lutas com o palácio, exibindo suas queixas em uma entrevista à BBC em 1995 que continua a fazer manchetes. A BBC foi forçada a se desculpar no ano passado depois que uma investigação descobriu que o repórter Martin Bashir usou "métodos enganadores" para garantir a entrevista.

O irmão de Diana disse este ano que a entrevista e a forma como foi obtida contribuíram para a morte de Diana, porque a levou a recusar a proteção contínua do palácio após seu divórcio.

Mas suas palavras sobre como ela queria ser vista permanecem firmemente na memória.

"Eu gostaria de ser a rainha do coração das pessoas, no coração das pessoas, mas não me vejo sendo rainha deste país", disse Diana na entrevista. "Eu não acho que muitas pessoas vão querer que eu seja rainha."

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PATRIMONIALISMO ELEITORAL

Editorial O Estado de S.Paulo

Historicamente, as eleições no Brasil estão entre as mais caras do mundo. Agora, conforme apurou o Estadão, os gastos em 2022 devem igualar ou até ultrapassar os de 2014, a disputa mais cara até então, com uma diferença: em 2014 a maior parte foi bancada por empresas; agora, será com dinheiro público.

A boa notícia, por sinalizar o engajamento dos cidadãos, é que as doações de pessoas físicas devem atingir um recorde. A péssima notícia é que os R$ 165 milhões arrecadados nos dez primeiros dias de campanha, que durará 45, são só uma fração irrisória dos R$ 6 bilhões em recursos públicos dos Fundos Eleitoral e Partidário.

Partidos políticos são entidades privadas, que devem ser sustentadas com dinheiro privado doado por seus simpatizantes.

Nos últimos anos houve avanços. Em 2015, a Suprema Corte proibiu a doação de empresas, que, afinal, não votam nem têm direitos políticos. A vinculação das campanhas aos interesses empresariais era uma distorção do processo político e abriu margem a casos vultosos de corrupção.

Mas não se corrige uma distorção com outra. Como mecanismo provisório, até que os partidos reorganizassem seu financiamento, o Fundo Eleitoral, criado em 2017, até poderia ser defensável. Mas desde então ele saltou de R$ 1,7 bilhão, em 2018, para quase R$ 5 bilhões, em 2022. Some-se a isso a escalada do Fundo Partidário, que, entre 1995 e 2018, descontada a inflação, cresceu 9.766%. 

Enquanto o financiamento aos partidos cresce, os investimentos em saúde, educação ou infraestrutura se contraem. Mas, mais do que drenar recursos do Tesouro, o financiamento aos partidos empobrece a representatividade democrática. A subvenção é injusta, por obrigar os cidadãos a custear legendas com as quais não raro discordam, e é corrosiva, por habituar os políticos a aliciar eleitores nas eleições e, depois, lhes darem as costas, entregando-se a administrar feudos controlados por poucos caciques.

Segundo a Transparência Partidária, entre 2008 e 2018, o porcentual de mudança da composição das Executivas Nacionais foi de ínfimos 24%. Não surpreende que o número de filiados esteja em queda.

Para piorar, como disse o diretor da Transparência Brasil, Manoel Galdino, “o Fundo Eleitoral ficou maior sem aumentar a transparência e a fiscalização”, ampliando a margem para candidaturas “laranjas”, gastos fictícios e enriquecimento ilícito.

Tudo isso contribui para a quantidade aberrante de legendas amorfas, que atuam exclusivamente como um balcão de negócios. A credibilidade dos partidos e do Legislativo entre a população diminui, abrindo margem a aventureiros populistas.

É difícil imaginar um mecanismo mais apto a perpetuar a crise de representatividade, que só se aprofundou desde 2013, do que o financiamento público aos partidos. O seu fim é crucial para que as legendas se obriguem a criar conteúdos programáticos aptos a cativar os corações e mentes dos cidadãos. Se, ao contrário, ele continuar a crescer, a distância entre os eleitores e os representantes eleitos também aumentará.

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OS NEGÓCIOS DA FAMÍLIA BOLSONARO

Editorial O Estado de S.Paulo

Em 2018, Jair Bolsonaro elegeu-se prometendo combater a corrupção. Agora, tenta a reeleição com a mesma tática. Coloca-se como o candidato antipetista, cuja missão é impedir a volta da corrupção do PT. De fato, o partido de Lula da Silva tem muito a explicar ao País e, principalmente, a dizer sobre o que fará de diferente para não acontecer de novo tudo o que se viu nas gestões petistas. No entanto, enquanto não esclarecer as muitas questões obscuras envolvendo o patrimônio e as finanças de sua família, Bolsonaro não tem moral para cobrar transparência ou lisura de Lula. É literalmente o roto falando do esfarrapado.

No debate na Band, Bolsonaro chamou Lula de ex-presidiário. O líder petista esteve preso em razão de uma condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no caso do triplex do Guarujá. Lula foi solto depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) considerar que o juiz da primeira instância Sérgio Moro, além de ter atuado de forma parcial no caso, era incompetente para julgar a causa. Encaminhado depois à Justiça Federal de Brasília, o processo foi arquivado em razão do decurso do prazo prescricional.

Ou seja, os benefícios de uma empreiteira, entregues na modalidade de reforma de um imóvel na praia e reconhecidos numa delação, suscitaram a prisão de Lula, prisão esta que Bolsonaro faz questão de relembrar na campanha eleitoral. A ironia – ou a incrível desfaçatez – é que Jair Bolsonaro e sua família não têm problemas apenas com um único imóvel na praia. Levantamento realizado pelo site UOL, a partir de dados públicos, revelou que, desde os anos 90, o presidente, seus irmãos e seus filhos negociaram nada menos que 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram adquiridos total ou parcialmente com uso de dinheiro vivo. Em valores corrigidos pelo IPCA, o montante pago em dinheiro vivo equivale a R$ 25,6 milhões.

Não é crime comprar imóveis usando dinheiro vivo, mas é muito estranho esse peculiar padrão de comportamento ao longo de tanto tempo, envolvendo quantias tão grandes. Além disso, há duas circunstâncias agravantes. Durante o período, Jair Bolsonaro sempre ocupou cargos políticos, recebendo seu salário em conta bancária. A princípio, não havia por que movimentar tanto dinheiro vivo.

Em segundo lugar, existem fundadas suspeitas de que, nos gabinetes parlamentares de Jair Bolsonaro e de seus filhos, foi corrente a prática da “rachadinha”, um sistema de apropriação pelo parlamentar dos salários de seus assessores. Revelado pelo Estadão, o assunto veio à tona depois das eleições de 2018, quando o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro investigava Flávio Bolsonaro por condutas suspeitas em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Um dos principais investigados era Fabrício Queiroz, amigo de Jair Bolsonaro e homem de confiança da família. Em 2020, Flávio foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Depois de muitas idas e vindas processuais – o filho mais velho do presidente obteve o foro privilegiado no caso –, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro rejeitou a denúncia.

Ao longo desses anos, as suspeitas de rachadinha e lavagem de dinheiro envolvendo a família Bolsonaro só ganharam novos indícios, em especial dois fatos: os cheques de Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro e a movimentação atípica de dinheiro vivo na loja de chocolate de Flávio no Rio de Janeiro. No entanto, Jair Bolsonaro nunca explicou essas suspeitas. Sempre que questionado, respondeu agredindo, ironizando ou simplesmente encerrando a entrevista.

Não é possível que, neste ano, Jair Bolsonaro peça o voto do eleitor falando em combate à corrupção do PT sem antes explicar essa combinação de dinheiro vivo na compra de imóveis, movimentações bancárias suspeitas e indícios de rachadinha nos gabinetes parlamentares. Não basta imitar Lula e dizer que a Justiça encerrou o processo contra seu filho ou se dizer perseguido pela imprensa que o questiona. É preciso explicar de onde veio tanto dinheiro vivo para comprar os numerosos imóveis da família.

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BOLSONARO E A RELIGIÃO

Frei Betto, Folha de S.Paulo

Escritor e assessor de movimentos populares, é autor de “Tom Vermelho do Verde” (Rocco), romance sobre devastação da Amazônia e massacres de indígenas

O segundo mandamento da lei de Deus, conhecida como decálogo, é "Não usar o santo nome de Deus em vão". E, no entanto, nunca se viu um presidente da República evocar tanto o nome de Deus como o atual ocupante do Planalto.

Alguém poderia objetar: que mal há em evocar o santo nome? Nenhum, se a pessoa se esforça por viver os valores ensinados pela Bíblia, considerada por nós, cristãos, a palavra de Deus. Não é o caso do Inominável. Enquanto Jesus propõe "Amai-vos uns aos outros", ele insiste em estimular a prática de "armai-vos uns aos outros". Ou "Pátria armada, Brasil".

A manipulação política do nome de Deus é velha como o cachimbo de Adão. Já no século 4 o imperador Constantino, ao perceber que a perseguição aos cristãos, movida pelo Império Romano, tornava seu governo cada vez mais impopular, se declarou convertido à fé cristã, cessou a repressão e deu aos bispos o status de príncipes. Pura cooptação da igreja para impedir que o império desabasse. E a prova de que sua suposta conversão consistia em golpe político é que só se deixou batizar ao se encontrar no leito de morte. Com certeza por via das dúvidas, por temer as penas do inferno...

Jair Bolsonaro (PL), na infância, foi batizado na Igreja Católica. Adulto, se fez batizar, na Judeia, pela igreja evangélica. Como se o sacramento do batismo admitisse segunda edição... Mero jogo político ao perceber o crescimento dos evangélicos no eleitorado brasileiro. E como considerar discípulo de Jesus um homem que é devoto do coronel Brilhante Ustra, um dos mais cruéis torturadores da ditadura militar?

Bolsonaro se arvora em defensor da família. Sim, gosta tanto de família que já está na terceira, após dois casamentos desfeitos. E, em janeiro de 2018, questionado pela mídia por que, como deputado federal, recebia auxílio-moradia se possuía imóvel próprio em Brasília, não teve o menor pudor em responder: "Como eu estava solteiro naquela época, esse dinheiro de auxílio-moradia eu usava para comer gente".

O eleitor precisa estar atento ao fato de Jesus, no Evangelho, em especial no capítulo 23 de Mateus, criticar duramente não os ateus ou praticantes de outras religiões, mas os religiosos aproveitadores e corruptos de sua própria religião, o judaísmo. Tratou-os como "raça de víboras", "sepulcros caiados", "guias cegos", "hipócritas". Denunciou-os: "Não imitem suas ações, pois falam e não praticam. Amarram pesados fardos e os colocam nos ombros dos outros, mas eles próprios não estão dispostos a movê-los nem sequer com um dedo" (3-4).

Isso faz lembrar padres e pastores que falam mais do diabo que de Deus, ameaçam os fiéis com as penas do inferno, inflam nas pessoas os sentimentos de culpa, enquanto recolhem o dinheiro sofrido dos pobres para viverem como marajás. Por isso, estão dispostos a apoiar o governo que assegura seus privilégios, não cobra impostos das igrejas e concede a elas sistemas de rádio e televisão.

Perguntado a que veio, Jesus respondeu: "Vim para que todos tenham vida e vida em abundância" (João 10,10). Ora, será que pode ser considerado seguidor de Jesus um governante que nada faz para impedir a mortandade de quase 700 mil pessoas por Covid e ainda receita medicamentos condenados pela ciência; libera a importação e o comércio de armas, para alegria dos bandidos; arranca recursos da saúde e da educação para abastecer orçamentos secretos; ignora as vidas dos indígenas; e faz piada de mau gosto a respeito dos quilombolas, como se fossem porcos pesados em arrobas?

Esta não é uma eleição entre o bem e o mal. É, sim, entre a morte e a vida. Você, eleitor cristão, escolhe. Mas tenha presente o que disse Jesus: "Ele não é o Deus de mortos, e sim de vivos" (Mateus 22,32).

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terça-feira, 30 de agosto de 2022

DINHEIRO VIVO

Thiago Herdy, Juliana Dal Piva, UOL e Folha de S.Paulo

Metade do patrimônio do clã Bolsonaro foi comprada em dinheiro vivo

UOL Quase metade do patrimônio em imóveis do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) e de seus familiares mais próximos foi construída nas últimas três décadas com uso de dinheiro em espécie, de acordo com levantamento patrimonial realizado pelo UOL.

Desde os anos 1990 até os dias atuais, o presidente, irmãos e filhos negociaram 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram adquiridos total ou parcialmente com uso de dinheiro vivo, segundo declaração dos próprios integrantes do clã.

As compras registradas nos cartórios com o modo de pagamento "em moeda corrente nacional", expressão padronizada para repasses em espécie, totalizaram R$ 13,5 milhões. Em valores corrigidos pelo IPCA, este montante equivale, nos dias atuais, a R$ 25,6 milhões.

Não é possível saber a forma de pagamento de 26 imóveis, que somaram pagamentos de R$ 986 mil (ou R$ 1,99 milhão em valores corrigidos) porque esta informação não consta nos documentos de compra e venda. Transações por meio de cheque ou transferência bancária envolveram 30 imóveis, totalizando R$ 13,4 milhões (ou R$ 17,9 milhões corrigidos pelo IPCA).

Ao menos 25 deles foram comprados em situações que suscitaram investigações do Ministério Público do Rio e do Distrito Federal.

Neste grupo, estão aquisições e vendas feitas pelo núcleo do presidente, seus filhos e suas ex-mulheres não necessariamente com o uso de dinheiro vivo, mas que se tornaram objeto de apurações como, por exemplo, no caso das "rachadinhas" (apropriação ilegal de salários de funcionários de gabinetes).

Por meio de sua assessoria, o UOL perguntou ao presidente Bolsonaro qual a razão da preferência da família pelas transações em dinheiro, mas ele não se manifestou.

O levantamento considera o patrimônio construído no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília pelo presidente, seus três filhos mais velhos, mãe, cinco irmãos e duas ex-mulheres.

Nos últimos sete meses, a reportagem consultou 1.105 páginas de 270 documentos requeridos a cartórios de imóveis e registros de escritura em 16 municípios, 14 deles no estado de São Paulo. Percorreu pessoalmente 12 cidades para checar endereços e a destinação dada aos imóveis, além de consultar processos judiciais.

Até a mãe de Bolsonaro, Olinda, falecida em janeiro deste ano, aos 94 anos, teve os dois únicos imóveis adquiridos em seu nome quitados em espécie, em 2008 e 2009, em Miracatu, no interior de São Paulo. Entre os imóveis comprados com dinheiro vivo pela família, estão lojas, terrenos e casas diversas.

Atualmente o Senado Federal discute projeto de lei que sugere a proibição do uso de dinheiro em espécie para transações imobiliárias, como forma de prevenir operações de lavagem de dinheiro ou ocultação de patrimônio.

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MORRE MIKHAIL GORBACHEV

Do g1

Mikhail Gorbachev, o último líder da União Soviética e o político que encerrou a Guerra Fria sem violência, morreu aos 91 anos, informaram agências de notícias russas nesta terça-feira (30).

“Mikhail Sergeevich Gorbachev morreu esta noite após uma doença grave e prolongada”, informou o Hospital Clínico Central da Academia Russa de Ciências.

Nos países ocidentais, Gorbachev é amplamente conhecido como o homem que acabou com a Guerra Fria, a disputa entre os blocos capitalista, liderado pelos EUA, e comunista, encabeçado pela URSS, mas muitos russos o acusavam de ter iniciado ousadas reformas de aberturas no estado que levaram ao colapso soviético.

Em 1990, o ex-líder ganhou o Prêmio Nobel da Paz.

Ele será enterrado no cemitério Novodevichy, em Moscou, em um túmulo familiar ao lado de sua esposa. De acordo com o portal local Mash, na véspera de sua morte, Gorbachev foi ao hospital para fazer hemodiálise.

Leia também: Como foram as últimas 24 horas da União Soviética

Veja FOTOS de Gorbachev

Veja VÍDEOS da trajetória do líder

Um dos críticos mais contundentes do atual presidente Vladimir Putin, ele concorreu na eleição presidencial em 1996, mas se saiu muito mal.

O atual presidente da Rússia expressou seus pêsames pela morte de Gorbachev, segundo informações de um porta-voz do governo russo à agência Interfax.

Gorbachev lançou um livro de memórias em novembro de 2012 e lamentou na ocasião não ter levado a União Soviética a um “bom porto”.

Vida

Mikhail Sergeyevich Gorbachev nasceu em 2 de março de 1931 em Stravropol, na Rússia, filho de uma família de imigrantes russo-ucranianos.

Arquivo JN: fim da União Soviética e o golpe que derrubou Gorbachev

Ele perdeu duas irmãs e um tio durante um período de fome no país em 1933. Seus pais eram agricultores e ele ajudou-os no sustento durante a adolescência.

Gorbachev se formou em direito na Universidade de Moscou em 1955 e estendeu a formação acadêmica em 1967, quando completou curso de economia agrícola por meio de um curso por correspondência.

Na universidade, Gorbachev conheceu Raisa Titarenko, com quem se casou em 1953. Raisa morreu em 1999 em decorrência de leucemia. Os dois tiveram a filha Irina Mikhailovna Virganskaya em 1957.

Trajetória política

Durante o período na Universidade de Moscou, ingressou no Partido Comunista e se tornou membro ativo da legenda, escalando cargos mesmo jovem. Foi nomeado chefe de departamento em 1963 e, em 1970, chegou ao cargo de primeiro-secretário do Stavropol Kraikom.

Gorbachev entrou no comitê central do Partido Comunista em 1971. Ele continuou a ascensão política e, em 1979, foi promovido ao Politburo, maior autoridade da União Soviética.

Ele viajava constantemente pelo mundo, e na década de 1980 se encontrou com líderes como a premiê britânica Margaret Thatcher, o premiê canadense Pierre Trudeau e o presidente americano Ronald Reagan.

Em 1985, após a morte de Konstantin Chernenko, Gorbachev foi eleito Secretário-Geral do Politburo, mesmo sendo o mais jovem da organização.

Liderança da União Soviética

No ano seguinte, Gorbachev anunciou uma série de reformas que visavam revitalizar a União Soviética. Perestroika (reestruturação) e glasnost (abertura) são algumas das medidas que acarretaram em maior abertura política e econômica do estado soviético.

Com a reorganização que incluiu um novo Congresso, a União Soviética teve em 1989 as primeiras eleições desde 1917. Gorbachev foi eleito presidente e tomou posse em 1990, ano da queda do muro de Berlim.

No mesmo ano, recebeu o Novel da Paz por “seu papel no processo de paz que hoje caracteriza partes importantes da comunidade internacional”, segundo disse a entidade na ocasião. Ele presidia a Fundação Gorbachev, dedicada a programas de caridade e à educação.

Durante seu governo, Gorbachev promoveu uma relação mais próxima com o Ocidente e, em uma série de encontros de alto nível, se reuniu com o então presidente norte-americano Ronald Reagan. Os dois acertaram acordos de desarmamento nuclear.

Em agosto de 1991, a ala dura do Partido Comunista promoveu um golpe dentro da própria legenda. Ele foi mantido refém por três dias e, ao ser libertado, se demitiu e dissolveu todos os partidos do governo - o que, na prática, acabou com o regime comunista da União Soviética.

Em 8 de dezembro, em Minsk, os presidentes de Bielo-Rússia, Rússia e Ucrânia declaravam a dissolução da União Soviética e, no dia 25, Gorbachev deixava o cargo.

Seu rival Boris Yeltsin tornou-se presidente, e nações que compunham a União iniciaram o processo para ficar independente, começando pela Ucrânia.

Após a União Soviética

Gorbachev tentou voltar para a política, mas não conseguiu resultados expressivos. Ele concorreu à eleição presidencial em 1996, mas se saiu muito mal.

Desde 1993, presidia a organização ecológica Cruz Verde Internacional e fazia, de maneira regular, conferências pelo mundo.

Em março de 2012, ele propôs relançar seu partido social democrata na esperança de unir os grupos de esquerda que se opõem a Vladimir Putin.

A legenda causou pouco impacto na formação anterior, quando não conseguiu obter nenhum assento na câmara baixa do Parlamento, antes de ser dissolvido em 2007.

Duas décadas após o colapso da União, em entrevista a agência de notícias BBC, Gorbachev disse que a Rússia ainda está na “metade do caminho” para a democracia e sugeriu que a perestroika e a glasnost não estariam completos.

“Ainda temos cinco ou seis anos à frente para fazer essa modernização de forma significativa. Isso deve envolver não só a nossa economia, mas tudo, incluindo a nossa vida política, vida cultural, educação, tudo. O país deve ser diferente”, disse, em 2011.

Problemas de saúde

Devido a problemas de saúde, ele já não pôde comparecer ao enterro da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, em abril de 2013.

Aos 75 anos, ele foi submetido a uma cirurgia na carótida em uma clínica de Munique, na Alemanha.

Em 2011, Gorbachev comemorou os seus 80 anos com uma noite de gala em Londres, no sofisticado Royal Albert Hall, com a presença de políticos, estrelas do mundo pop e cantores de ópera. A festa arrecadou verbas para o combate ao câncer.

Em agosto de 2013, hackers atacaram a versão em alemão da conta no Twitter da agência pública de notícias Ria Novosti e a de seu serviço de imprensa, nas quais publicaram mensagens falsas que anunciavam a morte de Gorbachev em um café de Ekaterinburgo.

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ESTABLISHMENT QUER LULA DOMESTICADO

Helena Chagas, OS DIVERGENTES

Candidatos com 2% nas pesquisas não são alvo de ninguém, e daí a lógica de Simone Tebet – uma senadora articulada – ter, em tese, “ganhado” o debate Band-TVCultura. Pela mesma razão, Ciro Gomes (7%), talvez o mais experiente frequentador de debates da política brasileira nos últimos anos,  também foi pouco atacado e saiu-se bem. Num quadro em que Lula lidera com 12 pontos de vantagem sobre Jair Bolsonaro (44% x 32%), segundo o IPEC, e ambos estão muito à frente dos demais, não parece haver possibilidade de qualquer mexida da chamada terceira via alterar o quadro da eleição.

A boa performance de Tebet e Ciro no debate, e sua oscilação positiva nas pesquisas, porém, provocou uma inaudita onda de entusiasmo no establishment, inclusive em setores da mídia. É como se sua modesta ascensão, que teria que se multiplicar muitas vezes em quatro semanas, tivesse o potencial de mudar alguma coisa.

Na prática, o que os setores das elites e da mídia vêem é a possibilidade de um eventual crescimento de Ciro e/ou Tebet, ainda que pequeno, tirar de vez de Lula a possibilidade de vitória no primeiro turno – hoje possível por décimos de pontos na margem de erro, que dão dão qualquer segurança ao petista.

Mas por que o establishment quer segundo turno? Porque não quer um Lula poderoso demais, com a força de uma vitória acachapante na primeira rodada, mais livre, leve e solto para governar. Claro, teve e terá que fazer concessões ao centro e à direita, mas se levar a taça em 2 de outubro, com o apoio maciço da sociedade, chegará mais forte ao Planalto.

Situação diferente será a de uma vitória em segundo turno, sempre mais sofrida, em que o candidato é obrigado a ampliar as alianças – inclusive e, sobretudo, com esses setores mais conservadores. Se levar um calor para ganhar de Bolsonaro, Lula pode ter que levar seu discurso mais ao centro ainda, fazendo concessões e adotando propostas de representantes do mercado e do empresariado.

O establishment sabe que Lula vai acabar ganhando mesmo a eleição, mas prefere que seja num segundo turno, domesticado.

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O GRITO DE GUERRA DE BOLSONARO

Carlos José Marques, ISTOÉ

Eu julgo, eu decido se as eleições valeram ou não e resolvo se aceito o resultado. Basicamente assim estabelece a cartilha do capitão Bolsonaro, que a repisou na já antológica entrevista de mentiras no JN da Globo. Na prática, a questão de fundo é: quantas insurgências mais serão toleradas, quantas demarcações de limites democráticos serão atravessados e leis infringidas, no arreganho de desaforos ao sistema eleitoral brasileiro, até a data esperada do sufrágio a 2 de outubro? O período de espera pelas urnas parece uma eternidade na pororoca de episódios rocambolescos que marcam aquela que será talvez a mais dramática das disputas. 

Bolsonaro é o intendente de uma guerra anunciada. Fabricou, arquiteta a estratégia e convoca exércitos de milicianos, fiéis seguidores e alguns poucos militares inebriados pela sede de poder brasiliense para a batalha de uma vida — a de sua própria e de mais ninguém. O bloco dos que aderem parece formado por um contingente suficiente para a algazarra prenunciada e milimetricamente planejada. No passado, um dos rebentos do capitão chegou a proclamar aos quatro ventos que papai-pode-tudo conseguiria fechar o STF com apenas um cabo e um soldado. Tem mais gente nas fileiras da infantaria de agora. 

Inclusive empresários – de peso, quem diria! – que não tiveram o menor pudor de se exibirem nas redes sociais pregando o recurso de um golpismo bananeiro. Falaram em financiar. Marcaram data e motivo — esse definido como a eventualidade do demiurgo de Garanhuns, Lula, sagrar-se vitorioso na escolha do povo. Eles não permitirão, dizem. Não aceitam. Preferem o golpe. Revoltam-se contra a mera ideia de a maioria estabelecer vontades. Como assim? Por aqui, devem imaginar, ainda prevalece o conceito dos regimes feudais, onde o senhor das terras decreta aos habitantes do povoado as escolhas a serem feitas. Mal reformulada é a mesma sina revisitada dos tempos escravocratas da Casa Grande & Senzala e, desde lá, o Brasil ainda peleja para se livrar da aberração social que criou. 

Está evidente nos dias de hoje. Tem ministro que reclama até quando empregadas domésticas ousam ir à Disney acompanhando patrões. Onde já se viu? De parte da Justiça, há de se dizer, alguma resposta vem sendo ensaiada para lembrar aos tais sicários da elite que os dias em que vivemos são outros. Aqueles que nas redes sociais defenderam a ruptura institucional, via artifício da deposição de um candidato eleito que não fosse o deles, viram-se devidamente brindados com operações de busca e apreensão nos respectivos endereços domiciliares.

Tiveram os sigilos quebrados, contas bloqueadas e redes sociais investigadas. Parece pouco, mas já serviu de aviso. O dublê de Zé Carioca, varejista e animador eventual da torcida do capitão, Luciano Hang, resolveu reclamar por ter sido tratado como bandido. Talvez não tenha percebido, por falta de conhecimento ou de interesse mesmo, que macular os artigos da Carta Magna com tais conspirações é crime basilar. No altar do motim abortado, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, ensaiando mais um gesto de fidelidade figadal ao capitão, irritou-se com o episódio que encurralou empresários – ficou “indignado”, trataram de apontar assessores – e partiu para a habitual defesa fora das quatro linhas das atribuições que lhe cabem. 

Na escalada de radicalismo em curso, o Brasil se prepara no momento para a usurpação das comemorações do Sete de Setembro, numa captura tão indevida como afrontosa da data cívica e de seus símbolos, orgulhos nacionais, para meras anarquias. Bolsonaro quer mobilizações caudalosas, protestos para demonstrar uma suposta insatisfação geral dos brasileiros com o equilíbrio dos poderes. Espécie de ímpeto liberticida, um anseio que seria generalizado pelo ataque às instituições. Nada mais falacioso. Cercado por fanáticos arrivistas, que se contam aos pingados, o “mito” Messias imagina-se, quem sabe, o imperador da era moderna montado em um alazão a bradar nova independência, 200 anos depois de o País ter se livrado do jugo português e, por ocasião do movimento, restando cerca de 30 dias para o veredicto dos eleitores. 

Patética pantomima. Bolsonaro representa na verdade um rasgo de incongruências e atrasos na trajetória republicana brasileira. Implodiu com o que há de valores morais e convoca a turba ao caos, pregando uma ditadura sob seu comando. Ele só pensa nos interesses pessoais mais recônditos quando tenta liderar um quase motim institucional. Não existe o “nós contra eles”. Apenas a sanha irrefreável de um caudilho psicopata buscando reinar de modo absolutista.

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