sábado, 29 de fevereiro de 2020

A PEQUENEZ DA PRESIDÊNCIA

Editorial O Estado de S.Paulo
Um presidente que precisa conclamar diretamente – e em tom épico – atos públicos para demonstrar a sua força talvez não seja tão forte assim, ou ao menos não o quanto imagina ser. É fato que Jair Bolsonaro não conta mais com a ampla rede de apoio que alçou um então inexpressivo deputado à Presidência da República em 2018. Ao longo do ano passado e no início deste ano foram realizadas pesquisas de opinião por diferentes institutos que atestam que o presidente não corresponde mais aos anseios de uma expressiva parcela de brasileiros que confiaram nas promessas do então candidato e, principalmente, viram em Jair Bolsonaro um anteparo à mão para interromper o ciclo de desmandos do PT.
A cisão pode ser observada mesmo em grupos antes mais ligados ao presidente. Como revelou o Estado, as lideranças desses grupos não se entendem sobre a pauta a ser levada às ruas no próximo dia 15. De um lado, estão os bolsonaristas “puros”, ou seja, os que defendem a pessoa de Jair Bolsonaro, o “mito”. De outro, os lavajatistas, que em 2018 viram em Bolsonaro o candidato certo para levar adiante a pauta do combate à corrupção. Ambos os grupos estiveram juntos na eleição, mas hoje divergem quanto à natureza do apoio que dão ao governo federal. A arena dessa contenda são as redes sociais.
Integrantes da “República de Curitiba”, grupo de apoio à Lava Jato, têm sido acusados por membros do “Movimento Conservador” de “sabotar” a pauta dos atos marcados para o dia 15, incluindo na agenda a defesa de temas que não estão diretamente ligados à defesa incondicional do presidente Jair Bolsonaro, como a prisão após condenação em segunda instância. Movimentos como o Vem pra Rua e o Movimento Brasil Livre (MBL), bastante ativos no impeachment de Dilma Rousseff e nas manifestações que, ao fim e ao cabo, serviram para galvanizar a candidatura de Bolsonaro à Presidência da República, nem sequer participarão dos atos, embora defendam as propostas caras ao ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, e à Lava Jato.
Evidentemente, não se pode antever o resultado das manifestações em prol do presidente Jair Bolsonaro, tampouco o dos atos contrários, marcados por grupos de oposição para o próximo dia 18. Talvez o apoio popular ao presidente não seja mais o mesmo, e por isso ele sinta necessidade de se envolver direta e pessoalmente na convocação da manifestação do dia 15, afrontando a Constituição e o Congresso Nacional. Outra mostra eloquente do esvaziamento da palavra do presidente da República – e de sua força como chefe do Poder Executivo – foi a manifestação de governadores de ao menos seis Estados indicando que iriam estudar solução jurídica para enviar ao Ceará policiais militares sob seus comandos caso o presidente Jair Bolsonaro não prorrogasse a Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Estado nordestino.
Bolsonaro indicou que não o faria durante um de seus pronunciamentos semanais nas redes sociais. Como se sabe, o Ceará está desprotegido desde que um grupo de policiais militares decidiu se amotinar, há cerca de duas semanas. Seria absolutamente temerário não prorrogar a GLO, deixando a população local à mercê dos bandidos, fardados ou não. Confrontado pela reação dos governadores, Jair Bolsonaro decidiu prorrogar a operação, que venceu ontem, por uma semana. Por seus desatinos, por sua predileção pelas redes sociais, que não raro turvam a visão que um mandatário tem sobre a realidade, por suas injúrias e grosserias, pouco a pouco, Jair Bolsonaro tem apequenado não só sua voz de comando, mas a própria Presidência da República.
Parece agir como se tivesse ciência de sua inaptidão para exercer o elevado cargo que ocupa e, assim, não vê alternativa a não ser rebaixar a própria instituição para nela caber. Não surpreende o protagonismo que o Congresso Nacional passou a ter desde a posse presidencial. Isso explica – mas absolutamente não justifica – a hostilidade com que o governo e seus grupos de apoio tratam o Poder Legislativo.
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UM PAÍS QUE PRECISA DE MEMÓRIA

Ascânio Seleme, O GLOBO
Não basta ter ódio e nojo da ditadura, como expressou Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição, em 1988. É preciso ter presente na memória coletiva os males que um regime totalitário, intransigente e macabro gera nas pessoas, nas famílias, nas coletividades, nos bairros, nas cidades e nas nações. É preciso que os mais jovens, os que não viveram sob a ditadura, tenham por ela o mesmo ódio e o mesmo nojo. É preciso que a memória seja viva e tangível. Que se possa tocar nas feridas para saber como elas doem.
No Brasil, parcela importante da população não consegue enxergar o passado porque é pequena a exposição de quem foram e o que fizeram os facínoras que, em nome dos ditadores, perseguiam, prendiam ilegalmente, sequestravam, torturavam, matavam e faziam desaparecer pessoas. Sem isso na cabeça, manifestantes pró-Bolsonaro vão para as ruas e pedem a volta da ditadura. Como farão no próximo dia 15. Desprezam os Poderes Legislativo e Judiciário e acreditam que a mão armada de fuzil e porrete é capaz de colocar ordem na casa.
A História prova o contrário. Além das barbaridades que cometem, e no Brasil não foi diferente, regimes autoritários erram muito mais justamente por não admitirem o contraditório, não se abrirem para o pluralismo de ideias e inovações que verdadeiramente mudam as coisas para melhor. Fora alguns bons livros e documentos históricos importantes como o “Brasil: Nunca Mais”, organizado por Dom Paulo Evaristo Arns, pouco resta para escancarar para as pessoas o que foi a ditadura brasileira.
O Memorial da Resistência de São Paulo, inaugurado em janeiro de 2009, é o único museu brasileiro que mostra como se operava a violência do Estado contra seus cidadãos. Ele está instalado numa parte do prédio em que funcionou o antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), principal centro de tortura do estado, e que hoje também abriga a Pinacoteca. Situado no Parque da Luz, em pleno coração de São Paulo, o temido e famigerado Dops operou barbaridades desde a instalação da ditadura brasileira, em abril de 1964, até a sua extinção, em março de 1983.
Em 2015, a Argentina abriu um museu para expor de maneira organizada e de modo permanente como foi brutal e sanguinária a sua ditadura militar. O Museu Sítio de Memória foi montado no Casino de Oficiales de la Escuela de Mecánica de la Armada (Esma), mesmo local onde funcionou por anos o maior centro clandestino de detenção, tortura e extermínio de inimigos políticos do regime. Naquele conjunto militar plantado dentro de Buenos Aires, a 20 minutos de Palermo, mais de 5 mil argentinos foram brutalizados. A maioria morreu ou desapareceu.
Esses museus são mobilizadores e deveriam ser abertos em todas as cidades, em todos os quartéis e delegacias onde cidadãos foram detidos ilegalmente pelo aparelho do Estado, torturados e assassinados. Apalpar a História, tê-la sempre próxima, este é o melhor caminho para não se esquecer das atrocidades que nossos irmãos mais velhos sofreram enquanto a Justiça e o Legislativo permaneciam amordaçados ou fechados. Se você conhecer alguém que está pensando em vestir a camisa da seleção e ir a Copacabana no dia 15, tente fazê-lo antes imaginar como estarão seus filhos e seus netos no futuro se de fato sua mobilização conseguir fechar os parlamentos e os tribunais brasileiros.
Entre sem bater
No Palácio de Bolsonaro, apenas o general Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, não bate na porta do presidente antes de entrar. Outro oficial tem trânsito livre e acesso permanente ao terceiro andar. É o general Ramos, chefe da Casa Civil, mas esse precisa ser anunciado. O primeiro mandou um “foda-se” ao Congresso por mexer no Orçamento da União. O segundo negocia com parlamentares as emendas que atendem demandas das suas bases eleitorais. Faz todo sentido.
Faltou dizer
Os que vão se manifestar no dia 15 contra o Legislativo dizem que Câmara e Senado gastam muito e que os parlamentares têm assessores demais. Esta razão é vazia. Primeiro, porque mesmo que custe caro, o Legislativo é fundamental para a vida democrática. Depois, os assessores parlamentares teoricamente têm que trabalhar, produzir ideias e projetos para os seus chefes. E é o que a maioria de fato faz. Vai ver como operam os técnicos do gabinete do senador José Serra (PSDB-SP). Os que não fazem isso são os “aspones” de deputados e senadores do baixo clero. Aqueles que se prestam a esquemas de rachadinha porque não trabalham mesmo. A família do presidente conhece muito bem esse esquema.
De quem é a culpa?
Dez em cada dez brasileiros que defendem o fechamento do Congresso dizem que é hora “de acabar com a roubalheira dos políticos profissionais”. Resultado da desilusão causada pelos governos petistas. A esperança que um dia a nação depositou em Lula e sua turma deu sinais de fogo com o mensalão e virou fumaça com a Lava-Jato. E, até hoje, nenhum sinal de arrependimento, nenhuma autocrítica.
Ministro sem comando
Ao dizer que o dólar pularia para R$ 7 se deixasse o governo, o ministro Paulo Guedes revelou o que todos já sabiam, ele não confia em Bolsonaro. Numa democracia com o governo no controle da situação, o lastro é o presidente, não o seu ministro da Fazenda. Mas Guedes sabe que o Tumultuador da República só faz isso mesmo, atrapalhar e tumultuar o ambiente político e econômico. Mas a frase do ministro acabou revelando também que nem ele tem o comando da economia. Se tivesse, sua ausência seria bem assimilada pelo mercado, já que os fundamentos estariam sob controle.
Cheiro de Couro
Márcia, filha do ex-presidente Juscelino Kubitscheck, lembrava sempre do cheiro gostoso que sentia quando entrava na biblioteca do Palácio do Planalto.
Tinha um aroma que emanava das capas de couro que revestiam os livros e que seduzia o olfato da menina.
Márcia, que foi deputada e vice-governadora do Distrito Federal, morreu no ano 2000. Não viu, portanto, o desmonte da biblioteca que vai abrigar um gabinete para a primeira-dama Michelle Bolsonaro.
A maldição do Cocar
Diante da polêmica do uso de fantasias de índio no carnaval, o ex-ministro do Planejamento do governo Itamar Franco, Alexis Stepanenko, escreveu para esta coluna.
Contou que foi do ex-presidente José Sarney que ouviu pela primeira vez a história da maldição do cocar.
Supersticioso como poucos, Sarney explicou a Stepanenko por que o cocar poderia trazer azar a quem o usasse.
“Ministro, o senhor já imaginou a dor dos pássaros ao arrancarem suas penas? Esta dor se transforma numa danação a quem colocar o cocar na cabeça, ainda mais se for branco”.
Jacaré no Paranoá
Por se tratar de José Sarney, um bom contador de casos, Stepanenko aproveitou e emendou com mais uma do velho maranhense.
Sarney um dia descobriu que o senador Jarbas Passarinho, morador do mesmo prédio funcional em Brasília, mantinha um jacaré empalhado em seu apartamento.
“Bicho empalhado dá azar”, explicou Sarney. “Por isso tanto baixo astral no prédio”, acrescentou sem entrar em detalhes.
Daí ele bolou um plano. Com a ajuda de outros dois senadores roubou o jacaré de Jarbas Passarinho numa hora em que o colega estava fora do apartamento, e jogou o animal empalhado no Lago Paranoá.
Sarney jura que a paz voltou ao prédio. Dois dias depois, os jornais de Brasília informaram que moradores em pânico viram jacarés nadando no Lago.
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SUCESSÃO DE EQUÍVOCOS

Merval Pereira, O GLOBO
Toda essa desavença entre Executivo e Legislativo pelo orçamento da União surgiu de um raciocínio equivocado do ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Não me refiro ao palavrão que gerou a convocação da manifestação do “fod*-se”, mas à idéia de que se o Congresso quer mudar as regras do presidencialismo, que aprove o parlamentarismo.
A separação dos poderes, criada na Constituição americana em 1789, é característica do presidencialismo. Existia na teoria, principalmente pela famosa obra de Montesquieu “O espírito das leis”, e de forma incipiente na Inglaterra.
A primeira república constitucional do mundo moderno é considerada a dos Estados Unidos, com a base de que quem dá os rumos é o Congresso. No presidencialismo, um deputado, um senador, não tem chefe, muito menos poderia ser subordinado ao chefe de outro Poder, o Executivo. Por isso, para que um parlamentar americano seja ministro, precisa renunciar ao seu mandato, e não apenas licenciar-se, como acontece no Brasil.
O que não tem a ver com o presidencialismo é a democracia direta, baseada em plebiscitos ou referendos, e em convocações de manifestações para pressionar o Legislativo ou o Judiciário. Essa é a maneira usada pelos bolivarianos que tanto Bolsonaro combate.
A disputa entre Executivo e Legislativo em torno do Orçamento tem origem nas colônias americanas da Inglaterra, que se rebelaram por quererem ter representantes presenciais no Parlamento em Londres, em vez de uma representação apenas virtual como queriam os ingleses. A frase “No taxation without representation” (Nenhuma taxação sem representação) tornou-se o símbolo de um movimento de autonomia das 13 colônias americanas que culminou, anos depois, em 1776 na fundação dos Estados Unidos.
No Brasil, o orçamento sempre foi uma peça de ficção dominada pelo Executivo, tanto que ele era considerado “autorizativo”, isto é, o Executivo poderia liberar as verbas que quisesse. Há quem considere que a aprovação do orçamento impositivo no que se refere às emendas dos deputados e senadores e das bancadas, como existe hoje, pode trazer um benefício: acabar o “é dando que se recebe” com relação às emendas parlamentares, provocando uma redefinição de forças no Congresso porque parlamentares deixariam de se alinhar automaticamente com o governo só para liberar suas emendas.
Este é o estranhamento do governo Bolsonaro, que pretende representar a “nova política”, mas se espanta quando o Congresso ganha autonomia de gastos. Um efeito colateral da demonização que Bolsonaro faz da política partidária. Os parlamentares assumiram o controle do Orçamento querendo ser independentes do Executivo.
Se o governo tivesse uma base parlamentar sólida, não haveria problema, pois essa maioria controlaria o Orçamento de acordo com um programa de governo estabelecido em consonância com o presidente eleito.
Como estamos em ano eleitoral, essa disputa pelas verbas públicas se acirrou. Ontem, a Secretaria de Governo anunciou que somente liberará até março 30% das emendas impositivas, o que parece a deputados e senadores uma retaliação à posição majoritária de derrubar os vetos do presidente Bolsonaro, alargando o controle do Orçamento pelo Legislativo.
Como o prazo máximo de liberação de verbas para obras antes das eleições municipais é julho, e o governo pode liberar as emendas até dezembro, temem os políticos que elas ficarão retidas pelo Executivo, sem poder serem usadas a tempo de impactar as eleições.
Se o veto for derrubado na semana que vem, R$ 30,1 bilhões em emendas serão liberados pelos próprios parlamentares neste ano. O problema não é o volume de dinheiro à disposição do Congresso. Nos Estados Unidos, o orçamento é totalmente impositivo e controlado pelo Congresso, que pode alterar integralmente a proposta do Executivo.
É claro que não acontece a toda hora, mesmo quando o presidente eleito não tem a maioria na Câmara, como é o caso hoje de Trump. Mas a Câmara tem poder para negar verba extra ao presidente, e nesse caso paralisa os serviços públicos federais.
A alternativa que a Câmara e o Senado no Brasil encontraram para sobreviver à campanha de demonização da negociação política, depois dos escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava Jato, foi assumir o controle das reformas estruturais de que o país precisa, e, ao mesmo tempo, controlar o Orçamento para ter condições de atender às necessidades de eleitores em seus Estados e municípios.
O que vai ficar agora sob o escrutínio da opinião pública é o que farão com essa dinheirama.
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POR QUE CHORAM OS BRASILEIROS

Juan Arias, EL PAÍS
O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), em polêmica com a jornalista de O Estado de S. Paulo Vera Magalhães, pelas manifestações anunciadas para o próximo dia 15 contra o Congresso e o STF, se perguntava irônico se os brasileiros chorariam no caso de “uma bomba H cair no Congresso”.
A verdade é que o pranto dos brasileiros seria outro diferente do sonho dos bolsonaristas mais radicais que prefeririam a volta da ditadura militar ao Brasil. Tanto é assim que uma pesquisa internacional acaba de revelar que entre os brasileiros está crescendo o amor pelos valores da democracia, talvez porque os vejam ameaçados.
Os brasileiros choram sim, em relação ao Congresso e há tempos, não porque prefeririam fechá-lo como gostaria esse punhado de bolsonaristas, e sim porque os que o ocupam, que deveriam responder somente e com o exemplo dos que os elegeram, se mostram tantas vezes indignos do cargo.
Choram os brasileiros não porque gostariam de ver o Congresso fechado, mas porque gostariam que fosse o que deveria ser pela Constituição, a casa do povo, com todos os sentidos abertos para ouvir os desejos e as dores das pessoas.
Choram porque em vez de oferecer um serviço à população dando exemplo de austeridade, porque o dinheiro gasto é das pessoas, fruto de seu trabalho às vezes pesado e mal remunerado, utilizam o cargo para aumentar seus privilégios, para enriquecer e enriquecer os seus. Choram porque parecem estar lá para pensar mais nos interesses pessoais e partidários do que nos problemas reais da nação.
Choram porque o que custam ao Estado, entre salário e privilégios, a maioria desnecessária e injustificável, acaba escandalizando os que precisam trabalhar duro para quase não chegar ao final do mês. Li que somente a lavagem dos carros oficiais dos deputados custa mais caro do que o orçamento separado ao Museu Nacional do Brasil.
Choram porque se perguntam se é necessário um Congresso com gastos bilionários com mais de 500 deputados quando na realidade os que estão verdadeiramente preparados à delicada tarefa de legislar à sociedade são uma pequena minoria. O restante passa anos sem produzir uma só lei importante, como foi o caso dos quase 30 anos como deputado do hoje presidente da República, Jair Bolsonaro, que já peregrinou por nove partidos menores e que sempre fez parte desse baixo clero que desprestigia a função sagrada do Congresso com suas maracutaias.
Choram porque gostariam que algum Governo tivesse a coragem de fazer uma profunda reforma da instituição sagrada do Congresso que representa os anseios de toda a sociedade. Uma reforma política séria, discutida com a nação, que reduzisse, por exemplo, a uma dezena os partidos políticos e não essa loucura de partidos sem identidade.
É o que estão pedindo os chilenos nas ruas contra os abusos dos políticos injustos e aburguesados mais preocupados em agradar o novo capitalismo excludente do que suas vítimas.
Choram os brasileiros porque gostariam de poder elegê-los com outro sistema eleitoral para que não chegassem ao Congresso candidatos que eles nunca teriam escolhido.
Querem um Congresso que seja capaz de escutar os gritos das ruas, os anseios mais verdadeiros das pessoas, de todos, não só de uma minoria de privilegiados.
Sim, choram os brasileiros porque gostariam de um Congresso mais sintonizado com os que mais sofrem, os sem trabalho, os das filas de espera da Bolsa Família, nos corredores dos hospitais, os que voltaram a cair na pobreza e até na miséria.
Choram os brasileiros das comunidades periféricas das cidades, carne de canhão de todas as violências juntas, a da pobreza e a do Estado incapaz de tirá-los de seu inferno e do da polícia, cada vez mais com carta branca para matar impunemente.
Choram os heroicos professores com salários de fome e seu assédio para que ensinem de acordo com as ordens do Governo e não com os critérios da moderna pedagogia para formar homens livres, capazes de se defender na vida contra a tirania das ideologias totalizantes.
Choram os trabalhadores que veem impotentes como perdem direitos conseguidos com tanta dor e tantas lutas ao longo de sua vida.
Choram os aposentados que precisarão trabalhar mais anos para compensar as aposentadorias dos privilegiados que continuarão aproveitando-as.
Choram os indígenas aos que pretendem expulsar de suas terras sagradas, de suas tradições, de sua sabedoria milenar para lançá-los ao inferno da alienação das periferias modernas.
Choram os artistas, os pensadores, os que fazem cultura, a quem desejariam castrar e domesticar sua criatividade que é o coração da democracia.
Choram as mulheres e todos os diferentes que não se encaixam nos modelos pré-fabricados pelo poder. Por que costumam ser eles os mais desprezados por todos os ditadores da história? Não será pelo medo que causam ao deixar a descoberto suas frustrações e misérias ocultas e inconfessáveis?
Esse é o pranto dos brasileiros que, apesar de ser vítimas de tantas injustiças, continuam confiando nas instituições e nos valores da democracia porque, os pobres, melhor do que ninguém, sabem que têm pouco a esperar da tirania dos ditadores.
Que não se iluda essa minoria de exaltados e saudosos do autoritarismo barato com vontade de voltar aos tempos das trevas que o Brasil já sofreu e condenou.
Não, os brasileiros não querem uma bomba H contra o Congresso como ironiza com raiva o filho deputado frustrado de Bolsonaro. Querem, pelo contrário, que alguém tenha a coragem de devolver a essa casa do povo sua verdadeira sacralidade para que deixe de ser, em expressão dura do evangelho, um “covil de ladrões”.
Que não se iludam Bolsonaro e família que os brasileiros sonhem como eles com modelos políticos autoritários. Essa país já viveu a atroz ditadura da escravidão e mais tarde a ditadura dos que fizeram da política um instrumento de domínio dos poderosos contra os mais fracos. Os brasileiros aprenderam a pensar e não querem ser transformados nos novos escravos dos modernos tiranos do momento.
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A PREVISÃO FURADA DE GEISEL SOBRE OS MILITARES

Roberto Simon, Folha de S.Paulo
Em uma entrevista a historiadores da FGV em 1993, o ex-presidente Ernesto Geisel argumentou que “a política entrando no Exército” havia sido algo “mais ou menos tradicional” no Brasil. “Tem raízes históricas, mas agora, com a evolução, vai acabar.”
Para ilustrar seu ponto, Geisel referiu-se ao que via como uma anomalia completa: um deputado federal que, à época, convocava militares a voltarem ao poder. “Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar.”
Geisel foi o arquiteto do retorno dos generais à caserna, com o desmanche da ditadura ao longo de uma década. Imagine sua reação se alguém lhe dissesse o seguinte: em menos de 30 anos, o presidente será Bolsonaro, militares formarão um terço do gabinete –incluindo a chefia da Casa Civil e da articulação com Congresso–, e a imagem de quatro generais estrelados ilustrará um panfleto conclamando a uma manifestação contra Congresso, STF e imprensa. Pobre Alemão, seu apelido entre os soldados.
Claro, não há problema em um militar da reserva, em razão de suas qualificações, ocupar cargo civil ou entrar na política. Mas a presença, em massa, de oficiais no governo – incluindo alguns da ativa – e a “política entrando no Exército” são duas faces da mesma moeda. Mentes sensatas, civis e militares, entendem que esse status quo é nocivo tanto à nossa democracia quanto às nossas Forças Armadas.
Como viemos parar aqui? Levará tempo para responder à questão, mas olhar ao nosso redor pode ser um bom começo. Afinal, em várias partes da América Latina, militares têm cada vez mais influência política. Ver o Brasil de uma perspectiva regional permite entender que a eleição de Bolsonaro foi uma circunstância excepcional, mas há causas estruturais para a transformação nas relações civis-militares.
A última edição da Americas Quarterly –revista com a qual contribuo como editor e colunista– trata a fundo do novo papel dos militares na região. É uma história que, nos últimos meses, pode ser contada por meio de uma sequência de imagens.
Praticamente todos os presidentes que enfrentaram ondas de protesto –o equatoriano Lenín Moreno, o chileno Sebastián Piñera, o colombiano Iván Duque– apareceram cercados de generais, quando as crises estouraram. Na Bolívia, o comandante das Forças Armadas colocou, física e simbolicamente, a faixa presidencial em Jeanine Áñez, no dia em que Evo Morales fugiu ao México.
O Brasil é um caso extremo, mas não isolado –há causas comuns na região que estão levando os militares a entrarem no espaço da política. Uma delas é o enfraquecimento da classe política, dos partidos e do apoio à democracia, enquanto as Forças Armadas continuam a ser uma das instituições mais respeitadas. Uma série de escândalos de corrupção contribuiu para esse desgaste: uma pesquisa da Universidade Vanderbilt revelou que quase 40% dos latino-americanos concordam que “um golpe militar pode ser justificado quando há muita corrupção” (no Brasil, são 35.4%). ​
As democracias que proliferaram nos últimos 30 anos propiciaram ganhos socioeconômicos sem precedentes, mas também criaram expectativas inéditas a uma nova classe média. Os últimos quatro anos foram os de menor crescimento em sete décadas na região, e insatisfação política toma essas jovens democracias.
Ao mesmo tempo, com o fim da Guerra Fria, as Forças Armadas passaram por uma crise de identidade. Hoje, do México ao Brasil, militares estão cada vez mais envolvidos com operações policiais e a guerra às drogas.
Todos esses fatores minaram a “evolução” que Geisel pensava ser inevitável –o “mau militar” Bolsonaro é sua consequência, e não causa. Encará-los de frente é a única forma de reequilibrar as relações civis-militares.
Roberto Simon
É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
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A CRISE POLÍTICA DO ORÇAMENTO

Míriam Leitão, O GLOBO
Por trás da crise institucional que estourou no carnaval está um mal-entendido. É o que se ouve no Congresso e nas áreas do governo que não estão dedicadas ao incêndio político. “É preciso se acalmar e conversar”, sugere um integrante graduado do Executivo. O relator do Orçamento, deputado Domingos Neto (PSD-CE), também diz que é um grande mal-entendido e justifica. “É assunto técnico, às vezes converso com ministros e vejo que há muita desinformação.” Na semana que vem o parlamento deve derrubar os vetos do presidente Bolsonaro, e o melhor é fazer isso de forma negociada, diz o relator.
Há quem no governo queira a crise. O grande problema é que nesse lado está o próprio presidente Bolsonaro e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. O nome do cargo já diz que o general Heleno deveria ser o primeiro a querer a segurança das instituições. O seu áudio foi divulgado depois de já ter sido feito o acordo que resolvia a questão orçamentária. Em vez de as palavras do general serem esvaziadas, viraram combustível para mais incêndio.
O Orçamento agora é impositivo. Isso é incontornável. Já está aprovado. Significa que o governo manda o projeto, o Congresso aprova, e aí o governo tem que cumprir. E isso retira atribuições do executivo?
— Isso não tem nada de parlamentarismo. É assim em todas as democracias sólidas. O presidencialismo americano é forte, mas o orçamento é impositivo. O presidente Trump tem muito poder, mas o Congresso também. Ele quer fazer o muro dele, mas não consegue, porque ainda não convenceu os parlamentares de que é melhor gastar com o muro do que em outras áreas. Aqui no Brasil o orçamento era autorizativo, e com uma portaria o executivo podia mudar o que o Congresso havia decidido — diz o deputado.
O Orçamento tinha reservado R$ 30 bilhões de despesas para gastos que seriam decididos pelos deputados e senadores. Pelo acordo já negociado, mas agora suspenso, metade disso voltaria para o governo, para que cada ministro decida como gastar. A outra metade seria composta de repasses para estados e municípios, e nesses haveria indicação dos parlamentares.
— São ações de saúde, saneamento, educação, obras do Minha Casa, Minha Vida, manutenção de rodovias, tudo do interesse da sociedade. Sempre houve indicação de parlamentares para o destino de parte do dinheiro. Mas era informalmente, agora será feito de maneira formal. Inclusive isso diminui o toma lá, dá cá — diz Domingos Neto.
A Comissão de Orçamento estudou as despesas e verificou que por vários anos alguns setores tinham baixa execução. Eram itens orçamentários como subvenções e reservas. Começavam o ano com previsões de despesas bilionárias e depois o governo retirava recursos dessas áreas para as que queria reforçar. O Congresso decidiu fazer ele mesmo o remanejamento. Houve outras mudanças nas estimativas de receitas e despesas. Uma delas, por exemplo, foi a de considerar o ganho que haverá se for aprovada a PEC emergencial:
— O acordo era assim: as receitas que nós conseguimos seriam destinadas às despesas nos municípios e nos estados, mas com indicação de parlamentares. Uma outra parte seria devolvida para a decisão dos ministérios.
Ele conta que o estímulo para ampliar a área de influência do Congresso nos gastos do Orçamento veio do próprio ministro Paulo Guedes que, quando esteve na audiência pública sobre o assunto, disse que era preciso que houvesse mais participação dos parlamentares na definição dos gastos. “Quem tem o poder decisório de alocar esses recursos? É o ministro ou é o Congresso? É o Congresso. Então o Congresso tem que decidir quanto desse dinheiro desce para o setor a, b, c”, disse Paulo Guedes quando esteve na Comissão.
Esse tem sido o discurso. A prática, contudo, já gerou confusão. Negociou-se uma saída, mas antes que ela fosse implementada chegaram os incendiários. O deputado vai amanhã para Brasília esperar a orientação dos presidentes das duas Casas.
— Não sou eu que negocio acordo. São os presidentes e os líderes. Sou apenas instrumental. Mas acho que é preciso encontrar uma solução que preserve o mais importante: a democracia.
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PACIÊNCIA, DEMOCRACIA E RESPONSABILIDADE

Marcus Pestana, O Tempo
Reza a lenda que o ano só começa no Brasil após o Carnaval. O feriado momesco era sempre um período de trégua. Mas o Brasil anda tão esquisito que 2020 desmentiu a tradição.
Por um lado, o fantasma do coronavírus colocando a economia mundial em compasso de espera e em risco a incipiente recuperação brasileira de sua maior recessão. Dólar subindo, bolsa caindo, crise na segurança pública ameaçando o equilíbrio fiscal. O otimismo recebendo um balde de água fria.
Por outro, no mundo da política, atitudes e frases malcolocadas ganhando corpo na imprensa e nas redes sociais, alimentando o clima de radical polarização. Seria impensável, em outros tempos, uma crise político-institucional se esboçar em pleno Carnaval brasileiro.
A cultura antidemocrática que hoje inspira milhões de brasileiros, materializada numa frenética convocação de uma manifestação contra o Congresso Nacional e a nossa Corte Constitucional.
Diante disso, fui tomado por um sentimento saudosista. Num quadro em que a chamada “velha política” se afigura como verdadeiro palavrão, senti saudades da velha e boa política.
Sou da geração da redemocratização. Nasci para a política dentro da cultura de esquerda, predominante no movimento estudantil, mas que tinha referência em figuras como Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, que nos lideraram na travessia para a democracia. Eram lideranças forjadas pela experiência histórica, firmes nas convicções, mas vocacionadas para a promoção do diálogo e do entendimento, sem tibieza, mas abertas sempre à construção de consensos progressivos.
Eram capazes de produzir frases como “A verdade não tem proprietário exclusivo e infalível”, “Em política, até a raiva é combinada”, “Não são os homens, mas as ideias que brigam”. Mas o espírito conciliador dos dois estadistas não os esquivava de atitudes fortes em defesa da democracia: “A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia... Temos ódio e nojo à ditadura... A sociedade foi Rubens Paiva, e não os facínoras que o mataram”, disse Ulysses na promulgação da Constituição em 1988. “Canalha, canalha!” foi a resposta do líder da oposição, Tancredo Neves, ao presidente do Senado que declarou a vacância da Presidência em 2 de abril de 1964. Que falta fazem os dois!
Governos e líderes são passageiros. As instituições, a sociedade, os princípios democráticos são permanentes. A política é meio, não fim em si mesmo. Partidos e seus líderes são ferramentas, mas acima deles está o interesse público e nacional.
Após a redemocratização já tivemos governos e líderes de centro, centro-esquerda, esquerda, direita, e isso é um ativo da democracia brasileira. O embate e a polarização saudável são legítimos. Mas um consenso inarredável e absoluto deve reinar: o respeito às regras democráticas do jogo, às instituições republicanas e à Constituição.
Não faz sentido tentar desmoralizar o Congresso Nacional e o Supremo. Mais do que as regras escritas, deve prevalecer a cultura democrática, validando a legitimidade de todos os atores políticos e a convivência plural e respeitosa entre as partes divergentes.

O Carnaval de 2020 deixou um clima desconfortável num momento delicado do país. Que os dois líderes da redemocratização nos iluminem e que consigamos encontrar os caminhos para a construção da grande nação com que sonhamos.
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CIÊNCIA CONTRA A EPIDEMIA

Hélio Schwartsman, Folha de S.Paulo
A essa altura, parecem inúteis os esforços para manter o vírus que causa a covid-19 fora de fronteiras nacionais. A progressão da epidemia pelo mundo mostra que a doença, por provocar muito mais quadros leves do que graves, se espalha com facilidade e não será contida por quarentenas.
E o fato de o risco que cada indivíduo corre de morrer por causa da covid-19 ser baixo não significa que ela não vá causar estragos coletivos. No plano sanitário, o que preocupa é a pressão sobre os sistemas de saúde. O objetivo central das autoridades a partir de agora deve ser o de impedir que a curva de novas infecções suba muito rapidamente. Se conseguirmos espaçar o ritmo de contágio, será menor o pico de demanda sobre os hospitais, o que poderá evitar mortes por falta de ventiladores, por exemplo.
E como se faz isso? É preciso conquistar a confiança da população, que terá de ser convencida a mudar comportamentos. É importante, por exemplo, que as pessoas evitem correr para o hospital devido a quadros respiratórios leves. Também devem reforçar a lavagem de mãos e alterar a etiqueta de cumprimentos. Se a situação ficar ruim, deve-se cogitar de medidas mais drásticas como suspender aulas, eventos esportivos e culturais e adotar o trabalho remoto.
O problema é que há muita coisa sobre a biologia do vírus que ignoramos. Ele se espalha com menos eficiência no verão? Pacientes assintomáticos são bons transmissores? Quem já teve a doença se torna imune? Por quanto tempo? Cada resposta pode fazer muita diferença na hora de definir políticas públicas. Se uma infecção prévia não confere imunidade (ou só o faz de forma muito transitória), o modelo epidemiológico a orientar as ações muda substancialmente.
São questões a ser abordadas pela ciência e não pela ideologia. Resta torcer para que o núcleo terraplanista do governo continue com as garras longe do Ministério da Saúde.
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A SEGUIR: 'GUERRA URBANA'

Ruy Castro, Folha de S.Paulo
Está na história. Em fins dos anos 70, era mais fácil encontrar um pinguim do que um militar fardado nas ruas do Brasil. Era como se, encerrado o expediente em seus então milhares de empregos oficiais, os militares pendurassem o uniforme no armário e só saíssem à paisana, para evitar constrangimentos. E com razão: sob uma ditadura já velha de 15 anos, que não metia mais medo em ninguém, um oficial fardado numa fila de cinema arriscava-se a que populares lhe mostrassem a língua. O povo estava farto deles. Mas só em 1985, vitorioso Tancredo Neves, eles marcharam de volta para o quartel e se dedicaram a tentar limpar sua imagem horrível perante a nação.
O que custou décadas, porque havia muito a limpar: a violência das cassações, prisões, torturas e mortes, as cínicas trapaças eleitorais, as sucessivas crises da economia e, como sempre, os acordos corruptos de seus tecnocratas com os piores empresários e políticos nacionais. Mas, milagrosamente, os militares conseguiram. Nos mais de 30 anos desde então, em que eles se conservaram à margem da política e do poder —e das tramoias dos vários governos do período—, o povo voltou a vê-los com simpatia e respeito. 
Pois, graças ao governo Bolsonaro, essa imagem respeitável volta a correr perigo. Ao entupir seu gabinete de generais fanzocas e induzir seus subordinados a se cercar de oficiais menores, Bolsonaro está promovendo uma contaminação. Em breve, para o povo, o Exército será cúmplice do descalabro presidencial.
Por enquanto, os generais que Bolsonaro arrebanhou, e a quem impõe seu estilo desqualificado de governar, são dos que comandam mesas. Não se sabe o que pensam os que comandam tropas —e que, para começar, serão chamados a enfrentar as polícias militares dos Estados, no que o próprio Bolsonaro já chamou de “guerra urbana”.
Guerra esta que, por algum motivo, ele parece felicíssimo em insuflar.
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
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NO LIMIAR DE UM TERCEIRO ERRO

Bolívar Lamounier, ISTOÉ
Qualquer que seja nossa avaliação sobre o momento atual, parece-me fora de dúvida de que estamos no limiar de importantes transformações em nossa identidade nacional — ou seja, na maneira pela qual nos vemos como povo.
Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que nossa identidade nacional já passou por duas fases — duas versões, duas ilusões — e dois erros colossais, que nos deixaram no limiar de um possível terceiro grande erro. A primeira versão foi a ideia do “brasileiro pacífico”, da conciliação entre as elites políticas, da “cordialidade” entre as pessoas comuns e da inexistência de racismo. No essencial, essa “narrativa” tinha um claro sentido de bajulação ao ditador Getúlio Vargas, exaltado como fundador da nacionalidade, culminando numa concepção do poder central como um Estado poderoso, bondoso e paternalista.
Era um apelo à convergência num país fadado a se transformar profundamente assim que a democracia fosse restabelecida,os conflitos políticos se acirrassem, e sofrêssemos os impactos externos da guerra fria. Uma sociedade concebida pela maioria como quase estática, invulnerável a abalos de monta e avessa a movimentos de mobilização política contrários ao governo.
Precocemente envelhecida, a cultura da cordialidade cedeu lugar ao chamado nacional-desenvolvimentismo, um projeto lastreado materialmente na industrialização substitutiva de importações e ideologicamente no nacionalismo. Essa nova fórmula também fez certo sentido enquanto o modelo de crescimento induzido pelo Estado permaneceu crível. O golpe de misericórdia que a inviabilizou em definitivo foi a tentativa do governo Geisel de acelerar a industrialização com base num enorme endividamento externo, opção liquidada entre 1973 e 1979 pelos choques do petróleo e a abrupta elevação das taxas de juros às quais a dívida fora indexada.
A nação “cordial” e o “nacional-desenvolvimentismo” tinham dois pontos importantes em comum. Primeiro, imaginavam ser possível o desenvolvimento de uma nação que em nenhum momento pôs em prática um projeto vigoroso de educação básica e de capacitação técnica da mão de obra. Segundo, aferraram-se a um doentio anti-liberalismo, à ideia do Estado empreendedor, a uma hostilidade ao mercado e, não menos importante, ao autarcismo, quero dizer, à opção por uma economia fechada.
Estes dois componentes estão aí bem à mostra, como os pés de barro do gigante que queríamos (ou queremos) ser.
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MITO E POLÍTICA – PRECISAMOS DE UMA ALTERNATIVA

Sergio Fausto, O Estado de S. Paulo
A política não é lógica ou ciência exata, não quer demonstrar, e sim convencer. Mais do que argumentos, busca mobilizar certos valores e sentimentos, por oposição a outros. Visando à conquista de corações e mentes, vale-se de narrativas cognitivamente simples e emocionalmente poderosas para fixar, por contraste com outras, uma certa representação discursiva da realidade presente e projetar um futuro melhor (mesmo que a promessa seja de retorno a um passado idealizado).
Compreender que a política se dá no plano da competição simbólica é especialmente importante em momentos nos quais as sociedades se sentem ameaçadas. Nesses momentos, a racionalidade ordinária e individual do eleitor, sem desaparecer, cede terreno a vastas e polarizadas emoções coletivas de medo, rancor e intolerância. Vivemos um momento assim, que, paradoxalmente, cria possibilidades de restabelecer convergência e projetar aspirações novas em torno de valores comuns.
Em artigo recente, David Brooks, colunista do New York Times, oferece explicação convincente sobre o favoritismo de Bernie Sanders nas primárias democratas e o completo domínio de Donald Trump sobre o Partido Republicano. Foram os únicos até aqui, diz ele, que produziram narrativas de caráter mítico sobre a nação americana, formulando representações simbólicas sintéticas sobre o que são e o que devem ser os Estados Unidos da América. Que sejam representações opostas mostra que a nação não é una. Nenhuma nação.
Diante das opções que não lhe agradam, Brooks pergunta: ainda poderá surgir entre os democratas uma candidatura capaz de apresentar e encarnar um relato mítico alternativo ao “socialismo” de Sanders para se contrapor ao nacionalismo xenófobo de Trump, que ele vê como o mal maior? O colunista não arrisca uma resposta. Apenas registra que nas suas andanças pelos Estados Unidos tem notado, no nível local, que a maioria das pessoas parece disposta a cooperar para resolver problemas comuns, independentemente de raça ou preferência partidária. Ainda que a observação de Brooks esteja correta, resta o imenso desafio de dar expressão política nacional concreta ao que se verifica difusamente no nível comunitário. Doze anos atrás, Obama conseguiu.
O Brasil está em outro ponto do ciclo eleitoral, mas a questão posta por Brooks se aplica muito bem à realidade brasileira. Por ora, apenas duas forças conseguiram produzir narrativas política e eleitoralmente poderosas sobre o que é e o que deve ser o Brasil. O relato mítico da nação devotada a Deus e por isso livre do mal da corrupção e da degeneração dos costumes leva vantagem sobre o relato mítico do País socialmente justo pela luta de um partido e de um líder do povo, com o povo e pelo povo. Isso porque o primeiro relato conta com os instrumentos do poder e com um presidente onipresente e o segundo está sem poder, sem dinheiro e com seu homem-mito eleitoralmente inabilitado, por problemas com a Justiça.
Para criar uma alternativa a essa dualidade, as forças de “centro”, por ora uma geleia de contornos imprecisos, não podem cair no erro da “idiotice da objetividade”, ou seja, acreditar ser possível combater poderosos relatos mítico-políticos apenas com apelos à razão, muito menos se calcados em argumentos tecnocráticos sobre propaladas ou reais virtudes administrativas. Claro que boas propostas e competência gerencial são importantes, mas de pouco valem na conquista de corações e mentes se não forem incorporadas como elementos de uma narrativa abrangente baseada em valores e sentimentos diferenciadores das opções ora dominantes.
Parte do desafio é desconstruir o relato mítico dos adversários. O bolsonarismo revela cruel falta de empatia com o sofrimento humano, intolerância com quem não se enquadra no padrão ultraconservador da moral e dos bons costumes, desprezo pelas mais elementares regras de convívio numa sociedade democrática. O petismo faz pouco do clamor por igualdade republicana perante a lei. Prefere vê-lo como produto da manipulação política, e não como resultado da democratização substantiva de uma sociedade que se cansou da impunidade dos poderosos. Rejeitando qualquer autocrítica, fecha-se sobre si mesmo e glorifica seu líder máximo.
Para construir uma perspectiva alternativa é preciso entender e sentir que o Brasil clama por decência, por igualdade de oportunidades, proteção aos mais pobres, redução da violência, cuidado com as pessoas e com a natureza. Que começa a se cansar de um clima que azeda até mesmo as relações pessoais e tira a alegria de (con)viver. O País pede uma liderança que seja firme, mas não boçal, que respeite sinceramente a religiosidade do povo, nas suas diferentes fés, mas enfrente a manipulação política da religião como instrumento de poder e enriquecimento, que tenha crença verdadeira na democracia e nos valores da igualdade e da liberdade.
Além de um candidato, é necessário produzir uma narrativa política em torno desses valores e sentimentos. Não há muito tempo a perder.
* Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP
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ARMAR AO PRÓXIMO COMO A SI MESMO

Mentor Neto, ISTOÉ
A nossa folia e fé segundo Freud, Dante, Christopher Hitchens, Alain de Botton e Kierkegaard. Humanos não se apertam, não é mesmo? Brasileiros em especial. Diferentes de qualquer outra espécie há competência para inventar camadas de realidade que nos convencem do que quisermos acreditar. Veio o homem e inventou o pecado como justificativa para o sofrimento inerente à condição humana. Aí os brasileiros inventaram o Carnaval, que é dar um refresco. Você vai dizer que o Carnaval não é invenção nossa, mas é. Esse Carnaval raiz, de xixi na rua, pegação e roubo de celular, que amamos tanto, é made in Brazil, sim senhor. E inventamos porque brasileiro está convencido que ser santo o ano todo é um inferno. De um lado, a Fé nos impõe a culpa pelos pecados, mas também o conforto diante das vicissitudes da existência.
Freud dizia que, ao acreditar no sagrado, a gente permite se infantilizar. Nos colocar nos braços de quem nos ama e prometer cuidar e proteger para a eternidade, desde que a gente cumpra lá uma meia dúzia de obrigações contratuais. Num pêndulo, como o político, do outro lado está o Carnaval. O Carnaval é de esquerda. Fé é de direita, arrisco polemizar. Ambos, no Brasil, são a prova de que somos polarizados muito além da política. A festa pagã permite usar nosso livre-arbítrio da forma mais animal que concebermos. Se, como rotina, optarmos pela vida dos pecados de Momo (não confundir com Moro), iremos para o quinto dos infernos, que para Dante é um shopping de nove pisos. Um lugar terrível que vai do confronto com monstros mitológicos até uma convenção do PT presidida pela Gleisi Hoffmann. Não me ocorre sofrimento maior.
Já segundo Christopher Hitchens, se optarmos pela seriedade da religião – seja ela qual for – que simbolizo aqui pela retidão de um Moro (não confundir com Momo), estaríamos nas mãos de um ditador. Ainda segundo Hitchens, um ditador que se ocupa com o que comemos, com o que sonhamos, o que pensamos, quem amamos, e o que fazemos com nossos amados, principalmente quando estamos sem roupa. Moro e Momo, nesse contexto, são os dois opostos polarizados. O sensato e o libertino. Cada um cuidando de tolher e liberar, respectivamente. Ambos nos liberam do pecado original e, de quebra, limpa nosso nome no Serasa e manda para a cadeia os corruptos do PT.
É justamente nesse arcabouço político-religioso que repousa o sucesso do nosso presidente. Pelo inconsequente coletivo, Bolsonaro foi eleito pai, protetor e redentor. Cabe como luva o discurso contra o mal representado por Lula que, expatriado e excomungado, terá que viver para sempre entre o inferno de Curitiba e o purgatório dos palanques. Cabe, também, as piadinhas sexuais, as graças escatológicas e carnavalescas. Para o mito, cabe a simbologia dos revolvinhos, que é seu sinal da cruz. No Bolsonicismo cabe Olavo de Carvalho, o sábio. Em nome do pai e dos filhos cabe a santíssima trindade do zero um, dois e três. Cabe a repetição da ladainha de acusações e propostas, a oração que, segundo Alan de Bottom, é o mais eficiente método de convencimento e que deveríamos aprender. Rezar, diz ele, é repetir ad aeternum os preceitos mais simplistas de um dogma. Até que virem nossa segunda natureza.
Bolsonaro repete, a cada oportunidade, seus mesmos preceitos simplórios. Sem nenhuma criatividade, como tem mesmo que ser. O resultado é evidente. Um séquito de beatos e beatas acredita piamente no mito e a procissão segue rumo a um juízo final, ou, nas palavras de Kierkegaard: “A função da oração não é influenciar Deus, mas mudar a natureza daquele que ora.” Só o Carnaval nos salva.
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RUPTURA INSTITUCIONAL

Demétrio Magnoli, Folha de S.Paulo
Com fórmula ‘Povo e Exército’, Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar ruptura institucional
Engana-se quem interpretou a militarização do núcleo político do governo como sinal de marginalização dos extremistas do bolsonaro-olavismo. Depois de recolher suas bravatas vazias contra a ditadura de Maduro, Jair Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar uma ruptura institucional. “O Povo e o Exército” —a fórmula chavista orienta os dois motins paralelos estimulados pelo presidente contra a democracia. A estratégia avança à sombra do temor dos líderes parlamentares e dos comandantes militares, que se curvam diante do espectro disforme das redes sociais.
O motim da PM do Ceará distingue-se de tantos tumultos policiais anteriores porque brotou no terreno da política, apenas tomando carona em reivindicações corporativas. Há meses, as redes virtuais olavistas operam nos quartéis das PMs. Um vereador-sargento de Sobral ligado às hostes de Bolsonaro insuflou os amotinados. O clã presidencial mal esconde seu apoio à baderna.
A letra da lei não assusta os arruaceiros que copiam os métodos das facções. Quando Cid Gomes avançou, irresponsavelmente, com uma escavadeira, exprimia uma justa indignação. Aceitaremos, de braços cruzados, a transmutação da PM em milícia politizada? Sim, claro, respondeu Sergio Moro: “o governo federal veio para serenar os ânimos, não para acirrar”.
No lugar de cercar os quartéis invadidos, cortar luz e água, exigir a rendição dos amotinados, as forças federais limitaram-se a substituir a polícia no patrulhamento das ruas, oferecendo aos bandidos em uniforme um tempo extra para o exercício da chantagem. “Serenar os ânimos”: o governo estadual, desarmado, deve enfrentar sozinho os milicianos armados. A novela ruma às conclusões previsíveis: negociação e, lá adiante, anistia. O crime compensa.
O 15 de março nasceu da divisão no entorno militar de Bolsonaro. A adesão de Augusto Heleno ao extremismo abriu caminho para a convocação de marchas contra o Congresso, que têm o respaldo explícito do presidente. Não se trata, ainda, de consumar a ruptura, mas de testar a espinha dorsal das instituições democráticas. A meta é acuar, intimidar. Os alvos explícitos são os parlamentares e o STF. Mas, paralelamente, investe-se na agitação da oficialidade: o Povo e o Exército.
As declarações evasivas de Hamilton Mourão evidenciam uma rendição. Protestos contra o Congresso certamente “fazem parte da democracia”, mas não uma convocação a eles oriunda do chefe do Executivo. Os paralelos apropriados são com a “marcha sobre Roma” de Mussolini ou os cercos à Assembleia Nacional promovidos por Maduro. Celso de Mello foi ao ponto quando disse que Bolsonaro “desconhece o valor da ordem constitucional” e, portanto, “não está à altura do cargo que exerce”.
No início, o cordão de generais do Planalto definia limites à retórica presidencial. Desde a demissão de Santos Cruz e o bombardeio virtual contra Mourão, os homens estrelados baixaram a cabeça. Como no caso das PMs, as redes extremistas engajam-se na cooptação de oficiais da ativa de escalão intermediário, ameaçando a disciplina militar. Santos Cruz tem razão ao alertar para o risco de “confundir o Exército com assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas”.
Bolsonaro imagina que é capaz de mobilizar incontáveis milhões pois enxerga nas suas redes sociais a imagem do Povo. Os líderes do Congresso e os comandos das Forças Armadas compartilham a ilusão presidencial. Daí, o temor geral de pronunciar a palavra “Basta!”.
Os chefes militares renunciam a prestar continência à Constituição e repelir a politização dos quartéis. Os políticos vacilam diante do imperativo de deflagrar um processo de impeachment. A opção pelo apaziguamento encorajará os extremistas a avançar mais um passo, testando uma nova fronteira. Às vezes, as democracias morrem de uma enfermidade chamada medo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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UMA 'PEDALADA SOCIAL' ?

Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo
Mais de 5 milhões é o número de brasileiros que aguardam na fila de pedidos para ter acesso aos programas sociais do governo e benefícios previdenciários. São 1,379 milhão de pessoas nos bancos do INSS e 3,621 milhões esperando por uma resposta do programa Bolsa Família.
A crise do represamento das concessões é um problema social de extensa gravidade e com enorme consequência para o País. Não só no curto prazo. As crianças mais novas, os idosos e as pessoas com deficiência de baixa renda, aquelas mais miseráveis, são os mais atingidos pelo colapso no gerenciamento da fila.
Era de se esperar, portanto, que as autoridades brasileiras estivessem mobilizadas num gabinete de crise para encaminhar uma solução para mitigar o problema diante das cobranças do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União.
Ao contrário, não se vê nenhuma autoridade empenhada verdadeiramente em assumir a liderança da condução do processo. Há 44 dias (é isso mesmo), o governo anunciou que iria contratar até 7 mil militares da reserva das Forças Armadas para auxiliar no atendimento das agências do INSS.
Em acordo fechado com TCU há algumas semanas, o governo anunciou que iria estender a contratação temporária para servidores aposentados do INSS. O fato é que o tempo passou e, até agora, nada da edição de medida provisória (MP) pelo presidente.
No Bolsa Família, a espera também continua. O novo ministro da Cidadania, Onxy Lorezzoni, prepara o redesenho do programa sem antes dar transparência aos dados sobre o seu enxugamento. A falta de transparência nos números é inaceitável.
O governo mente sobre os dados do programa. A resposta do novo ministro tem sido a de que o governo quer fazer do Bolsa uma importante ferramenta de construção de cidadania “com larga porta de entrada e mais larga porta de saída”.
Há a promessa de entregar mais de 200 mil concessões. Especialistas, porém, alertam que essa entrega resulta somente de um processo administrativo de cancelamentos expressivos, porem esporádicos. E que, portanto, não atenua o problema.
O governo teve de remanejar recursos do Orçamento para pagar o 13.º salário do Bolsa Família em dezembro – promessa eleitoral do presidente. A promessa foi cumprida à custa do represamento das novas concessões.
Como a fila do INSS continua, há uma “economia” temporária com o pagamento de muitos benefícios que já deveriam estar sendo feitos. Isso permite, no curto prazo, o remanejamento de recursos para financiar gastos de outras áreas. Uma hora essa conta vai aparecer. É uma bola de neve. A pergunta que fica: o governo está preparado para esse aumento de gasto mais à frente?
Os críticos do governo apontam que se trata de uma “pedalada social”. Técnicos do governo rebatem, porém, que não há conexão nenhuma com as famosas “pedaladas fiscais” da ex-presidente Dilma Rousseff.
Até agora, é certo que além de social, o represamento da fila é um problema orçamentário de grande complexidade.
O gargalo tem gerado um princípio de colapso na rede de assistência social de municípios, sobretudo os pequenos e médios. Sem o dinheiro do Bolsa Família, a população se vê forçada a bater à porta das prefeituras em busca de comida e outros auxílios. São os chamados benefícios eventuais, demandas que sobrecarregam as combalidas finanças das prefeituras.
Os eleitores nos locais mais precários do País muitas vezes não sabem que o problema parte de Brasília, do governo federal. Para eles, a culpa é do governo mais próximo. Em ano de eleições, seria essa uma estratégia meio tosca para mudar o mapa dos municípios e varrer os opositores?
Enquanto a crise da fila se agrava, governo e Congresso travam uma disputa sangrenta pelo dinheiro do Orçamento que compromete as solução dos problemas mais urgentes.
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AS AMEAÇAS AOS JORNALISTAS

Germano Oliveira, ISTOÉ
Ao completar 48 anos de jornalismo, me assusta os rumos que a profissão está tomando nesse período de obscurantismo provocado pelo bolsonarismo. E não é só porque ele foi sexista e misógino ao atacar a jornalista Patrícia Campos Mello. Foi chocante e repugnante, por óbvio. Mas meu estarrecimento vem pelo conjunto da obra dos métodos intimidatórios que Bolsonaro está impondo à imprensa. O presidente demonstra cada vez mais seu desprezo pela liberdade de expressão e, sobretudo, pelas garantias individuais previstas na Constituição. Bolsonaro vem se tornando uma ameaça aos princípios democráticos e precisa ser parado, antes que ele leve o Brasil à uma crise institucional sem precedentes, com retrocessos políticos semelhantes aos registrados a partir de 1964.
Não é à toa que Bolsonaro militarizou o Palácio do Planalto, instalando generais em todos os ministérios que ocupam o centro do poder. Passa um recado claro à Nação: faço o que bem entendo, falo as asneiras que quiser e se desejarem me apear do poder, pelo instrumento democrático do impeachment, os militares me garantem. Não é por outra razão que o governo tem hoje nove dos 22 ministros oriundos da caserna, mais do que havia no governo de Castelo Branco (cinco ministros militares).

Ofendendo jornalistas quase que diariamente na porta do Palácio da Alvorada – os gestos de banana são fichinha perto dos xingamentos com palavras obscenas e chulas que ele reverbera -, Bolsonaro deixa claro que está preocupado apenas com o que pensa seu grupo de apoio, basicamente militares, evangélicos e integrantes da extrema-direita. Por isso, ele aproveita a claque que o aguarda todas as manhãs na saída do palácio para repetir suas injúrias contra os jornalistas, destilando todo seu ódio e preconceito.
Essa desfaçatez do presidente me faz lembrar de outros governantes desequilibrados que se voltavam contra a imprensa para desviar o foco de sua insanidade. Maluf, Collor e os petistas, sobretudo os lulistas e cutistas, atacavam a imprensa que não era dócil às suas doutrinas. O PT de Lula, por exemplo, só respeita quem lhe é simpático. Não podemos esquecer dos carros da mídia depredados por petistas em eventos por eles promovidos. Por sorte, a democracia acabou se encarregando de deixar os radicais desses segmentos à margem do processo político, já que muitos deles foram parar na cadeia por corrupção. É de se esperar agora que Bolsonaro e seus asseclas tenham igual destino: sejam expurgados da vida pública, antes que a frágil democracia brasileira sofra abalos irreversíveis, como aconteceu há 56 anos, com as baionetas calando a imprensa livre.
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O SABOTADOR DA REPÚBLICA

Carlos José Marques, ISTOÉ
E Messias está a trombetear a existência de tentativas rasteiras de tumultuar a República. Há de se concordar com ele e, claro, reagir com a firmeza e a força da lei que a circunstância exige, punindo os agitadores da vez. E quando a tal tentativa de desestabilização emana diretamente das mãos do ocupante da cadeira de mando do Planalto, o que fazer? Na situação em que o presidente em pessoa convoca manifestantes para irem às ruas contra os demais poderes, com uma pauta subversiva que pede o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, além da cassação ou prisão de suas lideranças, qual a resposta a dar? Jair Bolsonaro, aquele que governa testando, reiteradamente, quase toda a semana, os limites constitucionais, incorre abertamente em crime de responsabilidade.
De novo e de novo e de novo, sem as devidas respostas a seus atos. Não é a primeira provocação/convocação dele nesse sentido, muito menos a primeira atuação como chefe de torcida a pedir o povo nas ruas para encurralar parlamentares e juízes. Ele usa corriqueiramente a tática chavista, com pendor autoritário de subversão da ordem, incitando as massas no cerco às instituições. O filme já foi visto e reprisado por essas platitudes latino-americanas. Sob o tacape do capitão reformado, a ditadura é um flerte nunca descartado. Ainda mais depois de sua unção a chefe de Estado.
Do AI-5 ao culto a torturadores, até a negação das execuções nos porões do regime, o sobranceiro atrevimento do “mito” no campo do radicalismo foi por demais comprovado. Militantes pró-governo querem agora, com a benção e estímulo do mandatário, sitiar Legislativo e Judiciário. Todos se animaram depois que o próprio ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, hasteou a bandeira da autofornicação do “foda-se” em resposta ao que ele chamou de “chantagem” dos congressistas. À parte o linguajar chulo, o militar deveria ser instado a dar provas da referida chantagem, se é que ela realmente existiu e em que termos. Mas, ao invés disso, o comportamento do ministro quatro estrelas é endossado por um chefe cujo sonho maior é mandar sem as amarras dos demais poderes.
Para constranger adversários, as redes sociais viraram armas preferidas dele e de todo o clã. Não existem mais dúvidas sobre as reais intenções da primeira família sobre o futuro dos Três Poderes. Anote o que disse o filho número três, Eduardo Bolsonaro, logo após papai cometer o desatino de estimular protestos. Declarou Dudu, se dirigindo a uma jornalista: “Se houvesse uma bomba H no Congresso, você realmente acha que o povo choraria?”. Foi ele o mesmo que calculou lá atrás a necessidade de contar apenas com “um soldado e um cabo para fechar o STF”. Viceja, não há como negar, uma vontade quase irrefreável da doutrina bolsonarista de implantar uma espécie de absolutismo bananeiro, típico de republiquetas de outrora. E assim seus pregadores escolhem, por vez, carnavalizar a democracia, como se não fosse ela uma das maiores conquistas civilizatórias da humanidade.
O decano da Suprema Corte, Celso de Mello, pontuou que “a face sombria de um presidente que desconhece o valor da ordem constitucional” é típica de alguém que não está à altura do cargo que ocupa. Muitos já desconfiavam. A maioria está farta de saber. Ele não está à altura, mas pouco se faz para se mudar esse estado de coisas de tamanho deboche institucional. Líderes partidários, OAB e até membros das Forças Armadas se espantam, condenam, criticam. Meras queixas e alertas não controlam, entretanto, o ímpeto arbitrário do capitão. Para ele, não interessa o que os demais pensam. Lá dentro do seu íntimo, o verdadeiro mantra a movê-lo deve ser o do “eu acima de todos”. Perceba que não foi suficiente ao mandatário encarar tantos e tão variados protestos contra a sua figura nesses dias de folia do Momo.
Qualquer um, normalmente, buscaria se preservar, optando por um recolhimento estratégico. Não Bolsonaro. Ele optou por dar gás à própria manifestação, encarregando-se de propagá-la. Quis uma algazarra de estimação para chamar de sua. Desprovido de princípios mínimos para um chefe da nação, ele parte ao papel de “black bloc” das redes digitais. Como assim? Não teria de ser ele o guardião da estabilidade? Qualquer um, em qualquer lugar do mundo, se perguntaria se isso é sério: um presidente agitador da turba. O risco nessa toada de ignorar seus desatinos como se fosse coisa de um mero bobalhão da corte é converter a anormalidade em ameaça concreta à ordem. Já aconteceu e nada garante que não volte a ocorrer.
Esticando cada vez mais a corda e estocando ações e declarações que ferem a liturgia do cargo, Bolsonaro se deu ao desfrute da gozação. Virou boneco de Olinda, palhaço da Sapucaí e personagem de deboche dos comediantes. São uma tradição de muitos carnavais as manifestações populares em forma de crítica política, que aumentam por essa época. Sempre estiveram presentes em bloquinhos, alas de escola e nas fantasias dos foliões, como alternativa de reclamação bem humorada. Mas poucas vezes se viu algo parecido, tanto na dimensão como no foco caricatural concentrado em uma mesma figura. Bolsonaro atingiu o status de protagonista de enredo de escola de samba.
Não de uma apenas, mas de inúmeras. No sambódromo do Rio, o desfile das agremiações – no evento celebrado como o maior espetáculo da Terra – trouxe ao menos sete delas, entre as maiores e mais tradicionais, atacando, questionando e repudiando decisões e escolhas do governo Bolsonaro, ainda nos seus tenros 14 meses de mandato. Feito inédito. Jamais tantas escolas, passistas nas ruas e sambistas engajados reclamaram tanto de um mandatário e de sua gestão. Talvez por isso mesmo ele sentiu-se à vontade para fazer o mesmo e partir à provocação. Errou feio.
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FAKE DIÁLOGO

Danielle Brant, Folha de S.Paulo
Fica cada vez mais claro, como tem sido praxe no atual governo, que a busca por conciliação com os outros Poderes é fake. Constatar isso é simples: toda vez que há um atrito com Legislativo e Judiciário —o que se tornou regra, não exceção—, os “patriotas” e “conservadores” convocam uma manifestação.
A próxima está marcada para daqui a três domingos e atende a apelo do ministro do GSI, general Augusto Heleno, o “radical ideológico”, como o apelidou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Para Heleno, o que o Congresso faz com o governo é chantagem, e não exercício da democracia e aplicação da Constituição.
Nada mais providencial para o governo do que atiçar sua base contra o Legislativo, uma das pedras no sapato de Bolsonaro —a segunda, o STF, também deve ganhar menção honrosa no ato. A tentativa do Executivo de estender pontes aos dois Poderes costuma durar pouco.
Bolsonaro até fingiu se importar com a falta de articulação política no Congresso e mudou algumas peças. Saiu o fiel escudeiro Onyx Lorenzoni (ex-Casa Civil, atual Cidadania) e entrou um amigo, general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). Na liderança do governo, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) perdeu o posto para o senador Eduardo Gomes (MDB-TO).
Não funcionou, como dá para notar pela quantidade de projetos do governo que são alterados ou travados pelo Legislativo. Fica a reflexão: até que ponto Bolsonaro se importa em ter articulação fluida com os congressistas? Muito pouco, parece.
Nesse contexto, as manifestações do dia 15, se não forem um novo fiasco, podem reforçar a decisão do presidente de rejeitar o diálogo com aqueles que não concordam com suas principais bandeiras fora do universo econômico —as pessoas com bom senso, resumindo.
Vale lembrar que um dos panfletos do ato traz a sugestiva frase “os generais aguardam as ordens do povo”. Falta pouco para o anacrônico bloco do AI-5 ser colocado de novo nas ruas.
Danielle Brant
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O MBL DO B ESTÁ NO CARNAVAL

Conrado Hübner Mendes, Folha de S.Paulo
O Movimento Brasil Livre do Bolsonaro (MBL do B) aproveita a ocasião carnavalesca para recomendar uma dieta de reeducação política. Por meio de um detox cívico profundo, quer resguardar aquela modesta fração de liberdades civis construída ao longo de tantos Carnavais.
O MBL do B percebe a violência que começa com o verbo e termina no assédio, no estupro e no espancamento; no desmatamento e na letalidade policial; no empobrecimento material e espiritual do país. Não confunde bolsonarismo com mera grosseria e impostura, esse pecado decisivo da preguiça intelectual, tão afoita em tornar equivalente o que é tão diferente. Nem confunde liturgia e decoro com mera etiqueta política.
O MBL do B precede e transcende Bolsonaro. Tem a mesma raiz de movimentos emancipatórios do passado, como o que se opôs à ditadura e ajudou, nos limites da conjuntura, a reinventar a democracia e a elaborar a Constituição de 1988. É um movimento de negros, mulheres, índios e LGBTs. De professores, artistas, jornalistas e cientistas. E de quem mais quiser levantar a bandeira da liberdade e da dignidade sem truques de linguagem.
O MBL do B não é um movimento de ódio ao bolsonarismo, mas de rejeição contundente daquilo que quer nos retirar. Não é bolsonarismo de sinal trocado, que reendereça a raiva e afetos primários para o outro lado.
Bolsonaro é um arquétipo da brutalidade brasileira. Uma brutalidade que vai do seu senso de humor a sua crença religiosa, da sua conduta paterna ao seu estilo político. Cruza a linha vermelha em praticamente todos os domínios da vida urbana. Essa rara confluência de tantas facetas do mau caráter nacional serve de alerta didático para o que resta de "Jair em nós". Neutralizar o Jair em nós é o primeiro desafio do MBL do B.
Bolsonaro organizou sua carreira política em torno da agressão a pessoas e instituições; da defesa da tortura e da morte do outro; das relações ganha-ganha com milicianos (às vezes um ganha-perde, mas quem perde são os milicianos foragidos, presos e executados).
Congresso e STF foram as casas de tolerância que lhe confortaram e deram carta branca. Atiçaram a delinquência política. As declarações do deputado podiam ser "rudes", mas não caracterizavam "incitação à violência física ou psicológica" contra ninguém, nas palavras de ministro do STF.
O STF nunca consultou a ciência para entender "violência física ou psicológica". Preferiu a autossuficiência da intuição jurídica e abraçou um conceito grosseiro de imunidade parlamentar.
Protegido pela leniência parlamentar e judicial, Bolsonaro sobreviveu e cresceu. A expectativa de que, uma vez no cargo mais poderoso da República, ele se tornasse outro, era tão verossímil quanto o esforço de Paulo Guedes em convencer o mundo e o mercado de que o chefe "tem maus modos, mas grandes princípios".
Libertar-se do bolsonarismo é mais do que um chamado à civilidade e à higiene bucal. É mais do que um apelo genérico ao antipopulismo ou um pedido ingênuo de reconciliação e consenso, como se a política não envolvesse o conflito agonístico, como se não fosse legítima a denúncia de privilégios e de violações de direitos, como se não fosse necessário apontar o dedo para os que boicotam o projeto constitucional.
A liberdade está ameaçada não por qualquer populismo, mas pelo populismo autoritário, que emula práticas do fascismo histórico e define povo como um clube em que só alguns podem ser sócios, excluídos os inimigos anti-Brasil. Tem alergia ao pluralismo e à diferença. Coloca até as instituições na categoria de inimigos do povo.
Derrotar Bolsonaro está além da demonstração dos seus crimes de responsabilidade para fundamentar pedido de impeachment; ou da provocação do TSE sobre o financiamento não declarado da campanha de desinformação; ou das eleições de 2022.
O MBL do B não é só sobre Bolsonaro.
Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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O GOVERNO NO DIVÃ DO ANALISTA

Carlos José Marques, ISTOÉ
Está provado e, deveras, reconfirmado: a impulsividade é uma característica latente do presidente, que toma decisões de acordo com o sentimento (e a conveniência) da hora. Tome-se o caso da retirada dos brasileiros de Wuhan, na China, já de retorno para uma quarentena por aqui. Alegando entraves diplomáticos, custo orçamentário, ameaça de contaminação, dificuldades jurídicas, o escambau a quatro, Bolsonaro havia dito que não iria fazê-lo. Determinou que a medida estava fora de cogitação porque, no seu entender, poderia expor boa parte da população brasileira de maneira desnecessária. Nas suas palavras: “Não vamos colocar em risco nós aqui (sic) por algumas famílias apenas”. Voltou atrás no surto de egoísmo e descaso.
Ao ver que os demais países, por dever humanitário e de solidariedade aos compatriotas, providenciaram a saída de seus cidadãos dos locais afetados — medida óbvia e inevitável —, o capitão resolveu finalmente seguir a ordem natural das coisas e repetir o exemplo. Deve ter caído a ficha sobre o tamanho da insensatez que cometeria lavando as mãos e se eximindo de responsabilidade no assunto. Afinal, onde iria parar o lema “governar para todos”, tão decantado em prosa de políticos de sua estirpe? Com a fritura em fogo brando do ministro Onyx Lorenzoni se deu a mesma coisa. Ele inicialmente havia resolvido retirar o auxiliar da pasta. Chamou-o para uma conversa nesse sentido. Pensou em deslocá-lo para outro posto. Depois decidiu mantê-lo onde está. O secretário Vicenti Santini, também da Casa Civil, virou pivô de mais um espetáculo de vacilação. Há poucas semanas, o capitão chegou a destituí-lo, indignado por uma viagem dele em voo da FAB. No dia seguinte voltou atrás e o readmitiu em outra função, para logo a seguir demiti-lo de novo. Em menos de 24 horas, Santini entrou e saiu do governo três vezes, em um feito inédito de ordens e contraordens oficiais. Foi assim em inúmeras ocasiões. Nunca se sabe se o mandatário seguirá firme por uma direção ou por outra, já que ele demonstra tocar as decisões quase sempre sem rumo certo e com limitado conhecimento da realidade que o cerca. Em tempos não muito distantes, chegou a dizer que não havia brasileiro passando fome. Depois…voltou atrás e reconheceu as evidências em contrário. Na virada de ano, anunciou que iria promover um reajuste para os policiais. Alertado sobre o custo do agrado, negou logo após. Em determinada ocasião, comunicou de público que suspeitava ter câncer e, em seguida, classificou a própria declaração de mentira e sensacionalismo da imprensa. Havia se superado na negação de si mesmo. O presidente é um adepto tão fervoroso das fake news que há de se dar a ele o benefício da dúvida quanto a uma verdade absoluta na cartilha pela qual professa. Desconfie! Nem sempre o que Bolsonaro diz ou pensa é realmente aquilo que ele acredita ou quer dizer. Em um comportamento ainda mais complexo, talvez explicável apenas na psicanálise, rotineiramente ele afirma algo para depois desmentir. É quase um esporte. Entendeu? Ninguém consegue. Nem dá para aceitar. Os episódios nesse sentido se multiplicam aos montes. Na gangorra das divagações de Messias, sequer os venezuelanos escaparam. Bolsonaro, sem prova ou qualquer informação concreta, logo nas primeiras horas de um vazamento criminoso de óleo contaminar parte da costa brasileira, atribuiu a responsabilidade aos vizinhos. E falou isso para quem quisesse ouvir, em entrevista aos jornalistas. Desdisse o que disse, mais uma vez. Foi se verificar mais tarde que um navio grego estava por trás do incidente. O ministro da Justiça, Sergio Moro, herói nacional, não escapou de ser mais uma vítima de sua, digamos, “tática” de idas e vindas. Receoso do prestígio e da sombra que o auxiliar gerava no seu governo, o presidente sugeriu a intenção de retirar dele as atribuições da segurança. Falou isso, jogou a ideia no ar e…voltou atrás. O mesmo quando, logo na estreia de sua gestão, resolveu extinguir o Ministério do Trabalho. Depois não levou adiante a medida. O Imposto de Renda? Garantiu que baixaria a alíquota. Reavaliou e desistiu.
É nessa instabilidade de decisões e na malemolência de gestão que Bolsonaro fixa seu mandato. Nada do que ele diz é seguro. Bem como ninguém que ele acusa de traidor — e fez isso diversas vezes, inclusive com aliados e correligionários – pode ser encarado exatamente como tal. Não se toma ao pé da letra o que diz e pensa o presidente. Afinal, pode ser só uma reação da hora. Nessa toada fica a duvida: é possível apostar que esse Messias está realmente tentando dar prumo e norte ao País? Ou mesmo: como reconhecer quais as suas reais convicções se elas mudam ao sabor do vento e das circunstâncias? Bolsonaro diz que não aceita o toma lá, da cá com políticos e abertamente pratica a habitual distribuição de verbas e até de cargos para fazer valer suas propostas — muitas delas esdrúxulas, como a do fim dos radares e das cadeirinhas para transporte de crianças nos carros. Francamente, não é razoável levar a sério um chefe da nação assim. Ele não pode ser taxado sequer de mercurial. Sua inconstância não é apenas no humor. Passa disso. Avança perigosamente para o plano das ações e, dessa forma, compromete ou, no mínimo, desestabiliza os rumos de um País inteiro. O capitão, que é facilmente influenciável, pelos bajuladores em especial, e teimoso com os supostos opositores — de quem não aceita qualquer contribuição, mesmo construtivas e corretas —, mostra-se inábil na cadeira do Planalto. Em mais de um ano aboletado no poder, não aprendeu e, pelo visto, demore o tempo que for ali, não vai aprender a ser estadista na plenitude do conceito. De pulso firme, princípios republicanos e preocupação com o interesse geral. Bolsonaro age exclusivamente para proteger os seus e valores retrógrados de perseguição e preconceito contra quem pensa e é diferente dele. Pobre de uma nação que precisa conviver com um comandante de valores tão limitados.
Mais do que nunca, o presidente parece precisar urgentemente de um divã de analista para se tratar e quem sabe assim passar a exibir aos menos um pouco de equilíbrio nas escolhas e enunciados que faz. Como uma metralhadora giratória, nos últimos dias ele tratou de disparar mentiras, acusando indevidamente governadores estaduais pelo preço do combustível (quando 80% dos tributos sobre o produto são federais). Na sua munição de fake news, o Congresso é alvejado como vilão, acusado pelo “mito” de jogar contra os interesses nacionais — quando, os fatos demonstram, a Casa assumiu a responsabilidade direta pelos trabalhos e aprovação, por exemplo, da Reforma da Previdência, enquanto Bolsonaro mostrava pouco interesse e empenho com o assunto. Agora o mandatário diz que quer, mas, na verdade, não faz o menor esforço para ver aprovada a reforma administrativa. Teme que servidores federais se voltem contra ele e o boicotem nas eleições municipais. Mais uma vez prevalece o interesse pessoal sobre a necessidade nacional. Governar para si e para os seus, jamais para maioria, virou marca da gestão bipolar.
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