Com fórmula ‘Povo e Exército’, Bolsonaro inspira-se no
chavismo para ensaiar ruptura institucional
Engana-se quem interpretou a militarização do núcleo
político do governo como sinal de marginalização dos extremistas do
bolsonaro-olavismo. Depois de recolher suas bravatas vazias contra a ditadura
de Maduro, Jair Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar uma ruptura
institucional. “O Povo e o Exército” —a fórmula chavista orienta os dois motins
paralelos estimulados pelo presidente contra a democracia. A estratégia avança
à sombra do temor dos líderes parlamentares e dos comandantes militares, que se
curvam diante do espectro disforme das redes sociais.
O motim da PM do Ceará distingue-se de tantos tumultos
policiais anteriores porque brotou no terreno da política, apenas tomando
carona em reivindicações corporativas. Há meses, as redes virtuais olavistas
operam nos quartéis das PMs. Um vereador-sargento de Sobral ligado às hostes de
Bolsonaro insuflou os amotinados. O clã presidencial mal esconde seu apoio à
baderna.
A letra da lei não assusta os arruaceiros que copiam os
métodos das facções. Quando Cid Gomes avançou, irresponsavelmente, com uma
escavadeira, exprimia uma justa indignação. Aceitaremos, de braços cruzados, a
transmutação da PM em milícia politizada? Sim, claro, respondeu Sergio Moro: “o
governo federal veio para serenar os ânimos, não para acirrar”.
No lugar de cercar os quartéis invadidos, cortar luz e água,
exigir a rendição dos amotinados, as forças federais limitaram-se a substituir
a polícia no patrulhamento das ruas, oferecendo aos bandidos em uniforme um
tempo extra para o exercício da chantagem. “Serenar os ânimos”: o governo
estadual, desarmado, deve enfrentar sozinho os milicianos armados. A novela
ruma às conclusões previsíveis: negociação e, lá adiante, anistia. O crime
compensa.
O 15 de março nasceu da divisão no entorno militar de
Bolsonaro. A adesão de Augusto Heleno ao extremismo abriu caminho para a
convocação de marchas contra o Congresso, que têm o respaldo explícito do
presidente. Não se trata, ainda, de consumar a ruptura, mas de testar a espinha
dorsal das instituições democráticas. A meta é acuar, intimidar. Os alvos
explícitos são os parlamentares e o STF. Mas, paralelamente, investe-se na
agitação da oficialidade: o Povo e o Exército.
As declarações evasivas de Hamilton Mourão evidenciam uma
rendição. Protestos contra o Congresso certamente “fazem parte da democracia”,
mas não uma convocação a eles oriunda do chefe do Executivo. Os paralelos
apropriados são com a “marcha sobre Roma” de Mussolini ou os cercos à
Assembleia Nacional promovidos por Maduro. Celso de Mello foi ao ponto quando
disse que Bolsonaro “desconhece o valor da ordem constitucional” e, portanto,
“não está à altura do cargo que exerce”.
No início, o cordão de generais do Planalto definia limites
à retórica presidencial. Desde a demissão de Santos Cruz e o bombardeio virtual
contra Mourão, os homens estrelados baixaram a cabeça. Como no caso das PMs, as
redes extremistas engajam-se na cooptação de oficiais da ativa de escalão
intermediário, ameaçando a disciplina militar. Santos Cruz tem razão ao alertar
para o risco de “confundir o Exército com assuntos temporários de governo,
partidos políticos e pessoas”.
Bolsonaro imagina que é capaz de mobilizar incontáveis
milhões pois enxerga nas suas redes sociais a imagem do Povo. Os líderes do
Congresso e os comandos das Forças Armadas compartilham a ilusão presidencial.
Daí, o temor geral de pronunciar a palavra “Basta!”.
Os chefes militares renunciam a prestar continência à
Constituição e repelir a politização dos quartéis. Os políticos vacilam diante
do imperativo de deflagrar um processo de impeachment. A opção pelo
apaziguamento encorajará os extremistas a avançar mais um passo, testando uma
nova fronteira. Às vezes, as democracias morrem de uma enfermidade chamada
medo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue:
História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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