segunda-feira, 31 de julho de 2023

O DILEMA INSTITUCIONAL

Marcus André Melo*, Folha de S. Paulo

Imobilismo e voluntarismo geram ineficiência crônica

A Reforma Tributária enviada ao Congresso pelo regime militar, em 4 de novembro de 1965, foi promulgada 26 dias após sua apresentação. A natureza autoritária do regime foi essencial para o desfecho, mas não explica tudo; a Reforma Tributária —como a Previdenciária— do governo Thatcher, também foi aprovada em semanas. Em outros modelos de democracias, as reformas são processos negociados e morosos.

No Reino Unido, a proposta não poderia ter sido substancialmente alterada pelos relatores ou comissões congressuais. A oposição não conta com instrumentos de ação disponíveis em países com Legislativo descentralizado (ex. Brasil, EUA). A obstrução também não poderia vir de membros de coalizões governativas: o voto distrital leva ao bipartidarismo. E, por construção, o primeiro-ministro tem maioria. Tampouco poder-se-ia questionar sua constitucionalidade (não há revisão constitucional) ou recorrer à uma Suprema Corte (porque inexistia tal instituição no país até 2009); o país sequer tem Constituição escrita.

O premiê britânico não é um "ditador parlamentar": seu poder é institucional e partidário e o mandato não é fixo: quando Thatcher se tornou altamente impopular foi desafiada internamente e acabou levando o cartão vermelho do partido. Os conservadores ainda se mantiveram no poder. Majoritários na opinião pública, ganharam as eleições.

Os sistemas políticos com autoridade política concentrada —modelos majoritários de democracia— exibem alto grau de "decisividade" (McCubbins): a capacidade de tomar decisões. Mas há um trade off envolvido no desenho institucional: decisividade robusta está associada à alta volatilidade, que é incompatível com a previsibilidade necessária em certas áreas de política (regimes regulatórios, fiscais etc); "resolutividade", nos termos daquele autor.

Assim, o ideal normativo de governança democrática combina capacidade de mudança e de estabilidade institucional ancorada em consenso sobre objetivos de longo prazo (algo presente no Reino Unido).

O nosso modelo institucional híbrido —que combina elementos majoritários e consensuais— exibe patologias como discutido aqui na coluna. Não é totalmente paralisante nem vertical. Mas é marcado por altos custos de transação e movimentos contraditórios.

Por um lado, imobilismo pelo excesso de barganhas oportunistas e comportamento rentista. Por outro, voluntarismo majoritarista, que se manifesta nas iniciativas curto-prazistas voltada para a blindagem de políticas, estruturas burocráticas e indivíduos, criando rigidez e ineficiências crônicas. O que impede que democracias consensuais não degenerem em corrupção e desgoverno? Eis o nosso dilema institucional.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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MARIELLE NÃO TEVE FESTA DE ANIVERSÁRIO

Angela Alonso*, Folha de S. Paulo

Prisões de mandantes, se vierem, poderão aplacar o irremediável das perdas

Este governo demorou meio ano para ferver o que o antecessor congelou por quatro. A semana de avanços na investigação dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes foi a do aniversário dos 44 anos que a vereadora não pôde comemorar.

Em vez de festa, houve luto. A volta à tona do caso que nunca afundou no esquecimento reavivou o drama para pais, filha, irmã, viúva, amigos de uma das vítimas. E certamente afetou a família da outra, embora pouco se saiba disso —a imprensa raramente cobre os enlutados com a morte do motorista.

As prisões de mandantes, se vierem, poderão aplacar, nunca suprimir, o irremediável de ambas as perdas.

O espantoso no desvelamento não foram as lágrimas dos enlutados, mas a frieza dos perpetradores.

O depoimento de Élcio de Queiroz faz lembrar "A Sangue Frio", de Truman Capote. No romance-reportagem, sobre crime no interior do Kansas nos anos 1960, o ato de assassinar não perturba os assassinos. Queiroz expressou a mesma insensibilidade.

Suas 2 horas e 36 minutos de depoimento deram 72 páginas novelescas. Narrou sem culpa, pena ou arrependimento a sequência de pequenas decisões que encerraram duas vidas.

Sua única nota emotiva foi sobre si mesmo, ao lembrar os cartuchos vazios chovendo sobre a própria cabeça e o frenesi da rajada espoucando nos ouvidos.

O depoente detalhou com precisão as peculiaridades da arma e seu possível destino romanesco: "Ele (Ronnie) serrou ela todinha, pegou a embarcação lá na Barra da Tijuca, foi numa parte mais funda (...) que tinha 30 metros e jogou ali".

Élcio duvidou da veracidade do dito porque Ronnie "tinha muito carinho por essa arma".

Além deste amor entre o atirador e sua MP5, o afeto é amálgama entre muitos dos mencionados. São parentes, vizinhos, amigos, como o delator e o atirador, conhecidos há 30 anos, desde quando um era PM e fez do outro, então na Polícia Civil, padrinho do filho —"a nossa relação é nesse sentido, de família".

O depoimento desenha um modo de vida no qual relações afetivas, oportunidades financeiras e uso da violência se entrelaçam. As armas são objeto de fetiche, o assassinato é só mais um trabalho e a morte é uma rotina.

Neste meio viceja todo tipo de negócio suspeito, como o de um de seus companheiros que "faliu um cassino no Paraguai, estourou o dinheiro do sogro".

O enredo do assassinato político desvela pedaço largo e cinzento da sociedade brasileira, povoado por personagens de apelidos que evocam a ficção: Gato do Mato, Hulkinho, Piroca, Bolota, Orelha. Nesse mangue, o bolsonarismo tem raízes bem fincadas.

Uma gente que clama por liberação do porte de armas, redução da maioridade penal e pena de morte. Uma pauta que ainda não lograram implementar, mas da qual não desistem, obcecados por reproduzir a parte caubói dos Estados Unidos que tanto admiram.

Nela, os protagonistas do livro de Capote foram para a forca. Os assassinos de Marielle e Anderson não irão. Para sorte de Ronnie e Élcio, aqui não é o Kansas e a Justiça não segue a lei de talião.

Depois de sete anos pulando entre cadernos, deixo este espaço para passar um semestre na Universidade Harvard. Muito obrigada à Folha, em especial às equipes das editorias que me acolheram. Sou grata sobretudo a quem teve a paciência de me ler. Até outra hora.

*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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POR QUE LULA PRECISA DO CENTRÃO NO MINISTÉRIO

Bruno Carazza*, Valor Econômico

Reforma ministerial busca paz e crescimento de olho em 2026

Foi o último ato do primeiro semestre e ao mesmo tempo a primeira imagem do governo Lula em sua última versão.

Sexta-feira, 7 de julho, 17h30. Depois de ter aprovado na Câmara a reforma tributária e o projeto do Carf, o presidente recebeu no Palácio do Alvorada as principais lideranças dos partidos que integram a sua base no Congresso para comemorar.

Estavam lá José Guimarães (PT-CE), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Aliel Machado (PV-PR), Túlio Gadêlha (Rede-PE), Tabata Amaral (PSB-SP), Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ) e Luis Tibé (Avante-MG), representantes de partidos da coligação que derrotou Bolsonaro em 2022.

Também se fizeram presentes comandantes do triunvirato de centro-direita que embarcou no governo antes mesmo da posse: Antonio Brito (PSD-BA), Isnaldo Bulhões (MDB-AL) e Elmar Nascimento (União Brasil-BA).

Mas o que chamou a atenção foi o comparecimento do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), acompanhado dos líderes André Fufuca (PP-MA) e Hugo Motta (Republicanos-PB).

Naquele momento selou-se o pacto entre Lula e o Centrão de Lira.

Para o Centrão, são bastante claras as vantagens de se embarcar no governo. Influência, poder, ministérios, cargos, indicações de apadrinhados, estatais, orçamento, despesas públicas em seus redutos eleitorais - todos os elementos que fazem as engrenagens da política brasileira funcionar no modo “continuidade”.

Do ponto de vista de Lula, porém, os benefícios de agraciar o PP e o Republicanos com parcelas do poder não são tão óbvios assim.

É bem verdade que o bloco de apoio do presidente no Legislativo é frágil. Sua coligação, composta por partidos de esquerda e centro-esquerda, elegeu em torno de um quarto das cadeiras na Câmara e no Senado. Mesmo com a aliança formada depois da eleição com MDB, PSD e União Brasil, ainda não se conseguiu uma base suficiente para se passar com tranquilidade propostas de mudança constitucional ou medidas tecnicamente mais complexas.

As vitórias legislativas conseguidas até aqui se deram por negociações pontuais, feitas caso a caso, tendo Arthur Lira como fiador e pagas à vista por meio da liberação de bilionárias verbas orçamentárias.

Ao admitir como sócios os dois principais partidos do Centrão, PP e Republicanos, Lula teria o apoio formal de 374 deputados, o que em teoria lhe daria condições de aprovar com folga qualquer norma na Câmara.

Mas atenção para os condicionantes “formal” e “em teoria” do parágrafo anterior. Como já foi comprovado durante o primeiro semestre na parceria com MDB, PSD e União Brasil, a concessão de ministérios ao PP e ao Republicanos não garante a integralidade de seus votos a favor do governo, por dois motivos.

Em primeiro lugar, nessas legendas há um grupo significativo de membros antilulistas e até mesmo bolsonaristas que dificilmente vão aderir. Mesmo feitos esses descontos, contudo, PP e Republicanos proporcionarão a Lula uma margem confortável para acelerar a tramitação de PECs e projetos de lei, desde (e aqui entra a segunda condicionante) que o Palácio do Planalto proponha uma pauta conservadora, de cunho muito mais econômico do que social.

Com MDB, PSD, União Brasil e agora PP e Republicanos compondo seu ministério e sendo responsáveis por 63% de sua base parlamentar na Câmara, medidas de inclusão social ou a reversão de iniciativas liberais de Temer e Bolsonaro têm baixíssima probabilidade de avançarem.

Se a celebração do acordo com o Centrão representa a abdicação de qualquer ambição de passar uma agenda progressista no Congresso, o que Lula ganha ao dar órgãos e estatais para o grupo de Arthur Lira?

A primeira vantagem é uma espécie de seguro contra crises. Ter o Centrão abrigado na Esplanada aumenta sua proteção contra chantagens que se materializam em pedidos de CPIs, pautas-bomba de natureza fiscal e até mesmo em votações de retrocessos na área social ou ambiental - vide o caso do marco temporal das terras indígenas.

Além de buscar sossego para governar, a associação formal com o Centrão também amplia as chances de promoção de medidas de crescimento econômico no Parlamento. Político experiente que é, Lula aposta em PIB e emprego em alta para resgatar sua credibilidade junto a parcela expressiva do eleitorado - principalmente as classes C e D - e, assim, chegar em 2026 com chances confortáveis de derrotar o bolsonarismo.

Como se sabe, a bancada do Centrão é muito bem conectada com representantes do agronegócio, da construção civil e de importantes empresas da indústria e dos serviços. Ao acomodar em seu bloco essa expressiva bancada empresarial, o governo terá a oportunidade de passar propostas creditícias, tributárias e regulatórias que estimulem o crescimento a despeito das limitações do arcabouço fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e uma postura ainda conservadora do Banco Central.

A entrada do Centrão no ministério de Lula é a sua cartada para garantir paz e apoio para uma agenda econômica que almeja mais quatro anos de Presidência do PT e, se possível, com uma bancada mais confortável no Congresso.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.

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NÃO PERDER OPORTUNIDADES

Gustavo Loyola*, Valor Econômico

O projeto de reforma sintetiza o anseio na sociedade por um sistema tributário mais racional e equitativo

Roberto Campos teria dito que “infelizmente, o Brasil nunca perde uma oportunidade de perder oportunidades”. Essa frase cai como uma luva quando tramita no Congresso Nacional um projeto de reforma profunda dos tributos que incidem sobre o consumo, cuja aprovação tem o potencial de impulsionar o crescimento da economia brasileira nas próximas décadas.

Muito embora o projeto em discussão no Legislativo represente uma oportunidade ímpar para se adotar no Brasil um regime de tributação sobre o consumo dos mais avançados no mundo, infelizmente grupos de pressão têm atuado ativamente para levá-lo ao fracasso, claramente colocando interesses regionais e setoriais acima do interesse nacional. Como munição, tais grupos, muitas vezes, não hesitam em lançar mão de falácias, meias verdades ou equívocos técnicos flagrantes.

O mencionado projeto prevê a substituição de cinco tributos por um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) dual, mantendo separados o IVA que engloba tributos hoje na órbita federal (IPI, PIS e Cofins) daqueles que estão nas esferas estadual e municipal (ICMS e ISS). Conquanto o ideal fosse a criação de apenas um IVA nacional, os autores do projeto, de maneira inteligente, optaram pela dualidade do tributo, com vistas a afastar a ideia de que haveria o enfraquecimento da Federação, caso houvesse a concentração em apenas um único tributo, gerenciado pela União.

Apesar disso, ainda há aqueles que seguem apontando o projeto como uma ameaça à autonomia dos Estados e municípios. O argumento parece-me falacioso, pois o projeto não impede que os entes federados possam fixar as alíquotas para seus territórios. O que na realidade o projeto veda é atribuir poder discricionário a Estados e munícipios para fixar hipóteses de incidência e bases de cálculo do tributo, porque isso representaria a manutenção do manicômio atual, onde há de fato 27 regimes tributários diferentes, anulando um dos grandes benefícios almejados pela reforma, que é a simplificação tributária e a diminuição do custo de observância pelos contribuintes. Vale notar que outras nações organizadas politicamente como federação, como a Alemanha, há muito adotam o IVA nacional, sem prejuízo dos princípios federativos.

Outra discussão que tem potencial para ferir de morte a reforma tributária diz respeito à criação de exceções à regra geral, para beneficiar determinados segmentos econômicos. A PEC como aprovada na Câmara dos Deputados já se afasta bastante do ideal de uma alíquota uniforme, ao prever três alíquotas: a cheia ou de referência, uma reduzida em 60% em relação à de referência e a alíquota zero, além de regimes especiais ou com a faculdade de adesão pelo contribuinte como do Simples e o da Zona Franca de Manaus. Caso prosperem tais exceções e mais aquelas que ainda estão sendo cogitadas, a alíquota de referência do novo tributo dificilmente ficará muito abaixo dos 30%, que é um percentual muito acima da média observada internacionalmente. Ou seja, para que o nível de arrecadação atual seja mantido, uma maioria das empresas pagará uma conta mais salgada por causa das vantagens tributárias atribuídas a alguns setores minoritários.

De toda maneira, vale ressaltar que a criação do IVA nos moldes ora em discussão pelo Legislativo trará enormes benefícios para a economia brasileira. A tributação no destino e a eliminação dos tributos em cascata vão permitir que a alocação de recursos siga a racionalidade econômica, e não mais uma busca pura e simples de vantagens tributárias, o que deve tornar a economia mais produtiva e a produção doméstica, mais competitiva nos mercados externos. Ademais, o país deixará de exportar impostos, em razão de a incidência passar a ser no destino e não mais na origem, como na presente situação, em que o processo de desoneração das exportações é imperfeito e tortuoso, principalmente em razão da dificuldade de se transferir créditos tributários entre os distintos entes federados. Além disso, a adoção do IVA dual, ao simplificar profundamente a legislação tributária vigente, deve reduzir de modo significativo o custo de observância pelas empresas, inclusive diminuindo a insegurança jurídica e o alto grau de litigiosidade entre as autoridades tributárias e os contribuintes.

Por outro lado, o longo período de transição entre o modelo atual e o proposto na reforma e os mecanismos nela previstos para preservar o atual nível de arrecadação de Estados e municípios afastam os riscos da transição de regime, tanto para o Fisco quanto para os contribuintes. Tal característica da reforma, a meu ver, permite que haja mais ousadia na busca de um modelo de IVA o mais próximo do ideal, com um mínimo de exceções e de regimes especiais.

Em suma, está nas mãos dos congressistas a responsabilidade de evitar que mais uma vez o Brasil perca uma oportunidade. O projeto de reforma dos impostos sobre o consumo resultou de anos de estudos e debates e sintetiza o anseio majoritário na sociedade brasileira por um sistema tributário mais racional e equitativo. Cabe ao Congresso Nacional não apenas aprovar a reforma, como também preservar seus princípios basilares de modo a evitar que todo esforço redunde apenas numa “troca de seis por meia dúzia”.

*Gustavo Loyola, doutor em economia pela EPGE/FGV, foi presidente do Banco Central e é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo.

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CRÉDULOS E INCRÉDULOS

Denis Lerrer Rosenfield*, O Estado de S. Paulo

Quando o governo promete o equilíbrio fiscal ou uma reforma tributária que não aumente impostos e tributos, deveríamos considerar tal promessa com especial desconfiança

O novo governo, desde o seu início, mostrou sua inequívoca tendência gastadora, trazendo à tona todas as velhas ideias petistas acerca do aumento do Estado e de suas funções, mostrando uma clara desconfiança em relação à economia de mercado. Sua primeira Proposta de Emenda Constitucional (PEC) foi certeiramente denominada de PEC da Gastança, à qual se seguiram várias iniciativas, entre as quais o projeto hegemônico petista de aparelhamento do Estado, cuja medida mais recente foi a nomeação do presidente do IBGE; a tentativa malsucedida, felizmente, de desrespeito à Lei do Saneamento, que teria implicado o fortalecimento de empresas públicas estaduais ineficientes; e a suspensão do processo de privatizações. O leque seria grande, tendo todas em comum o mesmo pendor para o fortalecimento do Estado em quaisquer circunstâncias, não estando minimamente propenso a avaliar o mérito de funções e projetos governamentais. Em tal ritmo, ainda segundo essa ótica, só mais gastos se tornam necessários, o que, obviamente, se traduz em mais impostos.

Logo, quando o governo promete o equilíbrio fiscal ou uma reforma tributária que não aumente impostos e tributos, deveríamos considerar tal promessa com especial desconfiança. Toda cautela é pouca. De fato, como podemos acreditar em equilíbrio fiscal, se o governo só pensa em aumentar os gastos? Ainda recentemente, o presidente Lula deu mais subsídios à venda de novos automóveis, como se o financiamento de montadoras fosse uma prioridade nacional. Comprem automóveis e não pensem na educação pública de baixa qualidade e num sistema precário de saúde! E ainda temos a iniciativa, por agora suspensa, de financiar a compra da linha branca de eletrodomésticos. De onde virão os recursos para financiar tais iniciativas irresponsáveis? Só há uma resposta possível: elevação de impostos!

Portanto, é necessária uma boa dose de credulidade para acreditar que a atual reforma tributária será neutra do ponto de vista da arrecadação. Aliás, os números não são sequer apresentados, em particular a alíquota do novo imposto, para além das alíquotas do imposto seletivo que incidirá sobre certos produtos e atividades econômicas. Tudo, segundo os artífices da reforma, será apresentado em futuras leis complementares. Até lá, devemos crer na palavra de gastadores contumazes!

Enquanto isso, os setores mais bem organizados politicamente conseguem manter e/ou introduzir emendas na PEC da reforma assegurando seus interesses particulares, sem que nenhum cálculo seja feito no que diz respeito à sua incidência geral. Estes são, na verdade, os incrédulos que querem tudo colocar na Constituição, visto que não acreditam no governo. Se acreditassem, poderiam tudo deixar para regulamentação posterior em leis complementares. Ora, os crédulos são precisamente os que acreditam que o governo tenha a intenção de não aumentar os impostos neste cenário.

Uma forma particularmente ardilosa de disfarçar um eventual aumento de imposto é a do imposto seletivo, de viés claramente arrecadatório. Na proposta que segue para o Senado consta, inclusive, que deveria financiar a Zona Franca de Manaus. Por que não deixar tal debate para o momento de apresentação das leis complementares? Entretanto, o mais interessante é que tal imposto é uma espécie de tradução de um imposto sobre o “pecado”. São bens pecaminosos que deveriam ser especialmente tributados. O indivíduo deveria pagar por ter “pecado” ao ingerir bebidas alcoólicas, ao fumar, comer alimentos com alto grau de gordura, sal e açúcar. Seriam os “pecados contra a saúde”, como se as pessoas não pudessem escolher livremente sobre o que é melhor para si. Agora, haveria uma outra novidade, a do “pecado contra a natureza”, que incidiria sobre agroquímicos ou empresas de transporte que utilizem combustíveis fósseis e de mineração. A lista seria imensa e indefinida, tendo como único árbitro o governo, que diria o que é melhor para cada um. Se vocês pecarem, o Estado os punirá!

E isso é só o começo, pois o momento se aproxima da nova proposta da segunda etapa da reforma tributária, a do Imposto de Renda em suas várias modalidades. Aqui, pelo menos, o disfarce é menor, visto que a intenção arrecadatória é nítida. Já está sendo introduzida, por exemplo, pelas atuais autoridades a discussão a respeito do aumento da tributação sobre heranças e doações, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Uma espécie de atraso de nossa legislação, na verdade, uma forma apenas de financiamento do Estado. Os que nada produzem querem gastar o fruto do trabalho alheio. Ora, a herança e os bens das pessoas em geral são o fruto de seu próprio trabalho, resultado produtivo de toda uma vida, para o qual impostos e tributos foram sempre pagos. É mais do que legítimo que sejam transmitidos aos seus, sem que o Estado tenha nada que ver com isso. Ou será que deveríamos mais propriamente denominar tal imposto de tributo à morte? Será que até para morrer as pessoas deveriam pagar impostos?

*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS

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TRIBUNAL DAS REDES SOCIAIS NÃO PERDOA

Miguel de Almeida, O Globo

Mesmo declarado inocente por dois diferentes júris, Kevin Spacey ainda corre risco

As duas absolvições de Kevin Spacey — pela Justiça americana, em 2022, e agora pela britânica — poderiam significar um antes e um depois na guerra identitária. Ao menos na fratricida dilapidação de biografias e carreiras. Inocentado em mais de uma dezena de acusações de crimes sexuais, inclusive estupro, a tragédia do ator se soma ao de outros personagens, como Woody Allen e Johnny Depp, também abatidos por denúncias jamais comprovadas.

Mesmo declarado inocente por dois diferentes júris, Kevin Spacey ainda corre o risco de seguir o script vivido por seus companheiros de profissão e infortúnio, qual seja, a Justiça terrena absolve, mas o tribunal das redes sociais, e seus lobbies respectivos, martelam uma condenação sumária. Allen, embora nem sequer haja sofrido um processo formal, pela inconsistência das provas, padece ainda em conseguir financiamento para suas obras, além de sofrer o cerceamento na exibição de seus filmes em alguns países. Depp, outro inocentado, continua marcado como alguém que agredia a ex-mulher, apesar de o júri condená-la a indenizá-lo pelas falsas acusações.

A torcida, nos três casos, era de punição extrema aos artistas. Pode-se falar numa espécie de oximoro — a tal inocência indesejada; quando, por um desejo sanguinário, mas infelizmente demasiado humano, se deseja a bancarrota da celebridade, sua total aniquilação. A condenação deles, aos olhos desta expedição punitiva, seria exemplar e didática — mesmo os gênios merecem o castigo por seus erros. Como houve aposta no cavalo errado, o tribunal virtual joga fora a criança junto com a bacia e a água: a Justiça errou.

A guerra identitária pauta não apenas a área cultural, numa autofagia dramática que mistura dinheiro e inveja, como ajudou a eleger dois ex-presidentes. Trump e Bolsonaro — que hoje alternam seus dias ora em depor na justiça, ora em conversar com seus advogados, ora em voltar à delegacia — trouxeram ao palco eleitoral o embate de questões de gênero e raça como ferramenta de clivagem e de incentivo a preconceitos.

Por oportunismo e ignorância, levaram ao discurso político ingredientes retirados da indigência intelectual e emocional, ainda não superados pelo lento processo civilizatório. Ao lidarem com preconceitos de raça e gênero, os dois ex-presidentes mobilizam eleitores por meio da irracionalidade e do despudor. Em lugar de agregar em torno de propostas, procuram clivar a sociedade pelos preconceitos. Na História, o ódio sempre resultou em boas votações; a construção de inimigos é uma velha estratégia, capaz de esconder a complexidade dos problemas.

Mesmo que Bolsonaro hoje caminhe para o ostracismo, restando a ele frequentar almoço de batizado, seu legado de atraso ainda é um — digamos — ativo podre. Haja vista parte do eleitorado acreditar que o Brasil se encontra à beira de se tornar um país comunista.

À esquerda, o discurso político identitário também não deixa de mobilizar preconceitos. Permanece como a venda de terreno na Lua, escudado em boas intenções. O ataque de Jean Wyllys sobre Eduardo Leite integra o figurino. Bastou o governador gaúcho declarar que manteria as escolas cívico-militares no Rio Grande do Sul para ser tachado de homofóbico pelo ex-deputado pelo Rio de Janeiro. Lendo as entrelinhas, Wyllys o chamava de heterossexual enrustido. Ai, ai.

Em seu estilo robocop de intervenção política, Wyllys procurou pintar Eduardo Leite como um gay de direita. Até aí nenhuma novidade. Leite teve a coragem de se declarar homossexual e é notoriamente um político de centro-direita. Mas, ao juntar as duas definições, Jean Wyllys quis negar o óbvio — não é todo gay que necessariamente é de esquerda. Não, meu bem, isso não funciona assim. É mais fácil o vascaíno ter um segundo time do coração do que a identificação política determinar opção sexual. O que Jean Wyllys diria sobre J. Edgar Hoover, o ultradireitista diretor do FBI?

A guerra identitária, ora à esquerda, ora à direita, é um cobertor bastante curto. Eduardo Leite não se elegeu governador gaúcho duas vezes por ser gay; ao contrário de Wyllys, cuja bandeira é a sexualidade. Bolsonaro e Trump perderam suas reeleições — vale lembrar: mesmo tendo a máquina na mão —, embora mantivessem na mira os ataques de gênero e de raça — além da misoginia histérica. Também o público se viu derrotado ao não ter as espetaculares atuações de Kevin Spacey e as deliciosas obras de Woody Allen a cada nova estação. Choremos por isso.

O ostracismo de Bolsonaro, a derrota do ultradireitista Vox na Espanha e a absolvição de Spacey talvez indiquem mais poesia e menos ódio. (Ao menos por algumas horas.)

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JUVENTUDE E O BÔNUS DEMOGRÁFICO

Ricardo Henriques, O Globo

Censo mostra que estamos mais próximos do fim do período em que a estrutura populacional é mais favorável ao crescimento econômico por causa da maior proporção de pessoas em idade ativa, em relação a crianças e idosos que não trabalham

Os primeiros dados do Censo do IBGE mostraram que estamos mais próximos que o previsto do fim do bônus demográfico, período em que a estrutura populacional é mais favorável ao crescimento econômico por causa da maior proporção de pessoas em idade ativa, em relação a crianças e idosos que não trabalham. Infelizmente, deixamos de aproveitar plenamente essa janela.

Avanços insuficientes de oportunidades educacionais, nível insatisfatório de qualificação profissional (técnica e universitária) e, mais recentemente, uma crise quase contínua do mercado do trabalho estão entre os fatores que nos prejudicaram.

O fim do bônus, no entanto, não significa que essa agenda perdeu relevância. Aproveitar o fim da janela desta transição, sobretudo em um contexto de crescente diminuição de força de trabalho e aumento da pressão sobre os sistemas de seguridade social, requer um olhar atento para nossas juventudes, especialmente para os grupos historicamente mais prejudicados.

Embora a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C) tenha evidenciado avanços importantes na última década, alguns desafios estão longe de ser superados. A proporção de concluintes do ensino médio na faixa etária de 18 a 24 anos aumentou entre 2012 e 2022, com destaque para os jovens negros, que saltaram de 46% para 63%. O indicador, no entanto, permaneceu inferior ao calculado para os jovens brancos em 2012 (66%).

O país ainda impõe aos jovens negros, portanto, uma década de “atraso”. O mesmo ocorreu no ensino superior. Em 2022, 34% dos jovens brancos de 18 a 24 anos estavam em cursos desta etapa, proporção que, entre jovens negros, era de apenas 19%. Apesar de contarmos com iniciativas essenciais, como a Lei de Cotas, os avanços foram insuficientes.

Outro dado relevante é a mudança na escolaridade dos jovens sem-sem (sem estudar e sem trabalhar) ao término da educação básica. Se, em 2012, 49% desse grupo específico possuíam ensino médio completo, em 2022, essa proporção aumentou para 62%.

Isso não significa que o esforço para aumentar a conclusão desta etapa tenha sido em vão, pois o aumento de escolaridade traz ganhos que ultrapassam o mercado de trabalho. Mas é um sinal importante de que, se por um lado estamos registrando ganhos no acesso à escola, por outros, estamos falhando na transição dessa população para o mercado de trabalho ou ensino superior.

Tal desafio fica ainda mais evidente ao compararmos a taxa de desemprego na faixa de 18 a 24 anos (20,7%) com o grupo de 25 a 60 anos (7,4%). O desemprego de jovens também é sensivelmente mais alto no Brasil quando comparado com a média dos países da OCDE e de vizinhos como Chile e Argentina, de acordo com o relatório Education at a Glance, produzido pela OCDE, de 2022. Além de enfrentarem dificuldades de inserção ocupacional, os jovens também se encontram em posições mais precárias da estrutura produtiva.

Esses dados reafirmam a urgência de desenvolvermos políticas que minimizem os riscos do abandono e do atraso escolar, sobretudo para os jovens negros e da periferia. Além disso, devemos pavimentar caminhos para a inserção social dos jovens sem-sem. Uma forma de fazê-lo é articular educação e trabalho através de uma agenda intersetorial de políticas públicas, desde a oferta de creches públicas, passando por políticas de incentivo à permanência na escola até as políticas de qualificação profissional para as juventudes.

Não é possível falar do acesso a oportunidades sem tratar da socialização das atividades de cuidado, da mesma forma que não podemos ignorar os jovens que, sem experiência e qualificação profissional, não conseguem trabalhar e desistem de procurar emprego.

Economias fechadas e marcadas por empresas ineficientes e pouco competitivas, como a brasileira, tendem também a criar um ambiente restritivo para os jovens. Essa situação pode limitar suas perspectivas de empregabilidade e de desenvolvimento profissional, impactando, em última análise, o próprio crescimento econômico de um país.

O bônus demográfico brasileiro pode estar caminhando para o fim, mas o diagnóstico de que precisamos investir mais e melhor nos jovens, com especial atenção aos grupos mais vulneráveis, segue válido e urgente. Com ou sem bônus, o preço da negligência com nossas juventudes continuará custando caro ao Brasil, em todos os sentidos.

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XINGU, 50 ANOS À FRENTE

Artigo de Fernando Gabeira

Vocês chegaram ao país do carnaval. Quem sabe um dia uma escola de samba não conta sua saga no Atlântico?

Escrevo no Xingu, algo que, de certa forma, me parece o coração do Brasil. Um coração com algumas pontes de safena, sangue escasso e contaminado de um belo rio que corre pelas suas artérias. Como o grande coração do cacique Raoni, regido por um marca-passo.

A chamado do próprio Raoni, muitas etnias se reuniram aqui para discutir os problemas dos povos originários. Não são poucos.

Grande pesquisador da Amazônia, Paulo Moutinho me disse algo que não esquecerei: o futuro já chegou ao Xingu, a região está 50 anos adiante quanto aos efeitos do aquecimento global.

De fato, há rios secando, rios que se tornam intermitentes, e o belo Xingu também sofre com hidrelétricas, poluição do garimpo e da extensa plantação de soja.

Estamos entrando num dos mais severos El Niños da História. Temo pela Amazônia. Ouvi a história de um velho cacique para quem o barulho de folhas secas pisadas são uma novidade. Na infância ele nunca o ouviu; daí o medo de grandes queimadas.

Quando fui deputado, procuramos estudar o El Niño e indicar algumas medidas para atenuar seu impacto. Passou muito tempo, e parece que agora o El Niño vem que vem bravo.

Os jovens indígenas são combativos e manejam a internet. Raoni chamou um grande encontro no Xingu também para passar o bastão. Ele anda pelos 94 anos, e outros líderes também envelheceram. Os jovens e as mulheres parecem estar prontos para conduzir o processo. Aliás, as mulheres já estão no Ministério dos Povos Indígenas, na presidência da Funai e no Parlamento.

Sei que falar de indígenas nem sempre é fácil. No passado, os editores não gostavam, e os políticos associavam usar cocar a ter anos de azar.

Mas há algo que as pessoas precisam saber. No Xingu, por exemplo, 16 etnias evitam que os efeitos climáticos devastem mais a região com consequências para toda a humanidade.

Seria interessante pensar também como as pessoas que menos devastaram o planeta são as que mais sofrem, sobretudo vendo desaparecer a água, seu recurso vital. As mudanças climáticas são injustas, mas aqui no Xingu sentimos o peso dessa conclusão.

Algumas figuras, sobretudo a corrente política que esteve no poder, acham que os indígenas deveriam se integrar à sociedade.

Às vezes, os males que marcam seu corpo nascem do encontro conosco. Em alguns lugares, a cachaça destrói o fígado; em outros, os refrigerantes e biscoitos impulsionam a obesidade, diabetes e a pressão alta.

Lembro-me do romance do querido Antônio Callado em que o personagem Nando se preparava para uma romântica viagem revolucionária e se perguntava o que se leva na mala para o Xingu. Aconselharia uma dose de realismo, algum repelente e se preparar para o calor, que já é muito intenso no inverno. O curso da vida foi duro com o coração do Brasil.

Ainda bem que existem as imagens para mostrar como é bom passar por aqui. Elas mostram a beleza que ainda existe. Para mim, essas viagens são um encontro com o passado. Há 34 anos, participei do Encontro de Altamira, um protesto contra a construção da usina de Belo Monte. Raoni estava lá, documentei seu encontro com Sting, conheci Anita Roddick, dona da The Body Shop. Os sobreviventes de muitas lutas estão por aqui. Roberto Smeraldi, a quem conheci no enterro de Chico Mendes, e quase fomos espancados por fazendeiros no aeroporto de Rio Branco. O grande amigo dos indígenas Sydney Possuelo, a quem consulto regularmente. Acabo de falar com uma japonesa que ajuda os caiapós há 30 anos e mora em Tóquio. Talvez esse encontro seja para nós também apenas a renovação da esperança numa luta que, certamente, transcende os limites de nossa vida.

Não se pode falar em grandes vitórias. Apenas isto: o coração ainda bate.

Artigo publicado no jornal O Globo em 31/07/2023

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domingo, 30 de julho de 2023

DOIS PROTAGONISTAS E UM VÁCUO POLÍTICO

Paulo Fábio Dantas Neto*, Democracia Política

Após três semanas sem publicação da coluna, permanecerei, neste artigo, próximo ao tema do último publicado antes do recesso (O jogo político e a institucionalidade dos poderes de governo, 09.07.23). Sigo aqui não apenas o fio daquela análise precedente, como pistas de outras análises que também sugerem estar havendo uma reconfiguração da dinâmica interna do sistema político, no que se refere a papéis que Legislativo e Executivo, assim como instituições e atores políticos diversos, vêm desempenhando, praticamente, na sua interação institucional. Tanto os dois poderes como partidos políticos e atores individuais que exercem responsabilidade institucional destacada têm atuado de modo a pôr em xeque a habitual lógica de coalizão parlamentar para fins de governo e a realçar o que, especulativamente, pode se entender como lógica de coligação eleitoral contínua, assentada em acordos pontuais instáveis.

Como possível explicação – ou ao menos interpretação – dessa inflexão nas condutas políticas de atores relevantes (que não vem de hoje, mas se intensificou e “normalizou” a partir das eleições de 2018), aparece o deslocamento das garantias de governabilidade do país de um circuito de relação institucional antes coordenado pelo Presidente da República para outro, controlado por maiorias parlamentares formadas com grande autonomia política perante governos. Enquanto a governabilidade (especialmente econômica) depende cada vez mais dessa coesão legislativa do que de uma interação fluente entre os poderes, as estratégias eleitorais de lideranças e partidos, ao se tornarem atividades permanentes e crescentemente prioritárias, para esses atores, passam a demandar recursos políticos e materiais provenientes de decisões de ambos os poderes, exigindo práticas de cooperação entre eles.  O orçamento público é o melhor exemplar dos laços que os atam.

Acrescentarei, a esse pano de fundo, uma reflexão sobre como análises de conjuntura podem/devem ser afetadas pela reconfiguração sistêmica. Essas análises, para manterem pés no chão, precisam lidar com o fato, a princípio insólito, da acentuação de poder pessoal nos dois poderes, em pleno processo de reinstitucionalização após a liquefação da política nos anos bolsonaristas. Falo, evidentemente, de um “duplo L” que pontifica na nova conjuntura. De um lado, o de Lira movimenta-se entre demandas pragmáticas (individuais e corporativas) dos seus pares, por prerrogativas e recursos públicos e pressões, também corporativas, de agentes do PIB, dispostos a rebaixar aquelas demandas. Nesse ir e vir, submete mais e mais o processo legislativo da Câmara a seus desígnios imperiais. O L de Lula, por sua vez, faz do terceiro governo do personagem uma sucessão de soluços entre compromissos com parâmetros de governabilidade ditados pelo Legislativo e requerimentos da arena plebiscitária, na qual seu poder pessoal se reproduz como pêndulo, conservando-se árbitro da conveniência de mostrar, a cada ocasião particular, uma das faces desse script. Nenhuma orientação nítida flui. Ao contrário da maioria coesa do Legislativo, para cuja lógica eleitoral governabilidade e palanque são subprodutos distintos da mesma política cartorial, Lula precisa usar o cartório, ritos institucionais e discurso plebiscitário consentido pelos ritos, como meios de manter salvo o seu cargo e ativo o seu palanque.

Na contramão dessa realidade complexa e opaca, rica em desdobramentos possíveis, mas não ainda suficientemente delineada, sobrevive, em análises de conjuntura, um raciocínio resiliente, inercial, que entende o governo do país como emanação de escolhas estratégicas do Presidente da República, enfatizando a dinâmica do Executivo como dínamo dos processos decisórios. Por esse ângulo já não se vê bem as coisas, mas ele segue mantido para analisar, por exemplo, o espectro da reforma ministerial. O objetivo desde sempre atribuído à aguardada reforma é o de ampliar e estruturar a base parlamentar governista para assegurar governabilidade através da aprovação de matérias de interesse do governo. Mas não está claro qual é a agenda de votações que se tem, afinal, em mira.

No plano da economia, há uma agenda do Legislativo composta das chamadas "reformas micro econômicas", oriundas do tempo do ex-ministro Paulo Guedes, com orientação pró-mercado. Nas atuais condições de temperatura e pressão vigentes naquele ambiente, elas serão feitas, não porque a composição ministerial seja essa ou aquela, mas porque é uma agenda que já tramita no Congresso e em torno da qual há, como havia no caso do arcabouço fiscal, consensos bem além dos marcos do antigo ou do novo governismo. Na ponta oposta à que se situa essa agenda de persuasão figura uma de embate, na qual pautas-bomba de costumes talvez não surjam com frequência, mas pode entrar, por exemplo, a reforma administrativa que agrada ao PIB e embaraça a relação do PT com parte de suas bases. Ministérios para o centrão podem arrefecer ânimos dispostos a jogar água nos palanques petistas.

O que não se conhece é a pauta do Executivo que a reforma ministerial viabilizaria. O ministro Haddad elevou um pouco o tom político, na semana passada, após a vitória nas mudanças das regras do CARF e avançou comentários sobre mudanças no Imposto de Renda, as quais seriam, do ponto de vista do governo, um complemento socialmente progressista da reforma tributária. Ecoa assim compromisso de campanha do Presidente. Pode ser uma pista sobre essa agenda ainda não explicitada? O ministro da Fazenda foi secundado hoje pelo Secretário Executivo do Ministério do Planejamento, que aventou a possibilidade de cortes de despesa se o Congresso não aprovar aumento de receitas. Mais uma evidência de sintonia entre as duas pastas, mesmo num momento em que a ministra Simone Tebet foi alvejada por um torpedo político petista. Mas essa sintonia não revoga a falta de outra, entre essa pauta progressista insinuada pelo governo e as inclinações e compromissos existentes, num Congresso de centro-direita, com setores a princípio afetados, negativamente, pelas cogitações que Haddad anunciou. O certo é haver controvérsia. O duvidoso é se a articulação política do governo crê e aposta que, abrindo espaços ao centrão no ministério, obterá, de fato, votos parlamentares para converter a pregação em lei. Ou se essa pregação, assim como vários outros pontos de uma pauta à esquerda, tem como endereço não exatamente a consagração legislativa e sim a arena plebiscitária, que é a principal bússola política do presidente e um campo de teste obrigatório para um eventual candidato seu.

A simultaneidade constante e o paralelismo “funcional” entre as lógicas da governabilidade e da busca de popularidade subvertem calendários concebidos em etapas estanques e são a principal novidade que a reconfiguração sistêmica das relações entre os dois poderes governativos acrescenta à conjuntura política, afetando estratégias de líderes e de partidos. Traz possibilidades desses atores adotarem políticas de aliança distintas e também simultâneas e paralelas.

Uma consequência disso é a impropriedade de se pensar, por exemplo, a centro-direita, campo político hegemônico no Congresso e em vias de crescer no Executivo, como se fosse um bloco coeso, tendente a abarcar também o centro. A coesão é real no apoio à agenda de reformas econômicas e administrativas, mas nem de longe repete-se no plano da política interna aos poderes ou em pautas políticas setoriais.

Artur Lira tenta borrar as diferenças internas a esse grande campo para reinar sobre o conjunto dele e se apresentar, a interlocutores políticos e econômicos, como mais que seu representante, seu mentor. Já Lula, o que está fazendo há sete meses é, gradual e sistematicamente, optar por uma centro-direita mais à direita – a de Lira - em detrimento de outra, mais ao centro do espectro político. Em outras palavras, empoderando o centrão contra um centro alternativo ensaiado, no terreno do Legislativo, pelo MDB e PSD, dois partidos de protagonismo relevante no Senado e capazes de, unidos ao Republicanos e ao Podemos em bloco parlamentar na Câmara, criarem uma alternativa ao poder pessoal de Artur Lira. Esses dois partidos sofrem, no Executivo, um monitoramento ou mesmo bloqueio parcial de seus espaços políticos pela influência assimétrica do PT nesse âmbito.

Lira e Lula ajudam-se mutuamente ao procurarem realinhar o Republicanos, na contramão do governador de São Paulo. O argumento do governo é que com isso afasta aquele partido do bolsonarismo, com o qual Tarcísio de Freitas ainda teria laços operativos e simbólicos, no passado e no presente. Falacioso, primeiro, porque são raros os que, no contexto político paulista, poderiam, sem olhar para os lados, atirar a primeira pedra no atual governador. Falacioso também porque aquilo que de fato fazem é tentar empurrar Tarcísio de Freitas a uma guinada mais à direita para, na sequência, ser possível demonizá-lo com mais razão. E, principalmente, tentar cortar os elos do Republicanos com o PSD e o MDB pelo potencial que têm os três partidos juntos de constituírem, mais adiante - a depender dos rumos do governo, do seu desempenho eleitoral e das sucessões nas duas casas legislativas – uma aliança política mais perene e de maior organicidade. Poderes pessoais da dupla de atores aqui analisada não se dão bem com pares que não atuem estritamente dentro da lógica da política líquida que pontificou sem peias durante o governo de Bolsonaro.

A investida sobre o ministério do Planejamento, no episódio da escolha do novo presidente do IBGE, deve ser inserida nesse quadro mais geral. A fulanização do assunto pode servir a interesses políticos de distintos “lados”, mas não ajuda a entender melhor o que se passa. Do mesmo modo não ajuda à elucidação da cena comprar o hábil discurso minimizador da ministra pelo seu valor de face. Os caroços podem entalar quem não os avistar para mastigá-los bem, ou expeli-los, antes de deglutir o angu.

Em condições típicas de normalidade do que sempre foi o presidencialismo de coalizão cabe interpretar, sem dúvida, como uma óbvia e flagrante imprudência designar uma figura de trajetória politicamente polêmica como Marcio Pochmann para dirigir uma área tão sensível para políticas públicas, justamente numa hora em que o ambiente econômico melhora, com a adoção de soluções moderadas no Legislativo e de uma política de entendimento ao centro no Executivo, levada à frente sob a liderança do ministro da Fazenda, com a cooperação ativa da ministra do Planejamento. O fato gerador de uma quase crise política no governo tem até cheiro forte de provocação, sabotagem, quiçá de fogo amigo. Espantoso, pelos padrões convencionais de conduta que se espera do Presidente num sistema assim, Lula não proteger Haddad e sua importante aliada de tal risco numa hora dessa.

O maior problema seria a fricção política que essa indicação potencialmente traz para o trabalho da equipe econômica, que precisa de sossego e blindagem. Haddad e Tebet vêm tocando uma partitura comum, internamente ao governo e em entendimento fluente com a agenda e a liderança do Congresso. Essa agenda, por sua vez, parte de premissas e de diagnósticos bem distintos dos pontos de vista públicos de Pochmann. Seria o caso de querer fazer contraposição quando se tem plena noção do limite de governabilidade, no país da política real? É até possível e talvez até se deva, a partir de um governo com perfil de centro-esquerda que se elegeu com um discurso esquerdista, apesar do apoio de liberais, questionar, através de políticas públicas específicas, diagnósticos e premissas que sustentam a agenda coesa do Congresso. Mas fazer isso no IBGE, um órgão de importância para a política econômica e o de maior envergadura num ministério sistêmico, gerido por uma aliada liberal, seria brincar com fogo.

Todas essas convicções razoáveis sobre a imprudência do gesto político parecem relativizadas quando se considera o paralelismo entre governabilidade e estratégia eleitoral que Lula parece começar a crer que vigora no Brasil. Colocar no IBGE, como antes no BNDES, um contraponto à lógica política da área econômica do próprio governo não afetaria as condições de governabilidade política com que os ministros da área operam porque essa governabilidade depende não tanto do que  o presidente e vários outros ministros digam ou façam, desde que esses apitos não alterem a atitude dos ministros da área, de assimilação das premissas e da agenda de políticas que orienta a maioria legislativa. É improvável que o espaço dado ao centrão de Lira altere esses condicionantes estipulados pelo interlocutor que tem o maior poder de agenda. O que esses novos espaços farão é dar ao governo o nada a obstar dessa maioria à agitação e propaganda do presidente e seu governo em torno dos temas que são caros a seu discurso político. Os termômetros da eficácia desse acordo serão, de um lado, o centrão no ministério, de outro, a abstenção da maioria legislativa de lançar torpedos legais contra a pauta do palanque do presidente.

Em suma, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Lula poderá sempre dizer que não faz mais por causa do Congresso e do BC. Lira poderá continuar sendo o mandachuva que ajuda a reeleição de deputados. E ambos compartilharão o bônus de responsáveis pelo êxito de uma política econômica moderadamente liberal que, de resto, tranquilizará os agentes da economia. Se a economia não corresponder aos planos aí a equação toda fracassa e restará para o futuro o balanço sobre qual poder herdará a parte politicamente reversível do fracasso e qual deles ficará com o mico na mão.

Lira prepara-se para superintender a sua sucessão, antes, durante e depois dela ocorrer. Seu limite é o da continuidade institucional, um tempo que não se pode adivinhar. Lula prepara-se para enfrentar o centro e a centro-direita liberal juntos em 2026. Ou num confronto direto, se o bolsonarismo definhar, ou como uma terceira via, a incorporar por gravidade. Quer o centrão no seu palanque para "provar", mais uma vez, que ele e o PT são a única via para a democracia se salvar.

Se alguém disser que é cedo para falar de eleições é porque não está convencido de que o presidencialismo de coalizão se exauriu e acha que ele pode dar conta do recado das urnas ou é porque não quer que venha a público a notícia de que ele, de fato, se exauriu e a competição eleitoral entrou em moto contínuo, seguindo à deriva. Uns e outros têm suas razões, para crer ou dissimular. Compartilhei outras, que sugerem estar se formando um vácuo político em torno de duas personalidades espaçosas.

*Cientista político e professor da UFBa

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ACORDO COM CENTRÃO RESSUSCITA POLÍTICA CONCILIAÇÃO

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

Agenda de direitos humanos e pautas identitárias não terão vez na base governista ampliada. Nesses quesitos, o governo só poderá avançar administrativamente

Com o fim do recesso do Congresso e do Judiciário, a política nacional retoma seu curso com dois fatos relevantes na largada. Primeiro, a conclusão do processo de aprovação do novo arcabouço fiscal e da reforma tributária, que ainda dependem de votações na Câmara e no Senado, respectivamente. Segundo, a retomada dos trabalhos do Judiciário, que tem na ordem do dia a conclusão do chamado inquérito das fake news, que investiga os responsáveis pela tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro, a cargo do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

É neste contexto que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva negocia a incorporação do Centrão ao governo, o que provocará um realinhamento de forças na Esplanada, sob a égide da velha “política de conciliação”. Também é neste cenário que o novo ministro do Supremo, Cristiano Zanin, tomará posse, na quinta-feira. Será o principal interlocutor de Lula nos bastidores da Corte. Em outubro, o ministro Luiz Roberto Barroso assumirá a presidência do STF, no lugar da ministra Rosa Weber, que se aposentará. É adversário figadal do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Voltemos às mudanças na Esplanada. Lula finge desconhecer o Centrão, mas a tese de que não existe é apenas um subterfúgio de narrativa. O acordo com o PP, de Ciro Nogueira (PI), e o Republicanos, do deputado Marcos Pereira (SP), sob a liderança do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é uma aliança com um partido conservador e oligárquico, de um lado, e os setores evangélicos ligados ao bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus.

Essa aliança isola Bolsonaro no Congresso e bloqueia o surgimento precoce uma candidatura de centro-direita robusta para 2026, no caso a do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que pode trocar o Republicanos pelo PL de Valdemar Costa Neto, partido de Bolsonaro.

A coalizão preserva as práticas fisiológicas e patrimonialistas do Congresso, uma das faces do nosso iberismo, e mais uma vez resgata a velha “política de conciliação” que uniu liberais (“luzias”) e conservadores (“saquaremas”) no Império, a partir do gabinete do Marques do Paraná (1853), o mineiro Honório Hermeto Carneiro Leão. Seu objetivo era conciliar as ações políticas dos dois partidos do Império, o Conservador e o Liberal, em torno de interesses comuns — no caso, a manutenção da escravidão, que somente foi abolida em 1888.

Para o notável historiador cearense Capistrano de Abreu, a “política de conciliação” era um “termo honesto e decente para qualificar a prostituição política de uma época”. Capistrano se dedicou ao estudo do Brasil colonial. Sua obra Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil ainda hoje explica muita coisa sobre a nossa formação política e cultural.

São Paulo

Mas essa não é a opinião dominante na política nacional. Conservador e monarquista, o político e diplomata pernambucano Joaquim Nabuco escreveu duas obras monumentais: O Abolicionismo (1883), fruto de suas pesquisas no British Museum, de Londres, e os três volumes de Um Estadista no Império (1897-1899), dedicada ao seu pai, o conselheiro Nabuco de Araújo, autor de um dos mais célebres discursos da história do Senado — “A ponte de ouro”, no qual se coloca em oposição aos liberais na província de Pernambuco, mas aceita participar do gabinete de maioria liberal de Paraná, por lealdade ao imperador Dom Pedro II.

Nabuco justifica assim a “política de conciliação”: “O reformador em geral detém-se diante do obstáculo; dá longas voltas para não atropelar nenhum direito; respeita, como relíquias do passado, tudo que não é indispensável alterar; inspira-se na ideia de identidade, de permanência; tem, no fundo, a superstição chinesa — que não se deve deitar abaixo um velho edifício, porque os espíritos enterrados debaixo dele perseguirão o demolidor até a morte”.

Isso é recorrente na nossa política, que arrasta as correntes do passado. O patrimonialismo, cuja mais nova versão é o Orçamento Secreto, parece uma fatalidade.O acordo de Lula com Centrão garantirá sua governabilidade e apoio às reformas econômicas que contam com amplo apoio empresarial. Entretanto, representará um bloqueio a mudanças mais profundas e estruturantes, que dependam de aprovação pelo Congresso. A agenda de direitos humanos e social e as pautas identitárias não terão vez na base governista ampliada. Nesses quesitos, o governo só poderá avançar administrativamente, mas sem contrariar a maioria do Congresso.

No Império, “luzias” e “saquaremas” dividiam o gabinete, juravam lealdades ao imperador e se digladiavam nas províncias em disputas pelo poder. É o que vai acontecer com o PT e seus aliados, e o Centrão nas eleições municipais. O melhor exemplo é o caso da Prefeitura de São Paulo. Lula fez um acordo com Guilherme Boulos (PSol) para receber seu apoio nas eleições passadas. Agora, terá que apoiá-lo.

Candidato à reeleição, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) busca o apoio de Tarcísio e Bolsonaro para remover a candidatura de Ricardo Salles (PL-SP) e se tornar única opção à direita nas eleições da capital paulista.

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POLÍTICOS DE TOGA ?

Merval Pereira, O Globo

Professor do Insper analisa o STF e diz que o problema é que juízes ajam e sejam vistos como se fossem iguais aos políticos, com idêntica lógica de atuação, que atuem e sejam percebidos como políticos de toga”.

Muitos tribunais constitucionais no mundo vêm sofrendo ataques crescentes, como o que acontece nos Estados Unidos, em Israel e no México. No caso do Brasil, a política nacional se moveu para a direita na última década, com uma guinada conservadora sobre várias questões que invariavelmente chegarão ao Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, como analisa o livro do professor do Insper e especialista no judiciário Diego Werneck Arguelles “O Supremo, entre o Direito e a Política”, a ser lançado pelo selo História Real de Roberto Feith na editora Intrínseca, além desse fenômeno internacional, “temos um desenho injustificável, em que se comportar politicamente ou não depende basicamente da virtude individual dos(as) ministros(as)”.

No Supremo Tribunal Federal (STF), relata Diego Arguelles, ministros têm amplo poder para decidir se, quando e como casos serão julgados. Para decidir ou obstruir casos sozinhos, seguindo suas solitárias crenças, suas preferências político-partidárias e até mesmo seus interesses estritamente pessoais (que podem ser nada republicanos). Para muitas vezes decidir o destino não só de quaisquer políticas públicas, de qualquer governo, mas sobre a pessoa física dos governantes e políticos — para decidir, por exemplo, se atores que foram decisivos para sua própria chegada ao tribunal devem ser presos ou podem concorrer a eleições.

“Muito antes de o conteúdo das decisões ser um problema, muitos de nossos ministros e ministras já se comportam politicamente, em várias dimensões — como falam em público, com quem se encontram e discutem os temas que julgarão, como escolhem quando julgar os casos sob sua relatoria”, comenta Arguelles, acrescentando: “Não há defesa razoável para esses comportamentos, nem para um sistema que os trata com naturalidade”.

Não há dúvida, segundo o autor, de que o STF foi atacado nos últimos anos “também por ter sido uma fundamental força de contenção de planos iliberais ou até abertamente golpistas”. Contudo, observa, justo pelo fato de que julgar será necessariamente grave e controverso, é preciso proteger essa tarefa. O especialista do Insper acha que do “Mensalão” para cá, a pauta do Tribunal se ampliou e se reconfigurou. Temas de direitos fundamentais foram cedendo espaço, inclusive na atenção do público, para questões que envolviam o direito penal e a responsabilização de políticos.

“Em meio à crise política que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, o Tribunal continuou se transformando diante da opinião pública, exercendo cada vez mais poder, de forma cada vez mais individual e conjuntural, e despertando cada vez mais suspeitas quanto à motivação de seus integrantes”. Arguelles defende que “o poder político deve ser controlado e canalizado, para proteção a direitos fundamentais e às regras do jogo democrático, com fins positivos para o país, por meio de regras constitucionais — e acredita que, para isso, um Supremo poderoso e independente é fundamental, cumprindo um papel que chamamos de “contramajoritário”.

Resumindo seu pensamento, ele descreve o papel do Supremo: “Uma instituição que precisa proteger a Constituição que os constituintes criaram, com seus problemas e contradições, e não a Constituição que gostaria que os constituintes tivessem criado”.

Enfrentar essas falhas exige, lembra Arguelles no livro, “proteger o Tribunal da política, a de fora e a de dentro”. Ele considera “inevitável que algumas tarefas do Supremo envolvam considerações políticas que moldarão os argumentos de seus ministros”. Diego Arguelles acredita que não é problema que a atuação de juízes constitucionais tenha interseção com a dos políticos eleitos. “O problema, sim, é que juízes ajam e sejam vistos como se fossem iguais aos políticos, com idêntica lógica de atuação, variando apenas os meios (e as indumentárias). Que atuem e sejam percebidos como políticos de toga”.

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OS MORALISTAS SEM MORAL

Do Congresso em Foco

DEPUTADO GUSTAVO GAYER, DO PL, OCULTOU EMPRESAS EM DECLARAÇÃO AO TSE

Em sua campanha nas eleições de 2022, o hoje deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) declarou um patrimônio modesto para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na plataforma Divulgacandcontas, que disponibiliza publicamente as declarações de bens de candidatos, o até então empresário alegou ser dono apenas de um automóvel Tucson modelo 2012, no valor de R$ 33 mil, e suas quotas no curso Gayer & Gayer Idiomas Ltda, com capital social de R$ 10 mil. Documentos obtidos pelo Congresso em Foco já demonstram que seu patrimônio era muito maior.

Em seu perfil do Instagram, Gustavo Gayer oferece um link com acesso aos seus perfis nas demais plataformas. Entre eles, está a opção “Seja meu aluno”, que direciona o usuário ao formulário para receber sua lista de transmissão. Nos termos de privacidade do formulário, a empresa “Academia Gayer Ltda.” é registrada como responsável titular do site.

A empresa em questão foi registrada em Goiânia (GO), reduto eleitoral do deputado. O endereço e CEP cadastrados são os mesmos de seu escritório de apoio, uma casa na área nobre da cidade e que, conforme registrado nas imagens do Google Street View, era anteriormente utilizada para seu curso de idiomas. O registro em junta comercial foi feito em julho de 2022, pouco mais de um mês antes do encerramento do prazo para o cadastro de candidatos nas eleições.

O caso também foi visto pelo portal Folha Democrata, que identificou possíveis irregularidades na contratação do escritório de apoio utilizado, bem como em sua contratação de divulgação.

A empresa conta com dois sócios: Gustavo Gayer e Raphael Reis de Almeida. O capital social é de R$ 100 mil, mais do que o dobro do que foi declarado pelo deputado ao registrar sua candidatura. O contato registrado é um endereço de e-mail atribuído a “gustavo”.

Além da Academia Gayer Ltda, outra empresa com cadastro antigo em seu nome em Goiânia é a Gayer Comunicação Ltda. Esta foi cadastrada com maior antecedência na junta comercial, com sua criação datando para março de 2021. Em seu registro, sua atividade é descrita como “estúdios cinematográficos”, com um capital social de R$ 10 mil. Ao contrário das demais empresas, Gayer consta como único sócio da companhia.

Leia mais: Professores em Goiás acusam deputado Gustavo Gayer de perseguição

A declaração de bens ao TSE é uma exigência legal que deve ser atendida pelos próprios candidatos. A justiça eleitoral, porém, deduz a boa-fé das certidões apresentadas, devendo ser acionada por terceiros em caso de indícios de irregularidade, podendo resultar em responsabilização criminal caso fique comprovada uma fraude intencional. A presunção abre uma janela para que alguns candidatos consigam declarar um patrimônio inferior ao que de fato possuem.

O Congresso em Foco acionou o gabinete do deputado, questionando-o sobre os motivos para a ausência da declaração das duas empresas em sua declaração de bens para as eleições de 2022 ao TSE. Até o momento, não houve uma resposta.

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TEBET ESCOLHE SUAS BATALHAS

Elio Gaspari, O Globo

O economista Marcio Pochmann foi escolhido para a presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística numa cavalgada típica do comissariado petista. O IBGE está na jurisdição do Ministério do Planejamento, de Simone Tebet, e, de certa forma, sob o guarda-chuva da Fazenda, de Fernando Haddad. Na quarta-feira, o titular da Comunicação, Paulo Pimenta, anunciou:

“Marcio Pochmann será o novo presidente do IBGE e não tem nenhum ruído quanto a isso.”

Ilusão de palaciano. Horas antes, a ministra Tebet havia dito à repórter Miriam Leitão que não conhecia Pochmann e que a escolha do novo presidente do IBGE seria tratada na hora certa. Tebet e, de certa forma, Fernando Haddad foram atropelados pelo comissariado petista. Pimenta fez o anúncio a mando de Lula. Pochmann é um veterano militante da constelação de economistas do PT, tentou um voo como candidato à prefeitura de Campinas e perdeu.

O ruído que Pimenta garantiu não existir, aconteceu, mas difere dos demais. Simone Tebet tem as boas maneiras de seu pai, Ramez, que presidiu o Senado. Como ela mesma disse, escolhe suas batalhas. Quem a viu na CPI da Covid, sabe como as trava.

Lula e o comissariado não precisavam atropelar Simone Tebet como fizeram. Até as pedras de Brasília sabiam que o nome de Pochmann estava no tabuleiro e não há sinal de que a ministra do Planejamento batalhasse para barrá-lo. Isso aconteceu por dois aspectos da onipotência petista. A subjetiva leva-os a pensar que podem tudo. Já a onipotência objetiva leva-os a mostrar que podem fazer de tudo, pois ninguém os contrariará.

Na mesma entrevista em que revelou não conhecer Pochmann, a ministra Tebet lembrou que Lula foi eleito por “milésimos”, graças a uma frente política. (Lula derrotou Bolsonaro por uma diferença de 1,8 ponto percentual.) Mais: “Sabemos que o embate de 2026 começa em 2024”. Tradução possível: Simone Tebet travará suas batalhas em 2024.

Uma coisa seria travar batalhas em torno de temas relevantes. Bem outra será ver batalhas provocadas por atitudes onipotentes embrulhadas em grosserias. Essa receita já explodiu em 2016.

Tebet em 2022

Não custa lembrar que, em julho de 2022, quando ainda era candidata a presidente pelo MDB, Simone Tebet anunciou que se houvesse um segundo turno sem a sua participação, ela apoiaria o candidato que defendesse a democracia.

Caso raro de candidato que, antes do primeiro turno, praticamente declara seu voto no segundo. Questão de elegância.

O futuro de Moro

Um sábio, que ainda no ano passado garantia que Jair Bolsonaro acabaria inelegível, assegura: o senador Sergio Moro terá o mandato cassado.

Moro esteve com o senador Davi Alcolumbre e não ouviu bons comentários.

A morte de Alexandre Cabeça

Um conhecedor do direito e do avesso da vida do Rio estranha que com a reabertura do caso do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, ninguém tenha falado da execução de Carlos Alexandre Pereira Maria, dias depois.

Alexandre Cabeça, como era conhecido, colaborava com o então vereador Marcello Siciliano.

Ele foi morto por dois homens que vinham numa motocicleta. Segundo uma testemunha, antes de atirar, um deles teria dito: “Chega para lá que a gente tem que calar a boca dele”.

Acusado de ter envolvimento na morte de Marielle, Siciliano insistiu em dizer que nada tinha a ver com o caso. À época, havia abundância de pistas falsas. Ele submergiu e voltou para a vitrine em maio, metido com o oficial da reserva Ailton Barros, que tratava com o tenente-coronel Mauro Cid no episódio de falsificação de certificados de vacinas. Ailton Barros disse numa conversa grampeada:

“Eu sei dessa história da Marielle toda, irmão, sei quem mandou. Sei a porra toda. Entendeu? (Siciliano) Está de bucha nessa parada aí.”

Tem gente sabendo demais quando fala e de menos quando é chamada a se explicar.

Barroso no STF

Em setembro, o ministro Luís Roberto Barroso assumirá a presidência do Supremo Tribunal Federal com agenda cheia.

No Conselho Nacional de Justiça ele quer buscar uma forma de dar racionalidade e rapidez aos litígios que envolvem a Previdência Social. Segundo a Advocacia-Geral da União, são ajuizadas dez mil ações por dia contra os entes federais.

Noutra ponta, ele quer abrir a discussão sobre os vencimentos dos juízes federais. Como essa categoria não tem os penduricalhos que mimam os tribunais estaduais, a carreira está sendo drenada. Nem tanto pela quantidade, mas pela qualidade dos interessados.

MP onipotente

O Ministério Público de São Paulo cortou na rede a bola de uma maracutaia fantasiada de empreendimento imobiliário, na valorizada área do Itaim Bibi. A incorporadora São José construiu um edifício de 23 andares com 20 apartamentos, cada um com mais de 380 metros quadrados.

O empreendimento foi anunciado oito meses antes da entrada do pedido de edificação à prefeitura e a construção começou sem que houvesse a necessária licença, negada por três vezes.

O edifício está em fase final de acabamento, e o MP, com toda razão, pleiteia uma indenização a ser paga. Pede R$ 500 milhões, e um juiz deverá decidir se essa quantia está exagerada.

A coisa não para aí. O MP e também a prefeitura, cuja fiscalização não viu o aparecimento de um prédio de 23 andares, querem também que o edifício seja demolido. Um não fiscaliza o que deve, e o outro acha que pode tudo.

Os promotores de Curitiba também achavam.

Faz tempo, o governador carioca Carlos Lacerda se apossou de um edifício de Botafogo erguido em condições parecidas e instalou nele uma instituição de ensino.

Eizo Nomura escapou da bomba

No dia de hoje, há 78 anos, o japonês Eizo Nomura estava trabalhando no prédio da prefeitura de Hiroshima que cuidava do racionamento de combustível. A coisa ia mal no Japão, e o imperador tratava da transferência de seus tesouros sagrados para um lugar seguro.

Numa ilha do Pacífico, a bomba foi equipada com seus últimos mecanismos.

Domingo que vem completam-se 78 anos da manhã em que Nomura chegou ao serviço e o coronel Paul Tibbets avisou aos tripulantes de seu bombardeiro: “Nós estamos carregando a primeira bomba atômica do mundo”.

Às 8h16m ela explodiu no ar, a 600 metros de altura. Seu epicentro estava a 170 metros do prédio em que Nomura trabalhava, com outras 37 pessoas. Como o edifício era de concreto, oito livraram-se do flash que queimou milhares de pessoas. Apesar disso, ele foi o único que sobreviveu, sem sequelas. Morreu em 1982, aos 84 anos.

Nomura teve várias sortes. Estava num prédio de concreto, quando a maioria das casas da cidade eram de madeira, saiu num sentido que o afastou da radiação e, pelo que contava em 1975, acima de tudo porque foi para longe da cidade.

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A CELEUMA E O DEBATE REAL

Míriam Leitão, O Globo

Economia é como cristal, mesmo que seja uma ingerência sutil, pode levar à quebra de confiança

Eles se definem como desenvolvimentistas, mas suas ideias, quando aplicadas, levaram o país a uma queda de 3,5% do PIB em 2015, inflação de dois dígitos, enorme prejuízo na Petrobras, quebra do setor elétrico e juros de 14,25%. Era esse o quadro ao final do governo Dilma.

Eles se definem como liberais, mas abriram os cofres públicos por razões eleitoreiras, atropelaram a governança da Petrobras, derrubando quatro presidentes, e não pagaram dívidas judiciais vencidas, deixando uma bola de neve que ainda ameaça o Brasil. Esse era o quadro ao final do governo Bolsonaro.

O debate que reavivou essa semana não é sobre correntes econômico-ideológicas, mas sobre estar atualizado em economia e ser eficiente na política econômica. A celeuma estourou no mesmo dia em que as manchetes dos jornais on-line davam a melhora da nota de crédito do Brasil.

A boa notícia cedeu espaço aos sinais visíveis de que a ministra do Planejamento foi atropelada em cena pública pelo Palácio do Planalto.

É importante entender os bastidores desse evento da semana passada. O economista Marcio Pochmann foi nomeado para o IBGE sem que sua chefe imediata, no caso a ministra Simone Tebet, tenha sido informada previamente. A sequência de eventos revela a forma como uma ala do PT age para ocupar espaços, atropelando aliados. Isso pode atrapalhar o governo Lula.

Nos dias anteriores ao anúncio, ministros palacianos falaram com Tebet, de maneira informal e ligeira, que o presidente tinha um nome para o IBGE. Não havia uma proposta do Planejamento, que pretendia tratar do assunto depois de agosto.

Na reunião entre o presidente Lula, Simone Tebet e o ministro Rui Costa, da Casa Civil, na segunda-feira, ela disse a Lula que sabia que ele tinha um nome para o IBGE. Mas Lula não aproveitou a deixa para falar, até porque havia muitos assuntos na mesa e eles passaram a tratar dos outros temas.

A partir daí passou a circular a notícia de que Lula teria dito à ministra o nome de Marcio Pochmann. Na quarta-feira, no fim do dia, o ministro Paulo Pimenta comunicou oficialmente a nomeação de Pochmann, sem ter tido qualquer conversa com Simone Tebet e sem que ele tenha a incumbência de anunciar nomes de pessoas escolhidas para cargos em qualquer ministério. Foi tudo feito no estilo rolo compressor para gerar fato consumado.

Ao ouvir o comunicado, Simone Tebet ligou para o ministro Alexandre Padilha e perguntou se era verdade. Reafirmou que nunca fora comunicada. Ligou depois para Rui Costa para lembrar a ele que nenhum nome fora pronunciado na reunião. Pimenta ligou para Tebet para se desculpar. Lula ligou para Pimenta para criticar o ruído que ele provocara.

Enfim, o que é isso? Desgaste desnecessário com a ministra de um partido que apoiou o presidente no segundo turno, no momento em que o presidente tenta atrair para a base dois partidos que estiveram com Bolsonaro, o PP e o Republicanos. Enfim, o momento é de agregar mais apoio e não atirar contra aliados.

Qualquer erro que o economista Marcio Pochmann cometa agora no IBGE cairá no colo do presidente Lula. De certa forma, isso é uma espécie de proteção. No Ipea, Pochmann quis eliminar qualquer crítica e promover estudos que justificassem o governo. Se ele quiser fazer a mesma coisa com os números do IBGE, terá dificuldades. Mas há riscos de interferência.

Economia é como cristal, mesmo que seja uma ingerência sutil, pode levar à quebra de confiança. Se há uma percepção de dados inconfiáveis, como houve nos números das contas públicas no período Guido Mantega-Arno Augustin, isso se reflete imediatamente no desempenho da economia, com a piora das expectativas.

O governo Lula nesses primeiros sete meses acertou muito na economia. Com o ministro Fernando Haddad, a economia passou a ter balizas fiscais — o teto de gastos havia sido desmoralizado na gestão anterior — e o déficit caiu de 2,3% do PIB para 1,2%, com a promessa de zerar no ano que vem. Caíram inflação, dólar, desemprego. Seu diálogo com o Congresso permitiu a aprovação, na Câmara, da Reforma Tributária.

O ministro está no comando da economia e até agora venceu as pressões em contrário. Ele tem tido uma sintonia admirável com a ministra do Planejamento. O que Haddad está fazendo não é desenvolvimentismo, nem liberalismo, é boa condução da política econômica. Como deve ser.

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EXPERIMENTOS

Dorrit Harazim, O Globo

Reparações históricas e desculpas oficiais costumam vir na rabeira da própria História. E com frequência nada reparam

Na terça-feira, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou a criação de um Monumento Nacional em memória do menino negro Emmett Till e de sua mãe, Mamie Till-Mobley. Na verdade, serão três os monumentos que evocarão o assassinato de Emmett, com requintes de selvageria, por supremacistas brancos nos idos de 1955. O primeiro será erguido na igreja de Chicago onde o garoto fora velado; o segundo, na ravina do Rio Tallahatchie, no Mississippi, onde encontraram seu corpo brutalizado; e um terceiro, certamente o mais significativo, na entrada do tribunal onde os matadores confessos, dois irmãos graúdos, foram rapidamente absolvidos por um júri branco.

À época, a mãe-coragem de Emmett obrigara o país a encarar o que restara do filho: uma massa disforme e desumanizada exposta em caixão aberto, sem retoques. Como já relatado neste espaço, a atrocidade serviu de catalisador para o Movimento pelos Direitos Civis que galvanizaria o país na década seguinte.

Passaram-se quase 70 anos. Desde então, 12 presidentes ocuparam a Casa Branca. Ainda assim, Biden achou necessário explicar ao país o motivo de um memorial nacional para os dois corpos negros.

— Vivemos tempos em que se tenta banir livros, enterrar a História — disse o presidente. — Por isso queremos deixar bem claro e cristalino: embora a treva e o negacionismo possam esconder muita coisa, não conseguem apagar nada. Não devemos aprender somente aquilo que queremos saber. Devemos poder aprender o que é preciso saber.

Reparações históricas e desculpas oficiais costumam vir na rabeira da própria História. E com frequência nada reparam. Ainda assim, acabam compondo um retrato das feridas de cada nação. No caso atual, a iniciativa de Biden não deve ser descartada como mero artifício eleitoreiro visando ao pleito de 2024. Há também uma real preocupação com um surto de apagamento histórico em curso na América profunda e retrógrada. Quando governadores extremados como Ron DeSantis, da Flórida, ou Greg Abbott, do Texas, ordenam escolas e bibliotecas públicas a varrer das estantes clássicos da literatura negra e LGBTQIA+, um monumento nacional à coragem de Mamie Till chega em boa hora.

Para a população negra dos Estados Unidos, existe uma ferida coletiva que nenhuma reparação ainda conseguiu cicatrizar. Ela tem nome extenso: Estudo Tuskegee de Sífilis Não Tratada no Homem Negro. Trata-se do mais longo experimento não terapêutico em seres humanos da História da medicina. Ele durou de 1932 até 1972 e teve como propósito estudar os efeitos da sífilis em corpos negros. Por meio de concorridos convites divulgados em igrejas e plantações de algodão, o Instituto de Saúde Pública da época selecionou 600 homens, todos filhos ou netos de escravizados. A grande maioria nunca tinha se consultado com médico. No grupo, 399 estavam contaminados pela doença, e 201 eram sadios. Aos contaminados foi informado apenas serem portadores de “sangue ruim”. Como o estudo visava à observação da doença até o “ponto final” — a autópsia —, os doentes foram ficando cegos, dementes e morreram sem conhecer a penicilina, que a partir dos anos 1940 se tornou o tratamento de referência para sifilíticos. A família dos que morriam recebia US$ 50 para cobrir o enterro. A pesquisa só foi interrompida em 1972, quando o jornalismo da Associated Press revelou a história, levando o governo americano a pagar US$ 10 milhões em acordo coletivo com os sobreviventes.

Oito deles, já quase nonagenários, estavam no Salão Leste da Casa Branca em maio de 1997 quando o então presidente Bill Clinton pediu desculpas públicas pelo horror cometido. Em discurso marcante, falou em nome do povo americano:

— O que foi feito não pode ser desfeito. Mas podemos acabar com o silêncio, parar de desviar do assunto. Podemos olhá-los de frente para finalmente dizer que o que o governo dos Estados Unidos fez foi uma ignomínia, e eu peço desculpas.

Ainda assim, passado menos de um ano, nova barbárie experimental veio à luz, desta vez com cem meninos negros e hispânicos de Nova York arrebanhados por três instituições de renome científico. Todos eram irmãos caçulas de delinquentes juvenis e tinham idade entre 6 e 11 anos. O estudo pretendia demonstrar a correlação entre determinados marcadores biológicos e o comportamento violento em humanos. Para isso, aplicaram nas crianças injeções intravenosas de fenfluramina, substância posteriormente associada a danos à válvula mitral. Às mães que os levavam ao local do experimento foi oferecida uma recompensada de US$ 125 .

Tudo isso e muito mais faz parte do pesado histórico de abuso de corpos negros, até mesmo em nome da ciência. Não espanta, portanto, a rejeição quase atávica à obrigatoriedade de vacinação contra a Covid-19 manifestada pela população negra em tempos recentes. A retirada de circulação ou dificuldade de acesso a livros que narram essas vivências deveriam ser impensáveis em 2023. É sinal de uma sociedade adoecida pelo medo de livros.

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'CHAMA O DINO !'

Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo

Chama o Dino !': governo Lula tem novo bordão quando há problema na Esplanada

Flávio Dino e PF estão em todas e ‘dão Ibope’. Por que Dino iria para o Supremo?

Quando surge algum problema no governo, gritase: “Chama o Dino!” Quando aparece uma suspeita, clama-se: “Chama a PF!” E é assim que o Ministério da Justiça foi se transformando na “UTI da Esplanada” e a Polícia Federal, com Andrei Passos, há muito tempo não é tão ativa. Ministério e PF estão em todas.

É improvável a ida de Flávio Dino para o Supremo. O que ele lucraria com isso? E Lula e o governo? Ok, pode-se dizer que o PT tiraria um adversário da frente em 2026, mas ir para o STF não significa evaporar e o mais provável é Dino concorrer à Presidência em 2030, aos 62 anos.

Ele tem muitas frentes de trabalho e “dá Ibope”. As investigações sobre o assassinato de Marielle e Anderson avançam, as peripécias de Jair Bolsonaro e bolsonaristas continuam vindo à tona, os peixes miúdos e graúdos do 8 de Janeiro estão na rede, o pacote das armas saiu, a operação no território yanomami veio para ficar.

Dos anexos da delação de Élcio Queiroz, que dirigia o carro no assassinato de Marielle e Anderson, só foi divulgado um, o n.º 2, sobre o dia do crime; os demais continuam em sigilo. Porque conduzem aos mandantes e aos motivos? Queiroz faria delação sem contar? Só falta a delação do próprio Lessa e a solução do crime sai até dezembro.

Também as investigações sobre o governo Bolsonaro avançam. Segundo o Coaf, o tenente-coronel Mauro Cid movimentou R$ 3,7 milhões em dez meses e ele já responde por saques para Michelle Bolsonaro, atestados falsos de vacina, joias das Arábias, vazamento de inquérito da PF, minuta golpista. O sargento Luis Marcos dos Reis, seu braço direito, é personagem-chave do esquema.

Além disso, o bolsonarista Allan Frutuozo da Silva acaba de ser preso pela tentativa de invasão da PF, o russo Sergey Cherkasov é pivô da investigação sobre espiões que usavam documentos falsos do Brasil, a história dos ataques ao ministro Alexandre de Moraes em Roma está bem amarrada, as operações contra garimpeiros ilegais e tráfico de drogas estão a mil.

E a PF “rouba” atribuições do Exército, como monitoramento de armas com civis e a segurança de autoridades. As armas dispararam com Bolsonaro, mas a fiscalização sumiu, isso vai mudar. E Lula foi salomônico quanto à sua segurança: militares e policiais, meio a meio. Não desagrada a ninguém e um vigia o outro.

Lula também quer entrar na questão da Cracolândia, em São Paulo, mas isso implica competição, política, ideologia... Dino tentou, mas o prefeito Ricardo Nunes se “bolsonarizou” e não quer dar holofotes para Lula e Dino. Moradores, visitantes e usuários de drogas é que saem perdendo.

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IA, UMA AMEAÇA AO APRENDER E PENSAR

Renata Cafardo, O Estado de S. Paulo

‘Ferramentas podem exercer um impacto negativo na motivação do estudante’, diz Unesco

Com pouco destaque em um relatório de 200 páginas sobre tecnologia, a Unesco evidenciou na semana passada o que pode ser um impacto amedrontador da inteligência artificial (IA) na educação. Por dar respostas rápidas em um tempo em que rapidez é entendida como sinônimo de eficiência, ferramentas como Chat GPT podem retirar do estudante um dos grandes propósitos pelo qual vamos à escola ou à universidade: aprender a pensar.

Pode parecer catastrófico demais para algo ainda sem muitas evidências, mas a Unesco dá o tom: “essas ferramentas poderiam exercer um impacto negativo na motivação do estudante de conduzir pesquisas independentes e achar soluções”.

E não é só porque as soluções do Chat GPT podem ser piores, ter vieses e informação de fontes não confiáveis, é porque o importante é o processo. A IA em breve vai dar respostas perfeitas. Mas na educação o que vale não é nota 10. É, sim, a construção do conhecimento.

Isso acontece durante as etapas de aprendizagem, como, por exemplo, antes de escrever um trabalho escolar. O cérebro coleta informações, relaciona umas com as outras, analisa, tira conclusões. E depois, ao tentar expressar suas próprias ideias em um texto, vem um outro exercício cerebral, com organização do pensamento, priorização, experimentação, memória.

Todos esses processos fazem o estudante não só aprender o que está sendo proposto na escola, mas também a lidar com outras tarefas do dia a dia, a se relacionar com as pessoas, planejar, tomar decisões. Pesquisas já mostraram até que a leitura de um romance ajuda o cérebro a desenvolver empatia.

Mas tudo isso passa batido quando o Chat GPT faz o trabalho de um universitário, como relataram alunos ao The New York Times. Um deles mostrou à ferramenta um parágrafo escrito por ele mesmo e pediu que o robô fizesse um outro texto, sobre outro assunto, com o seu estilo. Deu certo e ele recebeu nota máxima.

A IA também pode, claro, identificar melhor as dificuldades de cada estudante e tornar o ensino mais personalizado. Ou fornecer em segundos informações que levariam muito tempo para serem encontradas, corrigir provas para os professores e liberá-los para trabalhos mais interessantes.

Difícil para Unesco ou qualquer um hoje prever os limites da inteligência artificial. Mas o relatório faz questão de frisar o que parece óbvio: os alunos precisar aprender com e sem tecnologia na escola. E nós, que não somos robôs, temos de ter um olhar atento para que a IA não arruine o processo mais brilhante da mente humana: a aprendizagem.

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