Em uma entrevista a historiadores da FGV em 1993, o
ex-presidente Ernesto Geisel argumentou que “a política entrando no Exército”
havia sido algo “mais ou menos tradicional” no Brasil. “Tem raízes históricas,
mas agora, com a evolução, vai acabar.”
Para ilustrar seu ponto, Geisel referiu-se ao que via como
uma anomalia completa: um deputado federal que, à época, convocava militares a
voltarem ao poder. “Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso
completamente fora do normal, inclusive um mau militar.”
Geisel foi o arquiteto do retorno dos generais à caserna,
com o desmanche da ditadura ao longo de uma década. Imagine sua reação se
alguém lhe dissesse o seguinte: em menos de 30 anos, o presidente será
Bolsonaro, militares formarão um terço do gabinete –incluindo a chefia da Casa
Civil e da articulação com Congresso–, e a imagem de quatro generais estrelados
ilustrará um panfleto conclamando a uma manifestação contra Congresso, STF e
imprensa. Pobre Alemão, seu apelido entre os soldados.
Claro, não há problema em um militar da reserva, em razão de
suas qualificações, ocupar cargo civil ou entrar na política. Mas a presença,
em massa, de oficiais no governo – incluindo alguns da ativa – e a “política
entrando no Exército” são duas faces da mesma moeda. Mentes sensatas, civis e
militares, entendem que esse status quo é nocivo tanto à nossa democracia
quanto às nossas Forças Armadas.
Como viemos parar aqui? Levará tempo para responder à
questão, mas olhar ao nosso redor pode ser um bom começo. Afinal, em várias
partes da América Latina, militares têm cada vez mais influência política. Ver
o Brasil de uma perspectiva regional permite entender que a eleição de
Bolsonaro foi uma circunstância excepcional, mas há causas estruturais para a
transformação nas relações civis-militares.
A última edição da Americas Quarterly –revista com a qual
contribuo como editor e colunista– trata a fundo do novo papel dos militares na
região. É uma história que, nos últimos meses, pode ser contada por meio de uma
sequência de imagens.
Praticamente todos os presidentes que enfrentaram ondas de
protesto –o equatoriano Lenín Moreno, o chileno Sebastián Piñera, o colombiano
Iván Duque– apareceram cercados de generais, quando as crises estouraram. Na
Bolívia, o comandante das Forças Armadas colocou, física e simbolicamente, a
faixa presidencial em Jeanine Áñez, no dia em que Evo Morales fugiu ao México.
O Brasil é um caso extremo, mas não isolado –há causas
comuns na região que estão levando os militares a entrarem no espaço da
política. Uma delas é o enfraquecimento da classe política, dos partidos e do
apoio à democracia, enquanto as Forças Armadas continuam a ser uma das
instituições mais respeitadas. Uma série de escândalos de corrupção contribuiu
para esse desgaste: uma pesquisa da Universidade Vanderbilt revelou que quase
40% dos latino-americanos concordam que “um golpe militar pode ser justificado
quando há muita corrupção” (no Brasil, são 35.4%).
As democracias que proliferaram nos últimos 30 anos
propiciaram ganhos socioeconômicos sem precedentes, mas também criaram
expectativas inéditas a uma nova classe média. Os últimos quatro anos foram os
de menor crescimento em sete décadas na região, e insatisfação política toma
essas jovens democracias.
Ao mesmo tempo, com o fim da Guerra Fria, as Forças Armadas
passaram por uma crise de identidade. Hoje, do México ao Brasil, militares
estão cada vez mais envolvidos com operações policiais e a guerra às drogas.
Todos esses fatores minaram a “evolução” que Geisel pensava
ser inevitável –o “mau militar” Bolsonaro é sua consequência, e não causa.
Encará-los de frente é a única forma de reequilibrar as relações
civis-militares.
Roberto Simon
É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
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