Reza a lenda que o ano só começa no Brasil após o Carnaval.
O feriado momesco era sempre um período de trégua. Mas o Brasil anda tão
esquisito que 2020 desmentiu a tradição.
Por um lado, o fantasma do coronavírus colocando a economia
mundial em compasso de espera e em risco a incipiente recuperação brasileira de
sua maior recessão. Dólar subindo, bolsa caindo, crise na segurança pública
ameaçando o equilíbrio fiscal. O otimismo recebendo um balde de água fria.
Por outro, no mundo da política, atitudes e frases
malcolocadas ganhando corpo na imprensa e nas redes sociais, alimentando o
clima de radical polarização. Seria impensável, em outros tempos, uma crise
político-institucional se esboçar em pleno Carnaval brasileiro.
A cultura antidemocrática que hoje inspira milhões de
brasileiros, materializada numa frenética convocação de uma manifestação contra
o Congresso Nacional e a nossa Corte Constitucional.
Diante disso, fui tomado por um sentimento saudosista. Num
quadro em que a chamada “velha política” se afigura como verdadeiro palavrão,
senti saudades da velha e boa política.
Sou da geração da redemocratização. Nasci para a política
dentro da cultura de esquerda, predominante no movimento estudantil, mas que
tinha referência em figuras como Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, que nos
lideraram na travessia para a democracia. Eram lideranças forjadas pela
experiência histórica, firmes nas convicções, mas vocacionadas para a promoção
do diálogo e do entendimento, sem tibieza, mas abertas sempre à construção de
consensos progressivos.
Eram capazes de produzir frases como “A verdade não tem
proprietário exclusivo e infalível”, “Em política, até a raiva é combinada”,
“Não são os homens, mas as ideias que brigam”. Mas o espírito conciliador dos
dois estadistas não os esquivava de atitudes fortes em defesa da
democracia: “A persistência da Constituição é a sobrevivência da
democracia... Temos ódio e nojo à ditadura... A sociedade foi Rubens Paiva,
e não os facínoras que o mataram”, disse Ulysses na promulgação da Constituição
em 1988. “Canalha, canalha!” foi a resposta do líder da oposição, Tancredo
Neves, ao presidente do Senado que declarou a vacância da Presidência em 2 de
abril de 1964. Que falta fazem os dois!
Governos e líderes são passageiros. As instituições, a
sociedade, os princípios democráticos são permanentes. A política é meio, não
fim em si mesmo. Partidos e seus líderes são ferramentas, mas acima deles está
o interesse público e nacional.
Após a redemocratização já tivemos governos e líderes de
centro, centro-esquerda, esquerda, direita, e isso é um ativo da democracia
brasileira. O embate e a polarização saudável são legítimos. Mas um consenso
inarredável e absoluto deve reinar: o respeito às regras democráticas do jogo,
às instituições republicanas e à Constituição.
Não faz sentido tentar desmoralizar o Congresso Nacional e o
Supremo. Mais do que as regras escritas, deve prevalecer a cultura democrática,
validando a legitimidade de todos os atores políticos e a convivência plural e
respeitosa entre as partes divergentes.
O Carnaval de 2020 deixou um clima desconfortável num
momento delicado do país. Que os dois líderes da redemocratização nos iluminem
e que consigamos encontrar os caminhos para a construção da grande nação com
que sonhamos.
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