Ao trancafiar os cálculos sobre a reforma da Previdência,
impedindo jornalistas e, no mais, qualquer brasileiro ou qualquer brasileira de
ter acesso aos números, o governo federal ultrapassou (mais uma vez) as imagens
mais claustrofóbicas da ficção científica mais pessimista. Nos filmes Blade
Runner (baseado num conto de Philip K. Dick) ou Matrix (inspirado no livro
Neuromancer, de William Gibson), conhecemos as engrenagens maquínicas de um
poder que se desumanizou por inteiro para se converter ele mesmo num
ciborgue-leviatã, mas até mesmo ali os seres humanos conseguem, de um jeito ou
de outro, fazer contas com dados reais.
As mais famosas distopias do século 20, como 1984, de George
Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, também não nos ajudam nesse
campo – embora no livro 1984 exista o Ministério da Verdade, cuja atribuição é
construir e instalar as verdades oficiais que são mentiras absolutas. Essa
coisa bolsonárica de decretar o sumiço das planilhas em que o governo trabalha
para sustentar seu projeto de reforma da Previdência parece conter mais pulsões
totalitárias do que o cardápio de expedientes tirânicos imaginado por George
Orwell.
Não que o Brasil esteja virando um Blade Runner ou uma
Laranja Mecânica (a obra-prima de Stanley Kubrick, cujos fantasmas nos vêm
puxar a perna durante estas noites sufocantes de 2019). Não que o totalitarismo
se tenha instalado no Brasil. O risco, por enquanto, é mais incipiente, mas é
real.
A iniciativa de banir a aritmética do debate político
escancara o que vai pela cabeça do comando do Executivo. Se ainda não temos
aqui o Ministério da Verdade, e não temos, não é por falta de disposição do
poder. Se ainda não viramos uma paródia depressiva de Admirável Mundo Novo, é
só porque a malha institucional – um tanto pitimbada, mas efetiva – da nossa
democracia tem resistido. Se dependesse dos novos inquilinos da Esplanada, o
Ministério da Verdade já estaria em pleno funcionamento.
Nesta hora, a compreensão dos vetores que orientam os atos
do poder é tão ou mais decisiva do que a análise do quadro objetivo. A
subjetividade instalada no governo conta. As intenções contam – contam porque
desnudam o projeto em curso. O governo que aí está pode parecer errático. Nada
do que ele propõe dura. As idas e vindas – as tentativas erradas e os erros
consumados – se embolam sem que se consiga extrair das condutas destrambelhadas
uma linha coerente, lúcida. Para piorar a desorientação randômica das cabeçadas
palacianas, há ainda as brigas internas entre facções que, também elas, são
desorganizadas e violentas como gangues adolescentes. Num ponto, contudo, esse
governo ostenta uma unidade coesa: esse ponto são as investidas contras as
liberdades e os direitos. Nisso o impulso essencial da Presidência da República
é uno e compacto. Trata-se de um denominador comum que dá uma racionalidade
tanática ao desordenamento das aparências. É por isso, enfim, que se tornou
essencial entender a subjetividade do delírio autoritário que tomou o poder no
Brasil.
A intenção manifesta de reescrever os livros de História do
Brasil para limpar a folha corrida da ditadura militar, o revisionismo de
afirmar que o nazismo é de esquerda, as ações mais ou menos destrambelhadas
para liberar (ainda mais) as armas de fogo se coadunam perfeitamente com essa
medida de censurar os números. Vai ver, no entendimento de alguns deles lá em
cima, esse negócio de conta de mais e conta de menos também é coisa de
comunista. A mentalidade censória agora elegeu uma nova vítima: os algarismos e
os sinais da aritmética.
Tudo já seria ruim se a mentalidade censória se restringisse
ao Poder Executivo. Mas a situação é pior. O Supremo Tribunal Federal (STF),
até ele, agora também enveredou por esse caminho. É sabido desde sempre que, em
sua primeira e segunda instâncias, o Poder Judiciário tem cedido, e com
frequência, à tentação de impedir que conteúdos jornalísticos alcancem o
público. Mas a cúpula do Judiciário, o STF, vinha se pautando por princípios
menos antimodernos, resguardando as liberdades e reformando decisões
obscurantistas. Este jornal mesmo só se livrou da censura judicial graças ao
STF. Em 31 de julho de 2009, o Estado foi proibido de publicar informações
sobre a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal. A situação só se normalizou
3.327 dias depois, em 8 de novembro de 2018, quando o Supremo desmontou a
censura.
De duas semanas para cá, o cenário no STF mudou. A decisão
de um de seus ministros de impor censura ao site O Antagonista e à revista
eletrônica Crusoé discrepou da linha habitual da Corte sobre a matéria. Pior: o
veto foi imposto no âmbito de um inquérito, sem que tivesse sido formalmente
solicitado por uma parte que se declarasse prejudicada. O STF agiu de
moto-próprio (de ofício). A medida censória foi revogada dias depois pelo
ministro Alexandre de Moraes (pois a decisão era um disparate completo), mas a
censura à revista Crusoé maculou a reputação da Corte e abalou a expectativa de
segurança jurídica quando o que está em jogo é o livre exercício da profissão
de jornalista.
Outra vez, aqui, a subjetividade faz toda a diferença. Por
que o STF se desviou por esse caminho? O que vai na cabeça dos magistrados? A
resposta a essas perguntas passa por uma incompreensão crônica da nossa cultura
jurídica (e da nossa cultura política) do instituto da liberdade de imprensa.
Já tratei dessa incompreensão em artigos anteriores (como em Não sabem o que é
‘news’ e querem caçar ‘fake news’, de 24 de maio de 2018).
O horizonte, que já era crítico, traz preocupações
adicionais. Se o STF se afasta do papel de proteger as garantias fundamentais,
de onde virão os freios e contrapesos para estancar os delírios autoritários do
Executivo?
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário