Como o meio intelectual brasileiro tardou em reconhecer a
tônica antirracista e universal da obra de Lima Barreto
Em 1905, aos 24 anos, Lima Barreto fez uma anotação em seu diário registrando quando teve a primeira percepção sobre racismo no âmbito intelectual. Foi quando, aos 14 anos de idade, leu artigos dos escritores Domício da Gama (pseudônimo de Domício Afonso Forneiro) e Manuel de Oliveira Lima, na Revista Brazileira, criada em meados do século XIX e que viria a se tornar a revista oficial da Academia Brasileira de Letras (ABL), instituição que Gama e Oliveira Lima ajudaram a fundar. Publicados entre 1895 e 1896, os artigos que impactaram o adolescente Barreto tratavam das impressões que os dois diplomatas coletaram durante viagens aos Estados Unidos. As viagens ocorreram na época em que as leis segregacionistas conhecidas como Leis Jim Crow tinham sido confirmadas pela Suprema Corte norte-americana, estabelecendo a doutrina legal separate but equal (separados, mas iguais), visível nas simbólicas placas que dividiam a população entre white e colored. Era um período de extrema violência nos Estados Unidos: dois negros, em média, eram linchados por semana ao longo da década de 1890.
Nos artigos da Revista Brazileira, eram típicas
as comparações com os Estados Unidos e os consequentes diagnósticos para o
Brasil da época – cheios de hierarquizações raciais e apelos a uma imigração
branca que resolveriam o suposto problema racial via miscigenação. Sobre o
contexto norte-americano, Oliveira Lima, que era branco, repetia ideias como a
de que a imigração europeia resultaria numa diluição dos negros, evitando assim
que a população negra se agregasse num elemento social ou político isolado e
perigoso. Gama, considerado por alguns o primeiro diplomata negro do Brasil,
argumentava na mesma linha, sugerindo que “[…] a mancha negra, longe de se
alargar contaminando toda a superfície da União [dos Estados Unidos],
acabará por se reduzir às proporções de uma simples pinta que sirva para
contrastar a brancura da República e a pureza das raças fortes que a fundaram
[…]”.
Focado no contexto brasileiro, José Veríssimo, então editor
da Revista Brazileira, reforçava o mesmo pensamento em resenha de
1899:
Não há receio, como supõe o sr. Oliveira Lima, de que
surja o problema negro no Brasil. Antes de surgir, foi aqui resolvido pelo
amor. O cruzamento tirou do elemento toda a importância numérica, diluindo-o na
população branca. […] A mistura das raças tendendo, como
asseguram os etnólogos […], a fazer prevalecer a superior, acabará
forçosamente, em período mais ou menos curto, por extinguir aqui a raça negra.[1]
Esse discurso baseado na imigração e na miscigenação foi o
mesmo que a delegação brasileira – encabeçada pelo diretor do Museu Nacional, o
médico João Baptista de Lacerda, e pelo jovem antropólogo Edgard Roquette-Pinto
– repetiu no Primeiro Congresso Universal de Raças, realizado em Londres em
1911. O evento reuniu dezenas de delegações dos cinco continentes para um
pioneiro debate internacional sobre questões raciais. Diante dessa audiência
global, muitas das delegações tocaram, em suas apresentações, nas tensões
geradas pelos estudos que entendiam raça como uma categoria científica – muito
comuns no século XIX, apesar de nunca ter havido qualquer consenso sobre tal
definição. Lacerda e Roquette-Pinto focaram na questão do “mestiço no Brasil”,
afirmando a tese do embranquecimento progressivo pela miscigenação. Disseram
que, em três gerações – ou seja, no decorrer do século XX –, todos no Brasil
seriam brancos.
Liderada por W. E. B. Du Bois, a delegação dos Estados
Unidos enfatizou, por outro lado, sua crítica à ideia de hierarquia entre as
raças e tratou dos problemas gerados pela segregação racial imposta por lei.
Para o jovem Du Bois – que depois continuaria sua trajetória como um dos
maiores intelectuais negros norte-americanos e uma das principais referências
sobre estudos afro-americanos no século XX (é dele a famosa “profecia” escrita
em 1903, de que o principal problema do século seriam as relações raciais) –, o
evento foi importante por ter sido um dos primeiros a discutir a questão da
igualdade racial em nível global. Para se ter uma ideia da veia vanguardista do
encontro, naquela mesma década uma proposta de emenda ao Tratado de Versalhes
para a inclusão do princípio de igualdade racial foi rejeitada na Conferência
de Paz de Paris de 1919, que definiu a geopolítica global no período entre as
duas guerras mundiais.
Esse pequeno panorama global sintetiza muitas das
preocupações que ocupavam Lima Barreto naquele começo de século XX, e ele
certamente estava muito mais próximo das ideias e preocupações de Du Bois do
que das teses dos membros da delegação brasileira. O racismo atravessava sua
vida. Aos 7 anos ele presenciou com o pai a abolição da escravatura no Paço e
se encheu de esperança. Aos 14, quando estudava numa escola de elite (sendo o
único negro em sua turma), foi tomado por um enorme medo ao ler os inúmeros artigos
– como os da Revista Brazileira – que o inferiorizavam. Aos
24, quando enveredou a escrever para periódicos, tomou as letras como uma arma
para sacudir esse medo, mirando principalmente na “covardia intelectual” que,
segundo ele, apossava os brasileiros em face das teorias raciais que vinham
embaladas em discursos científicos da Europa.
Barreto anota com extrema lucidez em seu
diário em 1905: “Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que há umas
certas raças superiores e umas outras inferiores, e […] que as misturas entre
essas raças são um vício social, uma praga e não sei que coisa feia mais. Tudo
isto se diz em nome da ciência e a coberto da autoridade de sábios alemães.”
Aqui ele faz referência a influentes discursos como os de Ernst Haeckel e seu
darwinismo social; Wilhelm Schallmayer e Alfred Ploetz e suas ideias de
eugenia; e o filósofo racialista anglo-alemão Houston Stewart Chamberlain,
árduo admirador de Richard Wagner que, depois da morte do compositor, viria a
se casar com uma de suas filhas. Assim como Wagner – espécie de sogro póstumo
do filósofo – se tornaria o músico-símbolo do Terceiro Reich, Chamberlain ficou
conhecido mais tarde por ter sido uma das principais influências por trás do
antissemitismo da política racial nazista, considerado uma espécie de profeta
nos círculos liderados por Hitler. Longe de ser uma figura marginal, sua tese
sobre o arianismo foi publicada em 1899 e se tornou um dos best-sellers mais
influentes daquela época: Die Grundlagen des Neunzehnten Jahrhunderts (Os
fundamentos do século XIX). Traduzido para diversas línguas, embora sem versão
em português, o livro chegou a atingir a marca de 100 mil exemplares vendidos
no período até 1914, e angariou veementes apoiadores no Brasil.[2] O
desabafo de Lima era contra essa crescente influência de teorias racistas no
Brasil e no mundo ocidental.
Pouquíssimos são os escritores, e menos ainda as
escritoras, que continuam a ser lidos e editados após o centenário de suas
mortes. A famosa ideia do matemático francês Augustin-Louis Cauchy – a de que o
ser humano morre, mas sua obra permanece – é para pouquíssimos. E para que isso
aconteça é quase sempre necessário um processo de “canonização”; uma espécie de
história das leituras e releituras dessas obras. Esse processo atravessa
diferentes conjunturas político-sociais, debates de ideias, decisões editoriais
e, é claro, distintas gerações de leitores e suas ênfases. O caso de Lima
Barreto (1881-1922) é ao mesmo tempo multifacetado e revelador. Se, por um
lado, é animador que esse grande escritor brasileiro siga sendo lido e
redescoberto cem anos depois da morte em razão da complexidade e qualidade de
sua obra, por outro é notória a forma como sua pioneira perspectiva
antirracista demorou a ser compreendida como um pilar fundamental de seu
projeto literário.
Por mais que a escrita de Lima Barreto fosse marcada por sua
experiência no Rio de Janeiro naquele início de República, sua obra está em
constante diálogo com debates internacionais por meio, principalmente, de
autores de países-membros do que nos acostumamos a chamar do “Norte global”. A
lista dos autores discutidos em sua obra é extensa e funciona como uma espécie
de estudo de caso de como um negro do “Sul global” enfrentou criticamente
aquelas ideias, apropriando-se de algumas, rebatendo outras e negociando outras
tantas num cenário mundial que ainda era colonial. Barreto muitas vezes usa o
contexto local para confrontar esses debates desde sua perspectiva e
experiência, mesmo com todas as dificuldades de tal empreitada: escrever em
português, morar no Brasil, ser negro (e não se esconder), ser de classe média
baixa, escrever para as massas e não ter respaldo institucional. Ainda assim,
ele tentava. O exemplo mais curioso talvez seja a carta que Barreto escreve em
1906 ao sociólogo francês Célestin Bouglé, que era muito próximo de Émile
Durkheim. Escrita em francês, a carta de Barreto usa o exemplo do Brasil (e o
seu próprio) para tentar “dissipar certas opiniões falsas que o mundo
civilizado tem sobre as pessoas de cor”, como as que aparecem no livro de Bouglé La
Démocratie Devant la Science. Études Critiques sur l’Hérédité, la
Concurrence et la Différenciation (A democracia diante da ciência:
estudos críticos em hereditariedade, competição e diferenciação), publicado em
1904.
Essas circunstâncias periféricas o fizeram até criar uma
espécie de autodefinição de sua posição nesse espaço intelectual global. O
autor carioca sugere ter uma “razão subalterna” movida por profundas
“implicâncias” com diferentes teorias e ideias que circulavam na época. Apesar
de haver pontos de contato entre a expressão que Barreto usa e o conceito de
“subalterno” que Antonio Gramsci usaria anos depois em seus Cadernos do
Cárcere (1929-35) – e que acabaram mais tarde sendo um dos pontos de
partida dos estudos subalternos que surgiram na Índia dos anos 1980 e no
contexto latino-americano a partir dos anos 1990 –, as “implicâncias” de Lima
Barreto tinham outro teor.
Um dos temas com os quais ele mais implicava – no sentido de
se envolver, de combater – era com a influência e legado da escravidão e do
racismo no Brasil. Em vários momentos, isso aparece de maneira explícita em
anotações em seu diário, com ideias para livros que queria escrever – a
“História da Escravidão Negra no Brasil” e a sua influência na nossa
nacionalidade, ou mesmo um “Germinal Negro”, em referência ao romance mais
conhecido do autor francês Émile Zola. Como estas, muitas outras ideias ele chegou
a conceber sem desenvolvê-las. Das ideias que foram levadas a cabo, a questão
racial fica explícita em uma imensa quantidade de contos, crônicas e romances
sobre como o racismo tem um papel definidor no destino de protagonistas negros.
Entre os mais conhecidos, podemos citar o racismo que atravessa Recordações
do Escrivão Isaías Caminha (1909), romance de estreia de Lima Barreto,
cujo protagonista é colocado como suspeito de um crime que não cometeu; a
desesperante constatação da última frase de Clara dos Anjos (publicado
em folhetins entre 1923 e 1924, mas só reunido em livro em 1948), que, como
mulher e negra, desabafa “Não somos nada nessa vida”; ou mesmo em O
Cemitério dos Vivos (só publicado em 1953), que Barreto deixa
inacabado, mostrando o cotidiano de um hospital psiquiátrico em que os internos
são na maioria negros. Espalhadas em sua produção há, também, inúmeros temas em
que o racismo continua sendo central, mesmo quando não aparece de maneira
explícita. Suas implicâncias com a linguagem elitista, o nacionalismo, o
futebol, o helenismo, os doutores e até o emergente feminismo têm como pano de
fundo uma estratégia intelectual de fazer frente aos discursos racistas que o
oprimiam e excluíam a população negra.
Ainda assim, o primeiro ciclo de leitura de sua obra não
pareceu captar essa ênfase. Seu primeiro livro causou polêmica e foi muito
comentado, não exatamente pela questão racial que perpassa a história, mas
pelas referências caricatas a jornalistas e escritores que eram facilmente
decodificadas pelos leitores. Recebeu também críticas sobre um suposto
“descuido” na sua linguagem escrita, o que na verdade era uma estratégia
deliberada de se comunicar com um público mais amplo. Mesmo com boa parte de
sua obra tendo claramente uma perspectiva antirracista, o que era incomum na
época, ele se tornou famoso com os leitores enfatizando outros aspectos de sua
escrita. Os capítulos de sua obra-prima Triste Fim de Policarpo
Quaresma e de Numa e a Ninfa tiveram grande
popularidade quando foram originalmente publicados em folhetim em jornais em
1911 e 1915, respectivamente, com o último sendo adaptado para um teatro de
revista. O romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de 1919,
recebeu menção honrosa num concurso da abl. Ele colaborou regularmente com
diversas revistas, algumas de circulação nacional. É verdade que, da década de
1910 até sua morte, Barreto foi uma referência nacional incontornável, mas no
final da vida estava cada vez mais abatido pelo alcoolismo e suas consequentes
internações. Quando morre em 1º de novembro de 1922, há exatos cem anos, ele
deixa cinco livros publicados, dois no prelo, uma imensa obra espalhada em
diversos periódicos e um vácuo intelectual no debate de ideias. Sem respaldo
institucional, sua obra foi desaparecendo das livrarias.
Com o impulso do modernismo nas décadas de 1920 e
1930, pouco se falou sobre Lima Barreto, apesar de ele ter sido lido e
reverenciado por vários dos escritores que surgiam. Em 1929, por exemplo, o
poeta Manuel Bandeira reafirma a importância da “língua brasileira” usada por
Barreto em sua escrita. Um pouco depois, em 1935, no artigo Lima
Barreto, escritor popular, Jorge Amado sugere que o autor tinha sido um
caso especial na história da literatura no Brasil, por ter sido um dos poucos a
alcançar popularidade tanto entre críticos quanto entre o grande público. Na
década de 1940, com as transformações geradas pela ditadura do Estado Novo de
Getúlio Vargas, a obra de Barreto vai ganhando outros tons. O crítico e
jornalista Otto Maria Carpeaux definiu assim a imagem que ele e outros tinham
de Lima Barreto em meados daquela década:
Numa espessa nuvem de lendas, anedotas e boatos mais ou
menos autênticos desapareceu a figura bem carioca de um mulato bêbado, passando
a vida frustrada entre bares da cidade noturna e as noites de pesadelo no
hospício. O mais insistente daqueles boatos afirmava que o desaparecido tinha
deixado uns livros preciosos, há muito esgotados, inacessíveis portanto.
É justamente nesse período que entra em cena Francisco de
Assis Barbosa. Jornalista muito afeito a reportagens e entrevistas com
escritores da época, Chico Barbosa – como era conhecido – aceita em 1946, logo
após o fim da guerra, um projeto para a edição das obras completas de Lima
Barreto. Enquanto fazia a necessária pesquisa, Barbosa acabou chegando a
diversos manuscritos do escritor carioca que ficaram guardados por seus irmãos
na casa da família, no bairro de Todos os Santos (casa essa que Lima morou até
falecer e que costumava chamar de Vila Quilombo). Ao se debruçar sobre o
arquivo do autor – que em 2017 foi incluído no programa Memória do Mundo, da
Unesco, por seu valor cultural –, Barbosa viu a necessidade de contar uma outra
história, passando a limpo os boatos evocados por Carpeaux.
Num processo que tardou uma década, Barbosa conseguiu não só
escrever a incontornável biografia, que foi originalmente publicada pela
editora José Olympio em 1952 e continua a ser editada, como também organizar e
publicar (com a ajuda de Antônio Houaiss e Manoel Cavalcanti Proença) dezessete
volumes que formaram o material de Obras de Lima Barreto. A coleção
saiu pela Editora Brasiliense sob o comando do historiador marxista Caio Prado
Júnior. O impacto extraordinário da empreitada de Barbosa foi um marco não só
para os interessados em Lima Barreto, mas também se tornou um estudo de caso
das canonizações literárias no Brasil. Nomes influentes como o próprio Oliveira
Lima, Alceu Amoroso Lima, Lúcia Miguel Pereira e Gilberto Freyre escreveram
prefácios que apresentavam os volumes e ajudavam a juntar os fragmentos da obra
que Barreto havia deixado ao longo de anos de colaboração com a imprensa. Além
disso, a coleção apresentava a produção íntima de Barreto, entre diários e
correspondências, ajudando a enquadrar sua obra de ficção no que Sérgio Buarque
de Holanda, que também foi um dos prefaciadores, chamou de “confissão mal
escondida”.
Não há dúvida de que o trabalho de Barbosa estabeleceu, em
grande parte, a tônica de como Lima Barreto foi lido nesse segundo ciclo de
leitura de sua obra, a partir da década de 1950. Toda uma nova geração de
pesquisadores tomou a biografia e as obras editadas em livros para estudar o
período da Primeira República e o que Barreto produzira no período entre a
morte de Machado de Assis em 1908 e a Semana de Arte Moderna em 1922. Apesar de
variadas, as abordagens desses trabalhos não tomaram a questão racial como foco
principal. Em parte, isso já se devia a algumas das escolhas feitas por Barbosa
em sua biografia.
Sem deixar de mencionar o racismo, que chega a definir algo
eufemisticamente como “preconceito de cor”, Barbosa acaba por enfatizar Lima
Barreto como o escritor do povo que Jorge Amado definira, espécie de
representante do proletariado. A última imagem da biografia faz essa síntese.
Durante o velório do escritor, um homem desconhecido da família apareceu e
espalhou flores no caixão. Bastante comovido e lacrimejando, ele beijou a testa
do morto. Ao ver a cena, Evangelina, irmã de Lima Barreto, quis saber quem era
o homem, que retrucou: “Não sou ninguém, minha senhora. Sou um homem que leu e
amou esse grande amigo dos desgraçados.” Esta foi a imagem que prevaleceu entre
os críticos naquele período, com a obra de Barreto sendo frequentemente
associada a uma percepção da realidade social brasileira vista de baixo para
cima, “julgando os poderosos pela indignação dos injustiçados”, como sugeriu o
historiador Nicolau Sevcenko décadas depois.
Não se trata aqui de negar esse importante aspecto no
que Barreto escreveu. Mas cada interpretação tem suas ênfases, e a de Barbosa
não recaía sobre a questão racial. No prefácio do primeiro volume editado pela
Brasiliense, o biógrafo reconhece que o racismo influenciou a obra de Barreto,
definindo-o como um “mulato incompreendido e até certo ponto perseguido”. Mas
argumenta que essa não era a questão principal. Considerando o contexto
político mais geral da época, a ênfase de Barbosa pode ser vista também como
fruto da Guerra Fria e das escolhas editoriais da época. O próprio Barbosa
conta que ao longo da década em que tentou editar as obras completas, passando
por várias tentativas nas editoras Livro de Bolso, Mérito e W. M. Jackson,
havia “má vontade manifesta dos editores, desgostosos do ‘mau negócio’ que
haviam feito, principalmente pelo tom antiamericano de certas passagens da obra
do romancista”. Além desses textos contra os Estados Unidos, quase todos
focados na questão das relações raciais naquele país, havia vários textos de
Barreto que explicitamente apoiavam a revolução bolchevique e ao menos um que
tecia elogios à Alemanha em 1919 (texto esse que acabou ficando de fora dos
livros editados em 1956).
Para além da Guerra Fria, porém, é preciso atentar também
para um outro debate internacional de grande relevância naquele momento, e que
certamente influenciou essas leituras da obra do autor. A Segunda Guerra
Mundial (1939-45) marcou uma revolução nas questões raciais, definindo um novo
paradigma. O fim do regime nazista obrigou o mundo a reconhecer o potencial
letal do conceito de raça e as horríveis consequências de seu uso extremo. O
doloroso reconhecimento de tudo que havia sido infligido em nome da raça ajudou
a desacreditar o racismo no cenário internacional. Esse processo é muitas vezes
visto como inevitável: uma vez que as atrocidades nazistas foram reveladas, o
racismo foi rejeitado. Mas a resposta global e a construção de um novo
paradigma não foram imediatas. Apesar da derrota do nazismo, o racismo
permaneceu uma ideologia poderosa no final da década de 1940. Normas
institucionais baseadas nessa visão de mundo ainda vigoravam em muitos países:
sistemas de segregação racial respaldados por leis eram relativamente comuns,
com países como Estados Unidos e África do Sul sendo os exemplos mais notórios.
Um dos momentos-chave do período pós-guerra foi a publicação
da Declaração sobre Raça, pela Unesco, em julho de 1950. A criação da
Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 levou a um aumento nos esforços
voltados para a promoção internacional dos direitos humanos e da igualdade,
incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção para a
Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, ambas ratificadas em 1948. Nesse
contexto, a Unesco foi fundada em 1945 como sucessora do Instituto Internacional
de Cooperação Intelectual da Liga das Nações. A missão central da Unesco era
promover a paz e os direitos humanos por meio de colaborações entre os países
nas áreas da educação, ciência e cultura. Não surpreendentemente, um de seus
primeiros atos públicos foi emitir uma declaração sobre raça, baseada em
contribuições de estudiosos de várias partes do mundo. Um comitê de
especialistas estabelecido pela Unesco se juntou então para escrever a
Declaração sobre Raça, com base em dados científicos de estudos sobre raça
elaborados em décadas anteriores.
Como aponta Elazar Barkan, professor de Relações
Internacionais da Universidade Columbia, os acadêmicos que estudavam raça na
primeira metade do século XX eram quase todos ligados à biologia e à
antropologia física, uma disciplina que se tornara popular em meados do século
XIX, atingindo seu apogeu na época em que Lima Barreto viveu. Na década de
1930, porém, cada vez menos cientistas dedicavam suas carreiras exclusivamente
ao estudo da raça. Uma razão desse declínio foi a falta de formas consistentes
de classificação. Apesar das diferenças físicas exteriores, visíveis entre as
diferentes populações humanas, tornou-se evidente para os cientistas que os
esforços em definir a tipologia racial nunca chegavam perto de uma conclusão
relevante: não havia demarcações consistentes (populações distintas não se
conformavam a categorias fixas), tornando a taxonomia impossível e muitas vezes
emaranhada com temas de etnia e nacionalidade. Os antropólogos físicos
acumulavam dados que não tinham justificativa epistemológica, e seus dados não
produziam resultados que pudessem estabelecer comparações significativas. Além
disso, apesar da crescente credibilidade que a genética adquiria como a ciência
da hereditariedade, as pesquisas mostravam que a genética humana não oferecia
nenhuma explicação sobre distinções físicas que pudessem estabelecer
classificações raciais.
Os estudos sobre raça e racismo na segunda metade do século
XX já tinham, portanto, outro perfil. A crença na raça como biologia tinha dado
lugar à raça como construção social e política. É nesse movimento de placas
tectônicas que a Unesco é criada e estabelece o comitê interdisciplinar para
definir uma agenda global. O esforço da entidade tinha como objetivo iniciar
uma campanha educacional para disseminar o conhecimento científico sobre raça
no mundo. O primeiro diretor-geral da Unesco foi Julian Huxley, coautor do
livro We Europeans: a survey of “racial” problems (Nós,
europeus: um levantamento dos problemas “raciais”), uma das primeiras obras a
defender o uso do termo etnia como substituto de raça, numa forma de combater o
racismo que fazia uso de discursos supostamente científicos. Huxley teve
influência na composição do comitê, que foi um elemento-chave da primeira
declaração (outras três versões foram produzidas anos depois): os acadêmicos
das ciências sociais e humanas estavam no comando, desafiando a visão mais
convencional de raça como uma categoria que só era relevante para as ciências
biológicas.
O relator Ashley Montagu era o único membro do comitê com
especialização em antropologia física e com experiência em biologia, mas um
notório crítico da raça como um conceito científico. Seu livro de 1942, Man’s
Most Dangerous Myth: The Fallacy of Race (O mito mais perigoso da
humanidade: a falácia da raça), foi uma das obras mais influentes naquele
período e ajudou a impulsionar a mudança de paradigma nos estudos raciais.
Montagu enfatizava que geneticamente os humanos eram praticamente idênticos e
que, de qualquer maneira, nossas raízes ancestrais eram as mesmas. Em outras
palavras: as diferenças entre os humanos não eram apenas marginais, mas também
formavam um continuum, um gradiente sem fronteiras.
A declaração da Unesco feita em 1950 era para ser a última
palavra sobre o assunto: “Os cientistas chegaram a um acordo geral em
reconhecer que a humanidade é uma só: que todos os seres humanos pertencem à
mesma espécie, Homo sapiens.” O documento declarava que não havia
base científica ou justificativa para o preconceito racial. De certa maneira,
isso foi revolucionário e marcou uma ousada tentativa global de reverter os
profundos danos causados por ideias e políticas racistas dos séculos
anteriores. A imensa maioria dos acadêmicos apoiou a Unesco, e as pesquisas das
décadas seguintes refletiram amplamente esse apoio. Cientistas começaram a
procurar diferenças genéticas no nível molecular, e não na superfície. Formas
mais antigas e controversas de estudar a diferença humana, usando a anatomia,
passaram a ser tratadas com desconfiança.
Arelação entre essas mudanças paradigmáticas no
debate global, a forma em que o debate racial se dava no Brasil da época e a
leitura vigente da obra de Lima Barreto pode ser sintetizada na figura do
escritor Gilberto Freyre. Além de ter sido escolhido por Chico Barbosa para
prefaciar o Diário Íntimo de Barreto em 1956, Freyre foi
também convidado para dirigir o Departamento de Ciências Sociais da Unesco em
1948. Acabou recusando,[3] provavelmente
pela quantidade de projetos com os quais já estava envolvido na época: era
deputado federal por Pernambuco (contribuindo para a elaboração da Lei Afonso
Arinos, que estabeleceu atos de discriminação racial como contravenção penal);
organizava então a criação do que hoje conhecemos como Fundação Joaquim Nabuco;
e começava a planejar suas viagens pelo que restava do Império Colonial
Português (foi ao longo dessas viagens que Freyre desenvolveu o conceito de
lusotropicalismo, que o regime salazarista viria a reutilizar de maneira
ideológica para tentar manter as colônias sobre seu domínio).
Apesar de não ter aceitado o cargo na Unesco, a visão
freyriana sobre o Brasil se faria presente na entidade. Na reunião
interdisciplinar de acadêmicos realizada em Paris, em 1949, que deu origem à
Declaração sobre Raça, o Brasil foi selecionado como objeto de uma ampla
pesquisa para tentar entender os aspectos que tinham levado o país a construir
uma experiência de relações raciais supostamente menos tensa que em outros
países. A ideia vinha sendo amadurecida desde pelo menos 1947, quando o
Departamento de Ciências Sociais da Unesco aprovou o projeto Tensions Affecting
International Understanding (As tensões que afetam o entendimento entre as
nações), durante a conferência geral na Cidade do México. O objetivo era
estudar as causas das guerras, as rivalidades nacionais e as diversas formas de
racismo. No relatório final, publicado em 1950 e escrito pelo canadense Otto
Klineberg, professor de psicologia e coordenador do projeto, o Brasil foi
pintado com as tintas de Freyre: “Seria falso dizer que não há absolutamente
nenhum preconceito racial no Brasil, mas […] o quadro geral das relações
raciais […] pode ser descrito como amigável.”
O prefácio que Freyre escreve em 1954 para o Diário
Íntimo foi retomado e expandido por ele décadas depois, em 1981, por
ocasião do centenário de nascimento de Lima Barreto. Curiosamente, ambas as
versões giram em torno de uma aproximação da obra de Barreto com a de Freyre,
com o pernambucano afirmando que conseguiu levar a cabo em sua famosa trilogia
(Casa-Grande & Senzala, 1933; Sobrados e
Mucambos, 1936; Ordem e Progresso, 1957) o que Barreto tinha
sonhado em seu diário: fazer uma história da influência da escravidão no
Brasil. Com sua costumeira erudição, Freyre tece elogios, aponta falhas e faz
comparações, argumentando repetidas vezes que Barreto tinha um ressentimento
por ser negro e que ler seu diário íntimo era como estar num confessionário de
igreja – com “um brasileiro angustiado, menos de fora para dentro, do que de
dentro para fora” confessando ter o grande desejo de ser “alvo, louro,
angélico”. Freyre sugere essa curiosa interpretação tomando como base as
diversas vezes no diário em que Barreto desabafa sobre as dificuldades de ser
negro no Brasil e no mundo.
Os quase trinta anos que separam as duas versões do texto de
Freyre são também o período de surgimento de outras interpretações sobre
relações raciais no Brasil e no mundo, com um consequente declínio da
influência freyriana. Na segunda versão do prefácio, já no final de sua vida, o
sociólogo tenta atacar essas novas abordagens, referindo-se ao movimento Négritude como
uma “seita”, reclamando “dos escassos adeptos” dessa retórica “não brasileira”
e sugerindo que o senegalês Léopold Senghor – escritor e político que foi um
dos principais formuladores do movimento anticolonial pan-africano – era
entusiasta da miscigenação brasileira. Para Freyre, cuja obra gira em torno de
certa ideia de excepcionalidade brasileira, Lima Barreto era um brasileiro
afronegro, mas não um afronegro brasileiro.
Publicado também naquele início da década de 1980,
como parte de um livro que celebrava o centenário do nascimento de Barreto, um
texto de Joel Rufino dos Santos é um bom exemplo do que inquietava Freyre. Uma
das principais figuras dos estudos afro-brasileiros, Rufino dos Santos, um
historiador negro, argumenta que a redescoberta dos textos de Barreto na década
de 1950 e as interpretações que surgiram nessa esteira tinham sido marcadas
pelo “mito da democracia racial” (que ele declara como falido), mito esse que
via no escritor um “mulato ressentido”. Rufino dos Santos sustenta que as
transformações econômicas e sociais no Brasil tinham aprofundado ainda mais as
contradições raciais, ao contrário do que “ingenuamente se supunha (que iria
acontecer no futuro) aí por volta de 1950”. Ele apontou ainda que havia uma
nova geração de negros naquele começo da década de 1980 que lia a obra de
Barreto por outro ângulo, como “um cálido reencontro”. Não viam nele e em suas
obras nenhum mulato ressentido, mas “o típico brasileiro, submetido a
fortíssimas pressões raciais”.
As leituras que surgem a partir dos anos 1980 também podem
ser articuladas a muitas mudanças que estavam em marcha no âmbito
internacional. Em meio ao avanço dos movimentos de direitos civis nos Estados
Unidos (que foram fundamentais para o fim do sistema legal de segregação na
década de 1960), a ONU aprovou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial. É a partir desta convenção – uma das
principais referências dos direitos humanos no mundo até hoje – que começa a
ser formulada de maneira coordenada uma agenda política global contra o
racismo, demandando dos países-membros (ainda que sem poder de lei) que
implementem tais princípios. A Convenção entrou em vigor em 1969 e desencadeou
esforços globais, como a primeira Década de Combate ao Racismo e à
Discriminação Racial, que teve como objetivo produzir um programa de ações para
a década (1973-83). No âmbito dessa agenda, a ONU organizou conferências
internacionais contra o racismo em 1978 e 1983 – encontros que focaram, entre
outros aspectos, na derrubada dos regimes institucionalizados de segregação
racial, como o apartheid da África do Sul (que só terminaria legalmente em
1991).
Na virada para o século XXI, houve também a terceira
conferência da ONU, em Durban (África do Sul), que resultou no principal
documento internacional para organizar a agenda de combate ao racismo. No campo
simbólico, é na declaração de Durban que pela primeira vez fica reconhecido por
todos os membros da ONU que a escravidão e o tráfico de escravos foram crimes
contra a humanidade. As intuições que aparecem no diário de Barreto muitas
décadas antes – a necessidade de estudar a história do racismo e da escravidão;
a postura antirracista; as denúncias sobre as desigualdades raciais – se
consolidam como princípios declarados na geopolítica mundial. A conferência
também reconheceu que o colonialismo levou ao racismo, e que suas consequências
persistem até hoje. No campo prático, o programa de ação que resultou da
conferência enfatizou a necessidade dos países-membros de atacar o racismo em
suas políticas internas, investigando as causas, implementando políticas de
combate e criando estruturas de apoio às vítimas. Também pedia por medidas de
prevenção, educação e proteção, assim como o desenvolvimento de estratégias
para alcançar a igualdade efetiva (como, por exemplo, por meio de ações
afirmativas).
Esse contexto de avanço no debate mundial sobre o racismo
acabou embasando novas leituras das obras de escritores como Lima Barreto. O
exemplo mais recente e simbólico é o trabalho da historiadora e escritora
branca Lilia Schwarcz, que ao longo de uma década reeditou boa parte da obra de
Barreto e escreveu uma outra biografia do autor carioca, Lima Barreto:
Triste Visionário, publicada em 2017, como uma espécie de contraponto à de
Barbosa. Seguindo o fio de Rufino dos Santos, Schwarcz coloca a questão racial
como o principal eixo do livro (sem deixar de reconhecer as questões de classe
que foram enfatizadas anteriormente), para mostrar como o “criador de Isaías
Caminha não combinava com o Brasil que o pernambucano [Gilberto Freyre]
imaginava e desenhava como nação”. Entre capítulos que se aprofundam nos
ancestrais de Barreto (neto de escravos por ambos os lados da família) e outros
que analisam em pormenor a cor da pele dos personagens criados em suas
histórias, Schwarcz reconstrói um autor que é vítima e agente, triste e
visionário ao mesmo tempo, dando espaço para as ambivalências e contradições da
vida e das relações raciais.
Cada época seleciona e relê, à sua maneira, os autores do
passado. É curioso pensar que a pioneira postura antirracista da obra de Lima
Barreto só foi lida com a devida ênfase no período mais recente, deixando de
ser um “ressentido” para se tornar um “visionário”. Esse foi o tom, por
exemplo, das discussões que marcaram a Festa Literária Internacional de Paraty
(Flip) de 2017, quando finalmente foi escolhido como autor homenageado. É claro
que a obra do autor é multifacetada e abarca muitos outros temas que o fazem
ser um dos “pouquíssimos” que continuam a ser editados depois de um século sem
a sua presença. Contudo, no centenário da morte, fica claro que os ciclos de
leitura demoraram a reconhecer o pioneirismo de sua atuação antirracista
naquele começo de século XX, seguindo um lento movimento global de
questionamento do racismo nos últimos cem anos. Num mundo ideal, seria ótimo se
das leituras da obra de Lima Barreto hoje pudessem surgir não exatamente os
encontros cálidos sugeridos por Rufino dos Santos, mas estranhamentos em
relação a um passado longínquo. Seria um indício de que as questões raciais que
ele analisou já estariam superadas por transformações na sociedade. Ainda não é
o caso.
[1] Artigo publicado no Jornal do
Commercio em 4 de dezembro de 1899 como resenha do livro de Oliveira
Lima Nos Estados Unidos: Impressões Políticas e Sociais, publicado
no mesmo ano. O artigo fala sobre “negros e outras raças inferiores”; por outro
lado diz que os preconceitos de raça no Brasil, quando existem, são
superficiais e insignificantes.
[2] Um exemplo notório é o livro A
América Latina, do político e escritor Sílvio Romero, publicado em 1906. A
obra defendia o branqueamento da população e atacava A América Latina:
Males de Origem, livro publicado no ano anterior pelo médico e escritor
Manoel Bomfim, que valorizava a miscigenação brasileira.
[3] Em seu lugar, entra o também brasileiro
Arthur Ramos, que pouco antes de morrer estabeleceu as linhas gerais das
pesquisas sociais que seriam feitas no Brasil, país que ele costumava definir
como um “laboratório de civilizações”. Os resultados das pesquisas mostraram
que as relações raciais no Brasil estavam longe de ser um modelo a ser seguido.