quarta-feira, 20 de novembro de 2024

DE RESSENTIDO A VISIONÁRIO

Felipe Botelho Corrêa, PIAUÍ

Como o meio intelectual brasileiro tardou em reconhecer a tônica antirracista e universal da obra de Lima Barreto

Em 1905, aos 24 anos, Lima Barreto fez uma anotação em seu diário registrando quando teve a primeira percepção sobre racismo no âmbito intelectual. Foi quando, aos 14 anos de idade, leu artigos dos escritores Domício da Gama (pseudônimo de Domício Afonso Forneiro) e Manuel de Oliveira Lima, na Revista Brazileira, criada em meados do século XIX e que viria a se tornar a revista oficial da Academia Brasileira de Letras (ABL), instituição que Gama e Oliveira Lima ajudaram a fundar. Publicados entre 1895 e 1896, os artigos que impactaram o adolescente Barreto tratavam das impressões que os dois diplomatas coletaram durante viagens aos Estados Unidos. As viagens ocorreram na época em que as leis segregacionistas conhecidas como Leis Jim Crow tinham sido confirmadas pela Suprema Corte norte-americana, estabelecendo a doutrina legal separate but equal (separados, mas iguais), visível nas simbólicas placas que dividiam a população entre white e colored. Era um período de extrema violência nos Estados Unidos: dois negros, em média, eram linchados por semana ao longo da década de 1890.

Nos artigos da Revista Brazileira, eram típicas as comparações com os Estados Unidos e os consequentes diagnósticos para o Brasil da época – cheios de hierarquizações raciais e apelos a uma imigração branca que resolveriam o suposto problema racial via miscigenação. Sobre o contexto norte-americano, Oliveira Lima, que era branco, repetia ideias como a de que a imigração europeia resultaria numa diluição dos negros, evitando assim que a população negra se agregasse num elemento social ou político isolado e perigoso. Gama, considerado por alguns o primeiro diplomata negro do Brasil, argumentava na mesma linha, sugerindo que “[…] a mancha negra, longe de se alargar contaminando toda a superfície da União [dos Estados Unidos], acabará por se reduzir às proporções de uma simples pinta que sirva para contrastar a brancura da República e a pureza das raças fortes que a fundaram […]”.

Focado no contexto brasileiro, José Veríssimo, então editor da Revista Brazileira, reforçava o mesmo pensamento em resenha de 1899:

Não há receio, como supõe o sr. Oliveira Lima, de que surja o problema negro no Brasil. Antes de surgir, foi aqui resolvido pelo amor. O cruzamento tirou do elemento toda a importância numérica, diluindo-o na população branca. […] A mistura das raças tendendo, como asseguram os etnólogos […], a fazer prevalecer a superior, acabará forçosamente, em período mais ou menos curto, por extinguir aqui a raça negra.[1]

Esse discurso baseado na imigração e na miscigenação foi o mesmo que a delegação brasileira – encabeçada pelo diretor do Museu Nacional, o médico João Baptista de Lacerda, e pelo jovem antropólogo Edgard Roquette-Pinto – repetiu no Primeiro Congresso Universal de Raças, realizado em Londres em 1911. O evento reuniu dezenas de delegações dos cinco continentes para um pioneiro debate internacional sobre questões raciais. Diante dessa audiência global, muitas das delegações tocaram, em suas apresentações, nas tensões geradas pelos estudos que entendiam raça como uma categoria científica – muito comuns no século XIX, apesar de nunca ter havido qualquer consenso sobre tal definição. Lacerda e Roquette-Pinto focaram na questão do “mestiço no Brasil”, afirmando a tese do embranquecimento progressivo pela miscigenação. Disseram que, em três gerações – ou seja, no decorrer do século XX –, todos no Brasil seriam brancos.

Liderada por W. E. B. Du Bois, a delegação dos Estados Unidos enfatizou, por outro lado, sua crítica à ideia de hierarquia entre as raças e tratou dos problemas gerados pela segregação racial imposta por lei. Para o jovem Du Bois – que depois continuaria sua trajetória como um dos maiores intelectuais negros norte-americanos e uma das principais referências sobre estudos afro-americanos no século XX (é dele a famosa “profecia” escrita em 1903, de que o principal problema do século seriam as relações raciais) –, o evento foi importante por ter sido um dos primeiros a discutir a questão da igualdade racial em nível global. Para se ter uma ideia da veia vanguardista do encontro, naquela mesma década uma proposta de emenda ao Tratado de Versalhes para a inclusão do princípio de igualdade racial foi rejeitada na Conferência de Paz de Paris de 1919, que definiu a geopolítica global no período entre as duas guerras mundiais.

Esse pequeno panorama global sintetiza muitas das preocupações que ocupavam Lima Barreto naquele começo de século XX, e ele certamente estava muito mais próximo das ideias e preocupações de Du Bois do que das teses dos membros da delegação brasileira. O racismo atravessava sua vida. Aos 7 anos ele presenciou com o pai a abolição da escravatura no Paço e se encheu de esperança. Aos 14, quando estudava numa escola de elite (sendo o único negro em sua turma), foi tomado por um enorme medo ao ler os inúmeros artigos – como os da Revista Brazileira – que o inferiorizavam. Aos 24, quando enveredou a escrever para periódicos, tomou as letras como uma arma para sacudir esse medo, mirando principalmente na “covardia intelectual” que, segundo ele, apossava os brasileiros em face das teorias raciais que vinham embaladas em discursos científicos da Europa.

Barreto anota com extrema lucidez em seu diário em 1905: “Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que há umas certas raças superiores e umas outras inferiores, e […] que as misturas entre essas raças são um vício social, uma praga e não sei que coisa feia mais. Tudo isto se diz em nome da ciência e a coberto da autoridade de sábios alemães.” Aqui ele faz referência a influentes discursos como os de Ernst Haeckel e seu darwinismo social; Wilhelm Schallmayer e Alfred Ploetz e suas ideias de eugenia; e o filósofo racialista anglo-alemão Houston Stewart Chamberlain, árduo admirador de Richard Wagner que, depois da morte do compositor, viria a se casar com uma de suas filhas. Assim como Wagner – espécie de sogro póstumo do filósofo – se tornaria o músico-símbolo do Terceiro Reich, Chamberlain ficou conhecido mais tarde por ter sido uma das principais influências por trás do antissemitismo da política racial nazista, considerado uma espécie de profeta nos círculos liderados por Hitler. Longe de ser uma figura marginal, sua tese sobre o arianismo foi publicada em 1899 e se tornou um dos best-sellers mais influentes daquela época: Die Grundlagen des Neunzehnten Jahrhunderts (Os fundamentos do século XIX). Traduzido para diversas línguas, embora sem versão em português, o livro chegou a atingir a marca de 100 mil exemplares vendidos no período até 1914, e angariou veementes apoiadores no Brasil.[2] O desabafo de Lima era contra essa crescente influência de teorias racistas no Brasil e no mundo ocidental.

 

Pouquíssimos são os escritores, e menos ainda as escritoras, que continuam a ser lidos e editados após o centenário de suas mortes. A famosa ideia do matemático francês Augustin-Louis Cauchy – a de que o ser humano morre, mas sua obra permanece – é para pouquíssimos. E para que isso aconteça é quase sempre necessário um processo de “canonização”; uma espécie de história das leituras e releituras dessas obras. Esse processo atravessa diferentes conjunturas político-sociais, debates de ideias, decisões editoriais e, é claro, distintas gerações de leitores e suas ênfases. O caso de Lima Barreto (1881-1922) é ao mesmo tempo multifacetado e revelador. Se, por um lado, é animador que esse grande escritor brasileiro siga sendo lido e redescoberto cem anos depois da morte em razão da complexidade e qualidade de sua obra, por outro é notória a forma como sua pioneira perspectiva antirracista demorou a ser compreendida como um pilar fundamental de seu projeto literário.

Por mais que a escrita de Lima Barreto fosse marcada por sua experiência no Rio de Janeiro naquele início de República, sua obra está em constante diálogo com debates internacionais por meio, principalmente, de autores de países-membros do que nos acostumamos a chamar do “Norte global”. A lista dos autores discutidos em sua obra é extensa e funciona como uma espécie de estudo de caso de como um negro do “Sul global” enfrentou criticamente aquelas ideias, apropriando-se de algumas, rebatendo outras e negociando outras tantas num cenário mundial que ainda era colonial. Barreto muitas vezes usa o contexto local para confrontar esses debates desde sua perspectiva e experiência, mesmo com todas as dificuldades de tal empreitada: escrever em português, morar no Brasil, ser negro (e não se esconder), ser de classe média baixa, escrever para as massas e não ter respaldo institucional. Ainda assim, ele tentava. O exemplo mais curioso talvez seja a carta que Barreto escreve em 1906 ao sociólogo francês Célestin Bouglé, que era muito próximo de Émile Durkheim. Escrita em francês, a carta de Barreto usa o exemplo do Brasil (e o seu próprio) para tentar “dissipar certas opiniões falsas que o mundo civilizado tem sobre as pessoas de cor”, como as que aparecem no livro de Bouglé La Démocratie Devant la Science. Études Critiques sur l’Hérédité, la Concurrence et la Différenciation (A democracia diante da ciência: estudos críticos em hereditariedade, competição e diferenciação), publicado em 1904.

Essas circunstâncias periféricas o fizeram até criar uma espécie de autodefinição de sua posição nesse espaço intelectual global. O autor carioca sugere ter uma “razão subalterna” movida por profundas “implicâncias” com diferentes teorias e ideias que circulavam na época. Apesar de haver pontos de contato entre a expressão que Barreto usa e o conceito de “subalterno” que Antonio Gramsci usaria anos depois em seus Cadernos do Cárcere (1929-35) – e que acabaram mais tarde sendo um dos pontos de partida dos estudos subalternos que surgiram na Índia dos anos 1980 e no contexto latino-americano a partir dos anos 1990 –, as “implicâncias” de Lima Barreto tinham outro teor.

Um dos temas com os quais ele mais implicava – no sentido de se envolver, de combater – era com a influência e legado da escravidão e do racismo no Brasil. Em vários momentos, isso aparece de maneira explícita em anotações em seu diário, com ideias para livros que queria escrever – a “História da Escravidão Negra no Brasil” e a sua influência na nossa nacionalidade, ou mesmo um “Germinal Negro”, em referência ao romance mais conhecido do autor francês Émile Zola. Como estas, muitas outras ideias ele chegou a conceber sem desenvolvê-las. Das ideias que foram levadas a cabo, a questão racial fica explícita em uma imensa quantidade de contos, crônicas e romances sobre como o racismo tem um papel definidor no destino de protagonistas negros. Entre os mais conhecidos, podemos citar o racismo que atravessa Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), romance de estreia de Lima Barreto, cujo protagonista é colocado como suspeito de um crime que não cometeu; a desesperante constatação da última frase de Clara dos Anjos (publicado em folhetins entre 1923 e 1924, mas só reunido em livro em 1948), que, como mulher e negra, desabafa “Não somos nada nessa vida”; ou mesmo em O Cemitério dos Vivos (só publicado em 1953), que Barreto deixa inacabado, mostrando o cotidiano de um hospital psiquiátrico em que os internos são na maioria negros. Espalhadas em sua produção há, também, inúmeros temas em que o racismo continua sendo central, mesmo quando não aparece de maneira explícita. Suas implicâncias com a linguagem elitista, o nacionalismo, o futebol, o helenismo, os doutores e até o emergente feminismo têm como pano de fundo uma estratégia intelectual de fazer frente aos discursos racistas que o oprimiam e excluíam a população negra.

Ainda assim, o primeiro ciclo de leitura de sua obra não pareceu captar essa ênfase. Seu primeiro livro causou polêmica e foi muito comentado, não exatamente pela questão racial que perpassa a história, mas pelas referências caricatas a jornalistas e escritores que eram facilmente decodificadas pelos leitores. Recebeu também críticas sobre um suposto “descuido” na sua linguagem escrita, o que na verdade era uma estratégia deliberada de se comunicar com um público mais amplo. Mesmo com boa parte de sua obra tendo claramente uma perspectiva antirracista, o que era incomum na época, ele se tornou famoso com os leitores enfatizando outros aspectos de sua escrita. Os capítulos de sua obra-prima Triste Fim de Policarpo Quaresma e de Numa e a Ninfa tiveram grande popularidade quando foram originalmente publicados em folhetim em jornais em 1911 e 1915, respectivamente, com o último sendo adaptado para um teatro de revista. O romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de 1919, recebeu menção honrosa num concurso da abl. Ele colaborou regularmente com diversas revistas, algumas de circulação nacional. É verdade que, da década de 1910 até sua morte, Barreto foi uma referência nacional incontornável, mas no final da vida estava cada vez mais abatido pelo alcoolismo e suas consequentes internações. Quando morre em 1º de novembro de 1922, há exatos cem anos, ele deixa cinco livros publicados, dois no prelo, uma imensa obra espalhada em diversos periódicos e um vácuo intelectual no debate de ideias. Sem respaldo institucional, sua obra foi desaparecendo das livrarias.

 

Com o impulso do modernismo nas décadas de 1920 e 1930, pouco se falou sobre Lima Barreto, apesar de ele ter sido lido e reverenciado por vários dos escritores que surgiam. Em 1929, por exemplo, o poeta Manuel Bandeira reafirma a importância da “língua brasileira” usada por Barreto em sua escrita. Um pouco depois, em 1935, no artigo Lima Barreto, escritor popular, Jorge Amado sugere que o autor tinha sido um caso especial na história da literatura no Brasil, por ter sido um dos poucos a alcançar popularidade tanto entre críticos quanto entre o grande público. Na década de 1940, com as transformações geradas pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, a obra de Barreto vai ganhando outros tons. O crítico e jornalista Otto Maria Carpeaux definiu assim a imagem que ele e outros tinham de Lima Barreto em meados daquela década:

Numa espessa nuvem de lendas, anedotas e boatos mais ou menos autênticos desapareceu a figura bem carioca de um mulato bêbado, passando a vida frustrada entre bares da cidade noturna e as noites de pesadelo no hospício. O mais insistente daqueles boatos afirmava que o desaparecido tinha deixado uns livros preciosos, há muito esgotados, inacessíveis portanto.

É justamente nesse período que entra em cena Francisco de Assis Barbosa. Jornalista muito afeito a reportagens e entrevistas com escritores da época, Chico Barbosa – como era conhecido – aceita em 1946, logo após o fim da guerra, um projeto para a edição das obras completas de Lima Barreto. Enquanto fazia a necessária pesquisa, Barbosa acabou chegando a diversos manuscritos do escritor carioca que ficaram guardados por seus irmãos na casa da família, no bairro de Todos os Santos (casa essa que Lima morou até falecer e que costumava chamar de Vila Quilombo). Ao se debruçar sobre o arquivo do autor – que em 2017 foi incluído no programa Memória do Mundo, da Unesco, por seu valor cultural –, Barbosa viu a necessidade de contar uma outra história, passando a limpo os boatos evocados por Carpeaux.

Num processo que tardou uma década, Barbosa conseguiu não só escrever a incontornável biografia, que foi originalmente publicada pela editora José Olympio em 1952 e continua a ser editada, como também organizar e publicar (com a ajuda de Antônio Houaiss e Manoel Cavalcanti Proença) dezessete volumes que formaram o material de Obras de Lima Barreto. A coleção saiu pela Editora Brasiliense sob o comando do historiador marxista Caio Prado Júnior. O impacto extraordinário da empreitada de Barbosa foi um marco não só para os interessados em Lima Barreto, mas também se tornou um estudo de caso das canonizações literárias no Brasil. Nomes influentes como o próprio Oliveira Lima, Alceu Amoroso Lima, Lúcia Miguel Pereira e Gilberto Freyre escreveram prefácios que apresentavam os volumes e ajudavam a juntar os fragmentos da obra que Barreto havia deixado ao longo de anos de colaboração com a imprensa. Além disso, a coleção apresentava a produção íntima de Barreto, entre diários e correspondências, ajudando a enquadrar sua obra de ficção no que Sérgio Buarque de Holanda, que também foi um dos prefaciadores, chamou de “confissão mal escondida”.

Não há dúvida de que o trabalho de Barbosa estabeleceu, em grande parte, a tônica de como Lima Barreto foi lido nesse segundo ciclo de leitura de sua obra, a partir da década de 1950. Toda uma nova geração de pesquisadores tomou a biografia e as obras editadas em livros para estudar o período da Primeira República e o que Barreto produzira no período entre a morte de Machado de Assis em 1908 e a Semana de Arte Moderna em 1922. Apesar de variadas, as abordagens desses trabalhos não tomaram a questão racial como foco principal. Em parte, isso já se devia a algumas das escolhas feitas por Barbosa em sua biografia.

Sem deixar de mencionar o racismo, que chega a definir algo eufemisticamente como “preconceito de cor”, Barbosa acaba por enfatizar Lima Barreto como o escritor do povo que Jorge Amado definira, espécie de representante do proletariado. A última imagem da biografia faz essa síntese. Durante o velório do escritor, um homem desconhecido da família apareceu e espalhou flores no caixão. Bastante comovido e lacrimejando, ele beijou a testa do morto. Ao ver a cena, Evangelina, irmã de Lima Barreto, quis saber quem era o homem, que retrucou: “Não sou ninguém, minha senhora. Sou um homem que leu e amou esse grande amigo dos desgraçados.” Esta foi a imagem que prevaleceu entre os críticos naquele período, com a obra de Barreto sendo frequentemente associada a uma percepção da realidade social brasileira vista de baixo para cima, “julgando os poderosos pela indignação dos injustiçados”, como sugeriu o historiador Nicolau Sevcenko décadas depois.

 

Não se trata aqui de negar esse importante aspecto no que Barreto escreveu. Mas cada interpretação tem suas ênfases, e a de Barbosa não recaía sobre a questão racial. No prefácio do primeiro volume editado pela Brasiliense, o biógrafo reconhece que o racismo influenciou a obra de Barreto, definindo-o como um “mulato incompreendido e até certo ponto perseguido”. Mas argumenta que essa não era a questão principal. Considerando o contexto político mais geral da época, a ênfase de Barbosa pode ser vista também como fruto da Guerra Fria e das escolhas editoriais da época. O próprio Barbosa conta que ao longo da década em que tentou editar as obras completas, passando por várias tentativas nas editoras Livro de Bolso, Mérito e W. M. Jackson, havia “má vontade manifesta dos editores, desgostosos do ‘mau negócio’ que haviam feito, principalmente pelo tom antiamericano de certas passagens da obra do romancista”. Além desses textos contra os Estados Unidos, quase todos focados na questão das relações raciais naquele país, havia vários textos de Barreto que explicitamente apoiavam a revolução bolchevique e ao menos um que tecia elogios à Alemanha em 1919 (texto esse que acabou ficando de fora dos livros editados em 1956).

Para além da Guerra Fria, porém, é preciso atentar também para um outro debate internacional de grande relevância naquele momento, e que certamente influenciou essas leituras da obra do autor. A Segunda Guerra Mundial (1939-45) marcou uma revolução nas questões raciais, definindo um novo paradigma. O fim do regime nazista obrigou o mundo a reconhecer o potencial letal do conceito de raça e as horríveis consequências de seu uso extremo. O doloroso reconhecimento de tudo que havia sido infligido em nome da raça ajudou a desacreditar o racismo no cenário internacional. Esse processo é muitas vezes visto como inevitável: uma vez que as atrocidades nazistas foram reveladas, o racismo foi rejeitado. Mas a resposta global e a construção de um novo paradigma não foram imediatas. Apesar da derrota do nazismo, o racismo permaneceu uma ideologia poderosa no final da década de 1940. Normas institucionais baseadas nessa visão de mundo ainda vigoravam em muitos países: sistemas de segregação racial respaldados por leis eram relativamente comuns, com países como Estados Unidos e África do Sul sendo os exemplos mais notórios.

Um dos momentos-chave do período pós-guerra foi a publicação da Declaração sobre Raça, pela Unesco, em julho de 1950. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 levou a um aumento nos esforços voltados para a promoção internacional dos direitos humanos e da igualdade, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, ambas ratificadas em 1948. Nesse contexto, a Unesco foi fundada em 1945 como sucessora do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual da Liga das Nações. A missão central da Unesco era promover a paz e os direitos humanos por meio de colaborações entre os países nas áreas da educação, ciência e cultura. Não surpreendentemente, um de seus primeiros atos públicos foi emitir uma declaração sobre raça, baseada em contribuições de estudiosos de várias partes do mundo. Um comitê de especialistas estabelecido pela Unesco se juntou então para escrever a Declaração sobre Raça, com base em dados científicos de estudos sobre raça elaborados em décadas anteriores.

Como aponta Elazar Barkan, professor de Relações Internacionais da Universidade Columbia, os acadêmicos que estudavam raça na primeira metade do século XX eram quase todos ligados à biologia e à antropologia física, uma disciplina que se tornara popular em meados do século XIX, atingindo seu apogeu na época em que Lima Barreto viveu. Na década de 1930, porém, cada vez menos cientistas dedicavam suas carreiras exclusivamente ao estudo da raça. Uma razão desse declínio foi a falta de formas consistentes de classificação. Apesar das diferenças físicas exteriores, visíveis entre as diferentes populações humanas, tornou-se evidente para os cientistas que os esforços em definir a tipologia racial nunca chegavam perto de uma conclusão relevante: não havia demarcações consistentes (populações distintas não se conformavam a categorias fixas), tornando a taxonomia impossível e muitas vezes emaranhada com temas de etnia e nacionalidade. Os antropólogos físicos acumulavam dados que não tinham justificativa epistemológica, e seus dados não produziam resultados que pudessem estabelecer comparações significativas. Além disso, apesar da crescente credibilidade que a genética adquiria como a ciência da hereditariedade, as pesquisas mostravam que a genética humana não oferecia nenhuma explicação sobre distinções físicas que pudessem estabelecer classificações raciais.

Os estudos sobre raça e racismo na segunda metade do século XX já tinham, portanto, outro perfil. A crença na raça como biologia tinha dado lugar à raça como construção social e política. É nesse movimento de placas tectônicas que a Unesco é criada e estabelece o comitê interdisciplinar para definir uma agenda global. O esforço da entidade tinha como objetivo iniciar uma campanha educacional para disseminar o conhecimento científico sobre raça no mundo. O primeiro diretor-geral da Unesco foi Julian Huxley, coautor do livro We Europeans: a survey of “racial” problems (Nós, europeus: um levantamento dos problemas “raciais”), uma das primeiras obras a defender o uso do termo etnia como substituto de raça, numa forma de combater o racismo que fazia uso de discursos supostamente científicos. Huxley teve influência na composição do comitê, que foi um elemento-chave da primeira declaração (outras três versões foram produzidas anos depois): os acadêmicos das ciências sociais e humanas estavam no comando, desafiando a visão mais convencional de raça como uma categoria que só era relevante para as ciências biológicas.

O relator Ashley Montagu era o único membro do comitê com especialização em antropologia física e com experiência em biologia, mas um notório crítico da raça como um conceito científico. Seu livro de 1942, Man’s Most Dangerous Myth: The Fallacy of Race (O mito mais perigoso da humanidade: a falácia da raça), foi uma das obras mais influentes naquele período e ajudou a impulsionar a mudança de paradigma nos estudos raciais. Montagu enfatizava que geneticamente os humanos eram praticamente idênticos e que, de qualquer maneira, nossas raízes ancestrais eram as mesmas. Em outras palavras: as diferenças entre os humanos não eram apenas marginais, mas também formavam um continuum, um gradiente sem fronteiras.

A declaração da Unesco feita em 1950 era para ser a última palavra sobre o assunto: “Os cientistas chegaram a um acordo geral em reconhecer que a humanidade é uma só: que todos os seres humanos pertencem à mesma espécie, Homo sapiens.” O documento declarava que não havia base científica ou justificativa para o preconceito racial. De certa maneira, isso foi revolucionário e marcou uma ousada tentativa global de reverter os profundos danos causados por ideias e políticas racistas dos séculos anteriores. A imensa maioria dos acadêmicos apoiou a Unesco, e as pesquisas das décadas seguintes refletiram amplamente esse apoio. Cientistas começaram a procurar diferenças genéticas no nível molecular, e não na superfície. Formas mais antigas e controversas de estudar a diferença humana, usando a anatomia, passaram a ser tratadas com desconfiança.

 

Arelação entre essas mudanças paradigmáticas no debate global, a forma em que o debate racial se dava no Brasil da época e a leitura vigente da obra de Lima Barreto pode ser sintetizada na figura do escritor Gilberto Freyre. Além de ter sido escolhido por Chico Barbosa para prefaciar o Diário Íntimo de Barreto em 1956, Freyre foi também convidado para dirigir o Departamento de Ciências Sociais da Unesco em 1948. Acabou recusando,[3] provavelmente pela quantidade de projetos com os quais já estava envolvido na época: era deputado federal por Pernambuco (contribuindo para a elaboração da Lei Afonso Arinos, que estabeleceu atos de discriminação racial como contravenção penal); organizava então a criação do que hoje conhecemos como Fundação Joaquim Nabuco; e começava a planejar suas viagens pelo que restava do Império Colonial Português (foi ao longo dessas viagens que Freyre desenvolveu o conceito de lusotropicalismo, que o regime salazarista viria a reutilizar de maneira ideológica para tentar manter as colônias sobre seu domínio).

Apesar de não ter aceitado o cargo na Unesco, a visão freyriana sobre o Brasil se faria presente na entidade. Na reunião interdisciplinar de acadêmicos realizada em Paris, em 1949, que deu origem à Declaração sobre Raça, o Brasil foi selecionado como objeto de uma ampla pesquisa para tentar entender os aspectos que tinham levado o país a construir uma experiência de relações raciais supostamente menos tensa que em outros países. A ideia vinha sendo amadurecida desde pelo menos 1947, quando o Departamento de Ciências Sociais da Unesco aprovou o projeto Tensions Affecting International Understanding (As tensões que afetam o entendimento entre as nações), durante a conferência geral na Cidade do México. O objetivo era estudar as causas das guerras, as rivalidades nacionais e as diversas formas de racismo. No relatório final, publicado em 1950 e escrito pelo canadense Otto Klineberg, professor de psicologia e coordenador do projeto, o Brasil foi pintado com as tintas de Freyre: “Seria falso dizer que não há absolutamente nenhum preconceito racial no Brasil, mas […] o quadro geral das relações raciais […] pode ser descrito como amigável.”

O prefácio que Freyre escreve em 1954 para o Diário Íntimo foi retomado e expandido por ele décadas depois, em 1981, por ocasião do centenário de nascimento de Lima Barreto. Curiosamente, ambas as versões giram em torno de uma aproximação da obra de Barreto com a de Freyre, com o pernambucano afirmando que conseguiu levar a cabo em sua famosa trilogia (Casa-Grande & Senzala, 1933; Sobrados e Mucambos, 1936; Ordem e Progresso, 1957) o que Barreto tinha sonhado em seu diário: fazer uma história da influência da escravidão no Brasil. Com sua costumeira erudição, Freyre tece elogios, aponta falhas e faz comparações, argumentando repetidas vezes que Barreto tinha um ressentimento por ser negro e que ler seu diário íntimo era como estar num confessionário de igreja – com “um brasileiro angustiado, menos de fora para dentro, do que de dentro para fora” confessando ter o grande desejo de ser “alvo, louro, angélico”. Freyre sugere essa curiosa interpretação tomando como base as diversas vezes no diário em que Barreto desabafa sobre as dificuldades de ser negro no Brasil e no mundo.

Os quase trinta anos que separam as duas versões do texto de Freyre são também o período de surgimento de outras interpretações sobre relações raciais no Brasil e no mundo, com um consequente declínio da influência freyriana. Na segunda versão do prefácio, já no final de sua vida, o sociólogo tenta atacar essas novas abordagens, referindo-se ao movimento Négritude como uma “seita”, reclamando “dos escassos adeptos” dessa retórica “não brasileira” e sugerindo que o senegalês Léopold Senghor – escritor e político que foi um dos principais formuladores do movimento anticolonial pan-africano – era entusiasta da miscigenação brasileira. Para Freyre, cuja obra gira em torno de certa ideia de excepcionalidade brasileira, Lima Barreto era um brasileiro afronegro, mas não um afronegro brasileiro.

 

Publicado também naquele início da década de 1980, como parte de um livro que celebrava o centenário do nascimento de Barreto, um texto de Joel Rufino dos Santos é um bom exemplo do que inquietava Freyre. Uma das principais figuras dos estudos afro-brasileiros, Rufino dos Santos, um historiador negro, argumenta que a redescoberta dos textos de Barreto na década de 1950 e as interpretações que surgiram nessa esteira tinham sido marcadas pelo “mito da democracia racial” (que ele declara como falido), mito esse que via no escritor um “mulato ressentido”. Rufino dos Santos sustenta que as transformações econômicas e sociais no Brasil tinham aprofundado ainda mais as contradições raciais, ao contrário do que “ingenuamente se supunha (que iria acontecer no futuro) aí por volta de 1950”. Ele apontou ainda que havia uma nova geração de negros naquele começo da década de 1980 que lia a obra de Barreto por outro ângulo, como “um cálido reencontro”. Não viam nele e em suas obras nenhum mulato ressentido, mas “o típico brasileiro, submetido a fortíssimas pressões raciais”.

As leituras que surgem a partir dos anos 1980 também podem ser articuladas a muitas mudanças que estavam em marcha no âmbito internacional. Em meio ao avanço dos movimentos de direitos civis nos Estados Unidos (que foram fundamentais para o fim do sistema legal de segregação na década de 1960), a ONU aprovou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. É a partir desta convenção – uma das principais referências dos direitos humanos no mundo até hoje – que começa a ser formulada de maneira coordenada uma agenda política global contra o racismo, demandando dos países-membros (ainda que sem poder de lei) que implementem tais princípios. A Convenção entrou em vigor em 1969 e desencadeou esforços globais, como a primeira Década de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial, que teve como objetivo produzir um programa de ações para a década (1973-83). No âmbito dessa agenda, a ONU organizou conferências internacionais contra o racismo em 1978 e 1983 – encontros que focaram, entre outros aspectos, na derrubada dos regimes institucionalizados de segregação racial, como o apartheid da África do Sul (que só terminaria legalmente em 1991).

Na virada para o século XXI, houve também a terceira conferência da ONU, em Durban (África do Sul), que resultou no principal documento internacional para organizar a agenda de combate ao racismo. No campo simbólico, é na declaração de Durban que pela primeira vez fica reconhecido por todos os membros da ONU que a escravidão e o tráfico de escravos foram crimes contra a humanidade. As intuições que aparecem no diário de Barreto muitas décadas antes – a necessidade de estudar a história do racismo e da escravidão; a postura antirracista; as denúncias sobre as desigualdades raciais – se consolidam como princípios declarados na geopolítica mundial. A conferência também reconheceu que o colonialismo levou ao racismo, e que suas consequências persistem até hoje. No campo prático, o programa de ação que resultou da conferência enfatizou a necessidade dos países-membros de atacar o racismo em suas políticas internas, investigando as causas, implementando políticas de combate e criando estruturas de apoio às vítimas. Também pedia por medidas de prevenção, educação e proteção, assim como o desenvolvimento de estratégias para alcançar a igualdade efetiva (como, por exemplo, por meio de ações afirmativas).

Esse contexto de avanço no debate mundial sobre o racismo acabou embasando novas leituras das obras de escritores como Lima Barreto. O exemplo mais recente e simbólico é o trabalho da historiadora e escritora branca Lilia Schwarcz, que ao longo de uma década reeditou boa parte da obra de Barreto e escreveu uma outra biografia do autor carioca, Lima Barreto: Triste Visionário, publicada em 2017, como uma espécie de contraponto à de Barbosa. Seguindo o fio de Rufino dos Santos, Schwarcz coloca a questão racial como o principal eixo do livro (sem deixar de reconhecer as questões de classe que foram enfatizadas anteriormente), para mostrar como o “criador de Isaías Caminha não combinava com o Brasil que o pernambucano [Gilberto Freyre] imaginava e desenhava como nação”. Entre capítulos que se aprofundam nos ancestrais de Barreto (neto de escravos por ambos os lados da família) e outros que analisam em pormenor a cor da pele dos personagens criados em suas histórias, Schwarcz reconstrói um autor que é vítima e agente, triste e visionário ao mesmo tempo, dando espaço para as ambivalências e contradições da vida e das relações raciais.

Cada época seleciona e relê, à sua maneira, os autores do passado. É curioso pensar que a pioneira postura antirracista da obra de Lima Barreto só foi lida com a devida ênfase no período mais recente, deixando de ser um “ressentido” para se tornar um “visionário”. Esse foi o tom, por exemplo, das discussões que marcaram a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2017, quando finalmente foi escolhido como autor homenageado. É claro que a obra do autor é multifacetada e abarca muitos outros temas que o fazem ser um dos “pouquíssimos” que continuam a ser editados depois de um século sem a sua presença. Contudo, no centenário da morte, fica claro que os ciclos de leitura demoraram a reconhecer o pioneirismo de sua atuação antirracista naquele começo de século XX, seguindo um lento movimento global de questionamento do racismo nos últimos cem anos. Num mundo ideal, seria ótimo se das leituras da obra de Lima Barreto hoje pudessem surgir não exatamente os encontros cálidos sugeridos por Rufino dos Santos, mas estranhamentos em relação a um passado longínquo. Seria um indício de que as questões raciais que ele analisou já estariam superadas por transformações na sociedade. Ainda não é o caso.


[1] Artigo publicado no Jornal do Commercio em 4 de dezembro de 1899 como resenha do livro de Oliveira Lima Nos Estados Unidos: Impressões Políticas e Sociais, publicado no mesmo ano. O artigo fala sobre “negros e outras raças inferiores”; por outro lado diz que os preconceitos de raça no Brasil, quando existem, são superficiais e insignificantes.

[2] Um exemplo notório é o livro A América Latina, do político e escritor Sílvio Romero, publicado em 1906. A obra defendia o branqueamento da população e atacava A América Latina: Males de Origem, livro publicado no ano anterior pelo médico e escritor Manoel Bomfim, que valorizava a miscigenação brasileira.

[3] Em seu lugar, entra o também brasileiro Arthur Ramos, que pouco antes de morrer estabeleceu as linhas gerais das pesquisas sociais que seriam feitas no Brasil, país que ele costumava definir como um “laboratório de civilizações”. Os resultados das pesquisas mostraram que as relações raciais no Brasil estavam longe de ser um modelo a ser seguido.

Felipe Botelho Corrêa

Professor e pesquisador do King’s College de Londres, é organizador dos livros Crônicas da Bruzundanga (e-galáxia) e Sátiras e outras subversões (Penguin-Companhia das Letras), com textos de Lima Barreto.

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TRAIDORES DA PÁTRIA

Editorial O Estado de S. Paulo

Revelação de audacioso plano para matar Lula da Silva, entre outras autoridades, mostra até onde os golpistas pretendiam chegar com seu furor delitivo para manter Bolsonaro no poder

É de indignar todos os democratas deste país, sejam quais forem as identidades político-ideológicas que possam distingui-los, a revelação de que autoridades do governo de Jair Bolsonaro e militares das Forças Especiais do Exército, além de um policial federal, teriam conspirado para assassinar, no fim de 2022, o então presidente eleito Lula da Silva, o vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que à época acumulava o cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Como se sabe, na manhã de ontem a Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Contragolpe, que culminou na prisão do general reformado Mário Fernandes, ex-secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência (2020) e atualmente assessor do deputado Eduardo Pazuello (PL-RJ). Além de Fernandes, outros três militares com formação em Forças Especiais, conhecidos no Exército como “kids pretos”, foram presos por suspeita de elaborar o plano homicida com vistas “à abolição violenta do Estado Democrático de Direito”: Rafael Martins de Oliveira, Rodrigo Bezerra de Azevedo e Hélio Ferreira Lima. O quinto envolvido diretamente na trama, também preso, é o policial federal Wladimir Matos Soares.

A tentativa de golpe de Estado urdida pelos inconformados com a democracia, uma súcia de civis e militares, da ativa e da reserva, todos do entorno de Bolsonaro, já era execrável por tudo o que se sabia a respeito da sedição até agora. Por meio da desqualificação do processo eleitoral, entre outras artimanhas, pretendia-se evitar a eleição de Lula da Silva como presidente da República. Malfadado esse desiderato, partiu-se, então, para o impedimento da posse. A rigor, o que a Operação Contragolpe fez foi mostrar ao País, com impressionante riqueza de detalhes, até onde esses golpistas pretendiam chegar com seu furor delitivo para manter Bolsonaro no poder, em afronta à vontade popular legitimamente consagrada pelas urnas em 2022.

Chamado no ninho golpista de “Punhal Verde e Amarelo”, como se patriota fosse, o plano dos militares liderados, do ponto de vista operacional, pelo general Mário Fernandes, ex-comandante de Operações Especiais do Exército (2018-2020), consistia, pasme o leitor, em envenenar Lula, “considerando a vulnerabilidade de seu atual estado de saúde e sua frequência a hospitais”. Alckmin, segundo consta, também seria envenenado. Já para matar Alexandre de Moraes, os golpistas pretendiam detonar explosivos durante uma cerimônia pública. Eis a dimensão da infâmia. Ainda segundo a PF, ao menos uma reunião para arquitetar o triplo homicídio teria sido realizada na residência do general Walter Braga Netto, então ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro pela reeleição. Este jornal apurou que a PF não tem dúvidas sobre o “envolvimento direto” de Braga Netto nessa trama mais do que antidemocrática, macabra.

Em um ofício de 221 páginas endereçado ao gabinete do ministro Alexandre de Moraes, relator do Inquérito 4.874, que investiga no âmbito do STF a ação das chamadas “milícias digitais antidemocráticas”, a PF detalhou como os militares sediciosos monitoraram os passos de Lula, Alckmin e do próprio Moraes para decidir como e quando agir. Resta claro que o País esteve muito próximo de ser tragado por uma convulsão política e social inaudita em sua história recente. E é lícito inferir que as consequências mais nefastas dessa extrema violência política, gravíssima por sua mera cogitação, só não se materializaram porque o Alto Comando do Exército não endossou a estupidez.

Mas que ninguém se deixe enganar. Se felizmente a intentona não foi adiante, o simples fato de frutificar entre os mais bem treinados militares do Exército esse ímpeto golpista em nada tranquiliza a Nação. O País só estará em paz quando, um por um, todos os traidores da Constituição, que, como dissera Ulysses Guimarães, também são traidores da Pátria, forem julgados por seus crimes sob a égide do mesmo Estado Democrático de Direito contra o qual se insurgiram.

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ENTRE MEMÓRIAS E URGENTES SANÇÕES

Editorial Correio Braziliense

A operação da PF ontem e a tragédia da família Paiva andam de mãos dadas quando se olha para a história do Brasil

A Polícia Federal (PF) bateu à porta ontem para prender quatro integrantes do Exército e um servidor da própria corporação acusados de planejar um golpe para matar o presidente Lula (PT) e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), além do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. A estratégia, planejada por meio de grupos de WhatsApp e articulada a partir de diferentes frentes, teve, segundo as investigações, sua gênese na casa do general Braga Netto, candidato na chapa do PL à Presidência da República em 2022 ao lado de Jair Bolsonaro.

Uma das ideias envolvia envenenamento das três autoridades — portanto, sem qualquer chance de defesa. No caso do presidente Lula, a PF informa que os quatro militares se aproveitariam da condição de saúde do petista para envenená-lo durante consultas hospitalares de rotina. O escândalo choca a sociedade, é uma ameaça evidente ao Estado Democrático de Direito, mas não surpreende os livros de história. 

O país segue enfrentando as feridas abertas pelo golpe militar de 1964. Ainda que a Comissão da Verdade, extinta em 2014, tenha prestado um serviço valoroso à democracia brasileira ao revisitar crimes contra os direitos humanos nunca solucionados pelo Estado, a Lei da Anistia que perdura desde 1979 escancara uma herança maldita ainda viva entre brasileiros e brasileiras.

Diante de tal cenário, vem em hora ainda mais essencial o sucesso do longa-metragem Ainda estou aqui, em cartaz na maioria das salas de cinema do país. O filme, dirigido por Walter Salles, conta a história de Eunice Paiva (Fernanda Torres), viúva do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), sequestrado e assassinado pela ditadura militar em 1971. 

A trama, mesmo exigindo compreensão sobre a história do Brasil para seu entendimento mais completo, emociona o público ao redor do mundo por retratar a (quase) destruição de uma família unida e feliz a partir de um dos crimes mais conhecidos da ditadura militar brasileira. Após anos de luta de Eunice, o Brasil só atestou a morte de Rubens Paiva pela ditadura em 1996, a partir da Lei dos Desaparecidos Políticos, sancionada por Fernando Henrique Cardoso no ano anterior. 

A operação da PF que revelou o planejado golpe intitulado Punhal Verde e Amarelo e a tragédia da família Paiva andam de mãos dadas quando se olha para a história do Brasil. E o factual da semana confia às autoridades brasileiras uma nova oportunidade de dar a esses crimes os pesos que eles precisam ter. Notas de repúdio ou condenações via rede social são insuficientes para conter quem tem apreço pela opressão. O mesmo vale para declarações em microfones da imprensa ou em eventos públicos.

Ao mesmo tempo em que os livros e documentos da ditadura deixam claro que o plano para matar o presidente da República, seu vice e um ministro do STF tem explicações históricas, o Estado brasileiro já mostrou, em outras oportunidades, fraqueza ao punir quem odeia a democracia. O próprio fato de integrantes dos ataques de 8 de janeiro de 2023 terem se candidatado neste ano, ainda que nenhum deles tenha sido eleito, prova que se trata de uma nação quase sem memória. 

Ainda estou aqui, ao dar ao cinema brasileiro a chance de uma indicação ao Oscar, acerta não só ao retratar a tragédia causada pela ditadura pela ótica da viúva Eunice — diante do contumaz esquecimento da figura da mulher na resistência —, mas também por trazer a temática tão necessária a partir do viés da perda familiar. É preciso (re)lembrar, com nós na garganta, para não repetir os erros do passado.

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BOLSONARO ACABOU ?

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Revelações sobre trama golpista pioram situação política de ex-presidente

O tempo fechou para Jair Bolsonaro e seus acólitos. As novas revelações sobre a trama golpista mostram que o movimento avançou bem mais do que se imaginava, estava muito mais próximo do Alvorada do que se supunha e tinha características bem mais radicais também, tendo chegado a arquitetar os assassinatos de Lula, Alckmin e Moraes.

Haverá consequências em três planos, o político, o jurídico e o institucional. Na esfera política Bolsonaro já foi atingido. Não digo que está liquidado, porque em política nada é tão definitivo (vide Trump), mas acho que a partir de agora será muito difícil que ele consiga apoio para uma anistia.

O centrão que deu sobrevida a seu governo tolera bravatas e irresponsabilidades, mas tende a ser cioso da democracia. É dela, afinal, que os integrantes do bloco tiram seu sustento.

No plano jurídico a situação é menos clara. Em direito, importa o que se pode provar. É preciso ver se haverá evidências diretas do envolvimento de Bolsonaro na conspiração. O nome de Braga Neto já apareceu.

E mesmo aí nada é muito certo. Por estranho que pareça, planejar um golpe não é crime. Nem mesmo prepará-lo. A possibilidade de punir só surge quando a conjura entra em fase de execução. Foi provavelmente por isso que Moraes só autorizou a prisão dos oficiais envolvidos em atos que podem ser descritos como executórios, poupando por ora o ex-ministro da Defesa e outros oficiais.

Há ainda a esfera institucional. Após o 8/1, a cúpula das Forças Armadas teve algum sucesso em vender-se como paladina da democracia por não ter embarcado na aventura. Nunca me convenceram. Vê-se agora que o envolvimento de setores do Exército foi bem mais direto e profundo do que o inicialmente admitido.

Temos de discutir medidas para profissionalizar e modernizar as Forças Armadas, afastando-as de sua sina golpista. É urgente tirar os militares da ativa de cargos políticos, rever os currículos das escolas de oficiais e reescrever o artigo 142 da Carta, para deixar claro que não cabe aos fardados escolher qual Poder vão obedecer.

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PLANO DO GOLPE VESTIA FARDA DOS PÉS À CABEÇA

Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo

Preparativos de ruptura e instalação de regime de exceção foram uma operação essencialmente militar

O planejamento de um golpe para manter Jair Bolsonaro no cargo foi uma operação essencialmente militar. Integrantes das Forças Armadas fizeram preparativos para anular as eleições, sequestrar autoridades e assassinar o futuro presidente. Armaram a instalação de um regime de exceção que seria controlado pelos generais que haviam patrocinado a ascensão do capitão em 2018.

As investigações reveladas nesta terça (19) são mais uma prova de que o envolvimento de militares na trama do golpe jamais foi um fato isolado. O plano tinha a participação de integrantes das Forças Especiais do Exército. As ideias eram discutidas com generais influentes e foram levadas para dentro do Palácio da Alvorada.

As mensagens obtidas pela Polícia Federal mostram que o general da reserva Mario Fernandes organizou uma operação clandestina para consumar o golpe. A ação envolvia o monitoramento de alvos, o uso de um lançador de granadas e até o envenenamento de Lula e Alexandre de Moraes. Segundo os investigadores, ele levou o plano ao Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro estava entocado.

A PF também aponta que um grupo de "kids pretos", militares de elite que seriam responsáveis pela execução dos crimes, se reuniu na casa do general Braga Netto em 12 de dezembro de 2022. Três dias depois, eles prepararam uma tocaia para uma provável prisão ilegal de Moraes.

O plano do golpe vestia farda dos pés à cabeça. Depois da operação, Bolsonaro deveria criar um gabinete de crise que seria comandado pelos generais Braga Netto e Augusto Heleno, com a participação de outros militares.

Segundo documentos dos golpistas, o arcabouço jurídico desse período de exceção seria elaborado pelo Superior Tribunal Militar, e as Forças Armadas participariam da organização de novas eleições. O STM divulgou uma nota em que rejeita a hipótese de envolvimento na empreitada.

A tentativa de ruptura nunca foi apenas um sonho pessoal de Bolsonaro, seguido de forma obediente por seus aliados na caserna. Os fardados que estiveram no poder durante o mandato do ex-presidente tinham seus próprios interesses. Não é difícil imaginar quem exerceria autoridade dentro de um regime iniciado por um golpe militar.

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DNA MILITAR DO GOLPE DE BOLSONARO DIFICULTA VIDA DA DEFESA

Igor Gielow, Folha de S. Paulo

Ação da PF ocorre em meio à pressão por cortes, que atiçam antipetistas da ativa

A operação da PF que revelou o indiscutível DNA militar da trama urdida para tentar manter Jair Bolsonaro (PL) no poder no fim de 2022, incluindo ali nada menos que execuções de autoridades, atinge a área da Defesa em um momento delicado.

O ministro José Múcio está tentando driblar a demanda da Fazenda pelo ingresso da pasta no pacote de corte de gastos, e foi pressionado pelo colega Fernando Haddad, que disse que só falta a parte dos fardados para fechar a conta.

Não que uma coisa tenha a ver com a outra, é óbvio, mas no caldo de difícil cozimento que é a relação Lula-militares, tudo se retroalimenta.

Já ao longo desta tarde de terça (19) havia oficiais-generais da ativa sussurrando por grupos de WhatsApp suas suspeitas acerca da operação, alegando que seu "timing" era estranho e questionando o fatiamento da investigação pela PF.

A ausência de ação contra aquele que vem sendo apontado como o eixo da trama, Walter Braga Netto, chama a atenção desses fardados. O general nunca foi muito bem visto no Alto-Comando por seus pares, dadas suas pretensões política abertas.

Afinal de contas, deixou publicamente a farda para ser ministro de Bolsonaro e, depois, seu candidato a vice na chapa derrotada por Lula (PT) em 2022.

Era visto como uma versão ativa e pragmática da linha dada a zonas cinzentas do general Augusto Heleno, que era chamado de "Raspútin da Alvorada" por alguns de seus ex-colegas de farda naqueles obscuros meses em que Bolsonaro trancou-se em casa deprimido pela derrota e em meio a vendaval de golpismos.

Ao menos um deles, ainda que inexequível por descontar a falta de adesão da tropa e a resistência dentro das Forças, tinha alguma espinha dorsal, ora sendo destrinchada pela polícia. Onde chegará, é algo a ver.

Para Múcio, o desafio é desassociar as coisas, seu trabalho desde que foi anunciado na quase inexistente transição de governo, em dezembro de 2022. De lá para cá, o ministro virou alvo preferencial do PT, que o acusa de passar pano para golpistas em nome da estabilidade do estamento militar.

De tempos em tempos, o queixume vira proposta que os fardados identificam como danosas, ainda que prevaleça a ordem unida simbolizada pelo comandante do Exército, Tomás Ribeiro Paiva. Uma das primeiras contendas foi a da mudança do artigo que rege o emprego militar, o famigerado 142 da Constituição. Múcio venceu. 

Neste ano, surgiu o tema da aposentadoria dos militares, que segue um rito à parte do funcionalismo. O ministro ameaçou deixar a cadeira se a ideia fosse em frente e assim a esfriou, só para vê-la reintroduzida no debate das contas públicas.

O tema incomoda muito a cúpula militar. A reportagem já ouviu de seus integrantes falas críticas ao PT e a Lula devido à ideia de mexer no assunto que em nada devem ao que diziam generais da ativa mesmo antes da eleição de Bolsonaro.

Outro alvo usual de cortes em tempo de crise, os programas estratégicos das Forças, também pode ser acionado. O problema aí é conciliar compra de caças com a vontade expressa por Lula de ter um avião novo, por exemplo.

Novamente, são coisas distintas, mas aos olhos do público e na retórica de Haddad, é tudo igual. Com o mal-estar generalizado na caserna devido às parcelas que ainda paga pela associação com o bolsonarismo, é um capítulo de crise já contratado.

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O CONGRESSO E O GOLPE DE BOLSONARO

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

Com mais provas do golpe de Bolsonaro, direitão e centrão do Congresso se fingem de mortos

Parlamentares vão continuar cozinhando projeto de anistia de ex-presidente?

ataque terrorista da semana passada teria "enterrado" as tentativas de dar cabo do plano de anistia de Jair Bolsonaro e de quem atacou as sedes dos Poderes no 8 de Janeiro —o movimento maior mesmo é de livrar Bolsonaro, da inegibilidade e do inquérito do golpe.

Talvez não enterrasse. Sem novidades, com o passar dos meses e a depender dos acordões do Congresso, sempre se pode tentar dar um jeito. O acordão de enterro da Lava Jato levou meia dúzia de anos para dar certo, de resto com a colaboração da repulsiva República de Curitiba.

Nesta terça-feira (19), o acordão para livrar a cara de Bolsonaro e comparsas levou mais um tombo. Segundo a PF, a gangue de militares do golpe planejava assassinar a cúpula da República e organizava parte da coisa sob as barbas do general Braga Netto, braço forte de Bolsonaro.

Com as prisões de militares e mais delações, mais podres virão, indicam investigadores da PF. O resultado do inquérito sobre Bolsonaro sairia apenas no início de 2025.

Fora o caso de polícia brutal, há o caso de política. O que vão fazer os direitões e centrões que dominam o Congresso? Até agora, fora o bolsonarismo de sangue, lideranças e a maioria se fingem de mortos, mudam de assunto ou esperam para ver como é que fica.

terrorista da semana passada é um elemento da onda de propaganda e ataque criminoso de Bolsonaro ao STF (que prometeu não cumprir ordens do tribunal) e às eleições (que prometeu cancelar). A organização militar golpista era um instrumento assassino para levar o plano adiante. O plano morreu porque menos de um terço do Alto Comando apoiaria o golpe, diziam os militares golpistas.

O que há de novo? A Polícia Federal descobriu mais detalhes e agravantes do plano de golpe militar. De mais grave, havia o plano de assassinar o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, talvez também seu vice, Geraldo Alckmin, e de ao menos sequestrar Alexandre de Moraes, ministro do Supremo, operações que seriam levadas a cabo na segunda quinzena de dezembro de 2022.

Talvez mais substancial, as investigações da PF colocam o grupo de oficiais do Exército em uma reunião na casa do general Braga Netto, ministro da Casa Civil, ministro da Defesa e candidato a vice de Bolsonaro em 2022.

Segundo a PF, o general de brigada (reserva) Mário Fernandes, sub da Secretaria Geral da Presidência de Bolsonaro, comandava a organização dos ataques assassinos, mas não apenas. Articulava-se com os acampados no Quartel General do Exército, tentava dar apoio logístico a essa tropa do golpe, "pessoal do agro" e "caminhoneiros", e tinha contatos com acusados de ataques terroristas no dia da diplomação de Lula, em 12 de dezembro (quando houve incêndio de veículos e tentativa de invasão da PF).

Tudo era coordenado por Mauro Cid, ora tenente-coronel, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Cid também estava no centro de malfeitos como a falsificação dos certificados de vacina de Bolsonaro e a muamba das joias das arábias.

No início de dezembro, Bolsonaro e entorno discutiam uma "minuta de golpe" e como fazer com que o comando das Forças Armadas aderisse à intervenção militar contra o resultado da eleição e contra o Supremo. Toda essa conversa agora se amarra e se comprova, mais e mais.

O Congresso será cúmplice do golpismo?

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PLANO ERA MATAR LULA, ALCKMIN E MORAES

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

As evidências colhidas por STF e PF apontam que segundo documento-chave do plano, intitulado "Punhal Verde Amarelo", foi elaborado pelo general Mario Fernandes

O plano para matar o presidente Luiz Inácio lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, revelado, nesta terça-feira, pela Polícia Federal (PF), roubou a cena do último dia de reunião do G20 e tornou-se o principal assunto político de Brasília. As investigações mostram que havia, sim, um plano golpista, que seria iniciado no dia 15 de dezembro de 2022, com o sequestro e/ou assassinato de Moraes, mas foi abortado em razão de um imprevisto: a suspensão da sessão do Supremo marcada para aquele dia.

O plano para envenenar ou executor o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e assassinar o vice Geraldo Alckmin com objetivo de manter o ex-presidente Jair Bolsonaro no poder, foi descoberto com recuperação de mensagens do celular do tenente-coronel Mauro Cid, então ajudante de ordens da Presidência da República. A localização dos contatos incrimina também o ex-ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, general de quatro estrelas, que foi escolhido como candidato a vice na chapa de Bolsonaro e era um dos chefes do grupo que pretendia impedir a posse de Lula. Uma das reuniões para traçar o plano, segundo a PF, teria sido realizada na casa do militar.

A descoberta dos arquivos, que haviam sido deletados, complica ainda mais a situação de Mauro Cid, que não havia fornecido essas informações na sua delação premiada. Todo réu tem direito a não fornecer provas contra si próprio, porém, no caso de delação premiada, isso pode resultar na anulação desse benefício, porque o acordo exige que o delator fale tudo o que sabe. Nesta terça-feira, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro prestou um longo depoimento à PF e disse que não sabia da existência do plano.

Até agora, o principal militar comprovadamente envolvido na conspiração é o general Mário Fernandes, ex-assessor da Presidência, que aparece com a camisa da seleção brasileira em atos pró-Bolsonaro em Copacabana. Ex-secretário-executivo da Secretaria Geral do governo do ex-presidente, também exerceu a função de assessor do deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), mas foi afastado do posto por determinação do STF.

Mais três militares do Exército ligados às Forças Especiais da corporação, os chamados "kids pretos", participaram do grupo: o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, que já havia sido preso pela PF em fevereiro, com outros 16 militares, e participou da reunião de "preparação" do golpe, em 2022, na casa de Braga Netto; o major Rodrigo Bezerra Azevedo, que servia no Comando de Operações Especiais, em Goiânia, em 2022; e o major Rafael Martins de Oliveira, com quem a PF apreendeu, em fevereiro deste ano, os materiais que mostram que o ministro Alexandre de Moraes era monitorado.

Um policial federal, que participou da segurança de Lula, também foi preso: Wladimir Matos Soares passava informações sobre a segurança do atual presidente e está envolvido no caso da falsificação do atestado de vacina de Bolsonaro. Rafael Oliveira e Hélio Lima teriam participado de uma reunião, em 12 de novembro, na casa de Braga Netto, na companhia de Mauro Cid. Após este encontro, Rafael teria enviado a Cid um documento em formato word intitulado "Copa 2022", que detalhava as necessidades iniciais de logística, armas e recursos financeiros para realizar uma operação planejada para 15 de dezembro.

"Punhal Verde e Amarelo"

Ao recuperar o material, a PF descobriu que o grupo "Copa 2022", com codinomes de países que estavam disputando a Copa do Mundo naquele ano, planejava o sequestro de Moraes, que foi abortado. A PF cruzou dados de chips de celular, aluguel de carros e outras fontes. Concluiu que o grupo monitorava o ministro. Os celulares estavam cadastrados em nomes de terceiros, em outras regiões do país.

"Às 20h33, a pessoa associada ao codinome 'Brasil' informa um dos locais em que estavam atuando. Diz: 'Estacionamento em frente ao Gibão Carne de Sol [restaurante]. Estacionamento da troca da primeira vez'. Em seguida, a pessoa associada ao codinome 'Gana' informa que já estava no local combinado: Tô na posição'. O interlocutor 'Brasil' responde 'Ok'". A troca de mensagens continua até que, às 20h57, a pessoa de codinome Áustria diz: "Tô perto da posição. Vai cancelar o jogo?". Cerca de dois minutos, Japão, o suposto líder do grupo, respondeu: "Abortar... 'Áustria'... volta para local de desembarque... estamos aqui ainda..."

As evidências colhidas pela PF apontam que um segundo documento-chave da investigação, denominado "Punhal Verde e Amarelo", foi elaborado pelo general Fernandes. Esse arquivo revela um "planejamento operacional" que "tinha como objetivo executar o ministro Alexandre de Moraes e os candidatos eleitos Luíz Inácio Lula da Silva e Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho".

A PF aponta que o documento foi impresso pelo general no Palácio do Planalto, em 9 de novembro de 2022. Nessa mesma ocasião, os aparelhos telefônicos de outros investigados — Rafael Oliveira e Mauro Cid — também estavam conectados à rede que cobre o Palácio do Planalto. Depois, esses papéis foram levados ao Palácio da Alvorada, residência oficial do então presidente Bolsonaro.

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'QUATRO LINHAS DA CONSTITUIÇÃO É O CACETE'

Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo

‘Quatro linhas da Constituição é o cacete’: militares golpistas queriam acabar com o Alto Comando

Em conversas, general Mário Fernandes trata de ideia de modificar a organização das Forças Armadas em razão da oposição ao golpe entre oficiais generais, principalmente do Exército, e demonstra ataque à legalidade

A história do golpe bolsonarista ganhou uma nova face: a das mensagens entre o general Mário Fernandes e o coronel Reginaldo Vieira de Abreu, seu chefe de gabinete. Elas mostram detalhes cruciais para entender a empreitada, como a resistência do Alto-Comando do Exército.

Vieira escreveu a Fernandes, em 19 de dezembro de 2022: “Cinco (generais) não querem, três querem muito e os outros, zona de conforto. É isso. Infelizmente”. Ambos reclamavam do Alto-Comando do Exército (ACE). Queriam mudar a forma como as decisões são tomadas no colegiado, estabelecer uma chefia de Estado-Maior Conjunto, como nos EUA, e acabar com o ACE. “A lição que a gente deu para a esquerda é que o Alto-Comando tem que acabar. Se cria um general de cinco estrelas (...), mexe na promoção dos generais e só se promove, nos próximos oito anos, só um general quatro estrelas. Aí acaba essa palhaçada de unanimidade.”

Fernandes diz ao subordinado: “Tem o dissidente, tem os filha da p... lá, tem, já tá comprovado. Mas nós sabemos que é um colegiado, cara. Cinco caras não iam interferir tanto assim. (...) Cara, o presidente tem que decidir e assinar esta m...” Em diálogos anteriores, o coronel havia revelado ao general seu estado de ânimo diante da indefinição sobre o golpe: “O senhor me desculpe a expressão, mas quatro linhas é o car... Quatro linhas da Constituição é o cacete. Nós estamos em guerra, eles estão vencendo, está quase acabando e eles não deram um tiro por incompetência nossa”.

Em 4 de novembro, Fernandes escreveu ao colega de governo, o general Luiz Eduardo Ramos. Revelou a ligação entre o Plano Punhal Verde e Amarelo, os acampamentos em frente aos quartéis e os ataques de 8 de janeiro. É que o golpe exigiria clamor popular, como em 1964, para que o Exército o apoiasse.

“O senhor tem que dar uma forçada de barra com o Alto Comando, cara. Com o general Freire Gomes (então comandante do Exército), com o general Paulo Sérgio, porra (...) Tá na cara que houve fraude, porra (...). E outra coisa, nem que seja pra divulgar e inflamar a massa. Pra que ela se mantenha nas ruas e aí, sim, talvez, seja isso que o Alto Comando, que a Defesa quer. O clamor popular, como foi em

64. Porque como o senhor disse mesmo, boa parte do Alto Comando, pelo menos do Exército, não ‘tá’ muito disposto, né? Ou não vai partir pra intervenção, a não ser que, pô, o start seja feito pela sociedade. Pô, general, reforça isso aí. Eu tô fazendo meu trabalho junto à Brigada (de Operações Especiais) e ao pessoal de divisão (generais) da minha turma (de 1986, da Academia das Agulhas Negras), cara. Força, Kid Preto.” É preciso acrescentar alguma coisa mais?

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PREPARAÇÃO DO GOLPE FOI DO ENVENENAMENTO AO ATENTADO DE TÁXI

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

Elo entre o Planalto e os acampamentos, general Mario Fernandes coloca Bolsonaro dentro do 8/1

Os autos da Operação Contragolpe, deflagrada pela Polícia Federal na terça, relatam a preparação de um golpe de Estado dentro do Palácio do Planalto em atos que vão da ousadia do envenenamento de um presidente eleito ao amadorismo de um atentado contra ministro do Supremo Tribunal Federal por um agente que se deslocava de táxi.

O eixo da operação é o general de brigada Mario Fernandes. A recuperação de seus diálogos e das planilhas do golpe que lhe foram atribuídas mostra a degradação a que chegou o Exército nos anos que precederam a chegada do ex-presidente Jair Bolsonaro ao poder. O descompromisso com a institucionalidade foi de um oficial que comandou o batalhão de Operações Especiais, um grupo de elite do Exército, destinado a missões de alto risco.

Secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, primeiro cargo que exerceu depois de passar para a reserva, Fernandes continuou a comandar oficiais egressos das Forças Especiais, desta vez, para operações golpistas. Por derradeiro, as ações nas quais se envolveu não apenas jogam a anistia aos golpistas do 8/1 para as calendas, como contribuirão para minar as resistências a uma reforma do sistema social dos militares.

Três meses antes da eleição, Fernandes tentou convencer o ex-presidente Jair Bolsonaro a se antecipar a uma eleição que já davam por fraudada. “É 64 de novo? É uma junta de governo? É um governo militar? É um atraso de tudo o que se avançou no país? Porque isso vai acontecer. O país vai ser todo desarticulado.” A pressão por um decreto presidencial fechando o regime revelava o mal-estar com o Alto Comando do Exército. Nas suas contas, dos 16 generais do colegiado, cinco resistiam ao golpe, três “querem muito” e os demais estariam na “zona de conforto”.

O regime que surgiria de uma quebra da institucionalidade determinada pelo comandante-em-chefe estaria a cargo de generais de pijama a partir de um gabinete de crise integrado pelo então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno Ribeiro, e pelo ex-ministro da Casa Civil Walter Braga Netto. Num dos diálogos reportados pela Polícia Federal, Mario Fernandes mostra-se determinado a convencer Bolsonaro de que Braga Netto deveria voltar para o Ministério da Defesa com vistas a dobrar as Forças Armadas rumo ao golpe.

Os relatos de Fernandes, que tinha acesso direto à Presidência da República, sobre a falta de paciência dos acampados com a lerdeza do golpe, joga por terra a linha de defesa de que Bolsonaro, da Flórida, para onde viajou em 31 de dezembro, estava alheio à invasão dos Poderes em 8 de janeiro.

A proximidade entre Fernandes e Braga Netto, em casa de quem foi realizada uma das primeiras reuniões preparatórias ao golpe, também sugere que o ex-ministro da Casa Civil não custará a ser atingido pelas próximas operações. Outro general que tem tido sua atuação nos atos preparatórios ao golpe preservada, mas é abertamente citado no relatório da PF, é o general Estevam Cals Theophilo de Oliveira. Á época dos fatos descritos, Theophilo estava à frente do Comando de Operações Terrestres (Coter), unidade responsável pelo emprego direto de tropas no caso de uma intervenção militar. Nesta condição, integrava o Alto Comando do Exército. Permaneceu no cargo até o fim de 2023. Seu irmão, Guilherme Theophilo, foi secretário de Segurança Pública sob Bolsonaro e candidato ao governo do Ceará pelo PSDB em 2018.

Já o então comandante do Exército, general Freire Gomes, é reiteradamente citado como fonte de resistência às manobras golpistas. Em 7 de dezembro, por meio do coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Fernandes encaminha um vídeo para o general Freire Gomes. Tanto no vídeo quanto nas conversas com o ex-presidente, o esforço do general é o de provar que a presença dos movimentos antidemocráticos nas ruas indicava a possibilidade de se perder o controle da situação, o que exigiria uma ação rápida. A PF descreve a pressão exercida por Fernandes como decorrente da aproximação de 20 de dezembro, prazo em que o comando das Forças Armadas seria passado para militares indicados pelo governo eleito, a que as mensagens se referem como “governo do presidiário”. Esses diálogos foram captados no celular de Mauro Cid por meio de um sistema israelense que permite a decodificação de mensagens apagadas. As informações levaram à revisão da delação premiada do ex-ajudante de ordens porque evidenciam que ele não contou tudo que sabia.

Se há elementos de sobra para comprovar este planejamento, as lacunas aparecem no monitoramento do ministro Alexandre de Moraes, também supervisionado por Fernandes. Mauro Cid e o coronel Marcelo Câmara, ex-assessor de Bolsonaro que já foi preso e hoje está em regime de liberdade condicional com tornozeleira eletrônica, trocam mensagens sobre o tema. Se há dias em que o monitoramento tem a placa de veículos utilizados, há outros, como o 15 de dezembro de 2022, que a polícia traz como a data em que “possivelmente seria realizada a prisão/execução do ministro Alexandre de Moraes” em que o agente envolvido ficou, literalmente, a pé.

Esta ação teve celulares habilitados em nomes de terceiros com codinomes. Uma das pessoas, Arão Edmundo da Silva (“Gana”), deixa seu ponto de observação próximo à residência de Moraes a pé porque não conseguiu encontrar um táxi. Ele foi instruído a deixar o local depois do adiamento, pelo Supremo, da votação sobre o chamado orçamento secreto. O monitoramento também se mostra amador porque quando o ministro se desloca para São Paulo, no segunda quinzena de dezembro, os agentes desconhecem seu endereço, informação disponível até na imprensa.

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EFEITOS COLATERAIS DA OPERAÇÃO CONTRAGOLPE

Fernando Exman, Valor Econômico

Detalhes da trama golpista emergiram quando os principais líderes do mundo ainda estavam reunidos no Rio de Janeiro para o último dia da cúpula do G20

Deflagrada nas primeiras horas dessa terça-feira (19) pela Polícia Federal, a Operação Contragolpe tem a implicação prática e imediata, que converge com os interesses do Ministério da Defesa, de dar mais um passo na direção de separar os CPFs dos militares supostamente envolvidos na trama golpista dos CNPJs das Forças Armadas. Mas ela tem efeitos colaterais que não devem ser desprezados.

Não foi algo corriqueiro. A operação revelou uma estratégia para matar em 2022 o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro militares do Exército foram presos por envolvimento na trama, além de um agente da própria PF.

Criou-se um constrangimento para os militares, em meio às discussões conclusivas sobre o pacote que será adotado pelo governo para controlar as despesas públicas.

Faz praticamente uma semana que o Ministério da Defesa foi convocado para debater medidas adicionais de contenção de gastos. Pastas da área social já haviam tratado do assunto com a equipe econômica e o próprio presidente Lula, mas as Forças Armadas foram deixadas por último. E diferentemente do que ocorreu com alguns ministros civis, não houve quebra de hierarquia: nenhum oficial fez queixas ou ameaças públicas ao presidente da República, comandante em chefe das Forças.

Militares argumentam que a atividade na caserna tem particularidades e o seu sistema de seguridade não deve ser considerado um regime previdenciário. Para autoridades civis, contudo, alguns pontos dele podem ser aprimorados. Mais do que uma grande economia, acrescentam, essas mudanças teriam um efeito “simbólico”.

Na visão de interlocutores de Lula, o esforço fiscal deve ser feito por todos os segmentos da sociedade, e não somente pela camada mais pobre da população. Em outras palavras, não apenas pelos eleitores tradicionais do PT, e por esse motivo se decidiu ouvir mais uma pasta antes da conclusão do desenho do pacote que visa a sustentabilidade do novo arcabouço fiscal.

Além disso, as notícias sobre a operação da PF chegaram a um qualificadíssimo público sem filtros ou atrasos.

Já era de conhecimento da comunidade internacional o ambiente político conturbado no Brasil durante o processo eleitoral de 2022, o que levou à realização de articulações entre interlocutores de Lula e autoridades estrangeiras antes mesmo do pleito. Uma das preocupações era que acontecesse um tumulto semelhante ao ocorrido em Washington no dia 6 de janeiro de 2021: na ocasião, uma multidão invadiu a sede do Congresso americano para tentar impedir a confirmação da vitória do presidente Joe Biden na eleição e a derrota de Donald Trump.

Tanto que houve um rápido reconhecimento, por parte da Casa Branca, do resultado das eleições brasileiras. Por meio de uma nota, Biden parabenizou Lula pela vitória pouco mais de meia hora depois do anúncio oficial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Para dissipar qualquer contestação do resultado, o presidente americano citou ainda o fato de as eleições terem sido “livres, justas e críveis”. Ele não tardou a ser acompanhado por líderes europeus e latino-americanos naquela mesma noite.

Nessa terça-feira, contudo, os estarrecedores detalhes da trama golpista emergiram quando os principais líderes do mundo ainda estavam reunidos no Rio de Janeiro para o último dia da cúpula do G20. Lula tratou a questão com discrição, sem deixar que a operação ofuscasse o evento preparado há meses pela chancelaria. Ainda assim, o noticiário sobre a conspiração não teve como ser ignorado pela comunidade internacional.

Em outro potencial desdobramento, deve ser mantida a pressão da oposição para que uma proposta de anistia avance no Congresso. No entanto, os novos fatos revelados reforçam a convicção no STF de que a ideia não tem como prosperar.

O artigo 5 da Constituição, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, estabelece que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. O indulto dado ao ex-deputado Daniel Silveira foi cancelado devido à interpretação de que atos atentatórios à democracia e ao estado democrático de direito tampouco podem ser objeto de anistia.

Cresce, também, a atenção dentro do governo em relação às indicações para o Superior Tribunal Militar (STM). Isso porque, segundo as investigações, o arcabouço jurídico do golpe seria desenhado justamente pela corte. O STM refuta veementemente essas afirmações.

Lula já fez uma primeira indicação, a do general de Exército Guido Amin Naves. Ele exercia o comando militar do Sudeste, é considerado um legalista e, se for aprovado pelo Senado, deve ocupar uma cadeira que ficará vazia no mês que vem.

Outra vaga só abrirá em 2025. Porém, já há movimentações no Supremo, na área jurídica do Executivo e na Defesa para a indicação, considerada delicada e estratégica.

O ministros do STM julgam os crimes previstos no Código Penal Militar cometidos por integrantes das Forças Armadas ou civis. São peças importantes no processo de pacificação das instituições.

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O CERCO SE FECHA EM TORNO DE BOLSONARO

Vera Magalhães, O Globo

Apurações sobre plano para matar autoridades se aproximam um pouco mais a cada etapa de nomes do círculo mais próximo do ex-presidente, como Braga Netto e Augusto Heleno

Se, na semana passada, o ataque de um extremista à Praça dos Três Poderes foi o ato tresloucado que explodiu as conversas para uma anistia aos golpistas do 8 de Janeiro, as revelações estarrecedoras desta terça-feira sepultam qualquer tentativa de minimizar as tentativas de supressão da democracia naquele dia e nos meses que o antecederam. Os subordinados diretos de Jair Bolsonaro urdiram o assassinato de autoridades de primeiro escalão da República para manter o ex-capitão no poder.

A gravidade do que se tem até aqui é inaudita. Mas, como as investigações insistem em demonstrar, não é possível assegurar que tenhamos chegado a todos os fatos e a todos os envolvidos na trama. Os novos depoimentos do tenente-coronel Mauro Cid — personagem que permitiu que se desenrolasse o fio da meada da tentativa de melar a eleição e empastelar a democracia — e também dos cinco presos ontem mostrarão quem mais estava no plano, a mando de quem e com que grau de anuência e deliberação de Bolsonaro e de seus ministros mais próximos.

Como informei em meu blog, a prisão do ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto ainda não foi pedida, mas por excesso de zelo da Polícia Federal em preencher os requisitos técnicos e jurídicos para embasá-la. Até aqui, a evolução das investigações tem se dado de fora para dentro, descrevendo círculos que vão ficando menores, até chegar ao núcleo decisório e político do golpismo.

Na operação de ontem, se chegou pela primeira vez à prisão de um general da reserva, Mário Fernandes, mas ainda com menos poder e proximidade com Bolsonaro que Braga Netto ou Augusto Heleno, de quem as apurações se aproximam um pouco mais a cada etapa. Diante do que veio à tona até aqui, com um plano impresso nas dependências do Palácio do Planalto em que se admitia a eliminação do então presidente eleito Lula, do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, é impossível dizer se haveria um limite ao que os bolsonaristas inconformados com a derrota estavam dispostos a perpetrar.

O ministro Paulo Pimenta foi feliz na escolha da palavra: foi por um detalhe que o Brasil, menos de 40 anos depois de reconquistar sua democracia, não assistiu a uma nova quartelada para suprimi-la. A extensão das tratativas e a abundância de rastros deixados explicam o nervosismo que se abateu sobre Bolsonaro, familiares e aliados nos últimos meses, desde a mobilização para o reiterado sequestro do Sete de Setembro para pregar contra o Judiciário até a campanha indecente pela injustificável anistia aos bagrinhos do 8 de Janeiro — mirando, evidentemente, não neles, mas nos fardados e em seus superiores, que estavam mergulhados até a cabeça na articulação para assassinar adversários e reinstalar o arbítrio no país.

Muito se tem discutido, também neste espaço, a respeito da extensão dos inquéritos sob a relatoria de Alexandre de Moraes. É possível encontrar argumentos jurídicos para questionar o fato de, sendo vítima dessa e de outras tramas sob investigação, ele continuar relatando os inquéritos. Nada disso, no entanto, é capaz de desviar o debate do que é central: não fosse a atuação firme e articulada da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do Judiciário, a democracia teria soçobrado.

A Justiça formou sucessivas barreiras, primeiro no TSE, depois no Supremo, às ações do ex-presidente para se perpetuar no poder, primeiro tentando evitar as eleições de 2022 , depois com as maquinações que até aqui já têm as digitais de nomes de alta patente de seu entorno para impedir a diplomação, a posse e o governo de Lula.

O inquérito da tentativa de golpe pré-8 de Janeiro será concluído até o fim do ano. Não só não haverá anistia, como parece claro que os próximos alvos estão num círculo ainda mais restrito e nuclear.

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